Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1030/16.6T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: FIANÇA
FIADOR
CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
Data do Acordão: 06/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 648º, 650º, 651º E 653º C. CIVIL.
Sumário: I – O fiador tem interesse no cumprimento da obrigação afiançada.

II – Esse interesse assume-se como direto, na medida em que o cumprimento da obrigação afiançada pelo devedor implica a extinção da fiança, nos termos do art 651º CC.

III – E assume-se como indireto pela “vigilância” que o legislador lhe consente relativamente ao comportamento do devedor e ao comportamento do credor, num caso e noutro para garantia do seu direito à eventual sub-rogação.

IV - Relativamente ao comportamento do devedor, através do estabelecido no art 648º CC, no qual se prevêem situações de que resulta tornar-se razoável que o fiador adquira contra o devedor o direito a obter a sua liberação ou a prestação de caução.

V – Relativamente ao comportamento do credor através do estabelecido no art 653º CC, que estabelece que «os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a estes competem».

VI - As situações abrangidas pela previsão desta norma são muito variadas, mas têm que ter em comum a circunstância de o fiador, por acto voluntário, não necessariamente culposo, do credor, ter direta ou indiretamente perdido a possibilidade de sub-rogação nos direitos do credor contra o devedor.

VII - O art 653º do CC tanto tem em vista a desvinculação do fiador nos casos em que a sub-rogação não é de todo possível, como os casos em que, em termos práticos, o direito do credor não possa já vir a ser exercido ou não o possa ser com as mesmas garantias.

VIII – As garantias reais a que se reporta o art 639º CC são as constituídas por terceiros, não abrangendo, por isso, as constituídas pelo devedor ou pelo fiador.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1 – Na execução que a C..., CRL, move a, entre outros, F... e A..., para deles haver a quantia de €33.422,72, foram recebidos embargos de executado interpostos pelos referidos  F... e A..., pretendendo estes que, sendo os mesmos julgados procedentes, viesse a ser declarada a renúncia por parte da exequente à garantia de fiança que os mesmos prestaram e, consequentemente, deixasse de haver título para fazer prosseguir  a execução.

 Alegam que é título executivo um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, sendo mutuária a “G...”  e figurando eles como fiadores, sendo que a fracção hipotecada era deles em propriedade em comum e sem determinação de parte.  O prédio em causa veio a ser vendido numa execução fiscal, no âmbito da qual a mutuante embargada foi notificada para reclamar créditos, mas não o fez, o que implicou que o prédio tivesse sido vendido e sido removidos os ónus e encargos que o oneravam. O que equivale a ter a mesma renunciado a essa hipoteca, com o que delapidou a principal garantia que a salvaguardava a ela, mas também os fiadores, tanto mais que o prédio à data da constituição da hipoteca tinha o valor tributário de €119.872,75, valor muito superior ao do crédito concedido, €35.000,00.

A exequente/embargada contestou, invocando que o facto de não ter reclamado o seu crédito não pode constituir renúncia às garantias associadas ao direito de crédito em causa, designadamente à fiança. Acrescenta que o imóvel foi vendido apenas por €22.760,00, sendo a dívida peticionada nos presentes autos, à data da entrada da execução, de €33.422,72 e que no processo de execução fiscal as custas saíram precípuas do valor da venda.

Foram solicitados elementos aos autos de execução fiscal e, obtidos, tendo sido entendido que o processo dispunha de todos os elementos necessários à prolação de decisão, tendo sido dado cumprimento ao disposto no art 3º/3 CPC, e mantendo as partes as posições tomadas nos articulados, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos, julgando extinta a execução relativamente aos fiadores no tocante ao montante de €22.110,28 e determinando o prosseguimento da mesma, relativamente aos executados/embargantes e demais fiadores, apenas relativamente ao montante de €11.312,44.

II – Do assim decidido apelou a embragada que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:

...

Não foram produzidas contra alegações.

III – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

...

 Aos factos dados provados deverá fazer-se acrescer que na execução fiscal a que se alude foram também executados F... e A...

IV – Operando o confronto entre as conclusões das alegações e a decisão recorrida, importa decidir no presente recurso:

- se a desoneração dos fiadores, nos termos do art 653º CC, pressupõe que os mesmos tivessem procedido à liquidação ainda que parcial do crédito afiançado;

-se constitui pressuposto da aplicação dessa norma que o fiador não tenha renunciado ao benefício da excussão prévia.

Na Subsecção V -  da Secção II, secção esta que o Código Civil dedica à fiança - intitulada “Extinção da Fiança”, dispõe o art 653º, sob a epígrafe “Liberação por impossibilidade de sub-rogação”: «Os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem».

Antecedentemente e a iniciar a mesma Subsecção, dispõe o art 651º que «a  extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança».

E em sede das «Relações entre o devedor e o fiador» (Subsecção III), dispõe o art 644º que «o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos». 

Resulta desta norma que o cumprimento da obrigação pelo fiador não é equiparado ao cumprimento pelo devedor solidário, na medida em que a mesma não lhe  confere um direito de regresso, antes implica por via de sub-rogação legal uma transmissão do crédito para o fiador  com todos os seus acessórios e garantias.

A respeito desta norma comentam Pires de Lima/Antunes Varela[1]: «Em consequência da sub-rogação, o fiador adquire os poderes que competiam ao credor em relação ao devedor. O crédito transfere-se para ele, com todas as garantias e acessórios  (art 582º, aplicável por força do art 594º  e 593º) (…) O direito do fiador não é, portanto, um direito próprio de regresso, como resultava do art 838º do Código de 1867.  Não é um direito novo, mas o direito do credor que se transmitiu por sub-rogação em consequência do cumprimento (…) O fiador fica investido na posição do credor originário, não só porque realizou o resultado prático do cumprimento, mas também porque tinha um interesse (jurídico) legítimo no cumprimento efectuado».

Como é sabido, na sub-rogação a que aludem os art 589º e seguintes do CC [2]  está em causa uma forma de transmissão de créditos que se verifica quando um terceiro cumpre uma dívida de outrem ou empresta dinheiro (ou outra coisa fungível) ao devedor para esse cumprimento, adquirindo os direitos do credor originário em relação ao devedor. Pode configurar-se como convencional ou legal, ali resultando de um acordo entre o terceiro que pagou e o credor a quem o pagamento foi feito, ou entre o terceiro e o devedor (arts 589º e 590º CC), aqui verificando-se por imposição da lei, nos termos do art 592º/1, onde se dispõe que «fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o pagamento, ou quando por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito».

Consequentemente, a sub-rogação legal verifica-se em dois grupos de situações: quando a mesma esteja prevista nas disposições anteriores ao art 592º ou noutra disposição legal, quando o terceiro tiver garantido o pagamento, ou quando por outra causa estiver directamente interessado na satisfação do crédito, o que sucederá, entre o mais, quando o mesmo pretende acautelar a consistência económica do seu direito ou evitar a perda ou limitação dum direito que lhe pertence. [3]

Ora se por um lado a sub-rogação do fiador nos direitos do credor está estabelecida numa norma legal – o art 644º -  por outro também o fiador está directamente interessado na satisfação do crédito. [4]

 A fiança tem como características principais a acessoriedade e a subsidiariedade.

À acessoriedade refere-se no art 627º/2 - «a obrigação do fiador é acessória da que recaia sobre o principal devedor» - e, nas palavras de Menezes Leitão[5], significa que «a obrigação do fiador se apresenta na dependência estrutural e funcional da obrigação do devedor, sendo determinada por essa obrigação em termos genéticos, funcionais e extintivos».

Já a subsidiariedade, também nas palavras de Menezes Leitão, «reconduz-se à possibilidade de o fiador invocar o benefício da excussão, conforme resulta do art 638º, impedindo o credor de executar o património do fiador enquanto não tiver tentado sem sucesso a execução através do património do devedor».

 Para além disso, do art 639º resulta que a subsidiariedade da fiança opera mesmo existindo garantias reais constituídas por terceiro antes da fiança, já que o fiador tem igualmente o direito de exigir a execução prévia das coisas sobre que recai a garantia real, nessas condições.

O que significa que o fiador pode gozar do beneficio da excussão quer em relação ao património do devedor – art 638º - quer em relação a bens onerados com garantia real anterior à fiança prestada por terceiro – art 639º - devendo concluir-se que «o benefício  da excussão visa evitar a execução judicial dos bens do fiador enquanto a garantia concedida pelo património do devedor ou por outras garantias reais prestadas por terceiro anteriormente à fiança não se mostre insuficiente para assegurar o cumprimento da obrigação». Mas, como o faz notar Menezes Leitão, esse benefício já não se estende às garantias posteriores à fiança, «uma vez que o devedor não contou com elas aquando da avaliação do risco fidejussório»[6].

A subsidiariedade da fiança não é uma característica que lhe seja essencial, pelo que o fiador pode renunciar a ela consoante resulta da al a) do art 640 º CC, que se refere aos dois artigos anteriores e por isso também ao benefício da excussão havendo garantias reais.

As garantias reais a que alude a norma do art 639º são as constituídas por terceiro, como aliás nela se afirma, não abrangendo, portanto, as que possam ser constituídas em reforço da fiança pelo próprio devedor ou pelo fiador.

Na situação dos autos é incontornável a renúncia dos fiadores ao benefício da execução prévia. 

 Da cláusula 7ª do contrato aludido em 1) consta (pleonasticamente), que «1.Os terceiros contraentes constituem-se fiadores e assumem solidariamente com o mutuário e como principais pagadores todas as obrigações decorrentes deste contrato e do empréstimo, nomeadamente as de reembolso do capital, de pagamento dos juros, às taxas e sobretaxas ajustadas, além dos impostos, comissões, encargos e despesas (…); 2. Os fiadores comprometem-se a pagar imediatamente e sem qualquer reserva, as quantias que lhe forem reclamadas, logo após aviso para o efeito ou do incumprimento do mutuário, subsistindo a fiança até completa extinção das obrigações garantidas. 3. Os fiadores também declaram expressa e irrevogavelmente, que renunciam ao benefício da excussão e a qualquer outro prazo facultado por lei, bem como a fazer ou invocar qualquer execpeção, oposição ou reserva».

Já atrás se assumiu que o fiador tem interesse no cumprimento da obrigação afiançada, e são várias as manifestações desse interesse no regime jurídico da fiança.

Assim, e antes de mais, tem óbvio interesse em que o devedor cumpra a obrigação afiançada, na medida em que o cumprimento da mesma pelo devedor – seja por pagamento seja por outro meio de extinção das obrigações – determina, na direta extensão do mesmo, a extinção da fiança, nos termos já referidos do art 651º CC.

Mas esse interesse no cumprimento da obrigação afiançada manifesta-se, aqui ainda que indiretamente,- através da possibilidade de “vigilância” que a lei permite ao fiador relativamente, por um lado, ao comportamento do devedor, por outro, ao comportamento do credor, num caso e noutro para garantia do seu eventual direito de sub-rogação.

 Relativamente ao comportamento do devedor, através do estabelecido no art 648º CC, onde se prevê (respectiva epígrafe) o “Direito à liberação ou à prestação de caução”. Estabelecem-se aí situações em que o fiador pode exigir do devedor que extinga a dívida junto do credor, liberando-o a ele fiador, ou preste caução. Como refere Menezes Leitão[7] «as hipóteses legalmente previstas correspondem a situações em que o fiador vê aumentarem os riscos de ser demandado em virtude da prestação de fiança (als a) e b)),  ou se torna mais difícil o exercício da sub-rogação contra o devedor(al c)) ou a vinculação do fiador se tornar excessiva, ou por ultrapassar o evento ou estender-se para  além do prazo  em que o devedor deveria proceder à sua exoneração (al d)),ou ainda vigorar em termos indefinidos ou muito prolongados (al e)). Acrescentando: «Nestes casos, torna-se razoável que o fiador adquira contra o devedor o direito a obter a sua liberação ou a prestação de caução, para garantia do seu direito à eventual sub-rogação».
 Há, no entanto, que fazer notar, como resulta dos comentários de Pires de Lima/Antunes Varela ao preceito em referência que, «propriamente a liberação do fiador não pode fazer-se sem a intervenção do credor, e, geralmente, sem a anuência deste. O que o devedor pode é cumprir a obrigação, se ela estiver vencida ou o prazo tiver sido estipulado em seu benefício, como é a regra. Não se verificando nenhum destes casos – parece que também o da falta de anuência do credor – resta ao fiador exigir a caução a que se refere este artigo». 

Acrescente-se ainda que, tal como o evidenciam os referidos autores, «o direito de liberação é apenas um direito contra o devedor, e não contra o credor, que não pode ser prejudicado».

È no que toca à vigilância relativamente ao comportamento do credor, exercida também com a finalidade de garantir o seu eventual direito de sub-rogação, que intervém o disposto no art 653º, norma cuja aplicação aos autos está em causa, e que refere, lembre-se, que «os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a estes competem».

O que significa que em qualquer situação em que a actuação voluntária – não necessariamente culposa – do credor tenha implicado o resultado de passar a ser impossível para o fiador, total ou parcialmente, a sub-rogação, nessa medida, total ou parcial, se extinguirá a responsabilidade do fiador.
A actuação do credor terá que se revelar voluntária, não carecendo de ser necessariamente culposa. Assim o refere Januário Costa Gomes[8]: «O facto positivo ou negativo do credor terá de ser um facto voluntário, não fazendo aqui sentido a exigência do carácter culposo da sua actuação. Independentemente de não estarmos em sede de determinação de responsabilidade civil do credor – caso em que a “busca” da culpa do devedor (no caso o credor) teria toda a razão de ser – o que é razoável é que o credor perca a vantagem da fiança na medida em que a perda do direito lhe seja imputável»[9]

As situações abrangidas pela previsão do art 653º podem ser muito variadas.

 Ponto é que em virtude da conduta do credor, o fiador tenha perdido a possibilidade de sub-rogação nos direitos do credor contra o devedor, prevendo a lei que ocorra essa exoneração mesmo que se verifique a solidariedade entre fiadores»[10] .

Antunes Varela exemplifica os factos positivos em causa com a renúncia a um privilégio, a remissão da garantia de um dos confiadores, e os factos negativos com a falta de reclamação do crédito no processo de falência do devedor, e precisamente, com a falta de invocação da preferência no concurso de credores [11].

E põe em relevo que «embora esta disposição do Código vigente se não refira especificadamente, como fazia o art 853º do Código anterior, á impossibilidade de sub-rogação nos privilégios e hipotecas do credor, não há a menor dúvida de que todos estes casos e outros análogos, cabem na fórmula mais ampla e indiscriminada (“nos direitos”  no plural, note-se; e não “no direito”, no singular – que competem ao credor) que o texto actual utiliza».

Repare-se que o art 644º, com o qual se relaciona o disposto neste art 653º, refere, igualmente, os «direitos do credor».

Como o evidencia Januário Costa Gomes [12] , «os direitos em causa no art 653º são, portanto, outros direitos, que não o de crédito tout court – o direito de credito objecto de sub-rogação – mas os direitos que lhe estão associados, por força da lei ou vontade das partes». 

E salienta ainda que «a impossibilidade de sub-rogação capaz de determinar a extinção da fiança tanto abrange a perda de direitos anteriores à fiança ou contemporâneos dela, como a de direitos posteriores à sua constituição», remetendo aqui para Vaz Serra, acrescentando ser também «incontestável que a sanção aplicável à perda culposa de qualquer dos direitos do credor procede de igual modo para a simples diminuição relevante de valor de alguns desses direitos».

Entre os casos que indiscutivelmente se inserem no “benefitium cedendarum actionem” conta-se a renúncia a uma garantia real, como se refere no Ac RP 16/6/2011 [13].

 Na mesma linha de entendimento lê-se no Ac R P  30/1/2017[14] que «se é o credor o responsável pela “perda” dos direitos que lhe assistem é razoável que o fiador se possa desonerar da obrigação assumida, uma vez que se a vier a cumprir, já não vai dispor dos meios necessários para obter do afiançado o que despendeu, uma vez que por culpa do credor se perderam os direitos em que deveria ficar sub-rogado».

E como é evidenciado no Ac R L 1/2/2007[15], «o art 653º do CC tanto tem em vista a desvinculação do fiador nos casos em que a sub-rogação não é de todo possível, como os casos em que, em termos práticos, o direito do credor já não possa ser exercido ou não o possa ser com as mesmas garantias».  

Como é evidente, se a impossibilidade de sub-rogação for apenas parcial a fiança não se extingue ocorrendo apenas a redução da obrigação do fiador, ou por outras palavras, estas de Antunes Varela [16], «a forma como neste texto se afirma que os fiadores ficam desonerados na medida em que não puderem ficar sub-rogados  revela claramente que, sendo esta impossibilidade puramente parcial – e não total – a solução resultante da lei é a da redução e não a integral caducidade da fiança».

 Regressando ao caso concreto, está-se em condições de pôr de lado o entendimento da apelante de que a desvinculação do fiador a que se reporta o art 653º pressupõe o pagamento pelo fiador.

Com efeito, o que está em causa nessa desvinculação/desoneração/liberação é precisamente libertar o fiador desse pagamento, na precisa medida em que o credor, por acto voluntário seu, inviabilizou o pagamento de créditos seus com o que de forma que pode apresentar-se mais ou menos directa impediu a sub-rogação do fiador nesse mesmo crédito.

Veja-se a situação dos autos: o Banco aqui apelante, não tendo reclamado na execução fiscal interposta contra a aqui devedora principal e os aqui fiadores, na sequência da respectiva citação operada em 20/10/2015, o crédito cujo pagamento veio a reclamar posteriormente na execução ora embargada (que interpôs em 24/2/2016), sendo que  naquela execução se mostrava penhorado o prédio que estes em 2012 lhe haviam dado em hipoteca em reforço da fiança, conduziu a que  a hipoteca de que beneficiava tivesse caducado nos termos do art 824º/2 CC, sem que o crédito que garantia se tivesse visto transmitido para o produto da venda do mesmo, que foi o de €22.760,00. Acresce que, porque não foram reclamados créditos nessa execução e nela estavam em causa coimas, se a aqui embragada tivesse reclamado o crédito aqui em causa,  porque o pagamento deste este preferiria ao daquelas, ter-se-ia visto pago no valor de €22.110,28 (€22.760,00 - €649,72 referentes a custas da execução que saíram precípuas).

Foi, pois, nessa medida que o Banco embargado prejudicou os fiadores, porque foi nessa precisa medida que os impediu de se poderem sub-rogar no correspondente crédito do Banco. Este com a referida omissão impediu/inutilizou o pagamento do seu crédito nessa medida, e por isso, nessa mesma medida se devem ter os fiadores por desvinculados/desonerados da sua obrigação.

Por outras palavras, para que se tivesse verificado a sub-rogação a que alude o art 644º CC, necessário teria sido que o Banco tivesse exercido o direito de reclamar o crédito exequendo na execução fiscal. Ter-se-ia então visto pago no valor de €22.110,28, em função da venda judicial do imóvel que os fiadores lhe haviam dado em hipoteca, e, consequentemente, a dívida a que se refere a execução embargada ter-se-ia visto reduzida proporcionalmente, sendo que em função da sub-rogação no direito do credor, os fiadores poderiam vir a reclamar aquele valor junto da devedora.

Porque o Banco por acto voluntário seu se permitiu não reclamar o crédito exequendo, o imóvel hipotecado foi vendido, e com o produto da venda do mesmo foram pagas as custas da correspondente execução e outras dívidas ao Fisco, nada tendo remanescido. Os fiadores, proprietários do bem, continuaram fiadores relativamente à totalidade da divida exequenda, mas já não são proprietários do imóvel hipotecado, sendo que se fossem obrigados a pagar a totalidade da dívida aqui exequenda, ficando embora sub-rogados nos direitos do Banco, os direitos deste já não contemplavam o de hipoteca sobre aquele imóvel.

Como acima se referiu o art 653º do CC tanto tem em vista a desvinculação do fiador nos casos em que a sub-rogação não é de todo possível, como os casos em que, em termos práticos, o direito do credor já não possa ser exercido ou não o possa ser com as mesmas garantias.  

Consequentemente a execução só poderá prosseguir pelo valor de €11.312,44, como foi decidido na 1ª instância.

 Improcede, pois a apelação quanto ao primeiro dos fundamentos invocados pelo apelante.

Mas improcede também relativamente ao que se reporta à circunstância da exoneração do fiador a que respeita o art 653º CC pressupor que o mesmo não tenha prescindido do benefício da excussão prévia.

O art 653 º -  que até está  inserido numa Subsecção especifica relativa à extinção da fiança - não estabelece essa restrição.

 É o carácter acessório da fiança relativamente à obrigação principal que exige o acautelamento e a garantia do direito do fiador se sub-rogar nos direitos do credor e não o caracter subsidiário ou não da fiança.

O que é essencial à fiança é a acessoriedade e não a subsidiariedade.

Por outro lado, lembre-se, não se aplica à situação dos autos as normas dos arts  639º (e 640º), na medida já acima salientada de que as garantias reais aí referidas se referem às prestadas por terceiro, e o fiador não o é na relação triangular que a fiança comporta.

Nestes termos, improcede totalmente a apelação.

Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 4 de Junho de 2019

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)


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[1]Código Civil Anotado», p 584/585
[2] A sub-rogação configura-se também como um meio conservatório da garantia patrimonial, falando-se então de acção sub-rogatória, mas o que importa à situação dos autos é a sub-rogação como meio de transmissão de créditos. 
[3]-  Antunes Varela, «Direito das Obrigações», 7ª ed, vol II, p 345
[4] Ana Prata, «Dicionário Jurídico», p 1142, que há interesse directo na satisfação do crédito no caso do fiador.

[5]  - «Direito das Obrigações», 7ª ed, II Vol, p 335
[6] - Obra referida, p 336
[7]- Obra referida, p 340
[8] Assunção Fidejussória de Divida», p 925,
[9]- No Ac RP 16/6/2011 (Pinto de Almeida) defende-se que «para a liberação do fiador não é de exigir a actuação culposa do credor, mas apenas a voluntariedade do facto positivo ou negativo de que decorre a perda do direito. Esta perda tem de ser imputável ao credor, mas não depende de conduta culposa deste».

[10] Como o refere Menezes Leitão- obra referida, p 343- «efectivamente, também neste caso, a conduta do credor (activa ou omissiva) vem a traduzir-se num prejuízo para o exercício dos direitos do fiador, situação que a lei considera incompatível com a manutenção da obrigação de fiança».

[11] No Ac R L 14/4/2015 (Luís Espírito Santo) refere-se ainda um outro exemplo: a injustificada demora em accionar o devedor principal que acaba por ser declarado insolvente, remetendo para o Ac R L 1/2/2007 (Ana Paula Boularot)
[12] «Assunção Fidejussória de Divida, Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador» Almedina, p 931
[13] - Relator, Pinto de Almeida, que remete neste particular para Cunha Gonçalves, «Tratado de Direito Civil» V, 219, Vaz Serra «Fiança e Figuras Análogas» , BMJ  71- 277 (nota 466) e Januário Gomes «Assunção…», p 931
[14]- Relator, Cura Mariano
[15] - Relatora, Ana Paula Boularot
[16] - Obra referida, p 510