Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
12/14.7TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
UNIÃO DE FACTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
DIREITO À RESTITUIÇÃO
PRESCRIÇÃO DO DIREITO
Data do Acordão: 10/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J5
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 639º E 640º DO NCPC; 482º C. CIVIL.
Sumário: I- Em caso de recurso com impugnação da decisão sobre a matéria de facto e sob cominação da rejeição do mesmo sem recurso a convite ao suprimento, o recorrente deve delimitar nas conclusões o âmbito fáctico do recurso, por indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados (arts. 639º/1 e 640º/1/a do NCPC), além de que nas alegações o recorrente deve também delimitar: a) o objectivo recursório visado, por indicação da decisão que deve ser proferida em substituição da impugnada e quanto a cada ponto de facto que se considere incorrectamente julgado (arts. 639º/1 e 640º/1/c do NCPC); b) o âmbito probatório do recurso, por indicação dos concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida e, no caso de prova gravada, das concretas passagens da gravação a analisar pelo tribunal de recurso (arts. 639º/1 e 640º/1/b/2 do NCPC).

II- A delimitação do âmbito probatório do recurso em caso de reapreciação da prova gravada deve ser feita preferencialmente por referência à numeração temporal do registo áudio de cada um dos concretos excertos que se invoquem como fundamento da discordância, com identificação da hora, dos minutos e dos segundos de início e de fim de cada uma dessas passagens da gravação, embora se admita que também possa ser feita pela transcrição desses concretos excertos em termos de ficar claro para o tribunal de recurso quais as concretas partes de que depoimentos devem ser ponderadas e analisadas na reapreciação da matéria de facto.

III- Não satisfaz a exigência referida em II) o recorrente que invoca como suporte probatório da sua divergência um conjunto diversificado de depoimentos prestados na audiência de julgamento, oferecendo a totalidade de cada um desses depoimentos constante dos ficheiros fonográficos em que foram gravados, e procedendo em seguida a resumos de cada um dos depoimentos, da sua própria autoria e sem qualquer garantia de que os mesmos reproduzam com fidedignidade os depoimentos assim retratados.

IV- Tendo uma casa sido construída com o esforço comum de pessoas que viviam em união de facto, cessando esta e ficando aquela casa a pertencer apenas a um dos ex-companheiros, tem o outro direito a ser compensado do seu esforço para aquele construção por via do instituto do enriquecimento sem causa.

V- O prazo de prescrição de três anos do direito à restituição por enriquecimento começa a contar do momento em que o empobrecido teve conhecimento fáctico (não jurídico) dos elementos constitutivos do seu direito, ou seja, em situações do tipo das relatadas em IV), no momento da cessação da união de facto.

Decisão Texto Integral:






Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra o réu a presente acção declarativa sob a forma comum, deduzindo os seguintes pedidos:

Nestes termos e nos melhores de direito e com muito douto suprimento de V. Exa., requer-se que a presente acção, seja julgada totalmente procedente, por provada, e por via disso:

1) Se reconheça que a Autora é legítima proprietária e possuidora do imóvel identificado no artigo 9º desta p.i., por o negócio que resultou na venda celebrada entre Autora e Réu, na escritura de 26.01.1994, no Segundo Cartório Notarial de ..., exarada a fls. , estar viciado por erro na declaração negocial - simulação, nos termos do disposto no artigo 247º e seguintes do CC;

2) Em consequência, o negócio jurídico celebrado entre Autora e Réu, seja declarado nulo, e de nenhum efeito, nos termos do disposto no artigo 285º e seguintes do CC, bem como todos os atos de registo posteriores, averbando-se tal declaração de nulidade, no local próprio.

3) Se assim não se entender, deverá o Réu ser condenado a pagar à Autora o valor de 13.966,00 €, acrescida dos respetivos juros, pelo valor constante da escritura da venda do imóvel rústico, descrito no artigo 9º desta p.i;

4) Ser ainda o Réu condenado a pagar à Autora metade do valor das benfeitorias implantadas no prédio rústico identificado no artigo 9º desta p.i., e melhor descritas no Artigo 65º, por terem sido construídas com dinheiro fruto de trabalho e economias comuns, conforme quantias referidas nos 71º, 73º e 74º desta p.i.;

5) Custas a cargo do Réu.”.

Como fundamento da sua pretensão, alegou, em resumo, que: viveu com o réu em situação análoga à dos cônjuges desde o dia 10 de Outubro de 1990 até ao dia 7 de Abril de 2006; no dia 26 de Janeiro de 1994 outorgou numa escritura de venda ao réu do prédio inscrito no artigo matricial rústico ... da freguesia de ...; o negócio titulado por essa escritura é inválido, por simulação e por erro na declaração, sendo que o réu não pagou o preço declarado nessa escritura; a autora e o réu construíram nesse prédio, antes de 7/4/2006, com dinheiro proveniente do trabalho de ambos e de economias comuns, com vista a que a mesma fosse a residência do casal em Portugal, uma casa de habitação; em 7/4/2006, cessou a referida situação de união de facto, ficando a casa a pertencer exclusivamente ao réu.

Citado, o réu contestou, pugnando pela improcedência da acção e pela condenação da autora como litigante de má-fé em multa e indemnização, esta última no valor de €5.000.

Alegou, em resumo, que: o negócio de compra e venda impugnado pela autora não padece dos vícios invalidantes por ela arguidos, tendo o réu pago o preço declarado na escritura que titula aquele negócio; a casa de habitação referenciada na petição foi construída exclusivamente com dinheiro pertencente ao réu; prescreveu o direito a que a autora se arroga à restituição das quantias alegadamente despendidas por ela na construção da casa; a autora alega factos que sabe serem falsos.

Respondeu a autora para, em resumo, pugnar pela improcedência da excepção de prescrição e do pedido de condenação da mesma como litigante de má-fé.

Prosseguiram os autos os seus regulares termos, tendo sido prolatada sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

Com os fundamentos expostos julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

- condeno o R. A... a pagar à A M..., por via de enriquecimento do 1º à custa da 2ª, o montante que se apurar em sede de liquidação de sentença ter sido pela A. (dinheiro seu) entregue ao R., para efeitos de construção de uma casa de habitação implantada em terreno do R e que consta do nº3 dos factos provados.

- A condenação não poderá ultrapassar 50% do montante de € 110.000,00.

- No mais absolve-se o R. do pedido.

Custas a cargo da A. em 60% (vencida em mais de metade do pedido) e do R. em 40%

Registe e Notifique.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou o réu, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

A autora também não se conformou com a decisão, tendo interposto recurso subordinado, com as conclusões seguidamente transcritas:

...

A autora também apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação do réu.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

No seu recurso subordinado, despoletando novamente a discussão da matéria de facto descrita nas alíneas a), b), d) e g) dos factos não provados (conclusão 13ª) e peticionando que em via recursiva seja considerada legítima proprietária do imóvel descrito no ponto 3º) dos factos descritos como provados (rústico inscrito na correspondente matriz predial sob o art....), aquele que justamente é descrito no art. 9º da petição e que é objecto do primeiro pedido principal formulado pela autora, esta retoma a temática referente à declaração de nulidade do negócio de compra e venda identificado no art. 6º da petição que é peticionada no segundo pedido principal por ela formulado, com fundamento em erro na declaração negocial e simulação, bem assim como a da titularidade a que se arroga do direito de propriedade incidindo sobre esse imóvel e cujo reconhecimento igualmente peticiona naquele primeiro pedido principal.

A procedência desses dois pedidos principais implicará que não se conheça dos terceiros e quarto pedidos subsidiariamente formulados pela autora, sendo que o recurso principal do réu tem por objecto a decisão recorrida na parte em que esta decretou a procedência parcial deste último pedido subsidiário.

Como assim, da procedência do recurso subordinado da autora decorrerá que fica absolutamente prejudicada qualquer discussão em torno do quarto pedido (subsidiário) deduzido pela autora e cuja parcial procedência constituiu o objecto do recurso principal do réu.

Por consequência, deve começar por conhecer-se do recurso subordinado da autora e só depois deverá conhecer-se, sendo caso disso, do recurso principal do réu.

Tendo em conta o esclarecimento que antecede, e sabendo-se que é pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 - NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) saber se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada nos termos sustentados pela autora;

2ª) saber se a sentença recorrida padece das causas de nulidade que lhe são assacadas pela autora;

3ª) saber se a autora pode ser reconhecida legítima proprietária do imóvel descrito no art. 9º da petição, como consequência da nulidade do negócio de compra e venda identificado no art. 6º do mesmo articulado;

4ª) saber se a casa de habitação que foi implantada no prédio rústico identificado no ponto 3º) dos factos provados foi construída apenas com dinheiro da autora;

5ª) saber se deve conhecer-se do recurso do réu relativo à matéria de facto;

6ª) saber se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada nos termos sustentados pelo réu;

7ª) saber se está prescrito o direito da autora à restituição pelo réu das quantias a ele entregues pela autora para construção da casa de habitação que foi implantada no prédio rústico identificado no ponto 3º) dos factos provados.

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:

...

B) De direito

Primeira questão: saber se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada nos termos sustentados pela autora.

1.1. Começando pelo ponto 11º) dos factos dados como provados, que se pretende ver alterado no sentido de que a casa nele referenciada foi construída apenas com dinheiro da autora, o recurso fáctico não pode proceder.

Refira-se, antes de mais, que são absolutamente inaproveitáveis para efeitos de fundamentarem uma decisão de procedência da pretensão recursiva fáctica que está em apreço, os depoimentos prestados em audiência pela autora e pelo réu.

Com efeito: i) estão em causa depoimentos prestados por pessoas que têm interesse directo no desfecho da acção, por nela serem as únicas partes litigantes; ii) foram prestados de forma absolutamente comprometida com o propósito se fazerem vingar as respectivas posições substantivas no processo; iii) têm conteúdos absolutamente contraditórios entre si, sem razões objectivas que possam descortinar-se no sentido de se optar por valorar um desses depoimentos em detrimento do outro.

Neste enquadramento, não podem reconhecer-se a tais depoimentos as garantias de isenção, objectividade, distanciamento e desinteresse em relação ao objecto da causa, e credibilidade que têm de caracterizar os depoimentos que sejam invocados para fundamentar a convicção expressa numa decisão relativa à matéria de facto, seja na sua dimensão positiva, seja na negativa.

A testemunha ... nada soube ...

A autora não invocou, e este tribunal não divisou, outros meios de prova que pudessem suportar a pretensão recursiva fáctica que ora está em apreço.

1.2. No que toca aos factos enunciados nas alíneas a), b), d) e g) dos factos descritos como não provados e que a autora pretende ver dados como provados, é manifesta a improcedência da pretensão recursiva da autora.

...

Os depoimentos da autora e do réu não podem ser atendidos, pelas mesmas razões que o não puderam ser no âmbito do ponto 1.1 desta primeira questão.

A tudo acresce, agora só em relação à alínea g), que na escritura púbica ora impugnada, a autora declarou perante notário que já tinha recebido o preço da venda, ficando assim plenamente provado a realização de tal pagamento, por estar em causa uma declaração confessória por parte da autora que implica o reconhecimento perante o réu de um facto que é desfavorável à primeira (arts. 352º, 355º, nºs 1 e 4, e 358º, nº 2, do CC), sem que dos autos resulte minimamente qualquer circunstância susceptível de inquinar, sequer indiciariamente, a autenticidade substantiva daquela declaração confessória (v.g.. demonstração directa da falsidade da realidade material confessada; existência de um princípio de prova por escrito suficientemente verosímil no sentido dessa falsidade; confissão do réu no sentido dessa mesma falsidade).

Em face do que vem de referir-se, não pode proceder a pretensão da autora que ora está em apreço.

1.3. Improcede, pois, o recurso da autora incidindo sobre a matéria de facto.

Segunda questão: saber se a sentença recorrida padece das causas de nulidade que lhe são assacadas pela autora.

Lida a sentença recorrida, verifica-se, antes de mais, que nela foram identificadas as questões que deveriam ser abordadas e decididas: “Do erro na celebração do contrato de compra e venda efectuado entre A e R e suas consequências.

Do não pagamento do preço pelo R relativo ao contrato de compra e venda e suas consequências (pedido subsidiário)

Da condenação do R a pagar à A. o valor das benfeitorias implantadas no prédio rústico vendido pela 2ª ao 1º em virtude de a casa de habitação ai construída o ter sido com dinheiro de A e R e eventual prescrição do direito

Da má-fé da A.”.

Lidos os articulados, verifica-se que são essas realmente as únicas questões que foram suscitadas pelas partes, não se divisando outras a que devesse estender-se a actividade cognitiva e decisória do tribunal recorrido, sendo que a autora também não identifica nenhuma outra concreta questão desse tipo.

Em seguida o tribunal recorrido enunciou os factos provados e não provados (fls. 180 a 182) e fundamentou a sua convicção que a tanto esteve subjacente (fls. 182 a 187).

Depois, no âmbito da apreciação de cada uma das questões a decidir que identificou e conhecendo de todas elas, o tribunal recorrido enunciou o enquadramento jurídico a que aquela factualidade deveria ser subsumida (arts. 240º a 243º, 247º, 249º, 251º, 252º, 286º, 287º, 216º, 473º, 482º, do CC; 358º e 542º do NCPC), concluindo sucessivamente e a propósito de cada uma dessas questões que: a escritura de compra e venda impugnada pela autora não padecia dos vícios invalidantes invocados como fundamento da impugnação; a autora não tinha direito a cobrar do réu o preço declarado na escritura como já tendo sido recebido; a autora contribuiu para a edificação de uma casa que hoje pertence apenas ao réu, estando o património do réu injustificadamente enriquecido à custa de reflexo empobrecimento do património da autora, razão pela qual o réu deve restituir à autora o montante por esta despendido naquela edificação, quantitativamente indeterminado em face dos factos provados, não estando prescrito tal direito da autora, mas que não poderia exceder os 50% de 110.000,00 peticionados pela autora no seu quarto pedido subsidiário, conjugado com o requerimento de fls. 146/147.

Concordantemente com o assim sustentado, decidiu o tribunal recorrido o seguinte: “Com os fundamentos expostos, julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:

- condeno o R. A... a pagar à A M..., por via de enriquecimento do 1º à custa da 2ª, o montante que se apurar em sede de liquidação de sentença ter sido pela A. (dinheiro seu) entregue ao R., para efeitos de construção de uma casa de habitação implantada em terreno do R e que consta do nº3 dos factos provados.

- A condenação não poderá ultrapassar 50% do montante de € 110.000,00.

- No mais absolve-se o R. do pedido.

Custas a cargo da A. em 60% (vencida em mais de metade do pedido) e do R. em 40%”.

Neste contexto, não se percebe minimamente onde a decisão recorrida possa ter incorrido nas causas de nulidade invocadas pela autora: não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (art. 615º/1/b do NCPC); contradição entre fundamentos e a decisão ou ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art. 615º/1/c do NCPC); o tribunal recorrido ter deixado de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento (art. 615º/1/d do NCPC).

Improcede, pois, a arguição de nulidades em apreço.

Terceira questão: saber se a autora pode ser reconhecida legítima proprietária do imóvel descrito no art. 9º da petição, como consequência da nulidade do negócio de compra e venda identificado no art. 6º do mesmo articulado.

A resposta afirmativa a esta questão dependia prévia e necessariamente da procedência da pretensão recursiva fáctica da autora no sentido da alteração do descrito nas alíneas a), b), c) e g) dos factos enunciados como provados.

Tendo improcedido esta pretensão recursiva fáctica, prejudicada fica a possibilidade de se responder afirmativamente a esta questão e, reflexamente, de se acolher as pretensões constantes dos dois primeiros pedidos principais da autora.

Quarta questão: saber se a casa de habitação que foi implantada no prédio rústico identificado no ponto 3º) dos factos provados foi construída apenas com dinheiro da autora.

A resposta afirmativa a esta questão dependia prévia e necessariamente da procedência da pretensão recursiva fáctica da autora no sentido da alteração do descrito no ponto 11º) dos factos enunciados como provados.

Tendo improcedido esta pretensão recursiva fáctica, prejudicada fica a possibilidade de se responder afirmativamente a esta questão e, reflexamente, de ser reconhecido à autora, em maior amplitude do que realmente o foi, o direito à restituição por parte do réu de montantes pecuniários por ela disponibilizados para a edificação da casa descrita no ponto 3º dos factos descritos como provados.

Quinta questão: saber se deve conhecer-se do recurso do réu relativo à matéria de facto.

5.1. Cumpre referir que a questão em análise se suscita em relação ao segmento do recurso fáctico do réu em que se pretende: i) a alteração da redacção do ponto 11º) dos factos descritos como provados, passando a constar do mesmo que “A casa a que se alude em 4 e se refere em 5, construída em período não concretamente determinado, mas iniciada após a data referida em 2 e concluída em Julho 2001 (caderneta predial urbana junta pela A. na sua D.p.i. como Doc. 6) foi feita apenas com dinheiro do R.”; ii) se acrescente à matéria descrita como provada um novo ponto segundo o qual "a A. quer no ano de 2001 (data da conclusão das obras) quer nos anos seguintes de 2002 a 2009 sempre teve conhecimento de que a construção da casa do R. estava concluída e consequentemente do alegado enriquecimento deste.”.

São três, pois, os segmentos fácticos que o réu pretende ver declarados como provados: i) conclusão em Julho de 2001 da construção da casa referida no ponto 4º dos factos provados; ii) construção dessa casa com recurso exclusivo a dinheiro pertencente ao réu; iii) conhecimento pela autora, a partir do ano de 2001 e nos anos subsequentes, da conclusão da construção da casa no primeiro desses anos.

5.2. Nos termos do art. 639º/1 do NCPC, “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”.

Prescreve o art. 640º/1 do NCPC “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”.

No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;” – art. 640º/2/a NCPC.

Resulta daquele primeiro normativo a imposição ao recorrente de dois ónus, a saber: 1º) o de alegar; 2º) o de formular conclusões.

Assim, com vista à satisfação daquele primeiro ónus, o recorrente deve apresentar a alegação onde: a) expõe os motivos e argumentos da sua impugnação, explicitando as razões pelas quais considera que a decisão está errada ou é injusta, seja do ponto de vista da apreciação da prova produzida e do julgamento da matéria de facto levada a efeito com base nela, seja do ponto de vista da interpretação e da aplicação do direito aos factos que devem considerar-se provados; b) enuncia o objectivo que visa alcançar com o recurso.

Por seu turno, para satisfação do segundo dos enunciados ónus, o recorrente deve terminar a sua minuta com a formulação de conclusões, por via das quais deve indicar resumidamente, através de proposições sintéticas, os fundamentos, de facto e/ou de direito, com base nos quais pede a alteração ou anulação da decisão – as conclusões são, assim, proposições onde se sumaria a exposição analítica do corpo das alegações.

Assim, em caso de recurso com impugnação da decisão sobre a matéria de facto e uma vez que também nesse domínio são as conclusões que delimitam o seu âmbito, delas têm de constar proposições que delimitem o seu objecto, fixando, pelo menos, o âmbito fáctico do recurso, por indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados (arts. 639º/1 e 640º/1/a do NCPC).

Por outro lado, pelo menos no corpo das alegações – sem prejuízo de também o poder fazer nas conclusões – o recorrente deve também delimitar: a) o objectivo recursório visado, por indicação da decisão que deve ser proferida em substituição da impugnada e quanto a cada ponto de facto que se considere incorrectamente julgado (arts. 639º/1 e 640º/1/c do NCPC); b) o âmbito probatório do recurso, por indicação dos concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida e, no caso de prova gravada, das concretas passagens da gravação a analisar pelo tribunal de recurso (arts. 639º/1 e 640º/1/b/2 do NCPC)[1].

Finalmente, o recorrente fáctico deve, também, proceder a uma apreciação crítica dos elementos que prova que invoca em benefício da sua pretensão recursiva, apresentando as concretas razões pelas quais desses meios de prova se impunha retirar conclusões fácticas diversas daquelas a que chegou o tribunal recorrido, sendo que no domínio da prova testemunhal essa apreciação crítica não se basta com a invocação de alguns depoimentos e com a mera transcrição dos mesmos[2].

Caso o recorrente não satisfaça as exigências enunciadas nos três antecedentes parágrafos ficam por preencher os requisitos de admissibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto legalmente enunciados e cuja inobservância é cominada com a imediata rejeição do recurso, sem possibilidade de convite ao suprimento (art. 640º/1/2/a do NCPC).

Importa reter, igualmente, que para lá do delimitado pelas conclusões não é lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo se se tratar de questões de conhecimento oficioso que não tenham já sido decididas com trânsito em julgado.

Por outro lado, como ensina Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código do Processo Civil, 2013, pp. 128 e 129), pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1ª instância e dirigindo ele uma pretensão a um Tribunal que não intermediou a produção da prova, é antes compreensível “(…) uma maior exigência (…), sem possibilidade de paliativos (…)”, importando “(…) observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”.

Assim, naquelas situações, como a que ocorre nestes autos, de terem sido gravados os meios probatórios invocados como fundamentos do recurso e de ser possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, o recorrente tem de indicar, com exactidão, pelo menos nas alegações, as concretas partes dos depoimentos testemunhais em que se funda a divergência recursiva fáctica.

Tal indicação deve ser feita preferencialmente por referência à numeração temporal do registo áudio de cada um dos concretos excertos que se invoquem como fundamento da discordância, com identificação da hora, dos minutos e dos segundos de início e de fim de cada uma dessas passagens da gravação, embora se admita que também possa ser feita pela transcrição desses concretos excertos em termos de ficar claro para o tribunal de recurso quais as concretas partes de que depoimentos devem ser ponderadas e analisadas na reapreciação da matéria de facto, tudo sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto.

Assim, conjugando as exigências legais referentes ao ónus de alegar e formular conclusões com as exigências enunciadas no art. 640º/1/2 do NCPC relativamente ao recurso incidindo sobre a matéria de facto, facilmente se depreende que nas conclusões do recurso o recorrente também tem de identificar, ainda que de modo sumário, os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, devendo pelo menos no corpo das alegações identificar e analisar criticamente os meios de prova com base nos quais deve ser alterada a decisão impugnada, bem como indicar o sentido alternativo em que o julgamento da matéria impugnada deveria ter sido efectuado, sendo que no caso de estarem em causa depoimentos gravados, devem igualmente constar pelo menos das alegações, por imposição dos arts. 639º/1 e 640º/2/a do NCPC, com exactidão, os depoimentos e as correspondentes passagens das gravações em que o recorrente funda o seu recurso.

Neste sentido se pronuncia, na doutrina, Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 126), ao sustentar que “Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;”, acrescentando que “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:

(…)

b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;

(…)

d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda” – p. 128.

No mesmo sentido se têm pronunciado os nossos tribunais superiores, como facilmente se depreende, apenas a título de exemplo, das seguintes decisões: acórdãos do STJ de 19/2/2015, proferido no âmbito da revista 299/05.6TBMGD.P2.S1, e de 4/3/2015, proferido no âmbito da revista 2180/09.0TTLSB.L1.S2; acórdão da Relação do Porto de 15/9/2014, proferido no âmbito da apelação 11/10.8TBGDM.P1; acórdão da Relação do Porto de 16/6/2014, proferido no âmbito da apelação 378/12.3TTLMG.P1; acórdão da Relação do Porto de 3/6/2014, proferido no âmbito da apelação 2438/11.9TBOAZ.P1; acórdão da Relação de Guimarães de 13/10/2014, proferido no âmbito da apelação 2149/12.8TBVCT.G1; acórdão da Relação de Lisboa de 12/2/2014, proferido no âmbito da apelação 26/10.6TTBRR.L1-4; acórdão da Relação de Lisboa de 13/3/2014, proferido no âmbito da apelação 569/12.7TVLSB.L1-6; acórdão da Relação de Lisboa de 3/9/2013, proferido no âmbito da apelação 1084/10.9TVLSB.L1-1; acórdão da Relação de Coimbra de 8/5/2012, proferido no âmbito da apelação 695/09.0TBMGR.C1; acórdão da Relação de Coimbra de 20/3/2012, proferido no âmbito da apelação 21/09.8TBSRE.C1; acórdão da Relação de Évora de 7/12/2012, proferido no âmbito da apelação 614/11.3TTPTM.E1; acórdão da Relação de Coimbra de 10/2/2015, proferido no âmbito da apelação 2466/11.4TBFIG.C1; acórdão da Relação de Lisboa de 15/4/2015, proferido no âmbito da apelação 164/10.5TTCLD.L2.

Volvendo ao caso em apreço e aplicando-lhe quanto vem de referir-se, é forçoso concluir no sentido de que deve ser rejeitado o recurso do réu incidindo sobre a matéria de facto, na parte em que se invoca como fundamento dessa pretensão prova oral prestada no decurso da audiência de julgamento.

Na verdade, em relação a esse específico segmento do recurso fáctico com esse fundamento, o recorrente não delimita o âmbito probatório do recurso, por indicação das concretas passagens da gravação a analisar pelo tribunal de recurso, que deve ser feita nos termos acima enunciados.

Com efeito, nas alegações o recorrente invoca como suporte probatório da sua divergência um conjunto diversificado de depoimentos prestados na audiência de julgamento, oferecendo a totalidade de cada um desses depoimentos constante dos ficheiros fonográficos em que foram gravados, e procedendo em seguida a resumos de cada um dos depoimentos, da sua própria autoria e sem qualquer garantia de que os mesmos reproduzam com fidedignidade os depoimentos assim retratados.

Exemplificando, o réu oferece o depoimento de “...” – está em causa a totalidade desse depoimento, desde a identificação da testemunha e seu juramento até que a mesma foi dispensada, como facilmente se depreende da audição integral a que se procedeu do ficheiro 20160108103550_3648904_2870942.wma.

Em seguida, o réu resume esse depoimento do seguinte modo: “É cunhado da A. O marido é irmão da A. Conhece A. e R., sabendo que viveram juntos perto de 20 anos; eles viviam lá (França) num restaurante que tinham. Esteve na escritura de partilha; não viu dinheiro nenhum a ser entregue; foi tudo feito em leilão, a solicitadora entregou as contas do que cada um, tinha que dar das tornas que cada um tinha comprado; O marido é que era herdeiro; alguém disse que havia ali uma coisa incorrecta porque a que tinha sido combinada era a minha cunhada ficar com um dos terrenos que foi comprado pelos dois no dia dos leilões de todos os terrenos, eu estive presente, e a minha cunhada licitou esse terreno onde está agora a ser construída uma casa e esse terreno onde eles os dois têm a casa em comum; onde eles viveram os dois; O sr. A... comprou o terreno à ... porque certamente queria construir a casa no nome dele; eles na altura estavam a dizer que ficas com este e eu com aquele; cada um ficou com um terreno; na altura pensaram então tu ficas com um terreno e eu com outro. No outro terreno a A. fez uma casa para ela. Quando estavam de férias em Portugal era nessa casa (feita pelos dois) que sempre ficavam. A solicitadora disse então podem sair todos porque A. e R. têm de ficar para fazer a escritura que ainda não estava feita. Ela licitou no terreno onde ela tem a casa e ficou com ele; ele (R.) licitou no terreno onde foi feita a casa e ficou com ele; não há dúvida nenhuma que foi ele (R.) que comprou o terreno para ela; Ela é que era sócia do restaurante e ele empregado dela; Que os muros onde está o restaurante e os apartamentos em cima foram comprados em comum pelo dois; depois de se separarem ela teve de lhe pagar a metade dele.”.

E foi este o procedimento que igualmente adoptou em relação aos depoimentos prestados por ...

Assim, o recorrente não indica com exactidão, seja através da sua precisa delimitação temporal, seja através da correspondente transcrição, as concretas passagens das gravações em que funda a sua discordância, limitando-se a oferecer a totalidade desses depoimentos e resumos que dos mesmos fez, o que, como visto, não equivale à exacta delimitação legalmente exigida, nem a substituiu, ficando o tribunal de recurso com o ónus de ler ou ouvir a integralidade daqueles depoimentos e de seleccionar, por referência a três concretos pontos de facto supra enunciados em 5.1, quais os excertos dos mesmos que devem ser ponderados na reapreciação daqueles três concretos pontos.

Resulta do antecedentemente exposto que o recorrente não preencheu, também nas conclusões onde facultativamente o poderia ter feito, mas principalmente no corpo das alegações onde estava obrigada a fazê-lo, um dos requisitos de impugnação da decisão sobre a matéria de facto legalmente enunciados (art. 640º/1/2/a do NCPC), qual seja o da rigorosa delimitação do objecto do recurso no que ao seu âmbito probatório respeita, na parte em esse âmbito probatório respeita a prova oral produzida na audiência de julgamento.

Consequentemente, tal como sustentando por aquele autor (obra citada, pp. 127 e 128) e naquelas decisões supra citadas, em consonância com o cominado no art. 640º/1/2/a do NCPC, o recurso fáctico deve ser imediatamente rejeitado, sem qualquer possibilidade de qualquer espécie de convite ao aperfeiçoamento tendente a suprir os vícios em questão, na parte em que o mesmo visava a reapreciação de prova gravada.

5.3. Essa rejeição estende-se à parte do recurso que tinha por fundamento prova documental a apreciar a propósito dos três concretos pontos factivos identificados supra (5.1).

Com efeito, está em causa prova documental que deveria ser apreciada conjugadamente com a prova oral também invocada pelo recorrente a respeito dos pontos da matéria de facto relativamente aos quais foi manifestada divergência recursiva – é o que claramente se depreende, apenas a título de exemplo, dos seguintes segmentos do recurso do réu: “… analisemos então os depoimentos prestados pelo R., A. e testemunhas na audiência de julgamento, conjugando-os com o conteúdo dos documentos juntos aos autos”;Analisados atentamente os depoimentos prestados por A. e R. e testemunhas, conjugados com o conteúdo dos documentos juntos aos autos, … padece a D.decisão da matéria fáctica… de erro notório da apreciação da prova e contradição insanável de fundamentação, razão porque a tais factos impunha dar-se a seguinte redacção:”;.

Assim sendo, estando em causa uma reapreciação conjunta dos meios de prova oral e documental invocados a esse específico respeito e não estando a prova documental invocada dotada de especial força probatória em relação à matéria de facto em discussão[3], rejeitado o recurso na parte em que o mesmo tem por fundamento prova oral, tal rejeição deve estender-se à parte do mesmo que tem por objecto prova documental conjuntamente invocada com a oral, já que nos próprios termos da divergência recursiva seria uma apreciação conjunta desses meios de prova que justificaria uma alteração da decisão impugnada, não sendo por isso viável um apreciação segmentada de qualquer desses meios de prova.

5.4. Ex Abundanti Cautela, diremos, ainda, que a rejeição do recurso fáctico do réu sempre teria de ser decidida em relação aos seguintes aspectos identificados em 5.1: i) conclusão em Julho de 2001 da construção da casa referida no ponto 4º dos factos provados; …; iii) conhecimento pela autora, a partir do ano de 2001 e nos anos subsequentes, da conclusão da construção aa casa no primeiro desses anos.

Com efeito, trata-se de matéria de facto com base na qual o réu pretende ver reconhecida a prescrição do direito da autora obter a restituição, por enriquecimento sem causa do réu, dos montantes pecuniários aplicados pela autora na construção da casa referida no ponto 4º) dos factos provados.

Nesse enquadramento, aquela matéria de facto é perfeitamente irrelevante para tais efeitos, representando a discussão em torno da (in)demonstração da mesma um acto inútil e proibido por lei (art. 130º NCPC).

Por um lado porque nenhuma das partes coloca em causa que a casa em questão estava já concluída à data em que ocorreu a separação entre a autora e o réu (Abril de 2006), sendo que a autora apenas reclama a restituição de quantias gastas até ao momento da conclusão da casa, não estando em causa nenhuma quantia despendida pela autora em relação à dita edificação em data posterior a Abril de 2006.

Por outro lado, porque o facto gerador do direito reconhecido à autora na sentença recorrida de restituição de determinada quantia pecuniária, por enriquecimento sem causa do réu à custa dela, não radica na conclusão da casa, mas sim na dissolução da união de facto em que ambos viveram até 2006.

Por isso, a prescrição desse direito nunca pode relacionar-se com o conhecimento por parte da autora de que a casa estava concluída desde 2001.

Como infra procurará demonstrar-se, a ter ocorrido, tal prescrição só pode radicar-se no facto de estarem em causa prestações pecuniárias efectuadas pela autora em data anterior Abril de 2006, no pressuposto e expectativa de continuidade irreversível de uma situação de união de facto que existia à data da realização de tais prestações, conjugado com a circunstância daqueles pressuposto e expectativa terem deixado de verificar-se a partir de Abril de 2006, momento em que cessou aquela união.

Como assim, é irrelevante e por isso proibido por lei discutir se a casa estava concluída desde 2001 e se a autora sempre teve conhecimento do momento dessa conclusão, razão pela qual na parte em apreço sempre teria de rejeitar-se o recurso ora em apreço.

6ª) saber se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada nos termos sustentados pelo réu.

6.1. A discussão em torno deste tema ficou prejudicada pela solução dada à 5ª) questão.

6.2. Ex Abundanti Cautela, diremos, ainda, que jamais poderia este tribunal dar como demonstrado, com base na prova produzida e examinada na audiência de julgamento, que a casa referida no ponto 4º) dos factos provados foi construída apenas com dinheiro pertencente ao réu.

Com efeito, se existe prova que nesse sentido se produziu (v.g. declarações de parte do próprio réu e testemunha ...), outra igualmente se produziu em sentido divergente desse (v.g. declarações de parte da autora, e testemunhas ...), sendo que este tribunal não divisa qualquer razão objectivamente sustentável, que o réu também não apresenta a partir de um exame crítico dessa prova que igualmente lhe competia, para acolher a versão sustentada pelo réu em detrimento daquela que foi acolhida pelo tribunal recorrido no uso de uma especial imediação que exclusivamente lhe compete na apreciação e valoração de prova oral produzida perante si.

Assim sendo, sempre teria de prevalecer a versão de facto que a respeito deste tema se enunciou no ponto 11º) dos factos dados como provados.

7ª) saber se está prescrito o direito da autora à restituição pelo réu das quantias a ele entregues pela autora para construção da casa de habitação que foi implantada no prédio rústico identificado no ponto 3º) dos factos provados.

Está em causa nos autos, como decorre dos factos provados, a construção de uma casa, durante o período em que a autora e o réu viveram em união de facto, num terreno pertencente ao réu, a quem igualmente e de modo exclusivo ficou a pertencer tal casa na sequência da ruptura daquela união de facto, tendo a autora e o réu contribuído monetariamente para a construção dessa casa, concluída antes daquela ruptura.

Trata-se, pois, de um bem que integra exclusivamente o património do réu, mas que passou a existir graças ao esforço comum da autora e do réu, enquanto estes viveram em união de facto que, entretanto, cessou.

Pretendo a autora, por assim dizer, a liquidação em valor desse bem adquirido pelo esforço comum, mas que pertence actualmente e de modo exclusivo ao réu, sem que este tenha compensado a autora da sua quota-parte naquele esforço, não estando em causa uma situação de compropriedade e tendo a Lei 41/2013, de 26/06, determinado o fim do Processo Especial de Liquidação Judicial de Sociedades de Facto, estando revogados os arts. 1122º a 1130º do CPC[4], bem andou o tribunal recorrido ao considerar que a pretensão da autora deveria ser enquadrada, quanto à sua (in)viabilidade substantiva, no instituto o enriquecimento sem causa.

De resto, a doutrina e a jurisprudência nacionais têm vindo a reconhecer aos ex-companheiros de facto, justamente com fundamento nesse instituto e uma vez cessada a união de facto, a possibilidade de exigirem o enriquecimento de que um deles beneficiou em prejuízo do outro: na doutrina, podem consultar-se, a título exemplificativo, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Tomo III, 2010, pp. 273 a 275, França Pitão, Uniões de Facto e Economia Comum: de acordo com a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, 2011, pp. 156 a 162; Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, pp. 79 e 80, Pereira Coelho, anotação crítica acórdão do STJ de 20/3/2014, proferido no processo 2152/09.5TBBRG.G1.S1, publicada na RLJ, ano 145º/3995, pp. 109 e segs, Cristina M. A. Dias, anotação ao acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29/9/2004, proferido no processo 1289/04, publicada nos Cadernos de Direito Privado, n.º 11, Jul/Set de 2005, pp. 63 e segs; na jurisprudência, legitimando o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa naquelas situações com contornos semelhantes às destes autos, em que um dos companheiros fica titular exclusivo de um imóvel adquirido com o esforço pecuniário ou em espécie do outro, podem consultar-se, a título de exemplo, acórdãos do STJ de 1/7/1993, proferido no processo 083655, de 15/11/1995, BMJ 451, pp. 387 e ss, de 8/5/1997, CJ do STJ, 1997, T. II, pp. 81/82, de 12/3/2002, proferido no processo 01A4373, de 9/3/2004, CJ do STJ 2004, T. 1, pp. 112 e ss, de 9/3/2010, proferido no processo 680/09.1YFLSB, de 13/04/2010, proferido no processo 6025/05.2TBSXL.L1.S1, de 31/5/2011, proferido no processo 122/09.2TBVFC-A.L1.S1, de 27/9/2011, proferido no processo 3149/06.2TBCSC.L1.S1, de 29/4/2014, proferido no processo 1071/10.7TBABT.E1.S1; acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/1/1999, CJ 1999, T. I, pp. 83 e ss, de 14/4/2005, CJ 2005, T. 2, p. 92 e ss, de 14/11/2006, proferido no processo 8533/2006-7, de 15/11/2011, proferido no processo 2880/05.4TBMTJ.L1-7, de 3/7/2012, proferido no processo 4521/10.9TBOER.L1-1; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/4/2003, CJ 2003, T. II, pp. 242 e ss; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5/3/1998, CJ 98, T. II, pp. 190 e ss.

De referir-se, a respeito, que o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa não exige a alegação e prova explícita de que as deslocações patrimoniais se verificaram no pressuposto, entretanto desaparecido, da continuação e subsistência, querida por ambos os unidos de facto, da vida do casal em condições análogas às dos cônjuges.

Na verdade, tendo aquelas deslocações patrimoniais sido efectuadas no âmbito de uma união de facto, quando esta deixa de existir, deixa de haver a causa que as justificava – cfr. Cristina Dias, nota 52 da anotação acima citada.

Como escreve Pereira Coelho, nas pp. 120, 122 e 123 da sua anotação supra citada: “[…] é nosso juízo que, nesta hipó­tese específica de pagamentos realizados no âmbito de uma relação convivencial, do con­junto de factos em presença, e do significado normal desses pagamentos em relações “conviven­ciais” deste tipo, se pode tirar uma presunção natural de que não houve, por parte do autor, qualquer propósito de operar uma transferência de valor definitiva para a ré, fosse a que título fosse.

[…] na realidade, […] o que é normal, quando um dos companheiros toma, logo no início da sua união, a iniciativa de comprar um apartamento e pagar o respectivo preço – apartamento destinado, justamente, a ser­vir de casa de morada comum -, ficando todavia esse apartamento por qualquer razão em nome da companheira, o que é normal, dizíamos, não é certamente que aquele pretenda realizar uma doação em favor desta, ou uma espécie de doação remunerató­ria pelos encargos que esta virá a suportar durante uma relação que só agora se inicia e cuja duração, por conseguinte, para já é insus­ceptível de previsão exacta. O que é normal, bem pelo contrário, é que, insistimos, o companheiro queira, para já, apenas adquirir a casa que vai servir de morada comum; e, procedendo ele ao pagamento do respectivo preço, que pretenda assumir definitivamente a respectiva propriedade, ou pelo menos que pretenda ser compensado ou restituído pelo preço que pagou em vão, se e quando sobre­vier a necessidade de, em resultado de uma eventual ruptura, se realizar uma liquidação e “partilha” dos bens do “casal”. Se o imóvel ficou agora em nome da companheira, isso dever-se-á a qualquer circunstância pontual […]; e será, em qualquer caso, um pormenor a que os companheiros no momento não atribuirão grande significado, dada a relação de informalidade, “despreocu­pação” e plena confiança que entre eles se estabeleceu. Concluímos pois que, em lugar de valer aqui uma presunção de doação como a que o presente aresto afirma ou pressupõe, o específico quadro de circunstâncias (uma relação convivencial análoga à relação inter­conjugal) aqui em presença aponta, pelo con­trário, para uma presunção (natural) de “não definitividade” da atribuição (indirectamente) realizada pelo autor em favor da ré – uma presunção (natural) de condicionamento, no sentido em que a dita atribuição é querida como condicionada à própria subsistência da relação convivencial de união de facto (52), pelo que julgamos estar aqui provada a “pres­suposição” cuja prova o acórdão, pelo contra­rio, entendeu não haver sido feita pelo autor.

E acrescenta na nota 52: “Ainda que essa condição não seja explicitada – está pois aqui em causa o conceito de “base negocial”.

De resto, estando em causa situações como a dos autos de realização de prestações patrimoniais que proporcionaram o enriquecimento do património de um dos companheiros em detrimento do património do outro, inquestionável é também a conclusão de que, a partir do momento em que cessou a união de facto, as deslocações patrimoniais decorrentes daquelas prestações deixaram de radicar em causa «jurídica justificativa», pois que o incremento consciente (pela autora) do património do réu baseou-se seguramente no pressuposto de que a união de facto se manteria sempre, o que veio a frustrar-se.

Aliás, nenhum dos recorrentes sustenta que mesmo a manter-se inalterada a matéria de facto dada como provada não deveria aplicar-se o instituto em análise.

O que cada um deles sustenta é, diferentemente, que a casa de habitação descrita nos factos dados como provados foi edificada exclusivamente com dinheiro apenas de um deles, sem qualquer espécie de comparticipação do outro, razão pela qual nenhum enriquecimento injustificado se registaria.

Assente, pois, que o direito da autora à restituição do produto do seu esforço para a construção da casa em questão tem o seu fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, direito esse que lhe foi reconhecido na sentença, importa determinar se tal direito se extinguiu ou não por prescrição.

O direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento.” – art. 482º CC.

Como resulta da norma acabada de transcrever, o termo inicial do prazo de prescrição de três anos nela consagrado coincide com a data em que o credor tevê conhecimento do direito que lhe compete, ou seja, aquela em que tal credor toma conhecimento fáctico (não jurídico) dos elementos constitutivos do seu direito – neste sentido, acórdãos do STJ de 15/10/92, BMJ 420, p. 448, de 28/3/1995, proferido no processo 086008, de 20/6/95, CJ do STJ, T. III, p. 133, de 17/6/2004, proferido no processo 04B4365, de 16/2/2012, proferido no processo 286/07.0TVLSB.L1.S1; acórdão do STA de 15/1/2015, proferido no processo 0591/14; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/12/2012, proferido no processo 1890/10.4T2AVR.C1, Antunes Varela, Direito das Obrigações, I, 6ª, p. 488, Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1981, volume 2, p. 65.

Por outro lado, no que toca às específicas situações como a dos autos em que o enriquecimento sem causa se faz radicar na cessação da situação da união de facto que constituiu o suporte da deslocação patrimonial efectuada na constância da união e geradora do enriquecimento/empobrecimento, o prazo de prescrição de três anos deve começar a contar-se a partir da data da referenciada cessação – acórdãos do STJ de 31/5/2011, proferido no processo 122/09.2TBVFC-A.L1.S1, de 15/11/1995, proferido no processo 087127; acórdão da Relação de Coimbra de 15/5/2012, proferido no processo 885/09.5T2AVR.C1; acórdão da Relação de Lisboa de 18/1/2011, proferido no processo 3149/06.2TBCSC.L1-7.

No caso em apreço, a situação de união de facto entre a autora e o réu terminou em Abril de 2006 (ponto 1º dos factos provados).

Começou a correr nessa data o prazo de prescrição de três anos que vem sendo considerado, não tendo sido invocada, nem é de conhecimento oficioso, qualquer causa suspensiva ou interruptiva da prescrição.

Como assim, quando em 2/1/2014 foi proposta a presente acção, há muito que estava esgotado aquele prazo de três anos, com a consequente prescrição do direito da autora que indevidamente lhe foi reconhecido na sentença recorrida.

Deve proceder, pois, a apelação do réu.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar: i) a apelação do réu procedente, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se o réu da condenação nela contida; ii) a apelação da autora improcedente.

Custas de ambos os recursos pela autora, o mesmo sucedendo com as da acção.

Coimbra, 25/10/2016.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)


Sumário:

I) Em caso de recurso com impugnação da decisão sobre a matéria de facto e sob cominação da rejeição do mesmo sem recurso a convite ao suprimento, o recorrente deve delimitar nas conclusões o âmbito fáctico do recurso, por indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados (arts. 639º/1 e 640º/1/a do NCPC), além de que nas alegações o recorrente deve também delimitar: a) o objectivo recursório visado, por indicação da decisão que deve ser proferida em substituição da impugnada e quanto a cada ponto de facto que se considere incorrectamente julgado (arts. 639º/1 e 640º/1/c do NCPC); b) o âmbito probatório do recurso, por indicação dos concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida e, no caso de prova gravada, das concretas passagens da gravação a analisar pelo tribunal de recurso (arts. 639º/1 e 640º/1/b/2 do NCPC).

II) A delimitação do âmbito probatório do recurso em caso de reapreciação da prova gravada deve ser feita preferencialmente por referência à numeração temporal do registo áudio de cada um dos concretos excertos que se invoquem como fundamento da discordância, com identificação da hora, dos minutos e dos segundos de início e de fim de cada uma dessas passagens da gravação, embora se admita que também possa ser feita pela transcrição desses concretos excertos em termos de ficar claro para o tribunal de recurso quais as concretas partes de que depoimentos devem ser ponderadas e analisadas na reapreciação da matéria de facto.

III) Não satisfaz a exigência referida em II) o recorrente que invoca como suporte probatório da sua divergência um conjunto diversificado de depoimentos prestados na audiência de julgamento, oferecendo a totalidade de cada um desses depoimentos constante dos ficheiros fonográficos em que foram gravados, e procedendo em seguida a resumos de cada um dos depoimentos, da sua própria autoria e sem qualquer garantia de que os mesmos reproduzam com fidedignidade os depoimentos assim retratados.

IV) Tendo uma casa sido construída com o esforço comum de pessoas que viviam em união de facto, cessando esta e ficando aquela casa a pertencer apenas a um dos ex-companheiros, tem o outro direito a ser compensado do seu esforço para aquele construção por via do instituto do enriquecimento sem causa.

V) O prazo de prescrição de três anos do direito à restituição por enriquecimento começa a contar do momento em que o empobrecido teve conhecimento fáctico (não jurídico) dos elementos constitutivos do seu direito, ou seja, em situações do tipo das relatadas em IV), no momento da cessação da união de facto.


(Jorge Manuel Loureiro)

 


***


[1] Aderimos, assim, à posição que vem sendo sufragada pelo  STJ relativamente aos ónus que terão de ser cumpridos em sede de recurso da decisão sobre a matéria de facto e sobre os concretos locais da minuta recursiva em que tais ónus devem ser cumpridos – por exemplo, acórdão de 3/12/2015, proferido no processo 3217/12.1TTLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, local onde estão disponíveis todas as outras decisões de tribunais superiores que sejam citadas nesta decisão sem outra referência de origem; acórdão de 1/10/2015, proferido no processo 824/11.3TTLRS.L1.S1.
[2] Acórdão do STJ de 3/12/2015, proferido no processo 1348/12.7TTBRG.G1.S1, e acórdão do STJ de 9/7/2015, proferido no processo 961/10.1TBFIG.C1.S1, este último com sumário disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Mensais/civel2015_07.pdf.
[3] No que toca à matéria de facto sobre a qual incide a divergência recursiva do réu, estão em causa, apenas, documentos particulares, sem qualquer especial força probatória.
[4] PEDRO PINHEIRO TORRES, Guia para o novo Código de Processo Civil, 2013, p. 572.