Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2083/17.5T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO ESTRADAL;
INIBIÇÃO DE CONDUZIR;
PESSOA COLECTIVA;
TRANSMISSÃO DO VEÍCULO
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 147.º, N.º 3, E 182.º, N.º 3, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário:
A circunstância de a entidade (pessoa colectiva) responsável pela prática de contra-ordenação grave ou muito grave prevista no Código da Estrada ter transmitido, após a verificação da infracção, a propriedade do veículo utilizado na ocorrência do evento não tem qualquer eficácia sobre o cumprimento da sanção acessória prevista no artigo 147.º, n.º 3, e 182.º, n.º 3, alínea b), do referido diploma legal.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

No Juízo Local Criminal de Alcobaça, da Comarca de Leiria, nos autos recurso de contra-ordenação que aí correram termos sob o nº 2083/17.5T8ACB, a arguida AA viu ser julgada improcedente a impugnação judicial que deduzira, sendo decidido manter inalterada a decisão administrativa proferida em 09-07-2015 pela A.N.S.R. (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária) que a havia condenado pela prática, em 26-09-2014, a título negligente, de uma contra-ordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 27.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 2.º, 138.º, e 145.º, n.º 1, alínea c), todos do Código da Estrada, numa coima de € 180,00 (cento e oitenta euros) e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, substituída por apreensão do veículo por idêntico período, uma vez que se trata de pessoa colectiva (artigo 147.º, n.º 3).
Entretanto, a fls. 59 veio a arguida alegar que o veículo automóvel com a matrícula --, cuja apreensão foi ordenada, foi entretanto por si vendido, conforme cópia de um denominado «Contrato de Compra de Veículo Usado» que junta, em razão do que requer a substituição da entrega dos respectivos documentos pela entrega dos respeitantes ao veículo, de sua propriedade, com a matrícula --.
A fls. 62 o Ministério Público declarou nada opor ao requerido, desde que se confirme na base de dados do registo automóvel que o veículo com matrícula -- pertence à sociedade arguida.
Tal confirmação foi oficiosamente levada a cabo pela secção a fls. 64, de onde se alcança que a propriedade do identificado veículo com matrícula -- está efectivamente registada a favor da sociedade arguida.

Na sequência, foi proferido o despacho de fls. 65 a 67, do seguinte teor integral:

Por sentença transitada em julgado em 06-11-2017, foi julgada totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade «AA.» e, em consequência, decidido manter inalterada a decisão administrativa proferida em 09-07-2015 pela A.N.S.R. (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária) que a havia condenado pela prática, em 26-09-2014, a título negligente, de uma contra-ordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 27.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 2.º, 138.º, e 145.º, n.º 1, alínea c), todos do Código da Estrada, numa coima de € 180,00 (cento e oitenta euros) e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, substituída por apreensão do veículo por idêntico período, uma vez que se trata de pessoa colectiva (artigo 147.º, n.º 3).
Entretanto, a fls. 59 (ref.ª 4326640), veio a arguida alegar que o veículo automóvel com a matrícula --, cuja apreensão foi ordenada, foi entretanto por si vendido, conforme cópia de um denominado «Contrato de Compra de Veículo Usado» que junta, em razão do que requer a substituição da entrega dos respectivos documentos pela entrega dos respeitantes ao veículo, de sua propriedade, com a matrícula --.
A fls. 62 (ref.ª 86659346) o Ministério Público exarou promoção no sentido de nada a opor ao requerido, desde que se confirme na base de dados do registo automóvel que o veículo com matrícula -- pertence à sociedade arguida.
Tal confirmação foi oficiosamente levada a cabo pela secção a fls. 64, de onde se alcança que a propriedade do identificado veículo com matrícula -- está efectivamente registada a favor da sociedade arguida.
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Decidindo:
À luz do disposto no já citado artigo 147.º, n.º 3, do Código da Estrada, se, como é caso dos autos, «a responsabilidade for imputada a pessoa singular não habilitada com título de condução ou a pessoa coletiva, a sanção de inibição de conduzir é substituída por apreensão do veículo por período idêntico de tempo que àquela caberia».
Por outro lado, de acordo com o artigo 182.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma, o cumprimento da sanção acessória deve ser iniciado, «[t]ratando-se de apreensão do veículo, pela sua entrega efetiva, bem como do documento que o identifica e do título de registo de propriedade e livrete do veículo, no local indicado na decisão, ou só pela entrega dos referidos documentos quando o titular do documento de identificação for nomeado seu fiel depositário».
Ora, tal como se faz notar no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-05-2017 (disponível em www.dgsi.pt sob Processo n.º 99/16.8T8TBU.C1), «a aplicação da sanção acessória ao respectivo responsável reporta-se sempre ao momento da prática da respectiva contra-ordenação grave ou muito grave, sendo por isso independente da circunstância de, posteriormente à sua prática, o responsável transmitir, por qualquer título, a propriedade ou a posse do veículo.
Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2-05-2007, “ao decretar a apreensão de um veículo automóvel em substituição da sanção de inibição da faculdade de conduzir, tratando-se de pessoas colectivas, o direito mais não faz do que sancionar aquelas pessoas, no caso a recorrente, proprietária do veículo à data da prática da infracção. Se, entretanto, a pessoa colectiva (ou a pessoa singular não habilitada com título de condução) transmitir, por qualquer título, a propriedade do veículo, fá-lo por sua conta e risco, sendo o facto absolutamente irrelevante para efeitos da extinção de responsabilidade contra-ordenacional ou da sanção acessória aplicada. Ela continua a ser responsável pela infracção cometida e, por isso, o veículo deve ser apreendido. E será, obviamente, responsável pelos prejuízos causados a terceiros, a que tiver dado causa. Só assim se cumpre a lei.” (relator Des. Cruz Bucho, in Coletânea de Jurisprudência, 2007, Tomo III, p. 291)».
Aderindo-se, sem hesitar, ao entendimento assim plasmado, não há como deixar de concluir, sem necessidade de outros considerandos, pelo indeferimento da pretensão em análise.
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Posto o que precede, decido indeferir o requerimento de fls. 59 (ref.ª 4326640) e, consequentemente, determinar que a arguida, no prazo máximo de 15 (quinze) dias, e de acordo com o que consta do penúltimo parágrafo da decisão administrativa confirmada pela sentença proferida nos autos, proceda, sob pena da prática do crime de desobediência, à entrega dos documentos de identificação e título de registo de propriedade do veículo automóvel com a matrícula --.
Notifique.

Inconformada, a arguida interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
1. Por sentença proferida pelo Tribunal a quo, em 22 de Outubro de 2017, foi confirmada a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que condenou a Arguida, aqui Recorrente, pela prática, a título negligente, de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 27º, nºs 1 e 2, a), 2º, 138º e 145º, nº 1, c), todos do código da Estrada, numa coima de €180,00 (cento e oitenta euros) e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, substituída pela apreensão do veículo automóvel com a matrícula -- por idêntico período, por tratar-se de pessoa colectiva.
2. A Arguida, ora Recorrente, vendeu o veículo automóvel com a matrícula -- em 3 de Julho de 2017.
3. Dada a impossibilidade de entregar a documentação deste veículo, a Arguida, ora Recorrente, requereu ao Tribunal a quo que a autorizasse a entregar a documentação do veículo automóvel --, em substituição da documentação do veículo automóvel com a matrícula --, uma vez que este último já não era da sua propriedade.
4. O Tribunal a quo indeferiu o pedido da Arguida, aqui Recorrente, nos termos do despacho de 21 de Dezembro de 2017, objecto do presente recurso.
5. O despacho recorrido fez uma incorrecta aplicação da lei e do direito, uma vez que ignorou totalmente o facto de existir uma impossibilidade objectiva e definitiva de entrega dos documentos do veículo -- por parte da Arguida, e, consequentemente, uma impossibilidade objectiva e definitiva de cumprimento pela Arguida da sentença nos termos em que a mesma foi proferida.
6. O Tribunal a quo, ao indeferir a substituição do veículo objecto de apreensão conforme requerido pela Arguida, optou por uma decisão de cumprimento impossível.
7. A fundamentação do despacho recorrido, no Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Maio de 2017 e no Acordão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de Maio de 2007, não é aplicável ao caso dos autos, porquanto do deferimento do requerido pela aqui Recorrente nunca resultaria a ineficácia da lei ou a sua impunidade.
8. A Arguida não pediu ao Tribunal a quo que a sanção acessória de apreensão de veículo que lhe foi aplicada fosse suspensa ou que, de qualquer forma, deixasse de lhe ser aplicada.
9. A Arguida, aqui Recorrente, apenas requereu que, ao invés de ser apreendido o veículo --, o qual, reafirma-se, já não se encontra na sua posse, fosse apreendido o veículo --, da sua propriedade.
10. Com o que seriam totalmente conseguidos os propósitos preventivos e punitivos da lei, designadamente dos artigos 27º, nºs 1 e 2, b), 2º, 138º e 145º, nº 1, c), todos do Código da Estrada.
11. Em razão do que o despacho recorrido não fez uma correcta aplicação da lei.
12. Acrescem ainda motivos de justiça e verdade material a favor da tese da Recorrente.
13. A Arguida, aqui Recorrente, ao contrário do que parece pretender fazer crer o despacho recorrido, não tentou, em nenhum momento, furtar-se ao cumprimento da sanção acessória que lhe foi aplicada nos termos da sentença judicial proferida em 22 de Outubro de 2017.
14. A Arguida apenas requereu ao Tribunal a quo a substituição do veículo automóvel objecto da sanção de apreensão decretada, por forma a que a referida sentença produzisse os seus efeitos.
15. E tanto assim foi que o próprio Ministério Público não se opôs à pretensão da Arguida.
16. A Arguida apenas quis evitar o incumprimento de uma sentença que, como bem sabe o Tribunal a quo, a Arguida encontra-se objectivamente impossibilitada de cumprir.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-se o mesmo por outro que autorize a Arguida a proceder à entrega às autoridades competentes da documentação de veículo automóvel que seja da sua propriedade à data desse mesmo acto, permitindo-se, deste modo, à Arguida dar integral cumprimento à sentença proferida em 22 de Outubro de 2017, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
Respondeu o MP, retirando dessa sua peça a seguinte conclusão:
Pelo exposto, Ministério Público junto do tribunal a quo considera que o recurso interposto merece provimento, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a apreensão do veículo com matrícula --, propriedade da recorrente AA.
Nesta Relação, o Il.mo PGA apôs o seu «visto».
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:
Analisadas as conclusões que a recorrente retira da motivação do seu recurso, logo se constata que é essencialmente uma a questão que, através delas, coloca à nossa apreciação:
- se a transmissão da propriedade do veículo cuja apreensão foi ordenada nos termos do disposto no artº 147º, 3, do CE determina uma impossibilidade definitiva da efectivação da mesma apreensão, possibilitando assim a apreensão de um outro veículo pertencente à arguida.
Pretende a recorrente que sim, no que é acompanhada pelo MP em primeira instância; já o despacho recorrido, apoiando-se na jurisprudência que cita, tem entendimento contrário.
Nos termos do referido artigo 147.º, n.º 3, do Código da Estrada, se «a responsabilidade for imputada a pessoa singular não habilitada com título de condução ou a pessoa colectiva, a sanção de inibição de conduzir é substituída por apreensão do veículo por período idêntico de tempo que àquela caberia».
Esta norma deve ser conjugada com o disposto no artigo 182.º, n.º 3, alínea b), do mesmo CE, que determina que o cumprimento da sanção acessória deve ser iniciado, «tratando-se de apreensão do veículo, pela sua entrega efectiva, bem como do documento que o identifica e do título de registo de propriedade e livrete do veículo, no local indicado na decisão, ou só pela entrega dos referidos documentos quando o titular do documento de identificação for nomeado seu fiel depositário».

Pretende o recorrente que face à transmissão da propriedade do veículo se torna definitivamente impossível a efectivação da sua apreensão, razão pela qual esta pode recair sobre um outro veículo que pertença à pessoa colectiva ou à singular não habilitada com licença de condução responsável pela infracção.

Cremos, no entanto que a razão não lhe assiste.

Em primeiro lugar por um argumento literal. É que a norma daquele artº 147.º, n.º 3 do CE se refere à apreensão do veículo usado na prática da infracção e não à apreensão de um qualquer veículo que pertença àquela pessoa responsável. Aliás, tal entendimento é até reforçado pela letra do também referido artº 182º, 3, b), do mesmo CE, que em consonância sistemática com o anteriormente referido, fala em apreensão do veículo.

Depois por um argumento lógico que tem a ver com o bom senso. No caso de a pessoa ou sociedade responsável ser detentor de diversos veículos, não lhe assiste uma qualquer faculdade de optar por indicar aquele veículo que pretende ver apreendido; será apreendido aquele concreto veículo usado no cometimento da infracção. (Na sequência do que vem de dizer-se atente-se na seguinte curiosidade: no nosso caso a infracção foi cometida com uso de um veículo de marca BMW, modelo 530i Berlina (fls. 3 e 60) e o veículo ‘oferecido’ para cumprimento da sanção acessória é da marca SMART, modelo Fortwo (v. fls. 64)).

Idêntica jurisprudência resulta do acórdão desta Relação de Coimbra, de 24-05-2017 (pesquisado em www.dgsi.pt, Processo n.º 99/16.8T8TBU.C1), no qual o ora relator foi adjunto, que concluiu nos seguintes termos:
«Como é sabido, a sanção acessória de inibição de conduzir visa a prevenção especial, através de uma actuação directa sobre o agente da infracção para que no futuro não pratique infracções idênticas e no caso das pessoas colectivas a sanção acessória de apreensão do veículo interveniente na infracção visa evitar que fiquem impunes situações de infracção pelo facto de não ter identificado o condutor e, dessa forma, desincentivar condutas que por essa via pudessem frustrar a finalidade que o legislador visou prosseguir com a inibição de conduzir - (Acórdão TRC de 25-10-2006).
(…)
Ademais, a aplicação da sanção acessória ao respectivo responsável reporta-se sempre ao momento da prática da respectiva contra-ordenação grave ou muito grave, sendo por isso independente da circunstância de, posteriormente à sua prática, o responsável transmitir, por qualquer título, a propriedade ou a posse do veículo.
Neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2-05-2007, “ao decretar a apreensão de um veículo automóvel em substituição da sanção de inibição da faculdade de conduzir, tratando-se de pessoas colectivas, o direito mais não faz do que sancionar aquelas pessoas, no caso a recorrente, proprietária do veículo à data da prática da infracção. Se, entretanto, a pessoa colectiva (ou a pessoa singular não habilitada com título de condução) transmitir, por qualquer título, a propriedade do veículo, fá-lo por sua conta e risco, sendo o facto absolutamente irrelevante para efeitos da extinção de responsabilidade contra-ordenacional ou da sanção acessória aplicada. Ela continua a ser responsável pela infracção cometida e, por isso, o veículo deve ser apreendido. E será, obviamente, responsável pelos prejuízos causados a terceiros, a que tiver dado causa. Só assim se cumpre a lei.” (relator Des. Cruz Bucho, in Coletânea de Jurisprudência, 2007, Tomo III, p. 291)»
Ou seja, revertendo ao caso dos autos, a circunstância de a entidade responsável pela infracção ter entretanto transmitido a propriedade do veículo (poderia até dar-se o caso de essa entidade, após a transmissão, não ser possuidora de um qualquer veículo – assim se livrando das consequências da infracção?!) não tem qualquer eficácia sobre o cumprimento da sanção acessória. A apreensão deve efectivar-se pois que aquela pessoa continua a ser responsável pela infracção cometida, sendo que, nas relações com o adquirente da mesma, se torna também responsável pelos prejuízos que essa apreensão lhe cause.

Termos em que se acorda nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o douto despacho recorrido.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC’s.

Coimbra, 8 de Maio de 2018

Jorge França (relator)
Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)