Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
144/09.3GTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 05/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - 2º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ART.ºS 127º E 374º, N.º 2, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A impugnação da decisão sobre a matéria de facto não pode cingir-se à argumentação no sentido de que os factos que se tiveram como provados não encontram apoio na prova por não terem correspondência no teor verbalizado dos depoimentos que transcreveu.
Essa é uma análise que despreza em absoluto a componente fundamental da valoração crítica desenvolvida no âmbito da livre apreciação da prova, em que assume particular relevo o recurso às presunções judiciais como modo de comprovação (ou não!) dos factos insusceptíveis de prova directa.

Perfilhar aquela tese equivaleria a aceitar como limite da actividade jurisdicional a estrita vinculação do julgador às afirmações e negações das testemunhas, prescindindo em absoluto de qualquer juízo crítico, da consideração das regras da experiência ou mesmo do mero aflorar da inteligência relacional, cingindo a gnose judiciária ao sim e ao não ditos em audiência, sem qualquer espaço para a chamada valoração crítica.

Não é esse o caminho apontado pela lei adjectiva penal. Bem pelo contrário, a valoração crítica da prova constitui o núcleo essencial da fase decisória, sendo através dela que o julgador, aprecia o facto em correlação com a prova produzida.

Daí que a parte final do n.º 2, do art.º 374º, imponha o “…exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 2º Juízo Criminal de Leiria, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi sentença em que se decidiu condenar o arguido OV... pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira p. e p. pelo art. 137 nº 1 e nº 2 do C. P., ocorrido a 19-09-2009, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de pisão, suspensa a sua execução por idêntico período, sujeito a regime de prova, e sob obrigação de entregar no prazo de seis meses mil e quinhentos euros ao Lar X... - Leiria, juntando recibo.

            Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. O recorrente foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo art. 137.° n.º I e n.º 2 do C.P., na pena de prisão de 3 anos e nove meses, suspensa a sua execução por idêntico período, sujeito ao regime de prova e sob a obrigação de entregar no prazo de seis meses, mil e quinhentos euros ao Lar X... - Leiria.

2. O presente recurso tem por objecto toda a matéria da sentença condenatória proferida nos presentes autos.

3. O Tribunal a quo considerou provada a seguinte matéria de facto:

a) No dia 19 de Setembro de 2009, cerca das 7.00H, o arguido conduzia o veiculo automóvel ligeiro de mercadorias matricula  … no sentido Coimbra-Lisboa, e à sua frente, no mesmo sentido, transitava GC..., conduzindo o veículo pesado de mercadorias matricula … .

b) Este conduzia a sua viatura na metade direita da faixa de rodagem a uma velocidade de cerca de 90 Km/h.

c) Nessa circunstância e na via de circulação em que segui, foi embatido na parte de trás lado esquerdo pela zona frontal do lado direito da viatura conduzida pelo arguido.

 d) Apôs o embate, o veículo do arguido passou a circular descontrolado pela via da esquerda, embateu nas barreiras de protecção centrais e na parte lateral da viatura de GC... e veio a imobilizar-se junto ao separador central.

e) O arguido conduzia sem considerar e atender aos termos em que seguia o veículo pesado que o precedia.

j) No local, a faixa de rodagem tem uma largura de 7,60m, compreendendo duas vias de trânsito na direcção Porto-Lisboa.

g) A via apresentava-se como uma curva pouco pronunciada, as condições atmosféricas eram boas bem como a visibilidade.

h) Em consequência do embate, SS..., que seguia ao seu lado, sofreu as lesões traumáticas crânio meningo-encefálicas e dos membros superior direito e inferior do mesmo lado, com fractura, as quais determinaram a sua morte, verificada às 7.50h

i) O embate ficou a dever-se ao facto de o arguido, na ocasião, ter assumido um tipo de condução descuidada e leviana, não cuidando, como lhe era exigível e possível, de circular, considerando a presença, na via, à sua frente do veículo pesado de mercadorias dirigido por GC....

j) O arguido podia e devia ter evitado o embate pois poderia ter abrandado a marcha e parado atrás daquele ou efectuar a sua ultrapassagem deforma segura.

k) Era possível e exigível ao arguido que circulasse a uma distância do veículo que o precedia que evitasse a colisão com o mesmo.

l) Caso o arguido seguisse a velocidade inferior a 110 Km/h, poderia desviar-se do veículo pesado e assinalado.

m) O arguido actuou de forma livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei. "

4. Formando a sua convicção no depoimento das testemunhas GC…, NC... e MF..., no teor da prova documental a fls. 161 onde se constata a hora da chamada para o INEM, a fls. 104, 105, 166, 168, 199, 218, 219, 220 e 224, que consistem nas fotografias tiradas após o embate, e fls. 120 que correspondem ao esboço do resultado do embate e medições; no teor do relatório da autópsia a 115 190 e nas regras da experiência comum, relativamente ·' .. à culpabilidade do arguido, e no que diz respeito à dinâmica do embate bem como à sua intervenção no facto, e perante o silêncio do arguido ...

5. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os referidos factos, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova.

Senão vejamos:

6. O Tribunal a quo deu como provado na al. e) que o "arguido conduzia sem considerar e atender aos termos em que seguia o veiculo que o precedia. ".

7. De igual modo, deu como provado na al. i) que" () embate ficou a dever-se ao facto de o arguido, na ocasião, ter assumido um tipo de condução descuidada e leviana, não cuidando, como lhe era exigível e possível, de circular, considerando a presença, na via, à sua frente do veículo pesado de mercadorias dirigido por GC.... ".

8. Deu como provado ainda, na al. j), que "O arguido podia e devia ter evitado o embate pois poderia ter abrandado a marcha e parado atrás daquele ou efectuar a sua ultrapassagem de forma segura. ", e na ai. k) que "Era possível e exigível ao arguido que circulasse a uma distância do veiculo que o precedia que evitasse a colisão com o mesmo.

9. Considerando provado igualmente na al. I) que "Caso o arguido seguisse a velocidade inferior a 110 Km/h., poderia desviar-se do veículo pesado e assinalado. ", concluindo por isso e dando como provado na al. m) que "O arguido actuou deforma livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei. "

10. Acontece que, da análise da prova produzida, não resultou provado que o arguido conduzia sem considerar e atender aos termos do veiculo em que seguia, não ficou provado que o embate ficou a dever-se ao facto de o arguido ter assumido um tipo de condução descuidada e leviana, não ficou provado que o arguido podia e devia ter evitado o embate e não ficou provado que o arguido não circulasse a uma distância de segurança do veículo pesado que seguia à sua frente

11. Assim como não resultou provado a velocidade a que o arguido circulava, não tendo ficado, igualmente provado que, se o arguido circulasse a uma velocidade inferior a 110 Km/h, poderia desviar-se do veículo pesado assinalado.

12. Não podendo, por inexistência de elementos probatórios, o Tribunal a quo considerar que o arguido actuou de forma livre e consciente, porquanto tal não resultou provado.

13. Com efeito, com o depoimento da testemunha GC..., não ficou provada a culpabilidade do arguido no acidente, e consequentemente não resultam provados os factos que o Tribunal a quo considera provados nas al.s e), i), j), k), I) e m) da douta sentença, cfr. o respectivo depoimento supra transcrito.

14. De igual forma com o depoimento da testemunha NC... não ficou provada a culpa do arguido no acidente, designadamente o nexo de causalidade entre a condução do arguido e a morte do pendura, cfr. respectivo depoimento supra transcrito.

15. Assim como não resulta provada a factualidade do depoimento da testemunha MF..., gravado em CD, de 10:55:46 a 11:03:30, igualmente supra transcrito.

16. Assim, não resultou dos autos, nem da prova, testemunhal e documental produzida (quer globalmente considerada quer apreciada individualmente), matéria suficiente para que se possa concluir que o recorrente circulava em excesso de velocidade,

17. Pelo que a prova produzida impunha decisão diversa da obtida pelo Tribunal a quo, pelas seguintes razões:

18. Desde logo, dos depoimentos das testemunhas GC... e NC..., somente resultou que o conta-quilómetros estava bloqueado a 165 Km/h. Nenhum deles afirmou ter, sequer, visto o veiculo ligeiro de mercadorias antes do acidente, nem tão pouco em excesso de velocidade, sabendo ambos: o primeiro por ter ouvido dizer, não podendo por este motivo, o depoimento da testemunha ser valorado nesta parte, e o outro porque, viu o conta-quilómetros e viu que o mesmo bloqueara naquela velocidade.

19. Todavia, não resultou do depoimento de nenhuma testemunha, nem há nenhum elemento pericial ou técnico, nos autos, probatório do excesso de velocidade.

20. Não há registo de entrada do veículo ligeiro de mercadorias na auto-estrada, pelo que não se pode simular a velocidade de circulação do referido veículo, aquando do embate.

21. O facto de o conta-quilómetros ter bloqueado à velocidade supra referida, não prova que fosse aquela a velocidade a que o veículo circulava, desde logo, porque com o embate a frente do veículo ficou completamente destrui da o que afecta inelutavelmente o comportamento de todos os instrumentos do painel do referido veiculo, e há mesmo vários ensaios e estudos que provam isso mesmo.

22. O facto de existirem indícios encefálicos na galera do pesado de mercadorias, não prova igualmente o excesso de velocidade, porquanto resultou provado do depoimento da testemunha NC... que o pendura (vitima do acidente) não tinha o cinto de segurança colocado, reconhecendo inclusive esta testemunha, que talvez o desfecho tivesse sido outro, apesar do embate, se a vitima estivesse protegida com o cinto de segurança.

Sem o cinto, o corpo fica solto no interior do veículo, pelo que facilmente é expelido embatendo desgovernado, em todos os obstáculos.

23. Acresce que o Tribunal a quo, conforme resulta do teor da sentença, baseou a sua convicção, também" ... perante o silêncio do arguido ... "

24. Segundo resulta do art. 343.° do C.P.P., o arguido tem o direito de prestar declarações em qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo, sem que no entanto a tal esteja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo.

25. O direito ao silêncio, está inserido na defesa pessoal do arguido na medida em que lhe é garantida a liberdade de autodeterminação, para decidir se colabora ou não com a justiça. Desde logo, o direito ao silêncio implica a liberdade individual do indivíduo e é tido como o pilar da estrutura acusatória do processo penal, consagrada no n." 5 do art. 32.0 da C.R.P .. , que delimita o principio da presunção de inocência não só como uma atribuição do ónus da prova ao Tribunal, mas também como o direito do arguido a ser sujeito processual do processo e, por conseguinte, não ter que participar coactivamente na produção de prova.

26. Pelo que a posição do arguido há-de ser sempre de livre declaração e participação, não podendo, em consequência, ser penalizado pelo silêncio que eventualmente se reserve.

27. Sobretudo, e como in casu, a vitima era o irmão do condutor, nesta situação concreta e a par do supra referido, é mais do que legitimo ao arguido não se pronunciar sobre os factos, porquanto, constitucionalmente é um direito que lhe assiste e desde logo, porque o seu irmão faleceu, e é, segundo as regras da experiência comum, razoável aceitar que o arguido não reúna as condições emocionais para descrever o sucedido.

28. “É consabido que em matéria de apreciação da prova, vigora o principio de acordo com o qual o julgador formará livremente a sua convicção, objectivando-a racionalmente nos elementos produzidos ou analisados em audiência de julgamento e, com apoio as mais das vezes, num raciocínio dedutivo ou indutivo, confrontando-o com as chamadas regras da experiência comum. "

29. Todavia, tal apreciação tem que ser realizada sem que haja atropelo aos princípios constitucionalmente consagrados, designadamente, aos prs. in dúbio pro reo e presunção de inocência, exigindo-se para condenar, a prova cabal dos factos, integradores do tipo de ilícito em causa.

30. Pelo que, e contrariamente ao douto entendimento do Tribunal a quo, o silêncio do arguido nada prova, não podendo o mesmo ser valorado.

31. Destarte, o Tribunal a quo violou, entre outros:

- O n.º 2 do art. 32.0 (principio in dubio pro reo), da CRP.;

- O n.º 5 do art. 97.°, 127.°,340.° e o n.º 2 do 374.°, todos do CPP.

32. Por outro lado, do texto da sentença recorrida, resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a al. a), do n.º 2 do art. 410° do C.P.P., conforme facilmente, até se depreende, da leitura da própria sentença.

33. Vem o Tribunal a quo condenar o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira.

34. A questão a colocar-se é a apreciação da factualidade provada e a sua interpretação, designadamente a interpretação que o Tribunal a quo considerou como integradora do conceito de negligência grosseira.

35. O conceito de negligência grosseira implica uma intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do ilícito,

36. Ora, in casu, não se conseguiu provar a negligência no acto de conduzir, não se conseguiu provar a falta de cuidado ou de atenção, não se conseguiram provar quaisquer factos que sequer indiciassem, ainda que tivessem que ser provados, um qualquer comportamento leviano do arguido.

37. Em suma a negligência para ser grosseira exige clara e objectivamente um comportamento do arguido que ultrapasse em muito a simples falta de cuidado, que segundo as circunstâncias está obrigado e é capaz, e antes evidencia uma atitude insensata, irreflectida e mesmo irresponsável no modo de agir.

38. Ora, não resultou provado que o agente, com a sua conduta tivesse criado, assumido ou potenciado um perigo típico para a vida da vítima.

39. Mais, a violação das normas de cuidado, pode em abstracto até constituir um indício do preenchimento do tipo de ilícito, mas o simples indício não pode fundamentar o tipo de ilícito e como tal não alicerça uma condenação.

40. Não obstante e considerando as apreciações supra mencionadas, a ter havido negligência, o que só por mera hipótese se admite,

41. Ao arguido, ainda assim, caberia ser punido ao abrigo do n.º 1 do art. 137º e não nos termos do n.º 2 do mesmo artigo do CP.

42. Desde logo, porque a resultar algum indicio de negligência da conduta do arguido, no seguimento dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, da análise do relatório da Brigada Criminal da GNR relativo ao acidente (que nada conclui) e da própria audiência de julgamento, o mesmo seria só isso, um indício, e a verdade é que não resultam factos que demonstrem qualquer negligência, e por conseguinte, muito menos, qualificadores de negligência grosseira.

43. O Tribunal a quo devia ter valorado que o arguido nunca cometeu nenhuma infracção estradal, não tem antecedentes criminais ou sequer rodoviários e mostra-se inserido na sociedade, sendo inclusive considerado pela sua entidade empregadora como um bom trabalhador (cfr. resulta dos autos) não só como elementos atenuantes, em termos de medida concreta da pena, mas também em sede de ilicitude e culpa na medida em que o arguido sempre pautou o seu comportamento em conformidade com o direito, não tendo aliás resultado provado nos presentes autos, outro comportamento.

44. Desta forma, o Tribunal a quo não atendeu a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depuseram a favor do agente, e em consequência, não observou, como era seu dever, o disposto no art. 71º, n.º 2 do CP.

45. O Tribunal a quo violou assim, ainda os artigos 40° e 71° ambos do CP.

46. Por conseguinte, nos presentes autos, não só ficou cabalmente provado que o recorrente não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais vem acusado e quanto á sua culpa, pelo que deve o recorrente ser absolvido do crime de homicídio por negligência grosseira. No entanto, sem prescindir e admitindo-se por mera hipótese, que o arguido foi negligente na condução que fazia, a haver alguma condenação esta deve ser feita considerando o conceito de negligência na sua forma simples, nos termos do art . 137º, nº 1, do C.P., devendo ser-lhe aplicada a pena menos gravosa, nomeadamente a pena de multa, pelo mínimo.

Termos em que e nos melhores de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida, com as legais consequências, só assim sendo feita a, habitual e necessária, JUSTIÇA!

            O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

            Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer pronunciando-se pela parcial procedência do recurso, reduzindo-se a pena a dois anos de prisão, suspensa na sua execução.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:

            - Impugnação da matéria de facto;

            - Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

            - Violação do princípio in dubio pro reo;

            - Erro de direito na qualificação jurídica dos factos;

            - Medida da pena.

                                                                       *

                                                                       *

II - FUNDAMENTAÇÃO:

            Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
a) No dia 19 de Setembro de 2009, cerca das 7.00h., o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias matrícula … no sentido Coimbra-Lisboa, e à sua frente, no mesmo sentido, transitava GC..., conduzindo o veículo pesado de mercadorias matrícula … .
b) Este conduzia a sua viatura na metade direita da faixa de rodagem a uma velocidade de cerca de 90 km/h..
c) Nessa circunstância e na via de circulação em que seguia, foi embatido na parte de trás lado esquerdo pela zona frontal do lado direito da viatura conduzida pelo arguido.
d) Após o embate, o veículo do arguido passou a circular descontrolado pela via esquerda, embateu nas barreiras de protecção centrais e na parte lateral da viatura de GC... e veio a imobilizar-se junto ao separador central.
e) O arguido conduzia sem considerar e atender aos termos em que seguia o veículo pesado que o precedia.
f) No local, a faixa de rodagem tem uma largura de 7,60m., compreendendo duas vias de trânsito na direcção Porto-Lisboa.
g) A via apresenta-se como uma curva pouco pronunciada, as condições atmosféricas eram boas bem como a visibilidade.
h) Em consequência do embate, SS..., que seguia ao seu lado, sofreu as lesões traumáticas crânio meningo-encefálicas e dos membros superior direito e inferior do mesmo lado, com fractura, as quais determinaram a sua morte, verificada às 7.50h..
i) O embate ficou a dever-se ao facto de o arguido, na ocasião, ter assumido um tipo de condução descuidada e leviana, não cuidando, como lhe era exigível e possível, de circular, considerando a presença, na via, à sua frente do veículo pesado de mercadorias dirigido por GC....
j) O arguido podia e devia ter evitado o embate pois poderia ter abrandado a marcha e parado atrás daquele ou efectuar a sua ultrapassagem de forma segura.
k) Era possível e exigível ao arguido que circulasse a uma distância do veículo que o precedia que evitasse a colisão com o mesmo.
l) Caso o arguido seguisse a velocidade inferior a 110 km/h., poderia desviar-se do veículo pesado e assinalado.
m) O arguido actuou de forma livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei.
n) O arguido não tem antecedentes criminais nem se mostra inscrita no registo individual de condutor a prática de qualquer infracção.
o) O arguido é canalizador, aufere mensalmente 700 euros, vive com companheira, estudante do ensino superior, e filha de cinco anos de idade, e suportam 300 euros de encargo com habitação.
p) O arguido é pessoa cumpridora na relação laboral.

            Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:

a) Na noite anterior o arguido havia-se deitado cerca da 1.00h. e levantado pelas 5.30h

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:

O Tribunal baseou a sua convicção na factualidade atinente à culpabilidade do arguido, e no que diz respeito à dinâmica do embate bem como à sua intervenção no facto, e perante o silêncio do arguido, nas seguintes razões, as quais em jeito conclusivo se nos afiguram concludentes:

-prova testemunhal:

i)o depoimento de GC....

Esta testemunha veio depor, dizendo que vinha da Maia para Lisboa, na A1, e na localização acima assinalada, pressente um estouro na traseira do veículo pesado que conduzia, tendo sentido um empurrão para a frente, e de novo bate já do seu lado, fazendo faíscas por virtude do contacto. Esclareceu que a segunda “pancada” foi o raspar no veículo que conduzia. Chamou o 112, viu uma pessoa no lugar do passageiro dianteiro à direita do condutor. Esta pessoa estava debruçada. Exibidas as fotografias de fls. 104, 105, 166, 168, 199, 218, 219 e 224, declarou ser o local, ser o veículo pesado o que conduzia, e o veículo que lhe embateu ficou conforme documentado. Mais esclareceu que a curva em causa era extensa, era “aberta”, que conduzia a cerca de 90 km/h., e havia um trânsito concretamente mensurável no facto de 10 em 10 minutos passarem por si veículos.

ii)o depoimento de NC....

Esta testemunha veio dizer que no próprio dia foi ao local. Não viu a dinâmica do embate.

Quando chegou ao local deu-se conta da testemunha anterior, bem como a vítima, estando o veículo pesado à frente na berma. Assinalou o facto de ser um sábado e não havia tráfego intenso e àquela hora. Constatou a existência de sangue na parte lateral do pesado. Procedeu à recolha fotográfica. Esclareceu que o quadrante da velocidade marcava 165 km/h., mas também referiu que poderia ter saltado pela força do embate.

iii) depoimento de MF....

A testemunha veio dizer que procedeu à elaboração do esboço de fls. 120 bem como medições, e viu o condutor do veículo como sendo o arguido, estando a vítima encarcerada.

As assinaladas mereceram inteira credibilidade pela isenção com que depunham, a clareza da sua exposição bem como a espontaneidade latente nos seus depoimentos.

-prova documental: doc. de fls. 161 onde se constata que a chamada para o INEM foi às 7.10h.; docs. de fls. 104, 105, 166, 168, 199, 218, 219, 220, e 224, consistentes em fotografias tiradas após o embate, e fls. 120, esboço do resultado do embate e medições;

-prova pericial: fls. 190 (relatório da autópsia.

-nas regras de experiência comum.

O facto foi praticado pelo arguido, uma vez que a testemunha reconheceu o arguido, e tratou de dizer que o falecido estava debruçado no local destinado ao passageiro. Ora, por exclusão de partes, só o arguido é que poderia conduzir o veículo.

Considerando o facto de o veículo ter embatido num veículo pesado, considerando o facto de tal veículo ter sido empurrado, considerando o facto de o quadrante de velocidade do veículo marcar 165 km/h., considerando o sangue espelhado na face lateral do veículo pesado, considerando o facto de o veículo que o arguido conduzia ter ficado desfeito conforme documentado, considerando o facto de se ter imobilizado a 50 m. do ponto onde tinha ocorrido a primeira colisão, é de concluir que a velocidade a que o arguido conduzia era de cerca de 165 km/h.. Não é novidade dizer-se que um automóvel é mais leve que um camião. Também não é novidade que ambos veículos estão em movimento. Ora, sentindo o veículo pesado um empurrão, considerando o sangue existente, considerando o efeito do embate no veículo ligeiro, é de crer que não existiu qualquer salto no marcador do velocímetro, documentando tal marcador a velocidade efectiva do veículo. A defesa parte de raciocínio conjectural ao referir-se a um embate em que envolveu a princesa Diana. Trata-se de um outro embate, de uma outra circunstância não traduzida nos autos em termos de prova. Não se inventem hipóteses por caminhos diferentes daqueles a que os presentes autos se reportam. As circunstâncias indiciadoras (e trata-se de elementos fácticos que conduzidos a premissas permitem uma dose de convencimento acima do silêncio do arguido) não podem ser afastadas por um outro caso cujos contornos são para aqui irrelevantes.

Na altura, o trânsito era diminuto, a curva é ligeira no seu arco, o tempo era luminoso como se percebe pelas fotografias, sendo que em Setembro é de dia, o que importava reconhecer que o arguido conduzia desatentamente, tinha alternativa fácil ao seu comportamento, pois poderia diminuir a velocidade a que seguia e assim aperceber-se da presença do veículo que seguia à sua frente, é esta a lógica quotidiana do acontecer. 

Quanto à questão da determinação da sanção, teve ainda o Tribunal em consideração o certificado de registo criminal de folhas 285 e emitido a 12-08-2010,  bem como r.i.c. a fls. 288 e emitido a 17-8-2010, bem como às declarações do arguido, as quais prestadas de forma espontânea e isenta, me convenceram quanto à situação pessoal e económica. Os depoimentos de  … e … mostraram-se irrelevantes, sendo de referir este último que veio dizer que o limite de velocidade da carrinha era de 150 km/h. carregada, quando um simples olhar à rede de veículos da Opel no seu lugar virtual assim não o afirma, sendo certo que ninguém veio dizer que a viatura estava carregada. Atendi ao depoimento de PS..., empregador do arguido, e que depôs sobre as capacidades laborais do arguido, revelando depoimento sério e convincente.

O facto não provado adveio do facto de ninguém o saber, sendo certo que PS... veio dizer que o arguido é pessoa que não se cansa facilmente.

                                                                       *

                                                                       *

            Como resulta patente das “conclusões” do recurso acima transcritas, estas estão longe de constituir o resumo sintético da motivação, conformação que lhes é apontada pelo nº 1 do art. 412º do Código de Processo Penal (código a que se reportam também as demais normas citadas sem menção do diploma de origem), e que serve, entre outras finalidades, a da delimitação do objecto do recurso[1], que opera a vinculação temática do tribunal superior, definindo o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que, como tal, podem sempre ser oficiosamente apreciadas independentemente de terem ou não sido suscitadas pelo recorrente na motivação. Na verdade, não são verdadeiras conclusões, já que reproduzem praticamente in totum o teor da motivação.

Registe-se, não obstante, que apesar da extensão das conclusões formuladas, nem assim o recorrente logrou dar cabal cumprimento ao disposto no art. 412º. Na verdade, as conclusões, enquanto resumo da motivação stricto sensu, delimitam o objecto do recurso, em obediência às imposições legais, nos seguintes termos:

- Sintetizando os argumentos expendidos na motivação;

- Indicando as normas jurídicas violadas e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, indicando a norma que o recorrente entende dever ser aplicada;

- Indicando o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou o sentido com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que deveria ter sido aplicada;

- Indicando os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;

- Indicando as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, estas por referência ao consignado na acta e com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação;

- Indicando ainda, se for caso disso, as provas que devem ser renovadas, também por referência ao consignado em acta e com a mesma indicação concreta dos fundamentos da impugnação;

- E indicando, por fim, se houver recursos retidos, quais os que mantêm interesse.

A relevância do cumprimento das normas legais que consagram o conteúdo obrigatório das conclusões do recurso resulta da circunstância de a delimitação do objecto do recurso pelas conclusões formuladas estabelecer uma fronteira que se impõe ao tribunal superior, de tal sorte que se o recorrente tratar uma questão na motivação e não a retomar nas conclusões, esta ficará arredada do âmbito do recurso. Se porventura as conclusões faltarem ou se delas não for possível deduzir as indicações acima referidas, o relator convidará o recorrente a apresentá-las, completá-las ou esclarecê-las, sob pena de rejeição do recurso ou de não conhecimento parcial. Com uma importantíssima limitação, contudo: o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso já fixado na motivação (nº 4 do art. 417º), não podendo o recorrente aproveitar o convite previsto no nº 3 do art. 417º para tratar questões não abordadas na motivação que inicialmente apresentou, assim como não poderá tratar em sede de conclusões aspectos não abordados na motivação. E se o fizer, não serão conhecidos, por essas “conclusões” não traduzirem a síntese de matéria antes tratada no corpo da motivação.

Ora, desde logo, o recorrente não deu cumprimento à obrigação de indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida por referência concreta às passagens em que se funda a impugnação. Limita-se a transcrever extensas parcelas de depoimentos, precedidos da indicação de que deles não resulta provada a matéria de facto que o tribunal a quo teve como assente, mas sem se ater verdadeiramente à relação entre a prova e os respectivos fundamentos, escamoteando a análise crítica do conjunto de elementos de prova que conduziram à fixação do provado.

Tanto quanto parece resultar do alegado pelo recorrente, este sustenta que os factos que se tiveram como provados não encontram apoio na prova por não terem correspondência no teor verbalizado dos depoimentos que transcreveu. Essa é, no entanto, uma análise que despreza em absoluto a componente fundamental da valoração crítica desenvolvida no âmbito da livre apreciação da prova, em que assume particular relevo o recurso às presunções judiciais como modo de comprovação (ou não!) dos factos insusceptíveis de prova directa. Perfilhar a tese sustentada pelo recorrente equivaleria a aceitar como limite da actividade jurisdicional a estrita vinculação do julgador às afirmações e negações das testemunhas, prescindindo em absoluto de qualquer juízo crítico, da consideração das regras da experiência ou mesmo do mero aflorar da inteligência relacional, cingindo a gnose judiciária ao sim e ao não ditos em audiência, sem qualquer espaço para a chamada valoração crítica.

Felizmente, não é esse o caminho apontado pela lei adjectiva penal. Bem pelo contrário, a valoração crítica da prova constitui o núcleo essencial da fase decisória, sendo através dela que o julgador, aprecia o facto em correlação com a prova produzida. Daí que a parte final do nº 2 do art. 374º imponha o “…exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

A conjugação desta última norma com o disposto no art. 127º desenha o modo de fixação da matéria de facto, levando a que o provado se ofereça como o resultado depurado dos meios de prova produzidos em audiência ou levados aos autos nos termos legais (documentos, depoimentos para memória futura, perícias, relatórios) [2]. Não podendo esse produto final resultar exclusivamente do puro convencimento do julgador, da sua mera intuição, vertida numa convicção subjectiva, também não poderá prescindir de uma análise lógica que excederá em muito a mera soma das parcelas, antes se afirmando como actividade intelectual abrangente (por exemplo, valorando especialmente um ou outro depoimento mais marcante, fruto da credibilidade do seu autor; desvalorizando depoimentos mais emotivos e menos objectivos; relacionando conclusões de prova pericial com declarações ou depoimentos; valorando o teor de escutas telefónicas à luz do contexto das conversas e compaginando-as com a prova testemunhal ou documental ou com apreensões efectuadas), em que serão ponderadas as provas tanto nas suas coincidências como nas suas incongruências, à luz da experiência comum, de um juízo de normalidade das coisas, assimilando o resultado da percepção abrangente e simultânea de vários sentidos (por exemplo, as dúvidas resultantes de um depoimento aparentemente seguro que no entanto, em momentos críticos, perante perguntas imprevisíveis, é acompanhado de inflexões na voz, hesitações antes da resposta, contradições com afirmações anteriores, deduções ilógicas; as dúvidas resultantes do depoimento da testemunha que em vez de responder linearmente à questão que lhe é posta, procura ansiosamente no olhar de quem a interroga o caminho para a resposta; as certezas decorrentes do depoimento da testemunha assertiva e peremptória que de repente se vê confrontada com uma pergunta que manifestamente não esperava e que antes de responder procura uma indicação no rosto da “parte” que não quer prejudicar), mas também deduzindo dos factos conhecidos os factos desconhecidos que não são ou não podem ser objecto de prova directa [as chamadas presunções judiciais, tantas vezes diabolizadas em alegações que confundem prova por presunção com presunção de culpa. Esta última, é absolutamente proibida em processo penal (art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa); já as presunções judiciais são um meio de prova lícito (349º e 351º do Código Civil) e, como tal, admissível em processo penal (art. 125º do CPP) [3]. Valorando factos conhecidos à luz do contexto em que ocorreram e com recurso às regras da experiência comum é possível extrair conclusões relativas a factos que não foram objecto de prova directa, mas que nem por isso se deverão considerar sem mais como não provados]. É precisamente esse trabalho de análise crítica que consolida a livre convicção do tribunal, permitindo-lhe considerar como provados os factos merecedores de uma certeza judiciária e como não provados todos aqueles que sejam inegavelmente desmentidos pelas regras da experiência ou que não se mostrem comprovadamente demonstrados. É esse convencimento racional, lógico-dedutivo e fundamentado, desde que devidamente explicitado, que permite ao juiz afirmar a verdade do caso concreto, fixando a correspondente matéria de facto. Assim se efectiva a “livre apreciação da prova” consagrada no art. 127º do CPP.

Ou seja, no fundo, o que o recorrente questiona é a livre convicção do tribunal recorrido. O que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele própria entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. Contudo, não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso [4].

Ora, no caso vertente a matéria de facto que se teve como provada em primeira instância tem suporte coerente na prova produzida, analisada de acordo com as regras da experiência comum, não se vislumbrando qualquer salto lógico ou afirmação temerária nas deduções subjacentes à sua análise crítica, não assistindo razão ao recorrente no que concerne à impugnação do julgamento de facto.

Também não é verdade que o tribunal a quo tenha baseado a sua convicção com violação do direito ao silencio por parte do arguido, afirmação que desvirtua o teor daquilo que efectivamente consta da sentença. Trata-se de mera questão de interpretação gramatical. Com efeito, consta da sentença recorrida que “O tribunal baseou a sua convicção na factualidade atinente à culpabilidade do arguido, e no que diz respeito à dinâmica do embate bem como à sua intervenção no facto, e perante o silêncio do arguido, nas seguintes razões (…):”(sublinhado nosso).

A expressão que se sublinhou, interpretada no contexto da frase, não significa que o tribunal tenha valorado o silêncio do arguido em seu desfavor, mas apenas e tão-só que não podendo contar com o depoimento do arguido, se ateve às razões que de seguida enunciou, entre as quais não consta qualquer referência ao silencio do arguido como meio de formação da convicção. Tão óbvia se apresenta esta leitura do texto que dispensa maiores considerações.

Prossegue o recorrente as suas alegações sustentando que o texto da sentença recorrida evidencia a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a al. a) do nº 2 do art. 410º. Este vício, como, aliás, os demais vícios enumerados nas restantes alíneas do nº 2 do art. 410º, constituem matéria que se encontra no âmbito do conhecimento oficioso do tribunal de recurso.

Todos estes vícios deverão ser conhecidos com recurso exclusivamente ao texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como da própria norma em causa resulta.

O primeiro daqueles vícios, previsto na al. a) do nº 2 do art. 410º traduz-se numa insuficiência dos factos provados para a conclusão que deles se extraiu, verificando-se quando a solução de direito, seja ela condenatória ou absolutória, não tem suporte seguro nos elementos de facto provados, devendo concluir-se que tais factos não consentem a decisão encontrada.

O vício em apreço pressupõe uma análise objectiva da matéria de facto, em que a insuficiência se apresente como óbvia. Já não integrará este vício o argumento de que face aos depoimentos produzidos em audiência o provado excede o âmbito do consentido pela prova, pois neste caso já não estará em causa a verificação dos requisitos do tipo legal de crime pelo qual o arguido foi condenado, mas sim a substituição da convicção do tribunal pela convicção do próprio recorrente. Aquele argumento – que é precisamente o utilizado pela recorrente – desloca o cerne da questão suscitada para o âmbito da insuficiência da prova. No entanto, insuficiência de prova e insuficiência de factos são questões distintas e que não se confundem. A insuficiência da prova para a decisão de facto proferida é questão que se situa no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, com sede legal no art. 127º do CPP e que nada tem a ver com a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

De todo o modo, relativamente ao vício agora em análise – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – apreciado dentro dos parâmetros que expusemos, há que concluir que o texto da decisão, por si só ou por recurso às regras da experiência, não o denota, na medida em que a matéria de facto fixada constitui suporte bastante para a decisão de direito que veio a ser encontrada.

            O recorrente esgrime ainda a violação do princípio in dubio pro reo. Contudo, a prova produzida, tal como foi analisada e explicitada, não gerou qualquer dúvida que devesse levar à consideração dos factos como não provados. Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com pleno respeito pelos princípios que disciplinam a prova sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação desse princípio que, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio in dubio pro reo afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal [5]. No caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação do provado, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando coerentemente os elementos que serviram para fundar a convicção do tribunal. O posicionamento do arguido, sustentando que deveria ter sido outro o quadro factual provado encontra-se totalmente à margem do condicionalismo legal. O erro notório na apreciação da prova em que se traduziria a violação do in dubio pro reo não reside na desconformidade entre a decisão de facto assumida pelo julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente - carecendo esta última de qualquer relevância jurídica - verificando-se apenas quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resultar da motivação invocada uma conclusão diversa da que foi extraída pelo tribunal recorrido na fixação da matéria de facto. Nesta perspectiva, a violação do princípio em questão apenas poderia ser afirmada se, face aos factos que a 1ª instância teve como provados e aos respectivos fundamentos, se evidenciasse que, na dúvida, o tribunal recorrido tinha optado por decidir contra o arguido. Ora, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada por referência às provas que fundamentaram a convicção do tribunal, efectuando a sua análise crítica com respeito pelas regras da experiência comum. Consequentemente, não ocorre violação daquele princípio nem foi beliscado o preceito constante do art. 32º, nº 2, 1ª parte, da Constituição da República Portuguesa.

            Sustenta ainda o recorrente a verificação de um erro de direito na qualificação jurídica dos factos, que vieram a ser integrados no âmbito da negligência grosseira, nos termos do nº 2 do art. 137º do CP, entendendo que a ter havido negligência, esta apenas poderia ter sido integrada no âmbito do nº 1 do art. 137º do Código Penal.

            O conceito penal de negligência encontra expressão legal no art. 15º do Código Penal. Esse artigo limita-se, no entanto, a caracterizar a negligência e a distinguir as modalidades de negligência consciente e inconsciente. A negligência grosseira não está expressamente caracterizada na lei, ainda que esta se lhe refira em numerosas disposições legais, como é o caso do nº 2 do art. 137º do Código Penal. A sua caracterização vem sendo feita essencialmente por via doutrinal e jurisprudencial. A negligência grosseira, em matéria de criminalidade estradal, corresponde a uma culpa grave, decorrendo essa gravidade de um elevado teor de imprevisão ou de falta de cuidados elementares, “podendo consistir na falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos actos correntes da vida; ou em uma conduta de manifesta irreflexão ou ligeireza. Para tanto, deve tomar-se como ponto de referência a precaução ou a previsão de um homem normal, do homem médio suposto pela ordem jurídica” (cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 13ª Ed. pág. 117).

            No caso vertente, a matéria provada é elucidativa. Na ocasião em que ocorreu o acidente a que se reportam os autos, o arguido circulava ao volante de um automóvel ligeiro de mercadorias no sentido Coimbra-Lisboa, à retaguarda de um veículo pesado de mercadorias que seguia no mesmo sentido, pela metade direita da faixa de rodagem, a uma velocidade de cerca de 90 km/h., tendo ido embater com a zona frontal do lado direito da viatura que conduzia na parte de trás, lado esquerdo, do veículo pesado, ficando o embate a dever-se ao facto de o arguido, na ocasião, ter assumido um tipo de condução descuidada e leviana, não cuidando, como lhe era exigível e possível, de circular, considerando a presença, na via, à sua frente do veículo pesado de mercadorias. Mais se provou que o arguido podia e devia ter evitado o embate pois poderia ter abrandado a marcha e parado atrás do pesado ou efectuar a sua ultrapassagem de forma segura. Era possível e exigível ao arguido que circulasse a uma distância do veículo que o precedia que evitasse a colisão e se o arguido seguisse a velocidade inferior a 110 km/h., poderia desviar-se do veículo pesado. Desta factualidade, e considerando ainda que a colisão ocorreu numa curva ligeira e com boa visibilidade, em piso de boa qualidade e com boas condições atmosféricas, resulta inequívoco que o arguido omitiu de forma grave os deveres de diligência a que estava obrigado e de que era capaz, assim se evidenciando uma conduta grosseiramente negligente. Nesta medida, nenhuma censura merece o enquadramento jurídico da conduta provada.

            Por fim, questiona o recorrente a medida concreta da pena que lhe foi imposta.

            Relembremos que o arguido foi condenado numa pena de pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de pisão, cuja execução foi suspensa por idêntico período, sujeita a regime de prova e sob obrigação de entregar no prazo de seis meses mil e quinhentos euros ao Lar X... - Leiria, juntando recibo.

O tribunal a quo começou o raciocínio de determinação da pena “optando” pela pena de prisão na alternativa de prisão e multa, certamente por lapso, na medida em que o crime previsto no art. 137º, nº 2, do Código Penal, é punido exclusivamente com pena de prisão até 5 anos.

Como é sabido, a determinação da medida concreta da pena dentro do respectivo limite legal há-de fazer-se de acordo com o critério enunciado pelo art. 71º, através da ponderação dos dois vectores que basicamente a conformam, a saber, a culpa do agente e as exigências de prevenção, com ponderação ainda de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a seu favor ou contra ele, tendo-se ainda presente que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. art. 40º, nºs 1 e 2).

Como é sabido, à culpa é cometida a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena.

A prevenção geral (dita de integração) fornece uma moldura de prevenção cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e no mínimo, fornecida pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

Por seu turno, à prevenção especial cabe a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida função, isto é, dentro da moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização [6].

Cumpre notar que o arguido actuou com negligência, na sua modalidade mais grave – negligência grosseira – agindo com elevada desconsideração dos deveres de cuidado e prudência que sobre si impendiam.

O grau de ilicitude do facto, aferido essencialmente pelo resultado da conduta criminosa, apresenta-se como muito elevado.

As necessidades de prevenção geral ditadas pela necessidade de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas violadas pelo arguido, pela frequência com que crimes desta natureza vêm ocorrendo, são inegáveis.

Não se verificam, no caso, particulares exigências de prevenção especial, já que ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais ou, sequer, contra-ordenacionais em matéria de condução automóvel.

Trata-se, por outro lado, de cidadão socialmente integrado, que se dedica ao trabalho e com vida familiar estável.

Dentro destes pressupostos e ponderada a moldura penal prevista para o crime, a pena de 3 anos e 9 meses de prisão que lhe foi imposta, ainda que suspensa na sua execução, revela-se excessiva, oferecendo-se como mais ajustada a pena de 2 (dois) anos de prisão, igualmente suspensa na sua execução e sujeita à condição de entrega da quantia de mil e quinhentos euros ao Lar X... - Leiria, no prazo de seis meses.

Já o regime de prova determinado na sentença, atendendo a que se trata de crime negligente cometido no exercício da condução, sem que o arguido tenha antecedentes criminais ou contra-ordenacionais, se nos afigura dispensável (seria obrigatório se a pena a suspender excedesse os 3 anos, como sucedia com a pena inicialmente imposta pelo tribunal a quo – cfr. art. 53º, nº 3, do Código Penal).

                                                                       *

                                                                       *

III – DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, concede-se parcial provimento ao recurso e, consequentemente, condena-se o recorrente, como autor de um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo art. 137 nº 1 e nº 2 do C. P., na pena de 2 (dois) anos de pisão, suspendendo-se a execução da pena pelo período de 2 (dois) anos, sob condição de entrega, no prazo de seis meses, ao Lar X... - Leiria, da quantia de  € 1500,00 (mil e quinhentos euros), devendo juntar aos autos, nesse prazo, o correspondente recibo.

            Por ter decaído parcialmente no recurso que interpôs, pagará o recorrente a taxa de justiça, já reduzida a metade, de 3 UC.

                                                                       *

                                                                       *

Jorge Miranda Jacob (Relator)
Maria Pilar de Oliveira


[1] - Jurisprudência constante dos tribunais superiores.
[2] - Consideram-se “produzidos em audiência”, desde que constem dos autos e tenham sido regularmente notificados aos sujeitos processuais, facultando-se-lhes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem.
[3] - Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. De resto, este é um mecanismo recorrente na formação da convicção. Basta pensar na prova da intenção criminosa; a intenção, enquanto elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime), na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado.
[4] - No sentido apontado, veja-se o Acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.
[5] - Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, pág. 213.
[6] - Cfr. o Ac. do STJ de 10 de Abril de 1996, C.J.- Acórdãos do S.T.J., ano IV, tomo 2, pág. 168 e ss.