Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
306/11.3TTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CONCEITO
NEXO CAUSAL
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA DO SINISTRADO
Data do Acordão: 06/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – GUARDA – INST. CENTRAL – SEC. DE TRABALHO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 8º, 9º E 14º DA LAT (LEI Nº 98/2009, DE 4/09).
Sumário: I – O artº 8º, nº 1 da Lei nº 98/2009, de 4/09 (LAT), contém a definição genérica de acidente de trabalho, dispondo que ‘é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo do trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte’.

II – Assim, para que se reconheça um acidente de trabalho importa verificar: a) um elemento espacial, em regra o local de trabalho; b) um elemento temporal, em regra correspondente ao tempo de trabalho; e c) um elemento causal, ou seja o nexo de causa e efeito entre por um lado o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença, e por outro lado entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

III – Como é entendimento comum, o regime regra da responsabilidade civil do empregador é o da responsabilidade civil extracontratual objectiva, a qual, no nosso sistema, assenta na chamada teoria do risco económico ou de autoridade que se considera subjacente ao conceito de acidente de trabalho contido no artº 9º da LAT.

IV – O nexo causal entre a prestação do trabalho e o acidente não constitui um requisito do conceito de acidente de trabalho. O único nexo causal previsto no artº 8º, nº 1 da LAT é o nexo entre o acidente e a lesão corporal, perturbação funcional ou doença.

V – Tendo o acidente ocorrido quando o trabalhador se encontrava a trabalhar, executando funções sob a esfera da autoridade e direcção do empregador (no tempo e local do trabalho), ainda que se não tenha provado que este lhe tenha dado ordens para aceder ao telhado para limpeza de uma caleira, é patente o nexo entre o acidente e a relação laboral numa situação de queda do trabalhador em tais circunstâncias.

VI – O artº 14º da Lei nº 98/2009, de 4/09, estabelece as situações em que o acidente, ainda que de trabalho, não confere direito à reparação.

VII – A al. b) do nº 1 desse preceito estipula que não dá direito à reparação o acidente que for proveniente exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, o que se entende como o comportamento temerário em alto e relevante grau que não consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.

VIII – A negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado – na inobservância do dever objectivo de cuidado que lhe era exigível.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em processo emergente de acidente de trabalho, a autora intentou, contra as rés, acção pedindo a sua condenação no pagamento de: pensão anual e vitalícia no valor de € 10.028,70; subsídio por morte no valor de € 5.533,70; despesas com funeral e trasladação no montante de € 1.565,00; € 75,00 a título de despesas com transportes; juros moratórios vencidos e vincendos até integral e efectivo pagamento.

Alegou, em síntese, a ocorrência de um acidente de trabalho que vitimou C... no dia 18 de Agosto de 2011, quando este se encontrava a trabalhar para o seu empregador, uma sociedade que então havia transferido a responsabilidade infortunística para a ré seguradora e que entretanto foi declarada.

Citados os réus, veio o réu Fundo de Acidentes de Trabalho contestar impugnando o alegado pela autora e excepcionando a sua irresponsabilidade no caso concreto, concluindo pela sua absolvição do pedido.

Também a ré seguradora contestou, alegando a inexistência de acidente de trabalho, a não inclusão da actividade desenvolvida pelo sinistrado, aquando do acidente, nas garantias do seguro, a negligência grosseira do sinistrado e a responsabilidade do empregador na ocorrência do acidente, concluindo pela improcedência da acção.

Em sede de despacho saneador, o tribunal recorrido absolveu o Fundo de Acidentes de Trabalho da instância por ilegitimidade passiva e procedeu à selecção da matéria de facto assente e elaboração da base instrutória, em termos que mereceram reclamação da ré, que foi totalmente indeferida.

Prosseguindo o processo os seus regulares termos veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré seguradora a pagar à autora as quantias de: € 4.011,48, a título de pensão anual e vitalícia, montante acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde 19 de Agosto de 2011 até efectivo e integral pagamento; € 5.533,70, a título de subsídio por morte, montante acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento; € 1.565,00, a título de subsídio por despesas de funeral, montante acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento; € 50,70, a título de despesas de transporte, montante acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

*

Inconformada, a ré seguradora interpôs a presente apelação e, nas correspondentes alegações, apresentou as seguintes conclusões:

[…]

A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação.

A Ex.ma Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se em parecer junto aos autos.


*

II- Factos considerados como provados pela 1.ª instância:

[…]


*

III. Apreciação

As conclusões da alegação da recorrente delimitam o objecto do recurso, não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Decorre do exposto que as questões que importa resolver, no âmbito das conclusões do recurso da seguradora, se podem equacionar basicamente da seguinte forma:

- se deve decidir-se pela revogação do despacho que indeferiu a reclamação da apelante à Base Instrutória ordenando-se a ampliação da mesma e a repetição do julgamento quanto a toda a matéria alegada na contestação da apelante e na sua reclamação de 08/06/2015.

- se a decisão relativa à matéria de facto merece alteração;

- se podia concluir-se pela existência de acidente de trabalho ou este deveria considerar-se descaracterizado;

- se, concluindo-se pela ocorrência de acidente de trabalho reparável, este estava abrangido pelo seguro contratado com a apelante.


1. A questão da reclamação à Base Instrutória

[…]


2. A questão da impugnação da decisão relativa à matéria de facto

[…]

3. A questão da qualificação do acidente como acidente de trabalho:

Na sentença recorrida considerou-se o evento que vitimou de morte o sinistrado como acidente de trabalho.

Diverge a apelante, sustentando que de modo nenhum essa qualificação pode ocorrer.

Sustenta para tanto, em síntese, que dos factos apurados resulta que ninguém ordenou ou autorizou sequer ao sinistrado que subisse à cobertura, fosse para o que fosse e que o mesmo nem sequer subiu ao telhado para limpar qualquer caleira, ignorando-se em absoluto por que razão subiu ao telhado

Na sentença escreveu-se a este respeito designadamente o seguinte:

«No caso vertente provou-se que, à data do acidente, a fábrica da sociedade «D... , Lda» estava encerrada para férias.

Todavia, provou-se ainda que, apesar daquele encerramento, estavam a decorrer trabalhos de manutenção/arrumação, para os quais estavam presentes o gerente, E... , que também estava a receber clientes, o trabalhador F... , o sinistrado e um mecânico.

Assim, apesar de o sinistrado estar de férias, como os restantes trabalhadores, estava efectivamente ao serviço do empregador, concedendo-lhe a sua força de trabalho, como determinado ou aceite pelo empregador.

De modo que não temos dúvidas em afirmar a verificação do requisito da prestação da actividade laboral no tempo de trabalho.

Já no que concerne ao local de trabalho, importa notar que o acidente ocorreu no telhado da fábrica, para o qual o sinistrado se havia deslocado.

Estava o sinistrado então, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador, ou seja, na dependência jurídica do mesmo?

A nosso ver, a resposta a essa questão depende do apuramento das razões que levaram o sinistrado a subir ao telhado, ou seja, saber se tal lhe foi determinado ou não pelo empregador.

Nesta parte apurou-se que, dias antes de o acidente ocorrer, o gerente do empregador havia comentado com o sinistrado que a limpeza das caleiras era um trabalho que tinha de ser realizado.

Apurou-se ainda que, imediatamente antes de se ausentar da oficina, o sinistrado informou o seu colega de trabalho F... do trabalho que ia realizar e do local onde ia executá-lo.

Embora não se tenha provado que o gerente do empregador não tenha dado instruções ao sinistrado para limpar as caleiras ou para realizar qualquer outra tarefa na cobertura, do elenco de factos provados não resulta que o sinistrado estivesse a agir a ordens do seu empregador.

Resulta, contudo, demonstrado o interesse deste na realização do serviço, como declarado pelo gerente do empregador ao sinistrado dias antes da ocorrência.

Ora, admitindo que o sinistrado agiu espontaneamente, não deixa de resultar como claro o proveito económico para o empregador resultante da actividade daquele, uma vez que, com a execução do serviço de limpeza das caleiras, por parte do sinistrado, o empregador pouparia o montante necessário à contratação de entidade externa que executasse o serviço.

Ainda que o serviço viesse a ser executado por trabalhadores do empregador, isto é, fosse levado a cabo sem intervenção externa, o facto de o sinistrado o executar em férias traduzir-se-ia numa poupança de meios, logo de dinheiro, na execução do serviço na fase de laboração.

Mostra-se assim, a nosso ver, verificada a hipótese prevista no artigo 9º, nº 1, alínea b), da Lei dos Acidentes de Trabalho, considerando-se o acidente como de trabalho ainda que ocorrido fora do tempo e/ou do local de trabalho.»

Vejamos:
O art. 8.º, nº 1 da Lei n.º 98/2009, de 4/9, (LAT) contém a definição genérica de acidente de trabalho, dispondo que “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo do trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
Ou seja, como tem apontado a nossa jurisprudência, para que se reconheça um acidente de trabalho importa verificar (a) um elemento espacial, em regra, o local de trabalho, (b) um elemento temporal, em regra, correspondente ao tempo de trabalho e (c) um elemento causal, ou seja, o nexo de causa e efeito entre, por um lado, o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença e, por outro lado, entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

Perante os factos provados (factos 1., 2., 6. e 9.) não podemos deixar de considerar que, no tempo e local de trabalho, ocorreu um evento (queda) que determinou, para o autor, lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e toraco-abdominais, que constituíram causa adequada da morte.

Efectivamente, do facto 1. resulta desde logo que o evento ocorreu local de trabalho e do facto 6. e 9. pode inferir-se que o ocorreu no seu horário de trabalho/tempo de trabalho, conjugado com o descrito no facto 7., pois foi durante a pausa para o almoço que o sinistrado foi encontrado inconsciente, ensanguentado e deitado no chão do pavilhão (resultando do facto 1. que o evento queda ocorreu pelas 13 horas).

 Ou seja, o evento naturalístico que determinou a lesão morte foi a queda do autor no tempo e no local de trabalho.

A seguradora apelante defende que se deve desconsiderar a existência de acidente de trabalho por entender que tal evento não teve conexão com a relação de trabalho dado que os trabalhos que decorriam eram apenas trabalhos de manutenção/arrumação, a decorrer no interior das instalações fabris e que ninguém ordenou ou autorizou sequer ao sinistrado que subisse à cobertura, fosse para o que fosse.

Ou seja, parece considerar que o evento lesivo não ocorreu por causa do trabalho e daí não ser de qualificar como acidente de trabalho.

Porém:

Como é comummente entendido, o regime regra da responsabilidade civil do empregador é o da responsabilidade civil extracontratual objectiva, a qual, no nosso sistema, assenta na chamada teoria do risco económico ou de autoridade que se considera subjacente ao conceito de acidente de trabalho contido no art. 9.º da LAT, teoria que oferece a vantagem proteccionista de não exigir a verificação de um nexo de causalidade entre o acidente (evento) e a prestação do trabalho propriamente dita, apenas exigindo um nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral.

Como se referiu no Ac. do STJ de 17.12.2009, in CJ/STJ, t. III/2009, p. 167, do elemento literal do 8.º, nº 1 da LAT, o nexo causal entre a prestação do trabalho e o acidente não constitui um requisito do conceito de acidente de trabalho. O único nexo causal aí previsto é o nexo entre o acidente e a lesão corporal, perturbação funcional ou doença.

Citando Carlos Alegre (in Acidentes de trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª ed., p. 12 e 13) a teoria que assentava num risco específico de natureza profissional, traduzido pela relação directa acidente-trabalho, ou seja a teoria do risco profissional, foi substituída, a partir da Lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1936, pela teoria do risco económico ou risco da autoridade cuja ideia “é a de que não se trata já de um risco específico de natureza profissional, traduzido pela relação directa acidente-trabalho, mas sim de um risco genérico ligado à noção ampla de autoridade patronal e às diferenças de poder económico entre as partes”. Como refere o mesmo autor (ob. cit., páginas 41-42), discutiu-se muito, quer na doutrina, quer na jurisprudência, a necessidade da causa da lesão ser ou não um risco inerente ao trabalho, ou seja, a necessidade da existência de um nexo de causalidade entre o trabalho e o evento lesivo, mas a desnecessidade desse nexo entre o evento lesivo e o trabalho em execução é uma decorrência natural da teoria do risco económico ou risco da autoridade, pelo que o acidente ocorrido no tempo e local do trabalho é considerado como de trabalho, “seja qual for a causa, a menos que se demonstre (e esse ónus pertence à entidade responsável) que, no momento da ocorrência do acidente, a vítima se encontrava subtraída à autoridade patronal” (sublinhado nosso).

Como refere Cruz de Carvalho, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 1980, p. 25-26, o elemento histórico referente à elaboração da Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965, demonstra que essa foi realmente a intenção do legislador. Referindo-se, mais concretamente, ao projecto de proposta de Lei nº 506/VIII, ao parecer da Câmara Corporativa nº 21/VIII e à proposta governamental definitiva referentes ao conceito de acidente de trabalho. Em anotação à Base V (conceito de acidente de trabalho) da lei n.º 2.127, que foi transposta para o art. 6.º da LAT/97 e depois para o art. 8.º da LAT/2009, indica o seguinte:

«Para uma melhor compreensão do conceito de acidente de trabalho, convém referir as correcções feitas ao longo dos trabalhos preparatórios, até à formulação definitiva.

No projecto da proposta de Lei, definia-se o acidente de trabalho como “todo o evento que se verifique no local e no tempo de trabalho, e que produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução da capacidade de trabalho ou ganho”.

Entendeu a Câmara Corporativa no seu parecer que faltava a tal definição um elemento essencial - a exigência de nexo de causalidade entre o acidente e o trabalho - , que se entendeu estar no fundamento da lei vigente, pelo que se propôs a introdução no texto de referência expressa a tal elemento, considerando-se como tal “todo o evento que se verifique no local, no tempo e em consequência do trabalho ...”.

Na proposta governamental definitiva ponderou-se: “são coisas diferentes a relação entre a lesão e o trabalho, e a relação entre o evento causador da lesão e o mesmo trabalho, o que melhor se compreenderá tomando como exemplo o acidente sofrido por um trabalhador atingido no local de trabalho por uma telha que eventualmente se tenha desprendido do telhado da fábrica. Dir-se-á, neste caso, que o acidente sofrido é consequência do trabalho, mas o evento causador da lesão (queda da telha) já como tal não pode ser considerado”. E, por isso, julgou-se ser de preferir à fórmula proposta pela Câmara Corporativa (“o evento que se verifique no local, no tempo e em consequência do trabalho”), uma outra que se limitasse a excluir da protecção legal os eventos inteiramente estranhos à prestação do trabalho, corrigindo-se o texto inicial para: “Todo o evento que se verifique no local e no tempo de trabalho, salvo quando a este inteiramente estranho...”.

No texto final aprovado na Assembleia Nacional, eliminou-se a expressão “salvo quando a este inteiramente estranho” por, no dizer de um deputado proponente, “se entender que esse elemento descaracterizador tinha assento noutro local e já aí estava compreendido tudo quanto pode descaracterizar o acidente (v. Diário das Sessões, de 22.4.965, pp. 4805 e 4809).»

Ora, no caso dos autos, não há dúvidas que a queda do sinistrado - e que lhe provocou a morte - ocorreu no local de no tempo de trabalho, como dissemos, quando o autor estava a desempenhar actividade laboral, pelo que não estando o autor subtraído à autoridade do empregador, o acidente deve, a nosso ver, ser qualificado como de trabalho, independentemente da concreta actividade que o mesmo exercesse, já que não se provou que o mesmo estivesse então subtraído à autoridade patronal – efectivamente, não se provaram factos segundo os quais, no momento do acidente, o autor de alguma forma se tivesse subtraído a essa autoridade, saindo da esfera em que o empregador a pode exercer nos limites dos seus poderes de direcção e fiscalização.

Como se refere no Acórdão do STJ antes citado, a interpretação de acordo com o risco económico ou de autoridade não pode significar que não tenha de haver uma relação entre o acidente e o trabalho. O que tem de significar é que “o nexo de causalidade há-de ser estabelecido entre o acidente e a relação laboral e não propriamente com a prestação laboral em si” (sobre esta questão, no que toca à consideração da chamada teoria do risco económico e de autoridade v. ainda os Ac. do STJ de 29 de Março de 2012 e de 29 de Janeiro de 2014, in CJ-on line, refª 2070/2012 e 536/2014 e in CJ/STJ t. I/2012 e t. I/2014, respectivamente; v. ainda o interessante Ac. da Relação de Évora de 15 de Março de 2011, in CJ-on line, refª 4294/2011 e in CJ, t. II/2011).

No caso dos autos o acidente ocorreu quando o autor se encontrava a trabalhar, executando funções sob a esfera da autoridade e direcção do empregador (no tempo e local do trabalho), ainda que se não tenha provado que este lhe tenha dado ordens para aceder ao telhado para limpeza da caleira. Pelo que é patente o nexo entre o acidente e a relação laboral, sendo evidente que a concreta queda lesiva que ocorreu não teria sucedido caso o sinistrado não estivesse a trabalhar para o mesmo empregador no tempo e local de trabalho.

Por conseguinte, os elementos dos autos são suficientes, a nosso ver, para determinar a existência de acidente de trabalho, mesmo sem recurso à “extensão” contida no art. 9.º n.º 1 al. b) da LAT considerada na sentença recorrida.

4. A questão da eventual descaracterização do acidente como acidente de trabalho:

A apelante coloca também no recurso esta questão, sustentando que o acidente dos autos resultou única e exclusivamente da negligência grosseira do sinistrado, de um seu comportamento altamente temerário e a todos os títulos censurável, pelo que sempre se deveria dar o acidente como não reparável, nos termos da alínea b) do nº 1 do Art. 14º da LAT.

Na sentença escreveu-se a este respeito designadamente o seguinte:

«Dispõe o artigo 14º, nº 1, alínea b), da Lei dos Acidentes de Trabalho:

“1 – O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:

b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.

O conceito de negligência grosseira consta do nº 3 do artigo 14º da Lei dos Acidentes de Trabalho, estando em causa um “comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.

Desta noção resulta que, por um lado, a lei considera indemnizáveis os acidentes resultantes de negligência simples, ou seja, da mera imprudência, imprevidência, imperícia, distracção ou esquecimento, e, por outro lado, para descaracterizar o acidente com fundamento em ato negligente do sinistrado exige-se que o mesmo tenha resultado exclusivamente do comportamento deste, o que significa que nas situações de concurso de causas aquela descaracterização não tem lugar (conforme ADELAIDE DOMINGOS, VIRIATO REIS, DIOGO RAVARA, IN ACIDENTES DE TRABALHO E DOENÇAS PROFISSIONAIS – UMA INTRODUÇÃO, CADERNOS DO CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS, JULHO DE 2013).

Como se exarou no ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 29/02/2012, IN HTTP://WWW.DGSI.PT, “correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum”.

No que tange ao caso concreto importa sublinhar a elevada perigosidade na realização de trabalhos em altura, incluindo sobre coberturas, ainda que planas, e telhados.

Está provada a inexistência de quaisquer equipamentos ou meios de segurança do sinistrado, que se abalançou à execução espontânea de um serviço sem adoptar a mínima das precauções.

Por outro lado, ainda que se possam configurar razões para tanto, a verdade é a placa que se quebrou e por onde o sinistrado caiu situa-se a meio de uma das águas do telhado, afastada vários metros de qualquer caleira, não havendo qualquer necessidade de aceder a tal ponto do telhado para limpar as ditas caleiras.

Independentemente do concreto modo como se deu o evento – se a placa se partiu sob o peso do sinistrado ou se este caiu antes e foi por efeito conjugado do seu peso e da força com que o corpo ia animado que a placa se partiu –, a verdade é que as mais elementares cautelas impunham que o sinistrado, antes de mais, se munisse de equipamentos e meios adequados à execução do trabalho e, além disso, procedesse a essa execução com o mínimo de deslocação, por áreas especificamente definidas como mais seguras.

Não foi essa a atitude do sinistrado, configurando-se, na nossa óptica, a violação das mais elementares regras de segurança, isto é, sendo a conduta do sinistrado de qualificar como negligência grosseira.

Todavia, entendemos que a culpa não impende unicamente sobre o sinistrado.

Efectivamente, o empregador sugeriu a necessidade de realização daquele trabalho e, apesar disso, não disponibilizou quaisquer meios para o efeito.

Mas se podemos contestar a relevância dessa questão defendendo que o empregador não teve conhecimento imediato do trabalho que o sinistrado ia empreender, não podendo, por isso, disponibilizar atempadamente os necessários meios de segurança, não podemos, contudo, deixar de notar ainda que o empregador não adoptou quaisquer meios que obstassem ao acesso ao telhado, reduzindo o risco de quedas, antes pelo contrário.

Como resulta dos autos, não só estava colocada uma escada de acesso ao telhado, como havia uma prancha em madeira, por onde se podia aceder ao telhado, que também estava ali colocada.

Não se provou a existência, nas instalações do empregador, de equipamentos de segurança colectivos para evitar os riscos de quedas, como não se provou que o empregador houvesse proibido os comportamentos de alto risco, como caminhar sobre frágeis placas ou telhas de fibrocimento em telhados sitos a mais de 5 metros de altura relativamente ao solo, como não se provou ainda a proibição de realização de quaisquer trabalhos ou reparações pelo lado de fora dos telhados.

O acesso ao telhado era incondicionado e esse quadro não pode ter deixado de influenciar mentalmente o sinistrado, diminuindo a eventual resistência ao acesso ao telhado e à exposição ao perigo.

Deste modo, ainda que o acidente em si tenha resultado de culpa do sinistrado, que acedeu ao telhado sem estar munido do devido equipamento e meios de segurança, tendo-se deslocado em área à qual não precisava de aceder, a omissão por parte do empregador em vedar ou restringir o acesso ao telhado concorreu para a conduta do sinistrado e, por inerência, para a ocorrência do acidente, razão pela qual entendemos que não se verifica a descaracterização do acidente de trabalho.»

Devemos já dizer que, apreciada a questão, concordamos pela não descaracterização do acidente, embora não com a fundamentação transcrita.

O artigo 14.º da Lei 98/2009, de 4/9 (LAT/2009), sob a epígrafe “descaracterização do acidente”, estabelece as situações em que o acidente, ainda que de trabalho, não confere direito à reparação.

A alínea b) do n.º 1 do referido preceito estipula que não dá direito à reparação o acidente que for “provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.

Por negligência grosseira deve entender-se “o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão” (n.º 3 do art. 14.º já referido).

Como refere Carlos Alegre (in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., pág 63), “ao qualificar a negligência de grosseira, o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano ... é grosseira porque é grave e por ser aquela que em concreto não seria praticada por um suposto homo diligentíssimas ou bonus pater-familias”. Não basta a omissão de um qualquer dever objectivo de cuidado ou diligência, antes é necessário que ocorra um comportamento temerário, ostensivamente indesculpável, gratuitamente aventureiro.

Como refere o Acórdão desta Relação de 18-01-2007 (in www.dgsi.pt, proc. 664/04.6TTVFR.C1), tratando-se de noções abertas, conceitos vagos, o seu preenchimento casuístico há-de fazer-se ante a análise e avaliação do caso concreto e das suas reais circunstâncias, “não deixando todavia de sobrar para o intérprete uma margem de intangível subjectividade no que concerne à ponderação-limite do que seja, em cada caso, a fronteira entre o espírito de bem cumprir, com eficácia e competência, abnegação ou heroísmo, (induzidos por um voluntarismo bem intencionado), e os excessos imponderados, de clara temeridade, por inexistência ou deficiente cálculo do risco, medianamente reconhecido, em abstracto, como desaconselhado à luz dos mais elementares princípios de prudência e devida previsibilidade”.

A negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado - na inobservância do dever objectivo de cuidado que lhe era exigível. Nos vários cambiantes da culpa, no domínio da negligência, a noção de negligência grosseira equivale à usualmente caracterizada como culpa grave: quando o agente deixar de usar a diligência que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta não teria observado.

Assim, para descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que o sinistrado atentou contra o mais elementar sentido de prudência - que a sua conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum. Mas também é preciso provar que o acidente ocorreu exclusivamente por causa dessa negligência grosseira.

Ora o que se pode retirar dos factos provados é muito pouco para sustentar a conclusão pretendida pela apelante.

Temos, sem dúvida que a queda lesiva do sinistrado ocorreu “do telhado para o interior de um pavilhão” (facto 1.) e que o mesmo se deslocou ao telhado do pavilhão para limpeza da caleira (facto 9.); a cobertura do pavilhão era constituída por placas de fibrocimento, com algumas translúcidas, para permitir maior luminosidade para o interior (facto 13.); o autor pesava 65 kg (facto 14.); a placa ou telha translúcida situa-se a meio de uma das águas do telhado, afastada vários metros de qualquer caleira, não havendo qualquer necessidade de aceder a tal ponto do telhado para limpar as ditas caleiras (facto 16.) e o sinistrado foi encontrado caído e inanimado, por debaixo de tal telha, que se encontrava partida (facto 16.); a entidade patronal não instalou guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador, tábuas de rojo, nem andaimes ou passadiços para que o sinistrado pudesse deslocar-se aos pontos do telhado que careciam de limpeza ou reparação (facto 21.); não obstante o grave risco de queda, nem sequer um cinto de segurança ou qualquer outro dispositivo de retenção fixo à estrutura do edifício distribuiu ao sinistrado (facto 22.); no local não se encontrava nenhum superior hierárquico do sinistrado com competência na área da segurança, que estivesse a dirigir e responsabilizar-se pelos trabalhos de reparação (facto 23.).

Temos que o sinistrado se deslocou ao telhado, mas quase nada sabemos sobre a configuração do mesmo para que se possa concluir pela sua efectiva perigosidade, sobre o concreto perigo que oferecia o telhado em causa e que exigissem medidas especiais de segurança.

Não é, assim, sequer possível, quanto às regras de trabalhos em telhados, concluir pela violação das regras pelo Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, aprovado pelo Decreto n.º 41.281, de 11 de Agosto de 1958 e no art. 36.º do DL n.º 50/2005, de 25-02.

O art. 44.º daquele Regulamento diz respeito a “Obras em telhados” e tem o seguinte teor:

No trabalho em cima de telhados que ofereçam perigo pela sua inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, tomar-se-ão medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo.

§ 1.º As plataformas terão a largura mínima de 0,40 m e serão suportadas com toda a segurança: As escadas de telhador e as tábuas de rojo serão fixadas solidamente.

§ 2.º Se as soluções indicadas no corpo do artigo não forem praticáveis, os operários utilizarão cintos de segurança providos de cordas que lhe permitam prender-se a um ponto resistente da construção.

E o art. 45.º refere o seguinte: «Nos telhados de fraca resistência e nos envidraçados usar-se-á das prevenções necessárias para que os trabalhos decorram sem perigo e os operários não se apoiem inadvertidamente sobre pontos frágeis».

Por sua vez o art 36.º do DL nº 50/2005, de 25-02 (Disposições gerais sobre trabalhos temporários em altura), estipula:

Nº 1- “Na situação em que não seja possível executar os trabalhos temporários em altura a partir de uma superfície adequada, com segurança e condições ergonómicas apropriadas, deve ser utilizado equipamento mais apropriado para assegurar condições de trabalho seguras.

Nº 2- Na utilização de equipamento destinado a trabalhos temporários em altura, o empregador deve dar prioridade a medidas de protecção colectiva em relação a medidas de protecção individual. (..)»

No âmbito deste DL não há aqui qualquer imposição de um determinado meio de segurança específico. O que se determina é a utilização do “equipamento mais apropriado para assegurar condições de trabalho seguras”

Trata-se assim de saber se, antes de mais, o telhado em causa oferecia perigo pela sua inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, que exigissem medidas especiais de segurança.

Mas, como dissemos, a matéria de facto estabelecida como provada não dá indicações quanto à inclinação, estado do telhado ou condições atmosféricas. Apenas contempla alguns dados quanto à natureza da cobertura do pavilhão, constituída por placas de fibrocimento, com algumas translúcidas, para permitir maior luminosidade para o interior. Mas não sabemos o seu grau de resistência sequer.

Por outro lado, quanto aos procedimentos de execução pelo sinistrado de eventuais trabalhos a que fosse proceder (se foi efectivamente proceder a alguns) nada temos estabelecido. Sabe-se o que ele disse que lá foi fazer, mas não se sabe o que fez efectivamente, nem que procedimentos adoptou, se é que adoptou alguns.

Ou seja, a matéria de facto não nos dá indicações concretas sobre as condições de resistência ao peso desse telhado de modo a aferir do grau de representação pelo sinistrado das concretas circunstâncias de perigo e da necessidade de adoptar medidas especiais de segurança.

Ao contrário do que defende a apelante seguradora não pode inferir-se que “as placas ou telhas de fibrocimento não têm resistência para que um adulto possa caminhar sobre elas em segurança, muito menos as translúcidas”. Não podemos sequer inferir que o mesmo caminhou sobre as mesmas, nem sequer que não usou “um cinto ou arnês de segurança” (apenas está provado que a empregadora não lhe distribuiu cinto de segurança ou qualquer outro dispositivo de retenção fixo à estrutura do edifício)

Ou seja, os factos provados não só não nos dão indicações quanto à concreta perigosidade do telhado, como não nos dá indicações do que fez o sinistrado no mesmo e os motivos concretos da sua actuação que determinaram a eclosão da queda que o vitimou.

Como se disse, é sobre a entidade responsável pela reparação que recai o ónus da prova dos factos descaracterizadores do acidente, tendo em conta que estes constituem factos impeditivos do direito invocado pelo sinistrado (342 nº 2 do Código Civil).

Ora dos factos tão só provados, não podemos concluir pela existência de uma conduta altamente reprovável, indesculpável e injustificada como causa exclusiva do acidente. Como acima dissemos, não basta a omissão de um qualquer dever objectivo de cuidado ou diligência, antes é necessário que ocorra um comportamento temerário, ostensivamente indesculpável, gratuitamente aventureiro, o que no caso não podemos concluir.

Sufragamos, assim, a decisão da 1ª instância, quando não considerou a descaracterização invocada, embora com distinta fundamentação.

5. A questão da cobertura do sinistro pelo seguro:

Noutro passo, sustentou a apelante que o acidente se deve considerar excluído da cobertura do contrato de seguro celebrado entre as rés, na medida em que o sinistrado exercia no momento do acidente uma actividade não abrangida pelo contrato, ou seja a actividade de realização de trabalhos não incluída nas garantias do seguro.

Na sentença recorrida analisou-se assim esta questão:

«A este nível temos como adquirido que, aquando da contratação do seguro, o empregador jamais referiu que se dedicasse, ainda que de forma acessória, a qualquer actividade de limpeza e/ou reparação de coberturas de naves industriais ou à execução de quaisquer outros trabalhos em altura, tendo comunicado, com vista à contratação do seguro dos autos, que era uma unidade industrial do ramo da fabricação de artigos de mármore e de rochas similares.

Como resulta da certidão permanente do empregador, este desenvolvia, como objecto social, a compra, extracção, transformação, polimento, venda e instalação de pedras ornamentais, bem assim como a compra e venda de máquinas e ferramentas necessárias a essas actividades.

Da proposta de seguro consta como actividade do empregador a transformação de mármores e rochas similares, sendo a natureza do trabalho identificada como marmorária.

Das condições particulares da apólice nada consta relativamente à questão do risco.

Como se consignou no ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA DE 08/03/2012, IN HTTP://WWW.DGSI.PT:

“I- O contrato de seguro em geral é a convenção pela qual uma seguradora se obriga, mediante retribuição paga pelo segurado, a assumir determinado risco e, caso ele ocorra, a satisfazer ao segurado ou a um terceiro uma indemnização pelo prejuízo ou um montante previamente estipulado.

II- É um contrato formal porque a sua validade depende de o respectivo conteúdo ser consubstanciado num documento escrito, denominado apólice, de que devem constar o nome do segurador, do tomador e do beneficiário do seguro, o seu objecto, a natureza e o valor e os riscos cobertos, e de adesão, regulado pelas estipulações daquela apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, em primeira linha, pelas normas do Código Comercial”.

Ora, dos documentos juntos aos autos não resulta concretamente definido o âmbito dos riscos cobertos com o contrato de seguro.

De acordo com o artigo 37º, nº 1, do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril:

“1- A apólice inclui todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis”.

Da apólice devem constar os riscos cobertos [artigo 37º, nº 2, alínea d)], devendo incluir ainda, escritas em caracteres destacados e de maior dimensão do que os restantes, as cláusulas que estabeleçam causas de invalidade, de prorrogação, de suspensão ou de cessação do contrato por iniciativa de qualquer das partes; as cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação; e as cláusulas que imponham ao tomador do seguro ou ao beneficiário deveres de aviso dependentes de prazo (conforme o nº 3).

Atento o regime legal, à ré seguradora incumbia demonstrar que a realização daquela concreta actividade estava excluída do âmbito do contrato de seguro.

Não podemos, de facto, deixar de notar que o seguro de acidentes de trabalho inclui uma variedade de actividades, que, naturalmente, vão para além daquelas que constituem o objecto principal da actividade do segurado.

Assim, não se poderá considerar excluído o risco de queda de um trabalhador, enquanto procede à limpeza do local de trabalho, apenas porque o objecto social do segurado não inclui a actividade de limpeza.

Ainda que se pretenda que a exclusão se verifique unicamente em relação a actividades de risco acrescido, não incluídas no objecto social da empresa, sempre haveria que demonstrar que essas actividades foram excluídas do âmbito das coberturas do contrato de seguro.

Não tendo sido produzida tal prova, haverá que considerar não excluída a garantia do seguro.»

Começamos por notar que a seguradora não suscitou tal questão na tentativa de conciliação realizada na fase conciliatória dos autos. Estranhamente aceitou até, ao contrário do que agora sustentou no recurso, aceitar a existência e caracterização do acidente como acidente de trabalho. Apenas não aceitou conciliar-se porque entendia ter ocorrido violação das normas de segurança pela empregadora.

De todo o modo, cumpre referir:

A empregadora do sinistrado tinha transferido para a ré seguradora a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0002463401, na modalidade de folhas de férias (como se constata das condições particulares da apólice juntas a fls. 5).

Da matéria de facto provada (factos 18. e 19.) aquando da contratação do seguro, a empregadora do sinistrado jamais referiu que se dedicasse, ainda que de forma acessória, a qualquer actividade de limpeza e/ou reparação de coberturas de naves industriais ou à execução de quaisquer outros trabalhos em altura e aquilo que comunicou à seguradora, com vista à contratação do seguro dos autos, foi apenas que era uma unidade industrial do ramo da fabricação de artigos de mármore e de rochas similares.

Provou-se também que o sinistrado factos 3. e 20.) tinha a categoria profissional de motorista, desempenhando as funções inerentes a essa categoria, bem como todas as outras com esta conexionadas, mas fazia um pouco de tudo na empresa, não se limitando ao exercício das funções correspondentes à sua categoria profissional.

O contrato outorgado de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de folhas de férias estava regulado no “Regime Jurídico do Contrato de Seguro”, aprovado pelo Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, constando nomeadamente nos seus artigos 32.º a 35.º que o contrato de seguro deve ser formalizado por escrito pelo segurador, num instrumento denominado apólice, sendo regulado pelas estipulações dele constantes, a menos que a desconformidade entre ele (apólice) e o acordado resultem de documento escrito o de outro suporte duradouro (art. 35.º).

A LAT/2009 consagra, no seu art. 81.º, que a regulamentação do contrato de seguro do ramo “Acidentes de Trabalho” deve constar de uma apólice uniforme, a aprovar pelo Instituto de Seguros de Portugal.

Em vigor à data do acidente dos autos estava Norma n.º 1/2009-R, de 16 de Abril (publicada no D.R. 2.ª Série, Parte E, n.º 16, de 23/1/2009), que veio aprovar a “Parte Uniforme das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores por Conta de Outrem”.

Assim, o seguro cobre um número variável de pessoas seguras, com retribuições seguras também variáveis, umas e outras periodicamente comunicadas pela empregadora à seguradora mediante remessa das folhas de vencimento.

Por outro lado, nos termos do art. 3.º n.º 1 da dita Apólice Uniforme “O segurador, de acordo com a legislação aplicável e nos termos desta apólice, garante a responsabilidade do tomador de seguro pelos encargos obrigatórios de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras identificadas na apólice, ao serviço da unidade produtiva também identificada nas condições particulares, independentemente da área em que exerçam a sua actividade”.

Assim sendo, o objecto do contrato e o correspondente âmbito de cobertura deverão ser determinados pela natureza da actividade económica a que o tomador do seguro se dedica e pretendeu ver coberta, sendo em função dela que são estipulados o prémio e as restantes condições contratuais (acórdão do STJ de 13/3/02, CJ do STJ, tomo I, p. 274).

Ora, vistos os factos provados observamos que, com vista à contratação do seguro dos autos, foi comunicado à seguradora que a empregadora era uma unidade industrial do ramo da fabricação de artigos de mármore e de rochas similares.

Contudo, como se salientou no Acórdão desta Relação de 25-11-2013 (relator: Jorge Loureiro; proc. 922/06.5TTLRAC1, in www.dgsi.pt) mesmo que esteja comunicada a actividade económica e que dela não fizesse parte, a título principal, complementar ou acessório, a concreta actividade que era desempenhada pelo sinistrado no momento do acidente, é preciso ter em devida conta que dentro de determinados condicionamentos legais, a empregadora pode, no exercício do jus variandi, impor ao trabalhador, transitoriamente, o desempenho de funções diversas daquelas para as quais o trabalhador foi contratado, não estando excluído, face aos factos provados, que tal tenha ocorrido na situação dos presentes autos.

Por outro lado, não resulta dos autos que as tarefas que o sinistrado executaria (limpeza de caleira) não se limitavam ao exercício de funções correspondentes à sua categoria profissional de motorista, uma vez provado que fazia um pouco de tudo na empresa,.

Por outro lado ainda, o concreto risco de cuja concretização no acidente em apreço a recorrente pretende desonerar-se, considerando-o excluído do âmbito de cobertura do contrato de seguro de acidentes de trabalho em que outorgou, reporta-se ao risco de queda em altura duma concreta actividade de limpeza de carácter eventual, o qual não está por natureza, como é bom de ver, afastado na actividade declarada pela empregadora (fabricação de artigos de mármore e de rochas similares).

A nosso ver o contrato de seguro em análise não pode ser interpretado em moldes de serem excluídos do seu âmbito de cobertura os riscos de queda em altura ocorridos designadamente em actividade eventual de manutenção de equipamentos.

Como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação proferido no âmbito do processo nº 97/07.2TTCBR.C1, relatado pelo presente relator, “nos negócios jurídicos em geral – como também, por norma, nas cláusulas de um contrato de seguro – a regra interpretativa é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante – art. 236.º do Código Civil. Só assim não acontecerá quando seja irrazoável imputar ao declarante o sentido declarativo assim apurado, ou quando o declaratário conhecer a vontade real do declarante. Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art. 237.º do mesmo Código).
Mas nos negócios formais – como é o caso do contrato de seguro – o sentido hipotético da declaração, tem de ter um mínimo de correspondência no texto que a corporiza (art. 238.º n.º 1 do CC). Todavia, nos contratos de adesão como também é o caso, de acordo com o disposto nos arts. 10.º e 11.º do D.L. n.º 446/85, de 25/10, as cláusulas ambíguas têm o sentido que lhes conferiria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real e, em caso de dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente
”.

Assim sendo, em nosso entender, um declaratário normal e um contratante indeterminado normal que subscrevesse o contrato de seguro a que os autos se reportam consideraria que a actividade de limpeza eventual de caleira do edifício do empregador, para manutenção, e os inerentes riscos de queda em altura estariam abrangidos, pelo menos enquanto actividade acessória.

De resto, é esse o sentido mais favorável à empregadora/aderente, assim como é o mais consentâneo com os ditames da boa-fé a que deve sujeitar-se a interpretação do contrato.

Neste enquadramento, há que aplicar o regime regra decorrente do art. 3.º n.º 1 da dita Apólice Uniforme, de onde se extraia que a ré seguradora garantia a responsabilidade da ré empregadora pelos encargos obrigatórios de acidentes de trabalho em relação às pessoas seguras identificadas na apólice e que se mostrassem ao serviço da unidade produtiva da ré empregadora, neles se incluindo o aqui autor e sem restrição do âmbito de protecção conferida pelo contrato que dela excluísse a actividade eventual de limpeza de caleira para manutenção, como se disse na sentença recorrida.

Cumpre referir, ainda, que a desconformidade entre o declarado pela tomadora do seguro a respeito da actividade desenvolvida pelos seus trabalhadores a segurar e aquela que verdadeiramente era desempenhada pelos mesmos, a existir realmente, deveria ser enquadrada nos termos previstos nos arts. 25.º e 26.º do DL n.º 72/2008, de 26/4, onde, está prevista uma situação de mera anulabilidade do contrato de seguro para aqueles casos em que no momento da celebração do contrato de seguro o tomador do seguro presta à seguradora declarações falsas, inexactas ou reticentes que tenha tido influência na decisão da seguradora aceitar a contratação, pois sem elas não teria contratado ou tê-lo-ia feito em condições diversas das acordadas – v.g. acórdãos do STJ 2/12/09, proferido no âmbito do processo 08A3737, de 15/6/99 (BMJ 488, p. 381), de 3/3/98 (CJ do STJ tomo I. pp. 98), de 10/5/01 (CJ do STJ, tomo II, p. 60), de 4/3/04 (CJ do STJ, tomo I, p. 102), da Relação do Porto de 23/2/12, proferido no âmbito do processo 6833/09.5TBVNG.P1, da Relação de Lisboa de 21/6/11, proferido no âmbito do processo 2044/07.2TBAMD.L1-1, da Relação de Coimbra de 5/12/12, proferido no âmbito do processo 397/2002.C2, da Relação de Guimarães de 20/11/12, proferido no âmbito do processo 3677/11.8TBVCT.G1, da Relação de Évora, proferido no âmbito do processo 1462/06-3, José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, pp. 379 e 384, Moitinho de Almeida, O contrato de Seguro, p. 61, nota 29.

Como se salientou no Acórdão desta Relação de 25-11-2013 acima citado e que nesta parte seguimos, estando em causa um vício de mera anulabilidade e não tendo sido judicialmente peticionada a sua declaração, tudo se passa como se tal vício se não se registasse, pois que o tribunal não pode dela conhecer oficiosamente.

Em todo o caso, as possibilidades de não cobertura do seguro por declarações inexactas só ocorreria, nos termos dos referidos arts. 25.º e 26.º do DL n.º 72/2008, em situações de incumprimento doloso do tomador do seguro - o que no caso não está apurado - ou de incumprimento negligente, mas neste caso apenas verificando-se os pressupostos constantes do n.º 4 do referido art. 26.º (referentes ao prémio pago e ao que seria devido e demonstração que, em caso algum, a seguradora teria celebrado o contrato se tivesse conhecido a declaração inexacta) – pressupostos que não estão demonstrados nos autos, nem neles foram equacionados pela ré apelante.

Consequentemente, enquanto trabalhador identificado nas folhas de férias remetidas pela empregadora à seguradora, deve o trabalhador sinistrado considerar-se abrangido pelo âmbito de protecção emergente do contrato de seguro celebrado entre a recorrente e a empregadora do sinistrado, mesmo que existisse discrepância relevante entre o declarado pela empregadora quanto às actividades que pretendiam ver-se abrangidas pelo seguro e aquelas que realmente eram exercidas pelos trabalhadores da empregadora.

Finalmente, como se referiu no Acórdão que seguimos, é preciso ter em devida conta que o contrato de seguro de acidentes de trabalho é obrigatório e reveste a natureza de contrato a favor de terceiro. Como tal, o contrato de seguro está sujeito à disciplina do art. 449º do CC, nos termos do qual “São oponíves a terceiro, por parte do promitente, todos os meios de defesa derivados do contrato, mas não aqueles que advenham de uma relação entre promitente e promissário” - neste sentido, acórdãos do STJ de 30/3/89 (BMJ 385, p. 563), da Relação de Coimbra de 12/2/98 (CJ, tomo I, p. 64), da Relação de Évora, de 9/4/03 (CJ, tomo II, p. 264), e José Vasques, ob. cit., pp. 120 a 123.

Também o art. 48.º n.º 5 do já citado DL DL n.º 72/2008, refere que “na falta de disposição legal ou contratual em contrário, são oponíves ao segurado os meios de defesa derivados do contrato de seguro, mas não aqueles que advenham de outras relações entre o segurador e o tomador do seguro”.

Seguindo o referido Ac. desta Relação de 25-11-2013, “dada a sua fisionomia de contrato a favor de terceiro, ao celebrar o contrato de seguro de responsabilidade civil o segurador obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida ao segurado, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora. As excepções que o segurador tenha contra o segurado são do domínio exclusivo da relação entre eles, só sendo relevantes nas relações imediatas ou internas entre ambos”.

Ou seja, na situação em análise nos autos, “se porventura se verificassem excepções determinativas da anulabilidade do contrato de seguro ou da exclusão do âmbito de protecção do mesmo da actividade desempenhada pelo sinistrado no momento do acidente, elas não podiam ser opostas ao sinistrado enquanto terceiro lesado pelo acidente – neste sentido, acórdãos do STJ de 8/6/06, proferido no âmbito do processo 06A1435, bem como demais decisões do mesmo STJ identificadas nesse acórdão, desta Relação de 23/11/2004, proferido no âmbito da apelação 2568/04, e de 26/5/2011, proferido no âmbito da apelação 128/09.1, este último subscrito como 1º adjunto pelo aqui 2º adjunto, da Relação de Évora de 26/11/09, proferido no âmbito do processo 572/03.8PAVRS”.

Consequentemente, a ré/apelante seguradora é responsável pela reparação do acidente de trabalho, tal como se concluiu na sentença recorrida.

E, assim, improcede na totalidade a apelação.


*

IV- DECISÃO
Em conformidade com o exposto, delibera-se julgar improcedente a apelação.
Custas pela apelante seguradora.


 (Luís Azevedo Mendes)

 (Felizardo Paiva)

 (Paula do Paço)