Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1337/11.9TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA COIMA
SITUAÇÃO ECONÓMICA DO AGENTE
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 18º, DO DL 433/82, DE 27/10
Sumário: Tendo em vista a determinação da medida da coima (cfr. art.º 18º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27/10), se se justificar e for possível, através da prova oralmente a produzir em julgamento ou da recolha de documentos idóneos, deve o tribunal a quo apurar a condição económica da arguida, consagrando-a na sentença a proferir.
Decisão Texto Integral:

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Proc. n.º 1337/11.9TBVNO.C1

I. Relatório:
1. A Junta de Freguesia de U... impugnou judicialmente a decisão da Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território que lhe impôs a coima de € 38500,00 (trinta e oito mil e quinhentos euros), pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista no artigo 18.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março, e punida nos termos previstos na alínea b) do n.º 4 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, na redacção dada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto.
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2. Formulou nas conclusões da motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - É falso o que se diz no auto/decisão;
2.ª - No dia e hora referidos no auto de contra-ordenação, a Arguida não praticou a infracção que daí consta;
3.ª - No nosso direito contra-ordenacional, só pode ser condenado quem de facto praticou o acto;
4.ª - A Arguida não pode ser condenada pelos factos constantes do auto de contra-ordenação, visto que não praticou nenhuma infracção;
5.ª - E, em consequência disso, deve o presente processo de contra-ordenação ser arquivado;
6.ª - O que aqui se requer;
7.ª - Ao abrigo do n.º l do artigo 41.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, são aplicáveis ao presente processo, sempre que não resulte o contrário, os preceitos do processo penal;
8.ª - A Arguida apenas pode ser acusada e condenada pela prática de um facto que seja determinado, típico, ilícito e culposo.
9.ª - Da decisão e do auto de contra-ordenação que lhe deu causa, não parece haver o preenchimento de todos os requisitos ora apresentados;
10.ª - Dizer-se apenas aquilo que se diz no auto e na decisão, não é suficiente para que a mesma seja condenada;
11.ª - O autuante limitou-se a copiar para a folha do Auto, que agora se põe em crise, a disposição legal correspondente;
12.ª - Não se fazendo neste caso em concreto, a descrição dos factos e das circunstâncias em que foram praticados;
13.ª - Na decisão que agora se impugna, não consta que tipos e quantidades de materiais foram "despejados", etc.;
14.ª - A falta de tais descrições fácticas, leva a que a mesma tenha de ser absolvida;
15.ª - Absolvição essa que aqui se requer desde já;
16.ª - Sem prescindir, caso assim não se entenda, a Arguida alega que não é verdade que no dia 23 de Setembro de 2009, pelas 16:00 horas, na sequência de uma denúncia de várias descargas de entulho, num caminho que dá acesso às hortas de alguns munícipes, o Núcleo de Protecção Ambiental da GNR deslocou-se à freguesia de U...;
17.ª - Não é verdade que se verificou no local se encontrava o referido entulho;
18.ª - Não é verdade que o mesmo foi descarregado ao lado da linha de comboios;
19.ª - Não é verdade que quando a equipa do NPA se encontrava no local chegou uma viatura e que esta se preparava para efectuar uma descarga de vários resíduos;
20.ª - Não é verdade que os resíduos eram provenientes de obras a cargo da Junta de Freguesia de U...;
21.ª - Não é verdade que, posteriormente, a equipa do NPA se deslocou à Junta de Freguesia de U... para falar com o Presidente;
22.ª - Não é verdade que os resíduos tiveram origem na demolição de uma casa antiga, sem autorização/licença, para efectuar a descarga dos resíduos no referido local;
23.ª - Não é verdade que não foi efectuada a gestão de resíduos de construção e demolição, nem efectuada triagem dos resíduos;
24.ª - Basta ir ao local e verificar se lá existe algum entulho e/ou resíduo de construção e demolição;
25.ª - O que aqui se requer desde já, a visita deste Venerando Tribunal ao local indicado no auto;
26.ª - Não é verdade que os resíduos se encontram nas coordenadas constantes do auto;
27.ª - Não é verdade que a arguida fez a descrição da serventia entre a estrada n.º 113-1 e a Ribeira de U... e tirou fotografias ao referido local após ter removido os resíduos do local;
28.ª - Não é verdade que ao proceder à descarga dos RCD em local não licenciado para o efeito, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada;
29.ª - Não pode a arguida ser condenada pela prática de factos que não cometeu;
30.ª - Deve a arguida ser absolvida de todas as acusações;
31.ª - O caminho referido no auto não foi aberto pela Junta de Freguesia;
32.ª - Nem o entulho foi colocado por esta;
33.ª - Tudo o que foi colocado naquele caminho, foi-o pela Câmara Municipal de T..., a pedido dos proprietários confinantes, e que nessa altura necessitavam do caminho para aceder às suas propriedades;
34.ª - O caminho que existia antes, a alguns metros do presente caminho, foi destruído pela REFER, que depois das obras que levou a cabo para alargamento da via-férrea - apeadeiro de U... - abriu o caminho sem ter colocado tuvnan, que, sem isso, impossibilitou a circulação, pelo menos no tempo das chuvas, por pessoas, veículos, animais, etc.
35.ª - Daí que a Câmara Municipal de T..., a pedido dos proprietários confinantes, tenha disponibilizado máquinas, materiais e pessoal para colocar o leito do caminho, de modo que o mesmo se tornasse transitável;
36.ª - Antes as propriedades eram amanhadas e agora estão de pousio e ao abandono;
37.ª - Actualmente, no caminho apenas passam caçadores, na altura da caça, e com muitas dificuldades, visto que está cheio de silvas, com mais de 2 metros de altura, e arbustos, como se pode ver nas fotos que acima se reproduziram, para melhor análise deste Tribunal;
38.ª - Quem for ao local actualmente, nem repara que lá existe um caminho;
39.ª - Tem a acusação de improceder, por não provada, com todas as consequências legais daí resultantes;
40.ª - A legislação indicada no auto, nada tem a ver com o caso em concreto, pois não tem aplicação;
41.ª - O caminho é público, estando na jurisdição da Câmara municipal de T... e não da arguida;
42.ª - Não obstante, e sem prescindir, caso assim se não entenda, a arguida diz que foi informada que houve descargas ilegais de entulhos, numa das estradas da freguesia;
43.ª - Tais entulhos foram ali despejados, em virtude das obras levadas a cabo pela REFER, no alargamento da linha do comboio, e terem deixado a via sem condições de passagem, por estar constantemente a alagar-se devido às chuvas;
44.ª - Após tais obras, o caminho ficou mais baixo, tendo como efeito a sua constante inundação, cada vez que chovia;
45.ª - A arguida não sabe quem, nem de onde, provieram;
46.ª - A arguida não pretende ver as estradas da sua freguesia “entupidas” e “asfaltadas” com entulho, diligenciou no sentido de remover tais entulhos para o local apropriado, nomeadamente para as instalações da …, Lda.;
47.ª - Não deverá a arguida ser condenada, até porque a arguida se limitou a retirar os entulhos, e não a colocá-los;
48.ª - Devendo arquivar-se o presente procedimento;
49.ª - O que aqui se requer, com todas as consequências legais daí resultantes;
50.ª - Caso assim se não entenda, sem prescindir, a arguida diz que a condenação da arguida no pagamento do valor constante da decisão, afigura-se como desproporcional à conduta, caso esta venha a ser efectivamente provada;
51.ª - Caso venha a ser provado que foi a arguida a infractora, deverá ser reduzido ao mínimo, o montante da coima a pagar;
52.ª - O que aqui se requer, com todas as consequências legais daí resultantes.
Termos em que, se requer a V. Exa., o arquivamento do processo, e a consequente absolvição da Arguido, fazendo-se com isso a costumada justiça.
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3. Remetidos os autos ao Magistrado do Ministério Público do Tribunal Judicial de T..., foi determinado o seu envio a juízo, tendo em vista a apreciação do recurso.
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4. Em 21 de Setembro de 2011, a Sr.ª Juiz proferiu o despacho infra descrito:
«Por ter sido tempestivamente interposto, por quem detém legitimidade para o efeito, e com respeito pelas exigências de forma, admito o recurso interposto, de harmonia com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.
Pese embora a indicação de prova, notifique o arguido e o Ministério Público para informarem os autos se deduzem oposição a que seja proferida decisão por simples despacho, nos termos do art. 64.º, n.º 2, do RGCO.
Prazo: 10 dias».
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5. Em resposta, a arguida informou que “pretende apresentar prova”.
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6. Não obstante, em 18 de Outubro de 2011, a julgadora do tribunal de 1.ª instância lavrou despacho no qual declarou, por omissão dos factos conducentes às condições económicas da arguida, a irregularidade da decisão da entidade administrativa e, na sequência, determinou o arquivamento do presente processo e a sua remessa, após trânsito, àquela entidade, nos termos e para os efeitos do artigo 70.º, n.º 2, do RGCO.
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7. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, tendo rematado a motivação com as conclusões infra transcritas:
1.ª - Os presentes autos concernem a uma infracção contra-ordenacional em que foi proferido despacho judicial, em 18-10-2011, que arquivou o processo de contra-ordenação, por omissão dos factos conducentes às condições económicas da arguida, declarando a irregularidade da decisão da entidade administrativa.
2.ª - Os presentes autos concernem a uma infracção contra-ordenacional cometida pela Junta de Freguesia de U..., no dia 23 de Setembro de 2009, pelas 16h00, relativa à descarga de entulho num caminho que dá acesso às hortas dos munícipes, provenientes de obras a cargo da arguida, realizada sem a devida autorização/licença, a qual foi condenada, por decisão da entidade administrativa, pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, p. e p. pelo artigo 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de Março, na coima de 38,500,00€.
3.ª - Por despacho judicial a Mm.ª Juiz refere que a decisão administrativa “é omissa quanto às condições económicas da arguida. E obviamente, tratando-se de processo contra-ordenacional não competia à arguida fazer prova dessas condições, mas antes à entidade administrativa averiguar das mesmas”.
4.ª - Nos autos não se verifica a figura da irregularidade (p. pelo artigo 123.º, do C.P.P., ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do R.G.C.O.), ou a verificar-se a mesma não tem relevância material e consequentemente não é de conhecimento oficioso.
5.ª - Tendo por base o artigo 58.º do R.G.C.O., constata-se que a entidade administrativa assegurou o exercício efectivo do direito de defesa, o que implica o conhecimento da factualidade imputada, das normas legais respectivas e condições e termos de impugnação da decisão.
6.ª - No que concerne à consequência da omissão do apuramento concreto da situação económica da arguida, preceitua o artigo 18.º do RG.C.O. que tal critério é um dos que são tidos em consideração na determinação da medida da coima.
7.ª - A entidade administrativa investigou o facto contra-ordenacional e diligenciou pela junção aos autos de elementos comprovativos da situação económica da arguida - informação que se encontra na disponibilidade desta, concretamente, informação contabilística, etc…, inexistindo meios coercivos de aquisição da mesma, o que não se logrou, atenta a postura assumida pela arguida ao não facultar tais elementos (cfr. fls. 11 e 12).
8.ª - A decisão administrativa proferida pronunciou-se sobre todos os elementos previstos nos artigos 18.º e 58.º do R.G.C.O., de forma sumária.
9.ª - A entidade administrativa, perante a ausência de elementos económicos - fundamentada -, pese embora as diligências realizadas, aplicou a coima pelo mínimo legal, de acordo com os princípios que regulam o ordenamento contra-ordenacional por força do ordenamento processual penal.
10.ª - Por outro lado, mesmo que fosse conhecida a real situação económico-financeira da arguida nunca a entidade administrativa poderia aplicar coima inferior à determinada nos autos, pelo que a arguida beneficiou desta circunstância.
11.ª - Razão pela qual se constata que não só a entidade administrativa fundamentou o desconhecimento da situação económica, como tal factor foi tido em consideração na medida da coima, decisão essa que foi notificada à arguida e da qual teve pleno conhecimento, não se pronunciando na impugnação judicial quanto a esta temática em concreto, sendo nosso entendimento inexistir qualquer irregularidade nos autos.
12.ª - Todavia, e enquanto decorrência reflexa do acima explanado se dirá ainda que considerando existir irregularidade, o que não se concede, que a mesma não assume relevância material ou substancial, afigurando-se inócua e irrelevante, porquanto o desconhecimento da situação económica da arguida se consubstanciou nos autos na aplicação pelo mínimo legal da coima, não afectando o valor do acto praticado (vide o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do R.G.C.O.).
13.ª - Deste modo, a reparação oficiosa das irregularidades impõe-se somente de acordo com o princípio da relevância material da irregularidade que determina que apenas as ilegalidade relevantes devem ser tidas como irregularidades, enquanto aquelas que afectam o valor do acto praticado, o que não se verifica nos autos.
14.ª - Acresce que a arguição de irregularidade enquanto vício formal de acto processual que não produz nulidade, não só tem de ser arguida pelo interessado como o tem de ser nos três dias seguintes após o conhecimento do acto ou a partir do momento em que intervém no processo - o que não ocorreu na impugnação judicial.
Nestes termos, dando provimento ao recurso, deverá a decisão recorrida ser revogada, assim se fazendo justiça!
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8. Regularmente notificada, a arguida não respondeu ao recurso.
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9. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procurador-Geral Adjunta apenas apôs “visto”.
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10. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Em processo de contra-ordenação, o regime de recurso interposto, para o Tribunal da Relação, de decisões proferidas em 1.ª Instância deve observar as regras específicas referidas nos arts. 73.º a 75.º do DL 433/82, de 27-10, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 244/95, de 14-09 e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12 (Regime Jurídico das Contra-Ordenações, doravante apenas designado por RGCO), seguindo, em tudo o mais, a tramitação do recurso em processo penal (art. 74.º, n.º 4), em função do princípio da subsidiariedade genericamente enunciado no art. 41.º, n.º 1, do citado diploma.
Em recursos interpostos de decisões do Tribunal de 1.ª Instância, no âmbito de processos de contra-ordenação, o Tribunal da Relação apenas conhece, em regra, da matéria de direito, sem prejuízo de poder “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação temática aos termos e ao sentido da decisão recorrida”, “anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido” (cfr. art. 75.º, n.ºs 1 e 2, ainda do mesmo corpo normativo).
Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do CPP).
A única questão suscitada pelo recorrente consiste em saber se a decisão administrativa padece (ou não) da irregularidade - de conhecimento oficioso, prevista no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º do RGCO - considerada na decisão recorrida.
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2. É deste teor a decisão administrativa, nas partes relevantes à questão de que cumpre conhecer (transcrição):
«(…)
Face aos elementos recolhidos é possível dar como provados os seguintes factos:
a) Que no dia 23 de Setembro de 2009, pelas 16h00 - cfr. Auto de Notícia n.º … - na sequência de uma denúncia a informar que tinham sido efectuadas várias descargas de entulho num caminho que dá acesso às hortas de alguns munícipes, o Núcleo de Protecção Ambiental (NPA) da GNR (Comando Territorial de Santarém - Destacamento Territorial de Tomar) deslocou-se à freguesia de U..., T....
b) Que verificou que efectivamente no local se encontrava o referido entulho.
c) Que o mesmo foi descarregado ao lado da linha de comboios.
d) Que quando a equipa do NPA se encontrava no local chegou uma viatura e que esta se preparava para efectuar uma descarga de vários resíduos.
e) Que foi abordado o condutor do veículo, … , que se fazia transportar num veículo de marca MITSUBISHI, de cor branca e com a matrícula … .
f) Que os resíduos eram provenientes de obras a cargo da Junta de Freguesia de U....
g) Que posteriormente a equipa do NPA deslocou-se à Junta de Freguesia de U... para falar com o Presidente, o Sr. … .
h) Que os resíduos tiveram origem na demolição de uma casa antiga e que a Junta de Freguesia de U... não tinha autorização/licença para efectuar a descarga dos resíduos no referido local.
i) Que não foi feita a gestão de Resíduos de Construção e Demolição, nem efectuada a triagem dos resíduos.
j) Que os resíduos encontravam-se nas seguintes coordenadas retiradas do GPSmap, com o modelo GRAMIN 60CSX: latitude 39º 40'35.1 e com a longitude 008º 30´23.9.
k) Que os factos acima mencionados foram apurados por … , Guarda n.º …, e testemunhados por … , Guarda n.º …, ambos do Núcleo de Protecção Ambiental (NPA) da GNR (Comando Territorial de Santarém - Destacamento Territorial de Tomar).
1) Que a arguida fez a descrição da serventia entre a estrada n.º 113-1 e a Ribeira de U... e tirou fotografias ao referido local após ter removido os resíduos do local.
m) Que a arguida, em 14/10/2009, encaminhou os RCDs para a empresa …Lda.
n) Que ao proceder à descarga dos RCD em local não licenciado para o efeito, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz.
Para a prova dos factos acima referidos (…), esta Inspecção-Geral fundamentou a sua convicção tendo por base a análise crítica e conjugada, segundo juízos de experiência comum e de normalidade social, do Auto de Notícia n.º … , lavrado em 7 de Outubro de 2009, pelo Núcleo de Protecção Ambiental (NPA) da GNR (Comando Territorial de Santarém - Destacamento Territorial de Tomar), das fotografias anexas, da pronúncia e dos documentos enviados pela arguida.
(…).
A gestão de Resíduos de Construção e Demolição (RCD) tem sido regulada pelo regime geral da gestão dos resíduos, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 178/2006, de 5 de Setembro, bem como pela legislação específica referente aos fluxos especiais frequentemente contidos nos RCD (resíduos de embalagens, os resíduos de equipamentos eléctricos e electrónicos, os polibifenilos policlorados (PCB), os óleos usados...). Contudo, têm surgido dificuldades ao nível da aplicação das disposições do regime geral a este fluxo de resíduos atendendo às questões muito específicas que lhe estão associadas. Os RCD apresentam particularidades que dificultam a sua gestão, de entre as quais se realça a sua constituição heterogénea com fracções de dimensões variadas e diferentes níveis de perigosidade. A actividade da construção civil apresenta igualmente algumas especificidades, tal como o carácter geograficamente disperso e temporário das obras, situação que prejudica o controlo e a fiscalização do desempenho ambiental das empresas do sector.
Existem igualmente algumas limitações quanto às soluções técnicas de valorização de RCD, incluindo ao nível da triagem, e aos locais apropriados e disponíveis para a instalação de unidades de deposição final destes resíduos, que se pretende que venham, no futuro, a ser limitadas aos resíduos não passíveis de valorização.
É pois evidente a premência da criação de condições legais para a correcta gestão dos RCD que privilegiem a prevenção da produção e da perigosidade, o recurso à triagem na origem, à reciclagem e a outras formas de valorização.
Neste enquadramento, o Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março pretende criar um regime jurídico próprio, que estabelece as normas técnicas relativas às operações de gestão de resíduos de RCD, garantindo a aplicação ao fluxo de RCD das políticas de redução, reutilização e reciclagem de resíduos preconizadas pelo legislador.
Tendo em conta a importância da adopção de uma abordagem que garanta a sustentabilidade ambiental da actividade da construção numa lógica de ciclo de vida, são definidas metodologias e práticas a adoptar nas fases de projecto e execução da obra que privilegiem a aplicação dos princípios da prevenção e da redução e da hierarquia das operações de gestão de resíduos.
Neste contexto, o presente decreto-lei prevê a aprovação de especificações técnicas relativas à utilização de RCD em diferentes tipos de materiais de construção. O diploma prevê também a possibilidade de reutilização de solos e rochas não contendo substâncias perigosas, derivados da actividade da construção, noutras obras, para além da de origem, bem como na recuperação ambiental e paisagística de pedreiras, na cobertura de aterros destinados a resíduos.
Esta reutilização de materiais ou o encaminhamento de RCD para reciclagem ou outras formas de valorização obrigam à criação de condições em obra no sentido da adequada triagem de materiais e de resíduos, por fluxos e fileiras ou, em alternativa, ao encaminhamento para operador de gestão licenciado para realizar essa operação sendo ainda definidos requisitos técnicos para as instalações de triagem e fragmentação.
A triagem prévia à deposição de RCD em aterro permite aumentar a reciclagem ou outras formas de valorização de RCD e, concomitantemente, minimizar os quantitativos de RCD depositados em aterro. O presente decreto-lei estabelece uma cadeia de responsabilidade que vincula quer os donos de obra e os empreiteiros quer as câmaras municipais. São criados mecanismos inovadores ao nível do planeamento, da gestão e do registo de dados de RCD, que permitem, em articulação com os regimes jurídicos das obras públicas e das obras particulares, condicionar os actos administrativos associados ao início e conclusão das obras à prova de uma adequada gestão destes resíduos. Decorre desde logo do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março a consagração do princípio da responsabilidade pela gestão dos resíduos, envolvendo todos os intervenientes no seu ciclo de vida, definindo o artigo 3.º, n.º l que “A gestão dos RCD é da responsabilidade de todos os intervenientes no seu ciclo de vida, desde o produto original até ao resíduo produzido, na medida da respectiva intervenção no mesmo, nos termos do disposto no presente decreto-lei”.
De acordo com o artigo 18.º, n.º l, do mesmo diploma, sob a epígrafe classificação das contra-ordenações prevê-se que constitui contra-ordenação ambiental muito grave “...o abandono e a descarga de RCD em local não licenciado ou autorizado para o efeito”.
Da matéria dada como provada resulta claro que a arguida procedeu à descarga de RCD em local não licenciado, pelo que praticou efectivamente a presente contra-ordenação.
Ficou ainda provado que, ao actuar desta forma, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, pelo que actuou de forma negligente.
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Nos termos do artigo 20.º, n.º l da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto, na redacção dada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto, a determinação da medida da coima faz-se “...em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa do agente, da sua situação económica e dos benefícios obtidos com a prática do facto”.
Relativamente ao facto de proceder à descarga dos RCD em local não licenciado ou autorizado para o efeito é uma situação pela qual não pode a arguida deixar de ser sancionada, uma vez que os intervenientes no ciclo de vida dos RCD têm de ser responsáveis por determinados comportamentos, com vista a controlar e reduzir ao mínimo os riscos que daí possam advir para a saúde pública e para o ambiente.
Acresce ainda que não pode deixar de relevar, para efeitos de aplicação das coimas, o facto da infracção ora em apreço ser considerada pela Lei como uma contra-ordenação ambiental muito grave, também face à moldura abstracta das coimas aplicáveis, que é muito elevada, pelo que deverá ser responsabilizada pela situação verificada.
Na apreciação do grau de culpa com que a arguida actuou e face à matéria de facto dada por assente, considera-se que esta não agiu com a diligência necessária para cumprir com as suas obrigações legais, não se descortinando quaisquer factos que retirem a censurabilidade à infracção por si praticada.
Assim, não tendo ficado demonstrado que a arguida agiu dolosamente ao praticar a infracção verificada, a punibilidade da actuação é, todavia, feita a título de negligência, nos termos do n.º 4 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março, uma vez que esta é censurável face aos cuidados que deveria e era capaz de ter tomado no exercício da actividade desenvolvida.
No que respeita à situação económica da arguida, não constam dos autos quaisquer elementos que permitam avaliar a mesma.
Finalmente e no que toca ao benefício económico retirado pela arguida com a prática da contra-ordenação, o apuramento deste benefício deverá ser feito tendo em consideração a natureza da contra-ordenação cometida e o apuramento das circunstâncias que rodearam a sua prática, entendendo-se por benefício económico todo o proveito económico que não ocorreria no património do agente se este tivesse adoptado a conduta que o ordenamento lhe impunha e não tivesse contrariado a acção administrativa.
Assim sendo, no caso concreto em apreço, considera-se que terá, de facto, existido algum benefício económico, consubstanciado nas despesas necessárias ao encaminhamento dos resíduos em causa para destino final adequado.
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Face ao exposto decide-se:
a) Condenar a arguida na coima de € 38.500,00 (trinta e oito mil e quinhentos euros), pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave p. e p. pelo artigo 18.º, n.º l do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março, sancionável com coima de €38.500,00 a €70.000,00, nos termos previstos na alínea b) do n.º 4 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto, na redacção dada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto.
(….)».
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3. Em momento anterior à prolação da decisão ora citada, a entidade administrativa notificou a arguida para, querendo, se pronunciar, por escrito, no prazo de 15 dias úteis, sobre os factos que lhe estavam imputados e respectiva qualificação jurídica e ainda para, no mesmo prazo, juntar aos autos os documentos probatórios de que dispusesse, cópia da última declaração de IRS/IRC que tivesse apresentado ou de quaisquer elementos que atestassem a sua situação económica, e arrolar testemunhas.

No entanto, a arguida não satisfez a referida solicitação, porquanto não juntou qualquer documento demonstrativo da sua condição económica.
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3. O despacho recorrido está fundamentado deste modo:
«O tribunal é competente.
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Veio a recorrente “Junta de Freguesia de U...” interpor recurso da decisão da “Inspecção Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território”, proferida no âmbito do processo de contra-ordenação n.° 2514/09 que a condenou na coima de € 38 500,00 pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 18.º, n.º 1, do DL 46/2008 de 12 de Março.
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Questão prévia:
De acordo disposto no art. 58.º, n.º 1, do RGCOC,
“A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) a identificação dos arguidos;
b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) a coima e as sanções acessórias.”

Da determinação da medida da coima:
Nos termos do art. 18.º do RGCOC, “a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que retirou da prática da contra-ordenação.”
Essa determinação constitui uma operação cuja responsabilidade se reparte entre o legislador e o aplicador da coima, seja a autoridade administrativa ou o juiz.
Assim, enquanto ao primeiro cabe estabelecer, um mínimo e um máximo para as molduras abstractas aplicáveis a cada um dos tipos legais de ilícitos de contra-ordenações descritos na legislação avulsa, à autoridade administrativa ou ao juiz caberá, respeitando as balizas fixadas pelo legislador, dizer, em concreto, qual a pena que, no caso em apreço deve ser aplicada.
No que toca à situação económica deve atender-se à situação pessoal do agente.

No que se reporta ao benefício económico que o agente retirou da prática da contra-ordenação, deve atender-se não só ao valor do dano causado, que é considerado na gravidade da contra-ordenação, mas ao benefício obtido.
Analisando a decisão administrativa é manifesto que a mesma é omissa quanto às condições económicas da arguida. E obviamente, tratando-se de processo contra-ordenacional não competia à arguida fazer prova dessas condições, mas antes à entidade administrativa averiguar das mesmas.
O que não pode é, como fez, deixar a averiguação desses elementos à mercê do que vier a ser dito pela arguida ou mesmo, e aqui merecedor de maior censura, do que o Tribunal, em sede de impugnação judicial, vier a apurar.

Das consequências da falta de fundamentação da decisão da entidade administrativa ou de uma fundamentação deficiente:
O art. 58.º do RGCOC não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação dos elementos ali previstos.
De acordo com o art. 41.º, n.º 1, do RGCOC, são os preceitos reguladores do processo criminal (e não do direito administrativo) “devidamente adaptados”, que constituem, neste particular, o direito subsidiário, neste sentido, Teresa Beleza, in Direito Penal, AAFDL, vol. I, 2.ª edição, pg. 131.
Contrariamente ao defendido por Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações Anotações ao Regime Geral, 2.ª Edição, Vislis Editores, Lisboa, 2003, pg. 334, António de Oliveira Mendes, José dos Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, Coimbra, 2003, pg. 154 e Sérgio Passos, in Contra-Ordenações Anotações ao Regime Geral, Almedina, Coimbra, 2004, pg. 383, entendemos que não se devem aplicar, subsidiariamente, os preceitos do processo criminal relativos às decisões condenatórias, nomeadamente o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (requisitos da sentença) e no artigo 379.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do mesmo diploma (nulidades da sentença) uma vez que, se o arguido interpuser recurso da decisão condenatória, esta mesma decisão, nos termos do artigo 62.º, n.º 1, do RGCOC, converter-se-á em acusação.
Encontramos no domínio de uma fase administrativa, sujeita às características de celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal.
Por seu turno, tal como advoga António Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas Anotado, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2005, pg. 109 e António Leones Dantas, in Revista do Ministério Público, n.º 61, pgs. 118 e seguintes, também não se deve recorrer ao disposto no artigo 283.º, n.º3, al. b), do Código de Processo Penal, (requisitos da acusação) visto que, se não for interposto recurso da decisão condenatória, esta não chega, sequer, a assumir a natureza de acusação.
E se estivéssemos perante o vício da nulidade cominado nos aludidos preceitos, então o respectivo regime teria que ser só um; ele não poderia variar consoante fosse ou não interposto recurso da decisão condenatória da autoridade administrativa.
Apesar de não recorrermos aos normativos que se reportam à fundamentação da sentença, deve fazer-se apelo ao dever de fundamentação das decisões de natureza constitucional (art. 205.º da Constituição da República Portuguesa). O que deve resultar claro para a arguida são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação por forma a que a mesma possa fazer um juízo de oportunidade sobre a conveniência da apresentação da impugnação judicial e, posteriormente, caso tal aconteça, permitir ao Tribunal conhecer, sem se substituir na investigação do ilícito àquela entidade administrativa, do processo lógico da formação da decisão.
Tal fundamentação será suficiente desde que a entidade administrativa justifique as razões pelas quais, atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas, é aplicada a sanção à arguida, de modo que esta, após uma leitura da decisão, de acordo com os critérios de normalidade de entendimento, perceba as razões pelas quais é condenada e, consequentemente, possa impugnar tais fundamentos.
Ora não estando expressamente prevista, como não está, a consequência processual decorrente da falta de fundamentação da decisão da entidade administrativa a que alude o art. 58.º do RGCOC, e não sendo de aplicar, nos termos já referidos supra, as cominações previstas pelo legislador em relação à acusação ou à sentença, o sistema processual penal português, enquanto direito subsidiário, impõe que se apliquem, com as devidas adaptações, as regras da irregularidade, enquanto figura de carácter residual (art. 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Será, pois, segundo as regras desta figura que, se deverá apurar da possibilidade de aproveitamento (ou não) do processado desde a decisão administrativa (assim, entre outros, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 19/02/97, BMJ, 464.º, pg. 614 e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07/07/98, BMJ, 479.º, pg. 723).

Da possibilidade do conhecimento oficioso da irregularidade quando a mesma não é, sequer, referida nas conclusões da impugnação judicial:
O acto irregular está sujeito à regra prevista no art. 123.º do Código de Processo Penal.
Dispõe o preceito:
1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiver assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.
Apesar de minoritária, perfilhamos a opinião de Gil Moreira dos Santos, in Noções de Processo penal, O Oiro do Dia, Porto, pg. 208, que considera que, apesar da sua aparente menor relevância, o legislador consagrou o conhecimento oficioso das irregularidades, uma vez que a ideia do máximo aproveitamento dos actos processuais não cede face à ideia da verdade material. Os entendimentos divergentes, sempre fazendo uso do falso argumento da parca relevância do vício, cuja arguição entendem estar a cargo dos interessados, tornam inócua a norma do n.º 2 do art. 123.º do Código de Processo Penal.

Do aproveitamento dos actos processuais:
A figura irregularidade apesar de não ter muito interesse do ponto de vista dogmático, acaba por ter grande importância, em particular, em sistemas taxativos como o Português. Com a redução das nulidades aos casos previstos na lei o legislador reconduz à mera irregularidade os restantes vícios processuais: salvo, é claro, quando se tratar de actos inexistentes. Rectius, o regime aumenta a frequência da figura e sobretudo a sua versatilidade.
Segundo alguma doutrina, as irregularidades são pequenos defeitos dos actos processuais que, apesar de suficientes para o tornar imperfeito, não afectam a sua validade, nem a sua eficácia, justificando a sua necessidade, tão só, para impor aos sujeitos e participantes processuais o respeito pelo princípio da máxima aderência às regras do processo penal (assim, João Conde Correia, in Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA IVRIDICA, n.º 44, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pg. 111, Paulo de Sousa Mendes, As proibições de prova no processo penal, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2004, pg. 132, e Juan Alfonso Santamaria Pastor, in La nulidad de pleno derecho de los actos administrativos, Madrid, Instituto de Estúdios Administrativos, 1972, pg. 144).
Não perfilhamos esse entendimento. Do ponto de vista morfológico, as irregularidades consubstanciam verdadeiras violações da lei.
Reputar um acto processual regular simboliza, portanto, uma resposta positiva com a respectiva norma jurídica. Mutatis mutandis, classificar um acto irregular traduz uma resposta negativa naquele confronto. À semelhança dos actos inválidos também os actos irregulares são imperfeitos, não integrando a respectiva fattiscipecie, assim, Vicent Grellière, in Nullités de L´Instruction et bonne administration de la justice pénale, AUSST, 1980, pg. 121, apud João Conde Correia, ob cit, pg. 171, nota de rodapé 396.
Efectivamente, apesar da rigidez e do aparente formalismo, o processo penal comporta uma margem de liberdade. A grande variedade de casos que na vida real se podem deparar é inimiga da catalogação. Não se pode excluir, a priori, a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de grande gravidade, como no caso decidendo, susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.
E, tal como refere Maia Gonçalves, in Código do Processo Penal Anotado, 10.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pg. 312, daí decorre grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos n.ºs 1 e 2, que vai desde o considerar a irregularidade inócua e inoperante até à invalidade do acto inquinado pela irregularidade e dos subsequentes que possa afectar, passando-se pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente com ponderação pelos interesses em equação, maxime as premências de celeridade, de economia processual e os direitos dos interessados.
Ora, in casu, as irregularidades cometidas invalidam a própria decisão administrativa e, segundo um critério cronológico, os seus termos (note-se, não os actos). Na verdade, na medida em que nada é referido quanto às condições económicas não foi dada a hipótese à arguida de conhecer todos os elementos relativos à infracção, o que a impediu de perceber as razões que a alicerçaram (ou não) e, consequentemente, de impugnar tais fundamentos.
Mais.
Não compete ao Tribunal averiguar, neste âmbito, suprindo a inércia da entidade administrativa, quais as condições económicas pois caso contrário não estaria, como lhe compete, a apreciar o mérito da decisão da entidade administrativa … mas sim, o que não é possível, a conhecer de matéria nova e a coarctar à arguida, pelo menos, uma instância de recurso.
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Decisão:
Termos em que declaro, por omissão dos factos conducentes às condições económicas da arguida, a irregularidade da decisão da entidade administrativa e, na sequência, arquivo o presente processo.
Sem custas por não serem devidas (arts. 93.º, n.º3, do RGCOC)
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Uma vez que a presente decisão não apreciou os factos imputados à arguida como contra-ordenação, e o trânsito em julgado da decisão não preclude o novo conhecimento como contra-ordenação (art. 79.º, n.º 1, do RGCOC, a contrario, e 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), após trânsito, remeta os autos à entidade, nos termos e para os efeitos do art. 70.º, n.º2, do RGCOC».
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4. Mérito do recurso:
Dispõe o n.º 1 do art. 58.º do Decreto-Lei 433/82 (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 244/95, de 14/9) que a decisão que aplica a coima ou sanções acessórias dever conter a identificação dos arguidos [al. a)]; a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas [al. b)]; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão [al. c)]; a coima e as sanções acessórias [al. d)].
Como referem Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, 3.ª edição, 2006, Vislis Editores, em anotação ao art. 58.º, «os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória contra-ordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.
Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos».
A lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, mas temos entendido que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e a exigência que se impõem no art. 374.º, n.º 2, do CPP, por várias razões: por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contra-ordenacional não se confunde com o ilícito penal (são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa); por outro, porque aquela decisão, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art. 62.º, n.º 1, do RGCO).
Não faz, assim, qualquer sentido que a decisão administrativa - que em caso de impugnação se converte em acusação - tenha de obedecer a um rigorismo de fundamentação semelhante ao da sentença penal.
Como é referido no Ac. do STJ de 21-09-2006, proferido no proc. n.º 06P3200, in www.dgsi.pt., assumindo a decisão prevista no artigo 58.º o carácter de uma sentença condenatória em matéria contra-ordenacional, tem uma estrutura semelhante prevista para a sentença penal no artigo 374.º, embora só aproveitando desta os elementos mais elementares e básicos acima descritos.
O que se compreende se tivermos em consideração que o processo contra-ordenacional é, até à fase judicial um procedimento de cariz administrativo, sujeito a valores de celeridade e simplicidade, diferentes dos que regem as decisões judiciais em matéria penal, não lhes sendo, por isso, aplicável, na sua totalidade e sem a devida adaptação, o disposto no artigo 374.º do CPP.
As condutas ou comportamentos contra-ordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera “admonição”, como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais (cfr. Figueiredo Dias, “O movimento de descrimininalização e o ilícito de mera ordenação social”, estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983, 19/33).
Em razão da génese e teleologia do procedimento contra-ordenacional, a fundamentação, tal como está estabelecida no art. 58.º do referido diploma, será, pois, suficiente desde que justifique as razões pelas quais - atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas [art. 358.º, n.º 1, alíneas b) e c)] -, é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos.
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Não tem havido unanimidade, quer na doutrina, quer na jurisprudência, acerca da qualificação do vício decorrente da inobservância dos requisitos formais exigidos pelo artigo 58.º, n.º 1, do RGCO. Para uns, trata-se de uma nulidade, a arguir pelo interessado ou de conhecimento oficioso (cfr., v.g., Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., págs. 387/390; Acs. do STJ de 21-09-2006 proc. n.º 06P3200; da Relação de Évora de 17-10-2006, proc. n.º 2194/06-1; da Relação de Lisboa de 28-04-2004, proc. n.º 1947/2004-3; da Relação do Porto de 27-02-2002 e 24-02-2010, proc. n.º 0111558 e 10798/08.2TBMAL.P1, respectivamente, todos publicados no “site” www.dgsi.pt). Para outros, de mera irregularidade (a título meramente exemplificativo, António Beça Pereira, em “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina, 2007, págs. 115/116; Acs. da Relação do Porto de 15-03-2006, proc. n.º 0443636; da Relação de Évora de 15-06-2004, publicados no sítio acima indicado, e da Relação de Lisboa, in CJ, tomo V, pág. 144).
Efectivamente, o RGCO não contém qualquer disposição onde esteja prevista a consequência processual para a preterição dos requisitos elencados no artigo 58.º, provindo a aludida controvérsia dessa vacuidade.
Entendemos, todavia, como Simas Santos e Jorge de Sousa (ob. cit., pág. 387), não se vislumbrar que a necessária aplicação subsidiária das normas do processo criminal (cfr. art. 41.º do RGCO) possa levar a outra solução senão a de considerar que a decisão administrativa que não contenha os requisitos do artigo 58.º do RGCO está ferida de nulidade, sendo-lhe aplicável a disposição do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.
E que tipo de nulidade?
Sem dúvida, de conhecimento oficioso pelo Tribunal.
Na realidade, tal decorre inequivocamente da redacção do n.º 2 do art. 379.º do CPP, quando consagra que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso” (o “negrito” pertence-nos) - entre outros, cfr. Acs. do STJ de 31-05-2001, proferido no proc. n.º 260/01; 08-11-01 (proc. n.º 3130/01) e 14-05-03 (proc. n.º 518/03), todos publicados no Boletim Interno do STJ, n.ºs 51, 55 e 71, respectivamente, e Ac., ainda do STJ, de 02-02-2005, C.J, tomo I, pág. 188.
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O artigo 18.º do RGCO está umbilicalmente ligado à previsão do referido artigo 58.º do mesmo compêndio legislativo.
Efectivamente dispõe o n.º 1 daquele normativo, sob a epígrafe “Determinação da medida da coima”:
«A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação».
O dever de fundamentação da decisão condenatória proferida pela entidade administrativa impõe na determinação da coima, dentro da moldura abstracta que se enquadra à situação concreta em apreço, a consagração, na factualidade provada, e posterior ponderação, dos elementos descritos no artigo 18.º, inter alia, a situação económica do agente.
Contudo, essa exigência não pode ser avaliada em termos irrestritos e absolutos; antes deve ser aferida casuisticamente, analisando se a entidade administrativa desenvolveu diligências adequadas para a obtenção dos dados de facto relevantes.
Veja-se que, mesmo no âmbito do processo penal, em que sobreleva um substrato de valoração jurídica nitidamente mais garantístico, a falta de factos provados, na sentença condenatória, relativos à condição económica do arguido, apenas determina a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (cfr. al. a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP), se for obviamente possível o apuramento dos respectivos factos.
Cingindo-nos ao caso dos autos, sem que isso possa significar a inversão do ónus da prova, a entidade administrativa, em fase prévia à decisão, solicitou a colaboração da arguida no sentido do apuramento da situação económica desta.
No entanto, tal solicitação revelou-se infrutífera.
Ora, perante este comportamento omissivo, sendo a arguida uma “Junta de Freguesia”, a recolha de elementos, pela entidade administrativa, conducentes à comprovação da situação económica do ente colectivo, perspectiva-se, senão como impossível, pelo menos como manifestamente difícil, já que aquela entidade não dispõe de meios coercivos para o referido efeito.
Por outro lado, no caso concreto, a coima imposta à arguida situou-se no limite mínimo da moldura abstracta legalmente prevista para a contra-ordenação que àquela está imputada.
Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, a decisão administrativa proferida pelo IGAOT, porque não violou o artigo 58.º do RGCO, não padece de nulidade ou sequer da irregularidade que o despacho sob escrutínio lhe assaca.
Consequentemente, impõe-se a revogação do despacho recorrido, devendo o tribunal a quo proceder ao julgamento, com a produção da prova que tenha por necessária, sendo, a final, elaborada sentença em conformidade.

Uma última nota:
Preceitua o art. 59.º, n.º 1 do RGCO: «A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial», «sendo competente para conhecer do recurso o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção» (art. 61.º, n.º 1 do referido regime).
«Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação» (art. 62.º, n.º 1, também do indicado diploma).
Compete ao Ministério Público a promoção da prova a produzir em audiência de julgamento, incidindo a prova sobre todos os factos que aquele considere relevantes para a decisão, sem prejuízo, porém, da possibilidade de o juiz determinar a realização das diligências de prova que entender necessárias para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa, em conformidade com o preceituado no n.º 1 do art. 340.º do Código de Processo Penal (art. 72.º, n.ºs 1 e 2, ainda do aludido corpo normativo).
Em consonância com as normas que se vêm de citar, a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima provoca a deslocação da apreciação do ilícito contra-ordenacional do domínio administrativo para o âmbito jurisdicional, de tal modo que a dita decisão administrativa só virtualmente constitui uma “condenação”, pois que, se impugnada, “tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse uma acusação”.
Por isso, o tribunal de 1.ª instância não pode ver os autos que assim lhe sejam continuados como se apreciasse um recurso ordinário.
Impondo-se, como sucede no presente processo, nos termos do art. 64.º do RGCO, a realização da audiência de julgamento, o tribunal não só se não encontra limitado aos factos provados em sede de decisão administrativa, como lhe compete determinar o âmbito da prova a produzir, podendo o Ministério Público promover a prova de todos os factos que considere relevantes para a decisão.
Procura-se que, levado o recurso de impugnação às autoridades judiciais, estas logrem atingir, tanto quanto possível, com as específicas habilitações que possuem, com a contribuição constitutiva do arguido e do Ministério Público e dos poderes investigatórios de que dispõem, a verdade material.
O único limite à cognoscibilidade do recurso pelo tribunal é o decorrente do art. 359.º do Código de Processo Penal (alteração substancial dos factos descritos na acusação), sob pena de se cercear intoleravelmente ao arguido o direito fundamental de defesa.
Tudo isto para firmar a seguinte conclusão: se se justificar e for possível através da prova oralmente a produzir em julgamento ou da recolha de documentos idóneos, deve o tribunal a quo apurar a condição económica da arguida, consagrando-a na sentença a proferir.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, devendo o tribunal a quo proceder ao julgamento, com a produção da prova que tenha por necessária à boa decisão da causa, sendo, a final, elaborada sentença.
Sem tributação.
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(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 3 de Julho de 2012

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)