Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
150/10.5T3OVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR OLIVEIRA
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
DOLO
Data do Acordão: 06/01/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - OVAR - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL (JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 311º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Num crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No âmbito do processo comum nº 150/10.5T3OVR da Comarca do Baixo Vouga, Ovar – Juízo de Instância Criminal – Juiz 2, findo o inquérito, o Assistente MR... deduziu acusação contra as arguidas HN..., LR... e VD…, imputando-lhes a prática de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal e de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal.
O Ministério Público não acompanhou a acusação particular por entender não se indiciarem, objectiva e subjectivamente, a prática de factos integradores dos crimes imputados e por ser a acusação omissa quanto à indicação do elemento emocional do dolo.

A Mmª Juiz a quo, no âmbito do artigo 311º do Código de Processo Penal, proferiu o seguinte despacho que se transcreve na parte relevante:
(…)
Dispõe o artigo 311 º, n.º 1, do Código de Processo Penal que:
"1.Recebidos os autos no Tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões previas ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o Presidente despacha no sentido
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº 1 do artigo 284º e do nº4 do artigo 285º,respectivamente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime."
Neste caso na acusação o assistente não descreve o tipo subjectivo de ilícito, nomeadamente não é referido nenhum facto quanto a actuação das arguidas como dolosa.
O crime de difamação e de injúria previsto nos artigos 180º e 181º, do Código Penal, são crimes dolosos.
Assim a conduta das arguidas descrita na acusação não constitui crime, uma vez que desta não resulta que as arguidas actuaram com dolo.
Como menciona Paulo Pinto Albuquerque, em Comentário do Código de Processo Penal, página 791, ponto 8, "Assim o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituem crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante" (sublinhado nosso).
Face ao exposto, como falta na acusação o elemento subjectivo do crime, nos termos do artigo 311 º, nº2, al. a) e nº3, als. b) e d) do Código de Processo Penal, rejeito a acusação deduzida pelo ofendido/assistente MR....
Condeno o assistente na taxa de justiça de 2 Uc, nos termos do artigo 515º, nº1, al. f), do C P.P.
Notifique.

Inconformado com o transcrito despacho, dele recorreu o assistente, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em 25.11.2010 – refª 9655359, no qual a Meretíssima Juiz a quo rejeitou a acusação deduzida pelo ofendido/assistente ora recorrente.
2. Tal rejeição de acusação teve como fundamento o facto de "neste caso o assistente não descreve o tipo subjectivo do ilícito, nomeadamente não é referido nenhum facto quanto à actuação das arguidas como dolosa… "
3. O que a ser exacto faz com que "… a conduta das arguidas descrita na acusação não constitui crime uma vez que desta não resulta que as arguidas actuaram com dolo …".
(Sublinhado nosso)
4. Atento ao conceito de dolo, verifica-se que o dolo tem uma estrutura composta por dois elementos, o elemento intelectual ou cognitivo que se traduz no conhecer e o elemento volitivo que se traduz no querer.
5. Dentro da estrutura do dolo, o elemento intelectual precede sempre o elemento volitivo, porque só se pode querer aquilo que previamente se conheceu.
6. Faltando o elemento intelectual, está prejudicado o elemento volitivo, estando precludido ou excluído o elemento volitivo, falta um elemento do dolo, o que levaria à conclusão pela exclusão da imputação dolosa – exclusão do dolo.
7. Não foi isso que aconteceu na Acusação Particular do Assistente, ora requerente.
8 Atentos ao artº 17º dessa Acusação Particular o comportamento das arguidas devidamente integrado no tipo legal dos crimes de injúrias e difamação, concluiu o recorrente da seguinte forma:
"17º
Difamando-o pelos restantes condóminos
Tendo agido de forma livre, consciente e deliberada cometeram as arguidas em co-autoria e na forma consumada:
- um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181.º do Código Penal e um crime de difamação, previsto e punível pelo art.º 180º do Código Penal. (Sublinhado nosso)
9. O termo consciente - que tem como Significado ter consciência de ou saber de ­associado à última parte da supra referida citação não pode ser entendido de forma diferente que não a de: " tendo agido de forma consciente cometeram as arguidas em co-autoria um crime de injúria, previsto e punido pelo artº 181.º do Código Penal e um crime de difamação, previsto e punido pelo artº 180.º do Código Penal."
10. Ora indubitavelmente e salvo melhor opinião, o recorrente entende que, com o termo "consciente" está absoluta e suficientemente referido o facto quanto à actuação das arguidas como dolosa, na modalidade de dolo directo, pois não há forma mais dolosa de se agir do que aquela que acontece precisamente quando o agente tem consciência da ilicitude da sua actuação.
11. A decisão da Meritíssima Juiz de rejeitar a acusação deduzida pelo ora recorrente é, por isso, manifestamente ilegal, por violação do art. 311º n. 2 Alínea a) e n.º 3 alíneas b) e d) do Cód. Proc. Penal, devendo por isso ser substituída por outra decisão, aceitando-se assim a acusação deduzida.
NESTES TERMOS:
E NOS QUE DOUTAMENTE SERÃO SUPRIDOS. REQUER A V. EXAS. SE DIGNEM SUBSTITUIR O DOUTO DESPACHO DE FLS. POR OUTRO NO QUAL SE ACEITE A ACUSAÇÃO PARTICULAR DEDUZIDA PELO ASSISTENTE.
FAZENDO ASSIM INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que não merece provimento.
Igualmente notificadas as arguidas, respondeu ao recurso a arguida HN..., pugnando pela manutenção do despacho recorrido.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder, defendendo também que os factos objectivos descritos não integram a prática de crime.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.
***
II. Apreciação do Recurso
Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal) e, vistas essas conclusões, suscita-se apenas a questão de saber se ocorre ou não causa de rejeição da acusação particular por não descrever suficientemente o elemento subjectivo dos crimes imputados.

Apreciando:
Antes de mais, importa confrontar o teor da acusação particular que se encontra redigida nos seguintes termos:
- Início de Transcrição -
O assistente é proprietário de duas fracções, terceiro sul e terceiro poente, sitos na Rua … em Cortegaça.
2.º
Há cerca de um ano o ora assistente apresentou um orçamento para resolução das infiltrações no edifício.
3.º
Na Assembleia de Condomínio do dia 08 de Maio de 2009 foram discutidos os problemas de infiltração de águas pluviais, bem como foi anexado o orçamento para reparar/impermeabilizar as coberturas do edifício (zona comum do imóvel) e os danos causados no interior das habitações do assistente.
4.º
A arguida HN… opôs-se às obras e requereu que fosse feita uma peritagem.
5.º
Face a tal reclamação foi solicitado pela administração do condomínio um Relatório de Vistoria em 18 de Maio de 2009 às fracções AO e AP, propriedade do assistente.
6.º
O Perito concluiu que os danos causados nas fracções eram originados pela infiltração de água das chuvas, quer pela cobertura confinante com as fracções, quer pelas fissuras existentes ao nível das paredes exteriores das duas fracções, ou seja, problemas na parte comum do edifício.
7.º
Face à apresentação do relatório em Assembleia de Condóminos realizada a 05 de Junho de 2009, foi votado por maioria que as obras seriam feitas, que seriam suportadas pelo Assistente, ficando este com um crédito de 11.000,00 sobre o condomínio a deduzir nas contribuições do mesmo.
8.º
No dia 15 de Junho de 2009, o assistente recebeu uma carta assinada pelos trabalhadores que efectuavam obras nas suas fracções a informá-lo que uma senhora tinha entrado nos apartamentos, sem autorização e tirou fotografias.
9.º
O assistente constatou que a mesma era moradora daquele edifício e que era filha da arguida HN…. No entanto, o assistente não deu importância ao sucedido, passando por cima deste acontecimento.
10.º
O assistente e os restantes condóminos receberam a acta n.º 26 de 29 de Janeiro de 2010 em que vinha anexa uma carta escrita pelas três arguidas.
11.º
As arguidas, nessa mesma carta datada de 04 de Agosto de 2009 acusam o Assistente de efectuar obras nas suas fracções a custo da comparticipação dos restantes condóminos.
12.º
Porém, só em 02 de Fevereiro de 2010 é que o assistente teve conhecimento da mesma.
13.º
As arguidas referem que "têm vindo a ser efectuadas obras de inovação, inclusive de assentamento de isolamento térmico, entre outros, transformando os arrumos em área habitável, a custo da comparticipação dos restantes proprietários, isto tudo a pretexto de supostas infiltrações e supostos aparentes mau estado do terraço e coberturas, nunca testemunhados pelos condóminos, confiando apenas nas palavras e convicções do representante do condomínio".
14.º
A pedido das arguidas, a carta foi enviada, pelo Administrador de condomínio, para todos os condóminos.
15.º
O assistente sentiu-se injuriado, difamado e vexado na sua honra.
16.º
As arguidas afirmaram que o ora assistente utilizava o dinheiro do condomínio para efectuar obras nas suas próprias fracções, insinuando que o mesmo seria um ladrão.
17.º
Difamando-o pelos restantes condóminos.

Tendo agido de forma livre, consciente e deliberada, cometeram as arguidas em co-autoria material e na forma consumada:
- um crime de injúria, previsto c punido pelo art.º 181.º do Código Penal e um crime de difamação, previsto e punível pelo art.º 180º do Código Penal.
- Fim de Transcrição -

Com resulta do disposto no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal a acusação tem que narrar, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (alíneas b) e c) do citado preceito). E tal exigência legal deriva da circunstância de ser a acusação que fixa o objecto do processo, delimitando o âmbito da ulterior actividade investigatória a desenvolver pelo juiz, nomeadamente na fase de julgamento. Deve, pois, conter a descrição fáctica equivalente a uma acusação pública, com a indicação precisa e completa dos factos que o requerente entende estarem indiciados, integradores, tanto dos elementos objectivos do crime, como dos seus elementos subjectivos e que justificam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Caso a acusação não obedeça a tais requisitos é nula como expressamente se contempla no mencionado artigo 283º, nº 3.
No caso, a acusação do assistente, foi rejeitada nos termos do artigo 311º, nº 3, alínea d) do Código de Processo Penal com o fundamento de os factos narrados não constituírem crime por omissão do respectivo elemento subjectivo. Sustenta, no entanto, o recorrente que esses elementos constam da acusação que deduziu.
Registe-se que são precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Como refere Figueiredo Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., pág. 379 “…também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado”.
Assim, os elementos objectivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjectivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.
Num crime doloso – só esse está aqui em causa – da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
Ora, por muito que o recorrente esgrima em sentido contrário, é incontornável que não contemplou na narração dos factos a totalidade destes elementos. Quanto ao elemento volitivo não se basta com a alegação isolada de uma actuação deliberada, mas antes com a descrição do que efectivamente foi querido pelo agente, ou seja, que as arguidas quiseram ofender a honra e consideração do assistente ou que sabiam que as expressões utilizadas eram susceptíveis de ofender, nisso se traduzindo querer praticar um facto criminoso. Mas vem omitido, igualmente, o elemento intelectual do dolo que consiste no conhecimento dos elementos objectivos do tipo de crime e que factualmente se traduz na alegação de que sabiam a sua actuação proibida e punida. Sem essa indicação não se mostra perfectibilizada a imputação criminosa e, sendo assim, jamais poderia ser proferido despacho de recebimento da acusação.
Como mencionam Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal, 2.ª edição, tomo II, pág. 140, em anotação ao artigo 283.º “No que se reporta à elaboração da acusação interessa também chamar a atenção para a necessidade de se conferir o máximo cuidado à sua feitura, não apenas no aspecto de explanação geral, como sobretudo na vertente da descrição fáctica, que deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, até porque, como se sabe, está legalmente vedada uma alteração substancial dos factos transportados para a acusação (…).
O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação.
E se ultrapassada fosse a fase processual em que a acusação particular deduzida podia ter sido rejeitada ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, por ser manifestamente infundada por falta de alegação de factos do tipo subjectivo, na fase de julgamento restaria ponderar a possibilidade de accionar os mecanismos dos arts 358 e 359 do mesmo diploma.
Mas seria tal possível?
Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do Código de Processo Penal é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”.
A propósito da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, Germano Marques da Silva in Curso, III, 207/8, entende que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”.
Dada a estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial do nosso processo penal, o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação – princípio da vinculação temática – como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas poderá ser condenado pelos factos acusados, e não por outros. Daí que a lei fulmine com nulidade, a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal (artigo 379º, nº 1, alínea b) do mesmo Código).
Mas, em certas circunstâncias, e no que à fase do julgamento respeita, o Código de Processo Penal possibilita o conhecimento de novos factos e a condenação do arguido por eles.
Com efeito, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver (novos factos conhecidos na audiência que não excedem o âmbito do objecto do processo, tal como foi definido na acusação) o tribunal pode deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respectiva defesa, salvo se os novos factos tiverem sido alegados pela defesa (artigo 358º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal).
Se a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia for substancial – tal como é definida no art. 1º, f), do C. Processo Penal – já o tribunal só pode deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente concordarem com a continuação do julgamento pelos novos factos, e a alteração não determinar a incompetência do tribunal (art. 359º, nº 3, do C. Processo Penal). Como refere Francisco Isasca (Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português 2ª Ed., 200 e ss.), dá-se uma reformulação do objecto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem a menor intervenção do julgador e portanto, sem trair o princípio do acusatório.
Ora, o artigo 1º, alínea f) do Código de Processo Penal define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
É óbvio que a descrição dos factos constantes da acusação particular deduzida pelo recorrente não integra sequer um crime, pois a omissão do elemento subjectivo do tipo legal de crime que pretendiam imputar manifestamente não permite a imputação de uma conduta ilícita típica aos arguidos.
Consequentemente, afastada estaria a possibilidade do julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores do tipo subjectivo, com recurso às aludidas normas que precisamente pressupõem que os factos da acusação constituam crime.
Por isso discordamos de jurisprudência existente no sentido de que a insuficiência de narração na acusação do elemento subjectivo não constitui fundamento para a sua rejeição.
Entendemos, em contrário, que não é admissível a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção. E sendo assim, ainda que todos os factos constantes da acusação viessem a ser provados na audiência de julgamento, sempre o resultado teria de ser a absolvição dos arguidos, demonstrando-se que o prosseguimento do processo nestas circunstâncias seria uma pura inutilidade.
Improcede, pois, o recurso interposto.
***
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em quatro unidades de conta.
***
Coimbra, 1 de Junho de 2011
(Texto processado e integralmente revisto pela relatora).

_______________________________
(Maria Pilar Pereira de Oliveira)

_______________________________
(José Eduardo Fernandes Martins)