Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4435/13.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: COMPRA E VENDA
CLÁUSULA
NULIDADE
RESERVA DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 409, Nº 1, DO C. CIVIL
Sumário: 1. Num contrato de compra e venda de determinado veículo, por ser ofensiva da disposição imperativa do art.º 409, nº 1, do C. Civil é sempre nula a cláusula em que se impõe ao alienante a obrigação de registar “reserva de propriedade” a favor do adquirente.

2. Tal nulidade verifica-se ainda que este adquirente venha a ser mutuante de um terceiro – verdadeiro interessado na aquisição daquele bem – do preço ajustado para aquela venda.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... S.A., intentou no 4º Juízo Cível de Leiria uma acção de condenação sob a forma de processo comum contra B..., LDA, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 13.033,52, acrescida de juros de mora à taxa legal.

Para tanto alega – em síntese – ter celebrado com a Ré em Abril de 2008 um contrato verbal de compra e venda de um veículo automóvel, nos termos do qual a mesma ficou obrigada a proceder ao “averbamento” da viatura em nome de C... , com reserva de propriedade a favor do A., o que, todavia, nunca cumpriu; por seu turno, precisamente com vista à aquisição da mesma viatura, o A. concedeu um mútuo ao referido C..., que este se obrigou a pagar de 84 prestações mensais, iguais e sucessivas de € 293,61, cada, mas entrou em incumprimento em Maio de 2002; não pôde o A. proceder, como pretendia, à apreensão e venda do veículo por não dispor da reserva de propriedade a seu favor, o que lhe provocou um dano de € 13.033,52, a que devem acrescer juros de mora à taxa legal.

Regularmente citada, a Ré não apresentou contestação nem constituiu mandatário.

Foi proferido despacho considerando confessados os factos articulados pelo A., nos termos do disposto no art.º 567º, nº1 do Código do Processo Civil.

*

Cumpriu-se o prescrito no art.º 567º nº 2 do aludido código, não tendo sido apresentadas alegações.

A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente por não provada, absolvendo a Ré do pedido.

Inconformado, desta decisão interpôs o Banco Autor recurso, admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

                                                                                 

*                                                                                           

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância sem qualquer espécie de impugnação:  

1- No exercício da sua actividade comercial, em 21 de Abril de 2008, o Autor celebrou com C... o contrato de mútuo com o n.º 17996, composto por “Condições Gerais” e “Condições Particulares”;

2 - Nos termos do contrato celebrado, o mutuário deveria liquidar a quantia financiada e respectivos juros, em 84 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de 293,61€, cada, dia 5 de cada mês, vencendo-se a primeira a 25 de Maio de 2008, e a última a 25 de Abril de 2015;

3 - O C... deixou de liquidar as prestações relativas ao contrato em Maio de 2012.

4 - O Autor declarou o vencimento antecipado de todas as prestações em Agosto de 2013, tendo ficado em dívida o montante de 13.033,52 €.

5 - Em Abril de 2008, no exercício da sua actividade comercial, o Autor celebrou com a Ré um contrato de compra e venda verbal, no âmbito do qual comprou o veículo mencionado em 2);

6 - Nos termos do contrato referido em 5), a Ré comprometeu-se a proceder ao averbamento da viatura mencionada em 1) em nome do mutuário C... com reserva de propriedade registada a favor do Autor;

7 - A Ré não cumpriu com a obrigação referida em 6);

8 - Ao requerer certidão automóvel da viatura, o Autor verificou que aquela tinha os seguintes registos:

A. Registo de propriedade com ap. 04872, em 02.06.2006, a favor de D..., Lda.

B. Registo de propriedade com ap. 04873, em 02.06.2006 a favor de E..., SA.

C. Registo de propriedade com ap. 04874, em 02.06.2006, a favor de F...

D. Encargo/ Reserva, data 02.06.2006:

i. Sujeito activo: D..., SA

ii. Sujeito Passivo: F...

9 - Actualmente, da certidão automóvel consta o seguinte:

E. Registo de propriedade com ap. 04874, em 02.06.2006, a favor de F....

                                                                                     *

A apelação.

O apelante A... S.A. termina a sua alegação retirando um feixe de conclusões em que essencialmente levanta a questão da validade da cláusula do contrato de compra e venda celebrado com a recorrida B..., pela qual esta ficou incumbida de proceder ao registo da reserva de propriedade do veículo favor dele (apelante); e, consequentemente, a da impossibilidade do nascimento do direito de indemnização, nos termos gerais, pelo incumprimento de tal obrigação pela Ré, ora apelada.

Não houve contra-alegação.

Apreciando.

A questão fulcral que se discute no recurso não é nova, visto que a propósito da natureza da convenção em que um terceiro que não é alienante se obriga a registar a reserva da propriedade a favor do vendedor de um veículo, já os nossos tribunais superiores produziram um significativo número de arestos, evidenciando a clara tendência de que é dada adequada nota na sentença ora recorrida.

Entende agora o recorrente A... que, não obstante ter figurado como mero comprador da viatura automóvel marca BMW, modelo 520 d Touring, de matrícula BP..., à apelada e Ré B... o facto de nesse contrato verbal de Abril de 2008 esta NPS (vendedora) ter assumido a obrigação de promover o averbamento registral da aquisição e da reserva da propriedade a favor da A./ recorrente a faz incorrer em incumprimento contratual.

Mas – de harmonia com a tese acolhida na sentença – não tem razão, como agora se tentará demonstrar. 

Decorre da materialidade apurada que entre o Autor A..., a Ré B... e C... se realizaram dois contratos:

Um contrato que as partes designaram de mútuo, de 21 de Abril de 2008, com as características próprias de um contrato de crédito ao consumo, enquadrável no regime tipificado pelo DL 359/91 de 21 de Setembro, pelo qual o referido C... obteve do A. o empréstimo da quantia de € 17.000,00, com a expressa finalidade de aplicar tal verba na aquisição do mencionado veículo BMW e com o compromisso de reembolsar o mutuante em 84 prestações mensais, iguais e sucessivas; um outro negócio, designado por compra e venda verbal, celebrado algures em Abril de 2008, tendo por objecto mediato o mesmo veículo, em que foi vendedora B... e comprador o Banco Autor.

Tal como se concluiu na sentença, estamos em presença de dois contratos distintos, ainda que que do ponto vista funcional seja patente uma interdependência entre ambos, uma vez que o A. e o aludido C... tiveram a intenção de habilitar este último com a disponibilidade de uma determinada quantia exactamente destinada a perfazer o preço do veículo para tanto adquirido pelo Banco A. à Ré B....

Daí que o A. tenha querido vincular a Ré B..., apesar de esta ser a vendedora, a promover o “averbamento” do veículo em nome do beneficiário do financiamento, e, ao mesmo tempo, a registar a reserva da propriedade a favor dele (comprador).

Porém, como foi a visão perfilhada na sentença, aliás, na esteira de uma jurisprudência que pensamos ser largamente dominante, a cláusula que prevê a obrigação do registo de uma reserva de propriedade a favor do comprador ou adquirente do bem sujeito a registo é necessariamente nula porque celebrada contra lei imperativa.

E não só: a reserva da propriedade a favor do comprador, na perspectiva de que este recebe o direito de propriedade do vendedor, isto é, do respectivo titular, é uma reserva que verdadeiramente se pode dizer contra natura.

Na verdade, a reserva da propriedade não é uma condição de eficácia do negócio: é apenas uma restrição a um dos efeitos essenciais/normais da compra e venda pelo que só pode ser impulsionada e assumida pelo vendedor/proprietário.

Com efeito, nos termos do art.º 879 do CC, os três efeitos essenciais da compra e venda são, além, da obrigação da entrega da coisa pelo vendedor e do pagamento do preço devido – esta, obviamente a cargo do comprador – a transmissão da propriedade, naturalmente por vontade do vendedor.

E, em regra, basta até a mera declaração do vendedor para a transmissão da propriedade.

É que, conforme se estabelece no nº 1 do art.º 408 do CC, “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito salvas as excepções previstas na lei”.

Justamente para abrir de uma excepção ao princípio geral da transmissão por mero efeito do contrato, prescreveu-se no nº 1 do art.º 409 do CC que “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa”, desde que a reserva se mantenha até ao cumprimento de obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.

Resulta daqui que a lei apenas admite a estipulação da reserva mediante estes pressupostos lógicos indefectíveis:

A existência de um contrato de alienação;

A convenção nesse contrato da reserva da propriedade a favor do alienante;

A temporalidade da reserva;

O seu condicionamento ao cumprimento total ou parcial das obrigações do adquirente ou à verificação de um evento preciso.

É, portanto, apodítico que, por haver um contrato de alienação e um alienante, a reserva de propriedade só poderá beneficiar este, e não o adquirente, ou alguém que ali não seja parte (um terceiro).

Nada obstando a que quem aliena também constitua uma locação financeira ou um mútuo com o actual ou futuro adquirente, para a reserva poder ser aposta é sempre indispensável que a restrição desse efeito se manifeste sobre a esfera jurídica do alienante enquanto tal. 

A isto acresce que, para ser oponível a terceiros, a reserva carece de ser registada.

Como se escreve no Acórdão do STJ de 7/7/2010, proferido no p. 117/06.8TBOFR.C1.S1 disponível em www.dgsi.pt.jstj. (Relator Cons. Moreira Alves):

“A reserva não constitui um facto que possa registar-se com autonomia, constituindo antes “menção especial do registo de propriedade” como se diz no Art.º 16 do D.L. nº 178-A/2005 de 28/10. O facto principal sujeito a registo é a propriedade do veículo, mas quando tenha sido alienado com reserva de propriedade tal encargo constitui menção especial desse registo”.

(…).

Ora, como determina o Art.º 409 do CC. (nº1), “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”. Assim sendo, a cláusula da reserva de propriedade só pode ser convencionada no âmbito de um contrato de alienação e não em qualquer outro, pois que é sua característica essencial suspender os efeitos translativos inerentes a tais contratos. De facto só quem é proprietário de uma coisa, pode reservar o seu domínio nos termos do preceito citado, de modo que, conforme a fundamentação do acórdão uniformizador de 9/10/2008 (que, não obstante, não faz parte do segmento uniformizador), pensamos que não sendo a BB a proprietária do automóvel vendido à A., não podia ter estabelecido a seu favor a cláusula de reserva da propriedade que nunca teve.
Tal cláusula é, por conseguinte, nula. (…)”.

No mesmo sentido vai o que no Acórdão do mesmo STJ de 12/07/2011, proferido no p. 403/07.0.TVLSB.L1.S1, igualmente disponível em www.gdsi.pt.jstj (em que é Relator o Cons. Garcia Calejo), se pondera relativamente ao financiador/não alienante, no caso do mutuante[1]:

“ (…) não pode este, constituir a seu favor, «reserva de propriedade» e se cláusula houver será nula por impossibilidade legal. Isto porque, segundo Gravato Morais (Cadernos de Direito Privado nº 6, pág. 49/53), «não restam dúvidas que literalmente (…) só nos contratos de alienação, maxime nos contratos de compra e venda é lícita a estipulação, sendo certo que a finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre o objecto que não produziu nem forneceu – apenas em razão do fraccionamento das prestações». Acrescenta-se que alguma jurisprudência tem contornado a dificuldade, convocando a figura da sub-rogação, nomeadamente o disposto nos art. 589º e 591º CC. Porém, tal entendimento deve ser repudiado já que esses preceitos têm a ver com a transmissão de créditos, sendo certo que no caso já não poderia o vendedor transmitir para o mutuante o seu direito, porquanto este já se encontrava extinto pelo pagamento. Por outro lado, “também o disposto no art. 6º nº 3 f) DL 359/91 de 21 de Setembro, quando refere que o contrato de crédito deve indicar «o acordo sobre a reserva de propriedade», nada adianta em abono dessa tese. É que o crédito ao consumo, tanto pode ser concedido por quem vende o bem, como por terceiro”. Acrescenta-se, invocando-se o acórdão da Relação de Lisboa de 14.12.2004, proc. Nº 9857/2004-7) que refere que “«tal disposição reporta-se apenas a situações em que, o vendedor, proprietário do bem, mantém essa qualidade, por efeito de reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no art. 2º (diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante). Não pode essa norma ter aplicação a situações previstas no art. 12º de tal diploma, em que o crédito é concedido por terceiro para financiar o pagamento de bem adquirido ao vendedor»”. Disse-se ainda que alguma jurisprudência admite que a reserva de propriedade, acabe por aparecer a proteger o financiador, não vendedor, desde que todos os intervenientes na relação jurídica triangular, (vendedor, comprador, mutuante), nisso acordem de forma expressa, hipótese, porém, que se deve afastar porque no contrato dos autos apenas tiveram intervenção (só estes o outorgaram), o apelante e o apelado, não tendo o vendedor do veículo qualquer intervenção nele”.

Como se noticia na decisão recorrida – e neste último Acórdão do STJ – há quem admita a investidura do mero financiador no estatuto do proprietário/vendedor socorrendo-se da figura da sub-rogação, figura a que se reportam os art.º 589 e seguintes do C. Civil.

Mas, salvo o respeito devido, não se verifica qualquer paralelismo nos pressupostos substantivos do instituto.

Não se pode olvidar que a sub-rogação é uma forma de transmitir um crédito e não um direito real.

É que se o financiador (mutuante, locador financeiro, etc.) pode receber quaisquer direitos creditícios do vendedor/proprietário do bem, nesses direitos nunca pode estar o direito de propriedade, que tem a natureza de direito real e, que, para ser transferido, só o pode ser pelos modos previstos no art.º 1316 do CC, e, no caso, por compra-e-venda.

Não há, assim, qualquer viabilidade substantiva de admitir a sub-rogação no direito de propriedade ou na reserva da propriedade.  

Volvendo aos autos, logo se alcança que o A., mero adquirente do automóvel à Ré B..., mas que efectivamente não o alienou, então ou posteriormente, ao mutuário C..., não podia convencionar uma reserva de propriedade a seu favor, impondo esse encargo àquela vendedora, concomitantemente com a obrigação de esta “averbar” a compra da viatura em nome do mutuário C....

Até porque, além do mais, nem sequer deflui da materialidade provada que este mutuário alguma vez tenha comprado o veículo em questão.

Sendo, por conseguinte, nulo o assim clausulado no segmento do contrato celebrado entre A. e Ré, evidente se torna que não pode existir qualquer incumprimento da demandada com esse fundamento.

E sem incumprimento contratual não há obrigação de indemnizar em função do disposto nos art.ºs 798 e 799 do CC.

Em suma, o recurso improcede na totalidade.

Tira-se então o seguinte sumário:
1. Num contrato de compra e venda de determinado veículo, por ser ofensiva da disposição imperativa do art.º 409, nº 1, do C. Civil é sempre nula a cláusula em que se impõe ao alienante a obrigação de registar “reserva de propriedade” a favor do adquirente.
2. Tal nulidade verifica-se ainda que este adquirente venha a ser mutuante de um terceiro – verdadeiro interessado na aquisição daquele bem – do preço ajustado para aquela venda.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a sentença.

Custas pelo apelante.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins  


[1] Aresto em que se acentua uma vincada orientação do nosso mais alto Tribunal para a inadmissibilidade da cláusula fora dos limites traçados pelo art.º 409, nº 1, do CC, aí se citando os Acórdãos de 27-9-2007 (Relator Conselheiro Santos Bernardino), de 17-4-2008 (relator o Conselheiro Urbano Dias), de 3-6-2008 (Relator Conselheiro Silva Salazar), de 27-1-2009 (Relator Conselheiro Pereira da Silva), de 26-2-2009 (Relator Conselheiro Oliveira Rocha), 31-3-2011 (Relator o Conselheiro Álvaro Rodrigues), o primeiro e o último acessíveis em (www.dgsi.pt/jstj.nsf) e os outros nos sumários internos do STJ.