Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
573/10.0T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: RECUSA DE MÉDICO
TIPO SUBJECTIVO
DOLO DE PERIGO
Data do Acordão: 05/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE ÁGUEDA (COMARCA DO BAIXO VOUGA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 284.º DO CP
Sumário: I - No plano subjectivo, o tipo legal de crime do artigo 284.º do CP, com a epígrafe “recusa de médico”, exige o dolo em qualquer das suas três modalidades: directo, necessário ou eventual.

II - Com efeito, terá de haver o dolo de perigo concreto, ou seja, a representação do perigo para a vida ou do perigo de grave lesão da integridade física, a consciência acerca da “indispensabilidade e adequação do auxílio médico que o omitente podia ter prestado” e a conformação (atitude de indiferença) perante tal situação.

Decisão Texto Integral: Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

- Assistente: A... (melhor id. nos autos).

- Arguido: B... (melhor id. nos autos)

1. Nos presentes autos (a fls. 5 a 7), no dia 05/03/2010, o denunciante (entretanto constituído assistente) A...apresentou queixa contra B..., médico especialista de oftalmologia, imputando-lhe responsabilidades pela cegueira no seu olho direito, sem aludir a um específico tipo legal de crime.

2. Findo o inquérito, e depois de considerar que os factos investigados seriam susceptíveis de integrar, em abstracto, o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos p. e p. pelo artigo 150º nºs 1 e 2 do Código Penal, pelo Ministério Público foi proferido despacho em que, declarando extinto, por prescrição o procedimento criminal, determinou o arquivamento dos autos (cfr. despacho de fls. 189 a 191).

3. Não se conformando com o teor de tal despacho, A...(a fls. 201 a 206) requereu a constituição de assistente (que entretanto foi admitida) e a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia do arguido por um crime de recusa de auxílio médico p. e p. no artigo 284º do Código Penal.

4. Recebido o requerimento de abertura de instrução, e depois colhidas informações que Exmo. JIC considerou pertinentes, procedeu-se ao debate instrutório findo o qual foi proferida decisão instrutória, constante de fls. 331 a 341 que culminou com a não pronúncia do arguido.

5. Inconformado com o teor desta decisão, o assistente dela interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

CONCLUSÕES:

1- O Assistente, na altura ofendido, veio apresentar queixa-crime junto dos Serviços do Ministério Público denunciando os factos pelos quais desejava procedimento criminal contra o arguido B..., médico oftalmologista, sem no entanto qualificar juridicamente a conduta do mesmo.

2- Porquanto, o assistente foi consultado pelo Arguido, que é médico oftalmologista, na sua C..., Lda., com sede em (...) em 10 de Agosto de 2004. Tal consulta teve como finalidade aferir o estado da sua visão e acertar as lentes respectivas. Sendo-lhe, então, reportado que tinha o OD a 30% e o OE a 60%, sem outras complicações.

3- Entretanto, o Assistente começou a perder a visão do olho direito e foi de novo consultado, pelo mesmo médico, a 27 de Abril de 2005. Nessa altura foi-lhe diagnosticado um glaucoma naquele mesmo olho (pressão intra-ocular de 34 mmHG, já com atrofia de 2/10 de acuidade visual). Foram receitados alguns fármacos para as infecções e só em 14 de Setembro de 2005, o referido médico, ora arguido, lhe passou uma carta para ser entregue à sua médica de família onde se solicitava que fosse pedido ao Hospital de Aveiro para ser intervencionado.

4- E de acordo com o Parecer do Conselho de Especialidade de Oftalmologia pedido no âmbito de um processo disciplinar movido contra o Arguido pela Ordem dos Médicos: No acto da primeira consulta ocorrida em 10 de Agosto de 2004, nada fazia supor ter havido qualquer erro ou acto negligente pois a conduta técnica é a correcta. Na segunda consulta datada de 27 de Abril de 2005 considera incorrecto que perante uma situação em que o glaucoma no OD ao doente não tenha ficado marcada consulta para o máximo de uma semana depois. Menciona o referido parecer que não é aceitável que uma situação com uma gravidade destas o doente só tenha sido observado 5 meses depois ou mesmo naquela altura transferi-lo de imediato para uma estrutura hospitalar com carta de referenciação. Tal procedimento só veio a ser feito na consulta de 14 de Setembro de 2005, quase cinco meses depois e considera completamente desajustada a transferência do processo para a médica de família, pois poderia e devia-se logo enviar o doente directamente para o hospital, deixando os processos burocráticos para depois.

5- Conclui aquele parecer que na segunda consulta em 27-04-2005, o médico agiu com culpa.

6- No encerramento do inquérito veio o Ministério Público proferir despacho de arquivamento, considerando esgotado o prazo de prescrição do procedimento pela prática do crime de intervenções e tratamento médico, p. e p. art. l50 do C.P.

7- Discordando de tal arquivamento veio o assistente requerer a abertura da fase da instrução com os fundamentos constantes do requerimento de fls. 207 e sgs. que se dão por reproduzidos imputando ao Arguido B... a prática de um crime de omissão de auxílio médico, p. e p. art. 284º do C.P., não estando por isso o procedimento criminal prescrito.

8- Considera-se, que não resulta indiciariamente preenchido o necessário elemento subjectivo do crime de recusa de médico p e p art. 284º do C. P., visto que se trata de um crime doloso, bem como o crime de intervenções e tratamento médico p. e p. art. l50º do C.P., pois ambos os casos se exige como elemento subjectivo do tipo, o dolo ainda que em qualquer das suas modalidades. E qualifica-se juridicamente a conduta do arguido como subsumível ao crime de ofensas à integridade física por negligência, agravadas pelo resultado, p. e p. art. 148º n 1 e 3 do C.P.

9- Porém, considerou-se ainda que o referido crime depende de queixa, tratando-se o crime previsto no art. 148 n 1 e 3 do CP um crime semipúblico e nesta medida porque a queixa foi apenas apresentada em 5 de Março de 2010, tinha já passado os seis meses que a lei prevê para a sua apresentação, desde a notificação do Assistente do Parecer do Colégio de especialidade de oftalmologia, a 26-06-2009.

10- Já não se pode o Arguido conformar com a apreciação que é feita relativamente à culpa, ou seja com o não preenchimento do tipo de ilícito subjectivo que afasta tanto a subsunção do crime de intervenções e tratamento médico ( p.p. art. l50º) e com o crime de recusa de médico p. e p. no art. 284º do C.P.

11- Resulta da decisão instrutória objecto do presente recurso, que apesar de dúvidas não existirem sobre a actividade profissional do médico e da sua especialização e ainda capacidade de entendimento e de discernimento, não ficou indiciado que o arguido se tenha conformado com o perigo.

12- Considerando-se que o arguido não pode ter deixado de ter consciência do perigo de cegueira, mas já não que tenha acreditado na verificação desse resultado conformando-se com o mesmo. ... A própria marcação de nova consulta muito para além do prazo que era exigível — demonstra que o arguido nunca pensou que o ofendido ficaria entretanto cego, ou não lhe teria então marcado essa (nova consulta, a terceira) que seria nesse caso inútil...

13- Note-se que o Arguido é médico de profissão com especialidade em oftalmologia e portanto reconhecendo que o mesmo teve consciência do perigo, porque o conhece, dificilmente se pode aceitar que o mesmo não se tenha conformado com o mesmo.

14- Menciona o parecer do Conselho de Oftalmologia, junto aos autos, que não é aceitável que uma situação com uma gravidade destas o doente só tenha sido observado 5 meses depois ou mesmo naquela altura transferi-lo de imediato para uma estrutura hospitalar com carta de referenciação.

15- Para o homem comum falar de glaucoma sabe-se apenas que é uma situação muito grave e uma vez não controlada irá conduzir à cegueira. Já quando os procedimentos a tomar para remover o perigo de cegueira não lhe é exigível. Já para um médico, especialista em oftalmologia exige-se que o saiba detectar, como efectivamente o fez. E detectando-o é inadmissível que não saiba quais os procedimentos a adoptar e a consequência da falta dos mesmos.

16- É exigível que saiba que caso não haja acompanhamento haverá lugar à cegueira, pelo exercício da sua profissão e conhecimentos inerentes a esta.

17- Ninguém melhor que um profissional especializado na área de oftalmologia, e uma vez detectando um glaucoma como o fez o arguido, que este irá provocar uma perda progressiva da visão e, se o processo não for controlado, poderá levar à cegueira. O que veio a acontecer, e em 14 de Setembro, na data da terceira consulta e cinco meses após a indispensabilidade do auxílio médico, recusado, foi confirmada a cegueira definitiva.

18- Pois, na segunda consulta em 27-04-2005, apesar do médico ter conhecimentos suficiente para tal não transferiu o doente para o Hospital, apenas lhe receitou Praxilene, para as dores e Timoglu Plus2 para as infecções, não marcando qualquer consulta de acompanhamento ao doente. É efectivamente muito grave. Quando bem se sabe que basta subir a pressão ocular para se ter de recorrer com periodicidade ao médico, quanto mais quando é detectado um glaucoma.

19- O glaucoma é uma doença crónica e é necessário que o paciente fique em observação e tratamento contínuo, para manter controlada a pressão intra-ocular e evitar a perda parcial ou total da visão. Quanto mais rápido se descobrir e tratar a doença, menor será tal perda. Diante desta afirmação que se encontra facilmente em qualquer texto sobre o tema, não há a mínima possibilidade de afirmar que houve um total desleixo para com a situação do paciente e cuja a omissão vai até ao encontro do que se entende por uma especial censurabilidade e perversidade nessa omissão.

20- Se era conhecedor da doença, o que parece ficar fora de dúvidas face à decisão recorrida, o facto é que não podia deixar de conhecer os efeitos da mesma e que a que a falta de acompanhamento ou transferência para o hospital iria resultar na cegueira do doente. O que releva uma atitude ou no mínimo indiferente em face, no caso, em relação ao perigo concreto que o dolo eventual supõe. Não podia o arguido, se consegue detectar um glaucoma, de pelo menos representar a cegueira como consequência possível da sua conduta. O que veio a acontecer.

21- Pelo que deverá subsumir-se a conduta do arguido ao crime de recusa de médico p. e p. nos art. 284 e 285 do C. P. por se verificar preenchido o elemento subjectivo necessário àquele tipo legal.

22- Resulta ainda, que mesmo não se perfilhando tal subsunção e concluir pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência agravada pelo resultado p. e p. art. 148 nº 1 e 3 do C.P. nunca tal qualificação poderá ter uma natureza semi-pública. Este é um problema levantado na decisão recorrida, concluindo-se que apesar do resultado agravado (ou seja, ofensa à integridade física grave) e por comparação ao art. l45 que já foi objecto desta problemática pelo Ac. da RP de 05-03-2001, a diferença reside na culpa, pois tratando-se de um crime negligente e não doloso como o previsto no art. 145º, existe a exigência de queixa e portanto estamos a tratar de um crime semi-público.

23- Estamos completamente em desacordo com tal fundamentação na medida em que, entendemos, com o devido respeito que muito é, que a natureza do crime (público ou semi-público) não radica no maior ou menor grau de culpa do agente, mas sim na sua danosidade social, ou seja no resu1tado,

24- São várias as razões de política criminal que determinam o legislador a exigir que para haver procedimento criminal seja necessária queixa ou acusação particular dos ofendidos, nuns casos, e as não exigir noutros. Porém as razões da exigência nunca se prendem com o grau de culpa, são sim razões atinentes à gravidade das infracções, ou à natureza dos interesses e bens ofendidos e ao seu grau de ofensa. E certo é que a orientação legislativa bem patente quando qualifica como públicos os crimes previstos no art. l44º, l45º e 146º mostra de forma indiscutível o reforço da protecção da tutela dos bens jurídicos pessoais, impondo o princípio da oficialidade naqueles cujo o resultado se mostra qualificado, como acontece no art. l48º n 3, de que tratamos.

25- Se virmos com atenção todos os tipos legais em que o legislador opta pela natureza pública do crime — art. 144º, 145º e 146º - está em causa delitos agravados pelo resultado, tal como está também no art. 148º nº 3. Aliás, o resultado previsto naqueles normativos é precisamente o mesmo do art. 144º do CP, uma ofensa grave à integridade física.

26- Refere a douta sentença que o acórdão mencionado só diz respeito ao crime do art. 145º do CP, certo é que, naquele acórdão, não se pondera o grau de culpa, mas sim o facto do resultado previsto no art. 145º do CP e faz deste um crime público. Aliás tal resultado que é também provocado por negligência (pois trata-se de um crime preterintencional) tal como acontece no caso do art. 148º n° 3. Pelo que até com base naquele acórdão há que concluir que não é o grau de culpa que diferencia os crimes quanto á sua natureza pública ou semi-pública.

27- Por fim a decisão que agora despronúncia o Arguido prende-se com o exercício intempestivo do direito de queixa, quando o Art. 113º do C. Penal, por se considerar que o Assistente teve conhecimento da responsabilidade do médico através da notificação do parecer do Conselho de Especialidade, este que resultou de um processo disciplinar que corre termos na Ordem dos Médicos com o nº 22-A/2007, cuja queixa foi também apresentada pelo ora Assistente em 2007.

28. Pelo que o conhecimento da responsabilidade do acto ou da omissão praticada pelo arguido apenas se conhecerá quando tal decisão disciplinar se encontrar definitiva, o que ainda não sucede em virtude de apresentação de recurso, encontrando-se a mesma suspensa.

Nestes termos e nos melhores de direito que não deixarão de ser proficientemente supridos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e consequentemente ser o arguido pronunciado.

Como será de, DIREITO e JUSTICA!”

                                                     *

6. O Ministério Público junto do tribunal a quo, a fls. 386 a 395, respondeu ao recurso, terminando com as seguintes (transcritas) conclusões:

1. O arguido assistiu, numa consulta da sua especialidade e na sua clínica, o assistente, em Abril de 2005, não lhe aplicando o tratamento adequado para a doença que diagnosticou ao mesmo.

2. Tal comportamento viola a leges artis, uma vez que o tratamento médico realizado de modo não conforme à técnica curativa adequada a uma determinada finalidade terapêutica, segundo os conhecimentos da ciência médica, tendo em conta as circunstâncias cognoscíveis do caso concreto no momento do tratamento; e a omissão do tratamento curativo correcto, que se afigure como objectivamente indicado à obtenção de uma determinada finalidade terapêutica - segundo os conhecimentos da ciência médica nas circunstâncias do caso concreto e no momento necessário, desde que seja possível a realização do omitido.

3. A intervenção curativa -  correcta ou incorrecta - por parte de médico não configura uma violação da integridade física do doente, como expressamente ressalta do artigo 150º nº 1, do Código Penal.

4. Assim, porque da actuação incorrecta do arguido resultou um dano para o assistente, verifica-se a violação da leges artis, como ressalta expressamente do preceituado no artigo 150º n° 2, do Código Penal.

5. No caso em apreço o arguido não recusou tratamento ao assistente, antes errou nesse tratamento, razão pela qual não pode a conduta do mesmo ser subsumível ao ilícito tipificado no artigo 284°, do Código Penal.

6. Desde a ocorrência dos factos até à constituição como arguido do médico decorreram mais de 5 anos, sem qualquer causa interruptiva ou suspensiva da prescrição - artigos 118° nº 1 d), 119°, 120° e 121°, do Código Penal.

7. Termos em que resulta encontrar-se prescrito o procedimento criminal em relação a tais factos.

Assim, julgando-se improcedente o recurso, far-se-á a habitual

JUSTIÇA!”

8. O arguido não respondeu ao recurso

                                                    *

9. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal.

10. Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto, a fls. 405 a 406vº, emitiu parecer no sentido de que o recurso do assistente deverá improceder, mantendo-se o despacho de não pronúncia recorrido.

11. No âmbito do art.º 417.º n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (arts 403º e 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito.
No caso vertente, vistas as extensas conclusões do recurso (e não havendo motivos para se ser demasiado exigente num convite ao recorrente para, com o devido formalismo, aperfeiçoar as conclusões tendentes a sinteticamente resumir o alegado na motivação) e atendendo a que não se vislumbra a ocorrência dos vícios a que alude o nº 2 do artigo 410º, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:
1 - Saber se existem elementos indiciários bastantes para suportar a pronúncia do arguido pelo crime de recusa de médico p. e p. pelo artigo 284º do Código Penal;
2 – Saber se o crime de ofensa à integridade física por negligência agravado pelo resultado p. e p. no artigo 148º nºs 1 e 3 do Código Penal reveste natureza semi-pública (como considerou o Exmo JIC) ou natureza pública (como considera o recorrente).
3. Saber se o direito de queixa é tempestivo por ter sido exercido antes de se tornar definitiva a decisão do processo disciplinar que corre termos na Ordem dos Médicos contra o arguido.
                                                                      *

Decorre do artigo 288º nº 1 do Código de Processo Penal que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Constitui assim, no Código de Processo Penal, uma actividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.

O artigo 308º, n.º1 do Código de Processo Penal estipula que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronúncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.”

Por sua vez o art. 283° n.º 2 do Código de Processo Penal preceitua que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".

A mencionada “possibilidade razoável” de condenação em julgamento envolve um juízo retrospectivo de valoração dos meios de prova recolhidos no processo que fundamentam a acusação; e um juízo de prognose prospectivo sobre os meios de prova que poderão vir a ser produzidas ou examinadas na audiência de julgamento, sabendo-se que a produção de prova em julgamento obedece a princípios diferentes da fase de investigação e instrução, com destaque para a “institucionalização” do contraditório e os princípios da imediação e da concentração nessa fase do julgamento.

O referido juízo retrospectivo sobre as provas recolhidas não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas face ao princípio in dubio pro reo, vigente em termos de apreciação da matéria de facto. Na verdade, nas palavras de Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I vol, pag 213) “Um non liquet na questão da prova (…) tem que ser sempre valorado a favor do arguido”, sendo que “com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo”.

É exigível pois, quer da parte do Ministério Público, quer da parte do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na demonstração da objectividade do facto, na apreciação do material probatório que a suporta em conformidade com as normas relativas à aquisição e valoração das provas, nos critérios de racionalidade inerentes ao princípio da livre apreciação da prova.

Com efeito, na lição, sempre actual de CASTANHEIRA NEVES (Processo Criminal, Sumários, p. 39) “na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.

E o juízo retrospectivo que vimos falando incide sobre os meios de prova recolhidos no processo e que fundamentam a acusação. Meios de prova que “não serão, salvo casos excepcionais, reforçados até à audiência de julgamento. A tendência natural será, pelo contrário, no sentido do enfraquecimento dessas provas já que (além da erosão do tempo) irão ser submetidas ao crivo do contraditório e atacadas através do efectivo exercício do direito de defesa, até aí substancialmente afectado” – cf. Jorge Noronha e Silveira, O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in JORNADAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS, coordenação de Maria Fernanda Palma. Almedina, 2004 p. 168.

O mesmo juízo retrospectivo não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas, antes exige da parte quer do Ministério Público, quer do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na sua estrutura fenomenológica, na objectividade de indagação fáctica e apreciação do material probatório, na conformação normativa pelas mesmas proibições de valoração da prova, na racionalidade lógica e metodológica em que assenta a sua livre apreciação dos elementos de prova coligidos, na parametrização (em prognose, na acusação, e actual, no julgamento) própria de condenação e no grau de convicção (que não se compadece, em ambos os casos, com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida) – cfr. Carlos Adérito Teixeira, «Indícios suficientes»: parâmetro de racionalidade e «instância» de legitimação concreta do poder-dever de acusar”, in REVISTA DO CEJ, nº1, p. 161; no mesmo sentido veja-se Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, p. 92 nota 127; e Jorge Noronha e Silveira, “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in JORNADAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS, coordenação de Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004p. 168 e 169).

E na jurisprudência, a interpretação do conceito do in dubio pro reo no âmbito da instrução é resumidamente efectuada pelo STJ da seguinte forma - «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime. Os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição (vide o Acórdão de 28/06/2006, in www.dgsi.pt)

Pelo que a não formação de uma convicção segura acerca da culpabilidade do arguido, em virtude da prova recolhida suscitar dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas, deve conduzir a uma decisão de não pronúncia, mediante a mobilização do principio in dubio pro reo – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/2002 (in www.tribunalconstitucional.pt). Com efeito, entendeu aquele tribunal que: “a interpretação normativa dos artigos citados que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, prevista no artigo 32º, nº2 da Constituição”.

Sendo exigível este grau de certeza na análise das provas recolhidas subjacente à decisão sobre a existência ou não de indícios suficientes coloca-se a questão de saber em que medida isso se compatibiliza com o facto da lei utilizar como critério de decisão a “possibilidade razoável” de condenação.

A “possibilidade razoável” que o nº2 do artigo 283º do Código de Processo Penal  reporta-se ao tal juízo de prognose, que sendo uma previsão assenta necessariamente numa avaliação probabilística. Não se reportando apenas à convicção que a autoridade competente tem de efectuar em relação aos elementos probatórios recolhidos mas ainda à possibilidade de confirmação dessa convicção, em audiência de julgamento, na medida em que a audiência de julgamento obedece a uma racionalidade específica, com os princípios da concentração da prova, da imediação, do exercício pleno do contraditório.

E importa ter sempre presente que a sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento para além de constituir sempre um “normal” incómodo, por vezes pode-se traduzir num vexame.

Por isso mesmo, cabe ao Ministério Público (enquanto detentor do exercício da acção penal) e ao juiz de instrução (quando há lugar a esta fase), avaliar sobre se os indícios são, ou não, suficientes.

Depois de tecidas estas parcas considerações, passemos agora a analisar as questões suscitas no âmbito do presente recurso.
1. E a primeira questão a analisar consiste em saber se existem elementos indiciários bastantes para suportar a pronúncia do arguido pelo crime de recusa de médico p. e p. pelo artigo 284º do Código Penal.

Sendo certo que na decisão instrutória o Mmo JIC enveredou por considerar que os factos indiciados seriam susceptíveis de integrar um crime de ofensa à integridade física negligente agravada pelo resultado p. e p. pelo artigo 148º nº 1 e 3 do Código Penal (crime pelo qual acabou por não pronunciar o arguido com o fundamento da falta de condição de procedibilidade decorrente da falta atempada de queixa – a queixa tinha sido apresentada para além do prazo legal), vejamos, desde já, o que em relação a tal questão foi dito no despacho recorrido, quer em relação aos factos indiciários, quer em relação ao tipo legal de crime imputado ao arguido no RAI (o crime de recusa de médico p. e p. pelo artigo 284º do Código Penal):

“B) Análise crítica da decisão proferida no final do inquérito quanto aos factos dados por indiciados à luz do RAI:

1.    Factos indiciados:

- Os referidos no RAI  com os nºs 1 a 7., 15 a 18 este com excepção de que o arguido se tenha conformado com o perigo, como ali referido[1].
                                                     *

2. Factos não indiciados:

Nada mais se demonstrou e designadamente não ficou suficientemente indiciado que o arguido se tenha conformado com o perigo (e muito menos o resultado) de perda de visão do ofendido.

Também não ficou indiciado o facto (apenas referido no debate instrutório pela defesa) de que foi marcada pelo arguido uma terceira consulta para uma semana depois da segunda ocorrida em 27-4-2004, por falta de qualquer prova nesse sentido (que de resto não foi requerida), sendo a declaração de fls.115 irrelevante pois que não dispõe a visada da prerrogativa de depor por escrito em processo penal.

                                                                      *

C) Motivação e análise crítica (quanto ao referido nos pontos anteriores):

Quanto aos factos indiciados:

 - declarações do ofendido prestadas no Inquérito e prova documental recolhida, nomeadamente parecer do colégio de especialidade de Oftalmologia da Ordem dos Médicos.

Quanto aos não indiciados:

Por ter o tribunal ficado na dúvida. Efectivamente, a alegada conformação do arguido com o resultado em causa radica apenas na falta de cumprimento da legis artis na situação em causa, circunstância suficiente para afirmar que o arguido não pode ter deixado de ter consciência do perigo de cegueira – portanto para afirmar a negligência (porventura até grosseira) - mas já não que tenha acreditado na verificação desse resultado conformando-se com o mesmo. Para isso era preciso que outros elementos de prova existissem nos autos e … não há; pelo contrário: a própria marcação de nova consulta – muito para além do prazo que era exigível – demonstra que o arguido nunca pensou que o ofendido ficaria entretanto cego, ou não lhe teria então marcado essa (nova consulta, a terceira) que seria nesse caso inútil.

                                                                      *

E) Ponderação global dos Indícios, por referência aos crimes imputados:

Chegados a este ponto, importa proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos expostos.

Do exposto resulta não estar, de qualquer modo, indiciariamente preenchido o necessário elemento subjectivo do crime imputado ao arguido no RAI visto que se trata de um crime doloso, pelo que fica prejudicada, desde já e sem necessidade de outras considerações, a subsunção da conduta do arguido ao tipo legal do crime de recusa de auxílio médico p.p. no art. 284º do CPenal, bem como ao seguido no despacho final do Inquérito – crime de intervenções e tratamento médico p.p. art. 150º do CP, pois que em ambos os casos se exige como elemento subjectivo do tipo, o dolo ainda que em qualquer das suas modalidades.

De todo o modo, sempre se dirá – porque constituiu o fundamento do despacho de arquivamento - que sendo a pena abstracta de limite máximo de 2 anos, o procedimento criminal estaria efectivamente prescrito:

Nos termos do artigo 3º do CPenal o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso da omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.

No caso em análise, o facto – marcação da terceira consulta com uma dilação excessiva – ocorreu aquando da segunda consulta, isto é, a 27-4-2005.

Não se trata de crime permanente nem de execução continuada.

Ora, queixa apenas foi apresentada em 5-3-2010 e a constituição como arguido do denunciado ocorreu em 20-7-2010 (fls.77).

Não se verificaram quaisquer outras causas de interrupção ou suspensão da prescrição.

Assim, deve concluir-se que se a conduta do arguido fosse subsumível (como sustentado pelo MP) ao crime de intervenções médicas previsto no artigo 150º do CP o procedimento criminal estaria efectivamente prescrito. Neste crime, o resultado perigo concreto é elemento do próprio tipo do crime, traduzindo-se, no caso, o resultado em perigo de cegueira. Sendo o limite máximo da pena de 2 anos, o prazo de prescrição é de 5 anos (art. 118º do CP) pelo que já havia ocorrido tal prazo aquando da própria constituição como arguido do denunciado, não sendo aplicável o art. 119º nº4 do CPenal.”

Tendo perdido toda a actualidade, tal como refere o Exmo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, qualquer discussão em saber se os factos indiciados integravam ou não o crime do artigo 150º nºs 1 e 2 do Código Penal (quer, desde logo, pela finalidade visada no RAI a seguir ao despacho de arquivamento, quer pelos argumentos apresentados pelo recorrente no presente recurso) debrucemo-nos acerca do que estabelece o artigo 284º do Código Penal (denominado crime de “Recusa de médico”) a fim de indagar se os indiciários factos são susceptíveis de preencher os elementos constitutivos deste último crime, sendo que, em caso de resposta afirmativa, é que terá relevância averiguar acerca da verificação ou não dos requisitos para agravação da pena a que alude o artigo 285º do mesmo diploma legal.

Estabelece o artigo 284º do Código Penal que “O médico que recusar o auxílio da sua profissão em caso de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa, que não possa ser removido de outra maneira, é punido com pena de prisão até cinco anos.”

Na abordagem aos requisitos e especificações deste tipo legal de crime, tendo em atenção desde logo o apoio doutrinal em que se alicerça e a limpidez da sua fundamentação, seguiremos muito de perto o Ac. da Relação do Porto de 03/06/2009, (relator: Desembargador António Gama), acessível através do site www.dgsi.pt.

“O crime de recusa de médico é um crime especial ou específico próprio ou puro. Crime específico num duplo sentido: agente deste crime só pode ser um médico e a conduta terá de consistir na omissão de cuidados médicos, sendo estes imprescindíveis para remover o perigo para a vida ou o perigo grave para a integridade física - vide Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo, II, comentário ao art.º 284º, Conceição Cunha, Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão, Liber Discipulorum, p. 844 e Teresa Quintela de Brito, Responsabilidade Penal dos médicos, RPCC, Ano 12, n.º3, p. 391.”

“Este normativo pune casos de omissão própria - Tipos especificamente descritos na lei como tais. Já a omissão imprópria abarca os tipos não especificamente descritos na lei como tais, mas em que a tipicidade resulta de uma cláusula geral de equiparação da omissão à acção, caso do art.º 10º do Código Penal. Esta classificação varia de autor para autor, assim Roxin, puras são aquelas omissões típicas que não têm correspondência num delito de acção, aquelas relativamente às quais o delito de acção não existe; impuras aquelas para cuja tipicidade se torna necessária uma cláusula de equiparação. Como refere, F Dias, Direito Penal, Tomo I, 2004, pág. 681, citando Stratenwerth, a escolha entre as distinções é pouco mais que uma questão de conveniência. Isto partindo do pressuposto, aceite pela generalidade dos autores, de que o critério fundamental de distinção entre crimes de omissão puros e impuros passa pela circunstância decisiva de os impuros, ao contrário dos puros não se encontrarem descritos num tipo legal de crime da parte especial, tornando-se necessário o recurso à cláusula de equiparação contida no art. 10º para resolver correcta e seguramente os problemas do círculo dos autores idóneos e da caracterização do seu dever de garantia.

Os bens jurídicos protegidos com o tipo legal de crime em análise são a vida e a integridade física.

O mesmo pressupõe a existência de uma situação de perigo para a vida ou em que exista uma situação de gravidade relativamente à integridade física. Trata-se, como refere Taipa de Carvalho, de um crime de perigo concreto (cfr. citado autos, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo, II, Coimbra Editora, pag. 1019).

A não prestação de cuidados consiste numa omissão, numa recusa de prestar os cuidados médicos indicados, em tempo útil, uma vez conhecida, directa ou indirectamente, a situação de perigo para a vida ou integridade física.

Exige-se em tal normativo que o perigo não possa ser removido de outra maneira, sendo a actuação médica, em concreto, o único meio capaz de eliminar o perigo.

Ou seja, e agora numa síntese conclusiva, seguindo de perto o Acórdão do STJ de 05/11/1997 (in CJ, Acs do STJ Ano V, Tomo III, pags 227 a 231), podemos dizer que, a nível objectivo, são elementos típicos, e cumulativos, do crime de recusa de médico:“ a) Ter o agente a qualidade de médico e exercer essas funções; b) Recusa de auxílio profissional; c) Perigo para a vida ou para a saúde de outrem; e d) Impossibilidade de remoção do perigo por outra via.”

E a nível subjectivo, o tipo legal de crime em análise, pressupõe o dolo em qualquer das suas modalidades: directo, necessário ou eventual. Com efeito, terá de haver o dolo de perigo concreto, ou seja, a representação do perigo para a vida ou do perigo de grave lesão da integridade física, a consciência acerca da “indispensabilidade e adequação do auxílio médico que o omitente podia ter prestado” e a conformação (atitude de indiferença) perante tal situação.

Tecidas estas considerações e face ao que os autos nos dão conta, para além de não estar, sequer, indiciariamente verificada uma situação de recusa de auxílio, concordamos com o que é dito na decisão recorrida no sentido de não estar indiciado o elemento subjectivo (o dolo) exigido pelo tipo legal de crime.

Com efeito, decorre dos autos que na consulta de 27/04/2005, o arguido atendeu o assistente (em consulta da sua própria especialidade) e prescreveu-lhe o tratamento que entendeu adequado (receitou Praxilene, para as dores e Timoglou Plus 2, para as infecções).

Tal como refere o Ministério Público, junto da primeira instância, na resposta ao recurso, “não houve qualquer recusa, mas antes terá havido um comportamento desajustado à situação de saúde do assistente por parte do arguido”.

Deste modo, desde logo a nível objectivo falta um dos elementos objectivos do crime em análise.

E mesmo que assim não fosse, também não se verifica o elemento subjectivo – dolo, ao menos na sua forma de eventual – para que se pudesse ter por preenchido tal crime.

A existência de um erro de tratamento (ao prescrever o receituário atrás referido e ao ser marcada uma consulta para além do prazo que seria exigível) para além de, de certo modo, até poder apontar para a falta de consciência da existência do perigo concreto da gravidade da lesão da integridade física de que o assistente efectivamente padecia, é por demais sintomático da falta de conformação do arguido em relação ao resultado desse mesmo perigo.

Tal como é dito em relação a esta parte na decisão recorrida, com a qual concordamos, “Efectivamente a alegada conformação do arguido com o resultado em causa radica apenas na falta de cumprimento da legis artis na situação em causa (…) – mas já não que tenha acreditado na verificação desse resultado conformando-se com o mesmo. Para isso era preciso que outros elementos de prova existissem nos autos e … não há; pelo contrário: a própria marcação de nova consulta – muito para além do prazo que era exigível – demonstra que o arguido nunca pensou que o ofendido ficaria entretanto cego, ou não lhe teria então marcado essa (nova consulta, a terceira) que seria nesse caso inútil”.

Daí que, sem necessidade de mais considerações, e manifestando a nossa anuência à decisão recorrida em que não se mostram suficientemente indiciados todos os elementos constitutivos do crime de recusa de médico p. e p. no artigo 284º do Código Penal (sendo que a agravação a que alude o nº 285º pressupõe a verificação do crime base – neste caso do previsto no artigo 284º), improcederá esta primeira pretensão do recorrente.


2. A segunda questão colocada pelo recorrente consiste em saber se o crime de ofensa à integridade física por negligência agravado pelo resultado p. e p. no artigo 148º nºs 1 e 3 do Código Penal reveste natureza semi-pública ou natureza pública.
Entende o recorrente que é de natureza pública, enquanto na decisão recorrida foi entendido que é de natureza semi-pública.
Desde já adiantaremos não assistir nenhuma razão ao recorrente, sendo que a resposta à questão colocada é de extrema simplicidade.
Independentemente das razões ou princípios que possam estar subjacentes à feitura das leis (ou, por outras palavras, de qual a política legislativa imanente à criação e publicação das leis), vejamos todo o texto da norma em questão.
Artigo 148.º
Ofensa à integridade física por negligência
1 - Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - No caso previsto no número anterior, o tribunal pode dispensar de pena quando:
a) O agente for médico no exercício da sua profissão e do acto médico não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias; ou
b) Da ofensa não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 3 dias.
3 - Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
4 - O procedimento criminal depende de queixa.”
Ora, quer pelo próprio texto da lei quer pelo elemento sistemático da interpretação da lei, resulta bem evidente que, independentemente da gravidade da ofensa resultante do acto ofensivo, o crime em causa reveste natureza semi-pública (e não pública).
E pelo elemento sistemático que possa ser utilizado na interpretação das normas, resulta bem evidente que ao deixar para o número final do artigo (para o nº 4) a expressão de que o procedimento criminal depende de queixa, pretendeu o legislador que a perseguição criminal por todas as condutas a que se refiram os números que antecedem esse nº 4, apenas seja viável após a apresentação de queixa por parte do titular do bem jurídico protegido com a norma incriminadora.
Caso a intenção do legislador fosse a de conferir natureza pública quando do facto resultasse uma ofensa à integridade física grave (ou seja quanto à situação a que se reporta o nº 3 do artigo 148º) certamente que, como o faz noutras situações previstas na parte especial do Código Penal, atribuiria o nº 4 à redacção que deu ao nº 3 e atribuiria o nº 3 à redacção que deu ao nº 4 ou seja, e por outras palavras, alterava a numeração dos nºs 3 e 4, passando o nº 4 a nº 3 e o nº 3 a nº 4. É que, em lugares paralelos, e dentro de um mesmo tipo legal de crime, quando o legislador entende que se verifica uma circunstância que justifique a passagem de natureza semi-pública para natureza pública, o legislador em determinado número do artigo e antes do número que já seja considerado crime de natureza pública faz questão de mencionar que, até essa altura o procedimento depende de queixa. A título de exemplo, vejam os artigos 205º (respeitante ao crime de abuso de confiança em que nº 3 é dito que o procedimento criminal depende de queixa, sendo que para as situações abrangidas pelos nº 4 e 5 já o procedimento não depende de queixa), o artigo 219º (referente ao crime de burla relativa a seguros em que nº 3 é dito que o procedimento criminal depende de queixa, queixa essa que já não é exigível em qualquer das alíneas a que se reporta o nº 4 daquele artigo), bem como os arts 221º e 225º em que ambos têm um número intermédio no qual é dito que o procedimento criminal depende de queixa, existindo depois um posterior número que prevê situações mais graves (neste caso respeitantes ao valor do prejuízo) cuja natureza pública já lhes é própria. Ou seja, por este elemento sistemático em lugares paralelos consegue-se apreender que quando o legislador, dentro de um mesmo normativo legal, pretende impregnar natureza semi-pública a umas situações e natureza pública a outras situações, utiliza a técnica legislativa de separar essas mesmas situações ao dizer, no meio do normativo, que o procedimento criminal depende de queixa e após essa referência, no número ou números seguintes, passa a prever e a estabelecer punições para outras situações não abrangidas pela necessidade da queixa.
Ora, no artigo 148º nada disto se passa. O último número de tal artigo é o nº 4 que refere que o procedimento criminal depende de queixa. Quer isto dizer que para tudo o previsto e estabelecido nos números anteriores a tal nº 4 é necessária a queixa para a prossecução da acção penal.
Daí que, quer pelo teor literal do normativo em apreço quer pelo argumento de ordem sistemático, dúvidas não existem de que o crime de ofensa à integridade física por negligência, mesmo que da mesma resulte ofensa grave, reveste natureza semi-pública.
E na sequência do entendimento que perfilhamos pode-se citar Maia Gonçalves quando, a propósito do nº 3 do artigo 148º do Código Penal (e em anotação a tal artigo) diz: “ A norma tem o alcance de deixar bem explícito que o crime de ofensa à integridade física por negligência é sempre semi-público, portanto também nos casos em que resulta uma ofensa à integridade física grave, contrariamente ao que sucede com o crime doloso, em que só o crime de ofensa à integridade física simples reveste a natureza se semi-público” (cfr. citado autor, in Código Penal Português Anotado, Almedina Coimbra, 16ª edição, 2004, pag. 529).
Também Paulo Pinto de Albuquerque em anotação ao artigo 148º do Código Penal, na nota 7, diz textualmente “O procedimento criminal por qualquer ofensa à integridade física negligente, mesmo grave, depende de queixa” (cfr. citado autor, in Comentário do Código Penal, Universidade católica Editora, pag 395).
Por todos estes argumentos, sendo por demais manifesto que o crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. no artigo 148º nºs 1 e 3 do Código Penal, reveste natureza semi-pública, falece a pretensão do recorrente em que fosse considerado como de natureza pública.

3. Por último, invoca o recorrente que, pelo facto da responsabilidade do acto ou da omissão praticada pelo arguido apenas se conhecerá quando se tornar definitiva a decisão do processo disciplinar que corre termos na Ordem dos Médicos contra o arguido, o direito de queixa foi tempestivamente exercido.
Também aqui não assiste razão ao recorrente, uma vez que os presentes autos são autónomos e independentes do mencionado processo disciplinar. Aliás, a talho de foice, decorre do nº 1 do artigo 7º que “O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”.
Depois de considerar (bem ou mal, para o caso não releva) que os factos indiciados seriam susceptíveis de integrar o crime de ofensa à integridade física por negligência agravado pelo resultado, p. e p. no artigo 148º nºs 1 e 3 do Código Penal, vejamos o que foi dito pelo tribunal recorrido quanto ao tempo da apresentação da queixa.
“Nos termos do artigo 115º do CPenal o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores.
No caso dos autos os factos – a omissão relevante - deve ter-se por verificada uma semana após a segunda consulta (em 27-4-2005) ou, quando muito, em 14-9-2005 (data em que cessou a omissão relevante). Não obstante o prazo de caducidade da queixa só pode começar a contar-se a partir do momento em que o ofendido teve conhecimento de que efectivamente tinha havido por parte do arguido uma conduta negligente, conhecimento que só ocorreu quando teve acesso ao parecer do Colégio de Especialidade de Oftalmologia.
Ora, resulta da informação da OM de fls. 311 e seus anexos, que o ofendido foi notificado por carta registada com AR por si assinado no dia 26-6-2009 do despacho de acusação do arguido (no âmbito do processo disciplinar) constante de fls. 30 dos autos, no qual, além do mais, se refere o aludido Parecer do Colégio de Especialidade de Oftalmologia e as suas conclusões. Assim sendo, deve iniciar-se a partir da indicada data de 26-6-2009 o prazo (de seis meses) para apresentação de queixa.
No entanto, a queixa nos presentes autos foi apresentada apenas na data de 5-3-2010 muito para além, portanto, dos seis meses legalmente previstos.
A consequência é a não pronúncia do arguido por falta de uma condição de procedibilidade – a apresentação de queixa dentro do prazo legalmente imposto.”
Independentemente da questão de saber se nos presentes autos se estaria (ou não) perante um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo artigo 148º nº 1 e 3 do Código Penal (como entendeu o tribunal recorrido), e depois de analisados os documentos constantes dos autos e mencionados na decisão recorrida, concordamos inteiramente com os argumentos explanados por aquele tribunal quando refere que o prazo de seis meses para o exercício do direito de queixa se iniciou com a notificação feita ao ofendido em 26/06/2009, concretizada através da assinatura do AR respeitante à carta registada que continha o despacho de acusação do arguido (no âmbito do processo disciplinar do Conselho Disciplinar da Ordem Médicos).
Daí que, independentemente do desfecho final que - e quando - venha a ter o procedimento disciplinar, ao ter apresentado a queixa que deu origem aos presentes autos apenas no dia 05/03/2010, resulta por demais evidente que essa apresentação foi após o prazo legal de 6 meses a que alude o nº 1 do artigo 115º do Código Penal, prazo esse que havia terminado em 26/12/2011. Naquela data (05/03/2010) já havia caducado o referido prazo, pelo que a queixa foi extemporaneamente apresentada.
Faltando, pois, uma condição de procedibilidade – a apresentação de queixa dentro do prazo imposto por lei – jamais o arguido poderia ser pronunciado pelo crime de ofensa à integridade física p. e p. no artigo 148º nºs 1 e 3 do Código Penal, crime este que, como dizemos no item anterior, reveste natureza semi-pública.
Naufraga também, assim, esta pretensão do recorrente.

                                                    *

De tudo isto, e em síntese final, se conclui que, bem andou, pois, o Mmo Juiz ao proferir despacho de não pronúncia do arguido.

                                                    *
III. – DISPOSITIVO
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso interposto e, consequente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC’s.

                                                    *

                              
(Luís Coimbra - Relator)
 (Cacilda Sena)

[1] [1] Porque não expressamente mencionados na decisão instrutória, recordemos aqui o que estava alegado pelo assistente nos nº 1 a 7 e 15 a 18 do RAI (Requerimento de abertura de instrução):

1ª O ofendido apresentou queixa-crime, denunciando os factos pelos quais desejava procedimento criminal, assim, e como consta do douto despacho de arquivamento:

2° O Ofendido foi consultado pelo Denunciado, que é Oftalmologista, na sua C..., Lda. , com sede em (...), a 10 de Agosto de 2004, para aferir o estado da sua visão e acertar as lentes respectivas, sendo-lhe então, reportado que tinha o OD a 30% e o OE a 60%, sem outras complicações.

3°Como, entretanto, começou a perder a visão do OD, foi de novo consultado pelo denunciado a 27 de Abril de 2005, altura em que lhe foi diagnosticado um glaucoma no OD (pressão intra-ocular de 34 mmHG, já com atrofia óptica de 2/10 de acuidade visual).

4º Apesar de tal diagnóstico, alega, que o denunciado não providenciou de imediato pelo seu tratamento de acordo com as legis artis e em função do estado da ciência médica daquela especialidade.

5° No parecer fundamentado sobre a actuação do denunciado, veio um Colégio da Especialidade (fls. 50 do processo disciplinar junto aos autos) concluir que não é aceitável que uma situação com a gravidade desta, o doente só tenha sido observado quase 5 meses depois da consulta em que é detectado o glaucoma OD, que não tenha sido logo marcada uma consulta no máximo de uma semana depois, para verificar a boa resposta ao tratamento. Ou mesmo transferi-lo de imediato para um hospital com carta de referenciação, o que não sucedeu na consulta de 27 de Abril. Refere ainda que na terceira consulta, apesar de ser correcto a transferência para o Hospital, era dispensável ter de passar pela médica de família, deixando os aspectos burocráticos para depois, dada a gravidade da situação.

6° Porém, apenas lhe foi agendada nova consulta para 14.09.2005, na qual o denunciado, vendo a gravidade do seu estado de saúde no CD, tendo sido confirmada a cegueira definitiva, providenciou pela sua imediata transferência para a unidade hospitalar, por via do seu médico de família, quando o deveria ter feito directamente.

7º Assim, concluiu que nas duas primeiras consultas referidas, mas , sobretudo, na segunda, em 27-04-2005, o denunciado agiu com culpa, pois diagnosticado que foi o glaucoma no CD nessa data, o denunciado não lhe administrou o tratamento devido ou não providenciou nesse sentido como podia e devia, nem mesmo providenciou nesse sentido em curto período de tempo, no máximo de uma semana, além de não o ter informado do seu estado de saúde o que levou á perda de visão.

15° O Denunciado naquela consulta realizada em 27/04/2005, o denunciado diagnosticou um glaucoma no CD e bem sabia que tal diagnóstico constituía uma situação de emergência médica e representava um perigo substancial para a integridade física do ofendido, seu paciente.

16° O Denunciado bem sabia também, que na situação concreta, avaliada a situação e feito o diagnóstico que se veio a apurar, os únicos cuidados médicos susceptíveis de eliminar esse perigo seria a marcação de uma consulta, no máximo de uma semana depois, para verificar a boa resposta ao tratamento. Ou mesmo transferi-lo de imediato para um hospital com carta de referenciação, o que não sucedeu na consulta de 27 de Abril. E ainda, na terceira consulta, apesar de ser correcto a transferência para o Hospital, era dispensável ter de passar pela médica de família, deixando os aspectos burocráticos para depois, dada a gravidade da situação. Conforme o parecer do Colégio de Especialidade da O.M.

17° Não o tendo feito violou um dever específico de prestar tais acções, por ser as únicas formas possíveis de afastar tal perigo e por ter condições e conhecimentos necessários para o efeito.

18° Desta forma o Arguido representou o perigo de lesão grave da integridade física do ofendido, assistente, tinha consciência da indispensabilidade e da adequação daqueles cuidados médicos que devia ter prestado e omitiu e, desta forma, violou o dever que lhe incumbia de proceder de imediato de acordo com aquele parecer e de assim, prestar a concreta assistência médica que se lhe impunha de acordo com o conjunto de regras recomendadas pela ciência e técnicas médicas, e, não obstante isso, conformou-se com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença perante a situação.”