Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3507/17.7T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
DELIBERAÇÃO SOCIAL
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
CÔNJUGES
BEM COMUM
AMORTIZAÇÃO DA QUOTA
ACTO DE ALIENAÇÃO
CONSENTIMENTO
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 10/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.8 Nº2, 56 Nº1 B), 58 Nº1 A),232, 246, 248 CSC, 1678 Nº3, 1682, 1687CC
Sumário:
I – Ainda que, por força do disposto no artigo 8º do CSC, os direitos societários correspondentes a participação social inserida em património comum do casal apenas possam ser exercidos por um dos cônjuges – aquele que tem a posição de sócio em face do disposto no citado artigo 8º –, o exercício desses direitos depende do consentimento do outro cônjuge sempre que tal consentimento seja exigido pela lei civil que regula as relações entre os cônjuges – cfr. artigos 1678º, nº 3 e 1682º do CC –, ou seja, sempre que o exercício desse direito configure um acto de administração extraordinária ou acto de alienação ou oneração de participação social cuja administração caiba aos dois cônjuges por não se inserir em nenhuma das situações previstas no nº 1 e nº 2 do artigo 1678º do CC.
II – O consentimento prestado pelo sócio à amortização da sua quota (integrada em comunhão conjugal) ou o voto favorável em deliberação que vise tal amortização não constitui um acto de administração ordinária, correspondendo, ao invés, a acto equiparável à respectiva alienação e, nessa medida, apenas pode ser exercido com o consentimento do outro cônjuge;
III – Na falta de consentimento do cônjuge, o voto favorável na deliberação de amortização daquela quota é anulável (artigo 1687º do CC) e a anulabilidade desse voto reflecte-se na deliberação que veio a ser tomada, determinando a sua anulabilidade sempre que esse voto tenha sido determinante e essencial para a formação dessa deliberação.
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 3507/17.7T8LRA.C1 Reg. nº 507.

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.
C (…), residente (…), instaurou acção contra P (…) Lda., com sede (…), , pedindo que, ao abrigo artigo 56º, nº 1, alínea b) do nº1 do artº 246º, e nº3 do artº 248º, todos do Código das Sociedades Comerciais, se decrete a nulidade e a ineficácia das deliberações tomadas no dia 14 de Junho de 2017 e que, na sequência, se autorize a extinção do inerente registo comercial que determinou a citada alteração do pacto social nos seus artigos quarto e quinto, conforme enumerados no artigo 12º da p.i.
Alegou, em resumo, para fundamentar essa pretensão: que N (…) é sócio da Ré, detendo 50% do respectivo capital social; que o referido N (…)é casado com a Autora no regime de comunhão de adquiridos, pelo que a aludida quota é um bem comum do casal; que, em 14/06/2017, o seu marido, N (…) e o sócio, J (…), reuniram em Assembleia Geral não convocada, deliberando pelos próprios, sem o consentimento da aqui Autora, a amortização da quota da Autora e do seu marido, com a consequente extinção da mesma e saída do sócio N (…) da sociedade, tendo o seu marido (N (…)), renunciado à gerência e tendo sido deliberada, por unanimidade, a redução de capital da Ré, na sequência da amortização da referida quota da Autora e marido, com alteração dos artigos 4º e 5º do pacto social; que a Autora não foi convocada nem teve conhecimento de tal assembleia e não deu o seu consentimento para as deliberações ali tomadas e que a aludida deliberação é anulável em virtude de o voto de N (…) estar viciado por falta de consentimento da Autora.

A Ré contestou, alegando, em resumo: que a Autora não é sócia da Ré; que o poder de exercer os direitos inerentes à participação social pertence ao cônjuge a quem pertence tal participação; que a Autora, não sendo titular da participação, não tinha que ser convocada para a assembleia e que a amortização da quota constitui um acto de administração ordinária à luz do disposto no artigo 1678º, nº 3, pelo que não carecia de consentimento da Autora.
Com estes fundamentos, conclui pela improcedência da acção.

A Autora replicou, reafirmando a posição já assumida.

Findos os articulados, foi proferido despacho que, dando conta da possibilidade de se conhecer de imediato o mérito da causa, ordenou a notificação das partes para se pronunciarem relativamente à possibilidade de ser proferida decisão por escrito sem a realização da audiência prévia.

As partes vieram declarar não se opor a tal procedimento.

Na sequência, foi proferida decisão que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu:
- Declarar a anulabilidade da deliberação de amortização da quota do sócio N (…) e redução do capital social tomadas na assembleia geral da R. de 14 de Junho de 2017 de acordo com o disposto no artigo 58º nº 1 al. a) do CSC do Código das Sociedades Comerciais;
- Determinar o cancelamento do registo das alterações efectuadas ao pacto social, nomeadamente aos artigos 4º e 5º.

Discordando dessa decisão, a Ré veio interpor recurso formulando as seguintes conclusões:
(…)

A Autora apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
(…)
/////

II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
• Saber se existe ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir;
• Saber se era (ou não) necessário o consentimento da Autora para que o seu cônjuge (sócio da R) pudesse exercer o direito de voto que conduziu à aprovação da deliberação de amortização da sua quota e, em caso afirmativo, saber se a falta desse consentimento determina a anulabilidade da deliberação em causa.
/////

III.
Na 1ª instância, julgaram-se provados os seguintes factos:
1)- Por escritura pública, datada de 14.03.2002, N (…), casado com C (…), sob o regime de comunhão de adquiridos e J (…), casado com L (…), sob o regime de comunhão de adquiridos declararam constituir uma sociedade comercial por quotas, com a firma R (…) Lda.
2)- No contrato de sociedade consta na cláusula quarta “O capital social, integralmente realizado em dinheiro, é de cinco mil euros e corresponde à soma de duas quotas iguais no valor nominal de dois mil e quinhentos euros cada, pertencentes uma a cada um dos sócios N (…) e J (…)
3)- Na certidão da matrícula da sociedade consta registada pela Ap. 5/20101207 a alteração da cláusula quarta do contrato de sociedade com o aumento do capital social da R. para o valor de €85.000,00, por incorporação de reservas, subscrito em partes iguais pelos sócios.
4) – Por força do aumento do capital social cada um dos sócios referidos em 1) passou a ter na referida sociedade uma quota com o valor nominal de €42.500,00.
5) – Encontra-se registada pela Ap. 2/20140115 a alteração das cláusulas 1º, 2º, nº 1 e 3º do contrato de sociedade, passando a sociedade a denominar-se “P (…) LDA.
6)- A sociedade Ré passou a ter como objecto social: “Reparação de moldes para vidro. Fabricação de moldes metálicos e prestação de serviços na referida actividade. Comércio, importação e exportação de moldes, componentes, peças e acessórios, máquinas e equipamentos indústrias. Moldes para plásticos e indústria de vidro”.
7)- No dia 14 de Junho de 2017, reuniu a assembleia geral da R. tendo sido elaborada a acta nº 30 onde consta, para além do mais que:
(…) reuniu-se espontaneamente e sem observância de formalidades prévias, na sua sede social, (….) com o capital social definitivamente registado e integralmente liberado de oitenta e cinco mil euros, divididos em duas quotas do valor nominal de quarenta e dois mil e quinhentos euros, cada, uma de cada um dos sócios J (…) e N (…)
Estavam presentes ambos os referidos sócios da sociedade, encontrando.se assim reunida a totalidade do capital social, para deliberarem sobre a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto um: amortização da quota, que se encontra totalmente liberada, de quarenta e dois mil e quinhentos euros do sócio N (…), com a consequente extinção da mesma e saída do sócio da sociedade.
Ponto Dois: renúncia à gerência do gerente N (…).
Ponto três: redução do capital social, em consequência da amortização da referida quota e alteração parcial do pacto social.
Entrando no ponto um da ordem de trabalhos, os sócios deliberaram unanimemente a amortização da quota, totalmente liberada, de quarenta e dois mil e quinhentos euros do sócio N (…), com a consequente extinção da mesma e saída do sócio da sociedade, pelo que o capital social será reduzido de oitenta e cinco mil euros para quarenta e dois mil e quinhentos euros. A presente amortização não tem qualquer contrapartida económica.
Entrando no ponto dois da ordem de trabalhos foi pelo gerente N (…) feita a sua declaração de renúncia à gerência, aceite pela sociedade.
Entrando no ponto três da ordem de trabalhos, foi unanimemente deliberada a redução do capital social, em consequência do deliberado anteriormente no ponto um e porque se verifica que a situação liquida da sociedade, após a redução, não fica inferior à soma do capital social e da reserva legal, isso é fica a exceder o novo capital (quarenta e dois mil e quinhentos euros) em vinte por cento, conforme balanço já aprovado.
Assim, o sócio J (…) delibera alterar parcialmente o pacto social, quando aos seus artigos quarto e o artigo quinto, os quais passam a ter a seguinte redacção:
Artigo Quarto
O Capital Social integralmente realizado e subscrito m dinheiro de quarenta e dois mil e quinhentos euros corresponde a uma quota do mesmo valor nominal de quarenta e dói mil e quinhentos euros do sócio J (…)
Artigo Quinto
1. A administração e representação da sociedade será exercida por quem vier designado gerente em assembleia-geral.
2. A Assembleia obriga-se com a assinatura de um gerente.””.
8)- A A. não deu o consentimento para a amortização da quota de que o sócio N (…) é titular na sociedade R..
/////

IV.
A Recorrente começa por invocar – como fundamento do recurso – a ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, sustentando, por isso, que é nulo todo o processo. E, segundo a Recorrente, essa contradição resulta do facto de a Autora ter pedido que se decretasse: “ a nulidade e a ineficácia das deliberações tomadas a 14 de junho de 2017”, apesar de, na causa de pedir, nomeadamente no artigo 19º da petição inicial, ter alegado que a deliberação era anulável.
Em primeiro lugar, cabe dizer que esta é uma questão nova que nunca havia sido invocada e apreciada em 1ª instância.
De qualquer forma, pensamos ser evidente que não ocorre qualquer ineptidão da petição inicial.
Dispõe o artigo 186º, nº1, do CPC que “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”, dispondo o nº 2, alínea b), que a petição é inepta “Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir”.
Tal contradição – que dá origem à ineptidão – não se confunde, naturalmente, com a mera circunstância de a causa de pedir não ter idoneidade para fundamentar o pedido formulado; tal contradição pressupõe a falta de um nexo lógico entre a causa de pedir e o pedido de tal modo que se contradizem entre si porque a causa de pedir conduz logicamente a pedido oposto ou contrário àquele que foi formulado.
Ora, é evidente que nada disso acontece no caso dos autos.
Com efeito, ainda que se entendesse – o que não é o caso – que o facto de invocar a anulabilidade da deliberação contradiz o pedido nos termos em que foi formulado (no sentido de se decretar a nulidade e ineficácia da deliberação), a verdade é que, não obstante ter invocado – no artigo 19º da p.i. – a anulabilidade da deliberação, a Autora também invocou – nos artigos 13 e 14º da p.i. – a sua nulidade (como se depreende pela expressa invocação do artigo 56º do CSC) pelo facto de não ter sido convocada para a assembleia como alegava dever ter acontecido por entender que a participação social também lhe pertencia e, portanto, o pedido que formulou estava em perfeita conformidade lógica com esses factos que havia alegado e que correspondiam à causa de pedir. Não existe, portanto, qualquer contradição entre pedido e causa de pedir; os factos que a Autora invocava como causa de pedir apontavam, em termos lógicos, para o pedido de declaração de nulidade que veio a formular e não para um qualquer efeito que fosse contrário a esse e tanto basta para que não possa falar-se em qualquer contradição geradora de ineptidão da petição inicial, sendo certo que a eventual inaptidão desses factos (causa de pedir) para determinar a procedência do pedido corresponde a realidade diversa que não se confunde com uma qualquer contradição entre esses factos e a pretensão formulada.
Não existe, portanto, qualquer ineptidão da petição inicial.

Analisemos agora a questão de fundo – a que se reportam as demais conclusões das alegações da Apelante – e que se prende com a necessidade (ou não) do consentimento do cônjuge do sócio da Ré para o voto que este veio a exercer e que conduziu à aprovação da deliberação de amortização da sua quota.
Depois de considerar que a deliberação em causa nos autos não padecia de qualquer invalidade por falta de convocação – uma vez que a Autora não era sócia da Ré e, como tal, não tinha que ser convocada para a assembleia e uma vez que todos os sócios estavam presentes – considerou-se na sentença recorrida que a deliberação em causa era anulável.
Tal decisão assentou nos seguintes pressupostos:
• A quota na sociedade Ré que era titulada por N (…) era um bem comum do casal constituído pelo referido N (…) e a Autora, em virtude de a constituição da sociedade ter ocorrido na vigência do casamento;
• Nos termos do artigo 1678º do CC, os actos de administração extraordinária relativamente aos bens comuns só podem ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges;
• O acto de amortização de uma quota social constitui um acto de administração extraordinária, razão pela qual apenas pode ser praticado com o consentimento de ambos os cônjuges;
• Assim e não obstante o disposto no artigo 8º do CSC, o sócio N (…) necessitava do consentimento da Autora (cônjuge) para votar no sentido da amortização da participação social comum;
• Uma vez que esse consentimento não existiu, importa concluir pela anulabilidade do voto do sócio N (…) (art. 1687º, nº 1 do Código Civil), o que, considerando a essencialidade desse voto, determina a anulabilidade da deliberação de amortização da quota, redução do capital social e alteração do pacto social nomeadamente nos seus artigos 4º e 5º.

A Apelante discorda dessa decisão, sustentando – apoiada na posição de João Labareda, Paulo Olavo Cunha e Pinto Furtado – que não é necessário o consentimento do cônjuge do sócio na alienação de participação social que integre a comunhão.

A questão colocada – que se prende com o disposto no artigo 8º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais – não tem obtido resposta unânime da nossa doutrina, como evidencia a explanação feita na sentença recorrida, onde são enunciadas as diversas posições doutrinárias sobre o assunto. Dispensamo-nos de reproduzir aqui essas posições doutrinárias e remetemos a esse propósito para a sentença recorrida.
Mas, não obstante a aludida controvérsia, entendemos, com o devido respeito pela opinião contrária, que o consentimento Autora era efectivamente necessário para que o seu cônjuge (sócio da Ré) pudesse votar no sentido da amortização da quota.
Vejamos porquê.
Parece não haver dúvidas relativamente ao facto de a participação social/quota de N (…) no capital social da Ré corresponder a um bem comum do casal que era constituído por ele e pela Autora, uma vez que tal participação foi adquirida na constância do casamento que havia sido celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos (cfr. artigo 1724º, b), do CC).
Relativamente às participações sociais que correspondam a bens comuns do casal, o artigo 8º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais, dispõe nos seguintes termos:
Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal”.
É indiscutível, perante a citada disposição legal, que a circunstância de estar em causa um bem pertencente aos dois cônjuges não atribuiu a ambos a qualidade de sócios e não atribui a ambos os direitos/deveres inerentes à participação na sociedade, ali se determinando, de modo expresso, que, nas relações com a sociedade, o sócio – e, por conseguinte, aquele que é titular dos direitos/deveres inerentes a essa qualidade – é apenas o cônjuge que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal. Significa isso, portanto, que, no âmbito das relações com a sociedade, os poderes de administração da participação/quota pertencem em exclusivo a um dos cônjuges (aquele que tem a posição de sócio em face da norma supra citada), aqui se consignando uma excepção à regra prevista no artigo 1678º, nº 3, do CC, segundo a qual cada um dos cônjuges tem legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal, uma vez que o cônjuge que não tem a posição de sócio está impedido de praticar, perante a sociedade, os actos de administração ordinária que se consubstanciam no exercício dos direitos inerentes à qualidade de sócio.
Pensamos, porém, que – ao contrário do que sustentam alguns autores – nada na letra da lei nos autoriza a concluir que o legislador pretendeu ir ainda mais longe e retirar ao cônjuge não sócio toda e qualquer possibilidade de controlar os actos de administração extraordinária e os actos de oneração ou disposição da participação social que também lhe pertence.
Na verdade, o artigo 8º do CSC apenas se destina a regular as relações com a sociedade e a evitar que ambos os cônjuges se pudessem apresentar a exercer os direitos societários complicando e perturbando a vida societária; mas tal normativo não terá – pensamos nós – a pretensão de afastar as regras vigentes referentes à administração, oneração e disposição de bens inseridos em comunhão conjugal; uma coisa são os actos praticados perante a sociedade e a esses se destina a regulamentação prevista no citado artigo 8º, determinando que apenas podem ser praticados pelo cônjuge que tiver a posição de sócio; coisa diferente são as relações entre os dois cônjuges no que toca aos poderes de administração, oneração e disposição de bens que são comuns e pertencem a ambos e estes são regulados pelas regras que se encontram previstas no CC, onde se determina que os actos de administração extraordinária e os actos de alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges carecem do consentimento de ambos (cfr. artigos 1678º, nº 3, e 1682º, nº 1, do CC). Dizendo de outro modo: ainda que os direitos societários apenas possam ser exercidos pelo cônjuge que tem a posição de sócio (por força do disposto no citado artigo 8º), o exercício desses direitos estará dependente do consentimento do outro cônjuge sempre que tal consentimento seja exigido pela lei civil que regula as relações entre os cônjuges, ou seja, sempre que estejam em causa actos de administração extraordinária ou actos de alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges.
E não se diga que, por efeito do citado artigo 8º, o cônjuge que tem a posição de sócio tem a administração da participação e que, como tal, também tem sempre legitimidade para a alienar ou onerar de acordo com o disposto no artigo 1682º, nº 2, do CC. Na verdade, esta disposição legal apenas determina que cada um dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar, por acto entre vivos, os móveis próprios ou comuns de que tenha a administração, nos termos do n.º 1 do artigo 1678.º e das alíneas a) a f) do n.º 2 do mesmo artigo e, portanto, essa legitimidade pressupõe que a participação se integre em qualquer uma das situações previstas nesta última disposição legal; por outro lado, o citado artigo 8º não visa propriamente atribuir a um dos cônjuges a administração exclusiva da participação social de tal modo que essa situação possa ser considerada equivalente às situações previstas no artigo 1678º, nº 1 e nº 2, do CC para o efeito de se entender que esse cônjuge também tem legitimidade para alienar ou onerar essa participação independentemente de consentimento do outro; o que o artigo 8º teve em mente – já o dissemos – foi regular as relações com a sociedade e definir qual dos cônjuges teria legitimidade para se apresentar perante a sociedade a exercer os direitos societários, sem qualquer pretensão de alterar ou derrogar as regras previstas no CC a propósito das relações entre os cônjuges no que toca aos bens comuns.
Além do mais, se bem pensarmos, nenhuma justificação válida poderíamos encontrar para retirar a um dos cônjuges qualquer possibilidade de controlar a administração, oneração e alienação de participações sociais que podem ser de grande valor e podem corresponder à maior parte do património comum do casal. Com efeito, se é fácil encontrar justificação para esse regime nas situações previstas no artigo 1678º, nº 1, e nº 2, alíneas a) a f) do CC – casos em que o cônjuge administrador tem legitimidade para onerar ou alienar o bem por força do disposto no artigo 1682º, nº 2, sem necessidade de consentimento do outro – por ser possível detectar aí uma especial ligação de um dos cônjuges ao bem em questão ou a impossibilidade de administração por parte do outro cônjuge, o mesmo não acontece quando estão em causa bens comuns que não se integram em nenhuma dessas situações, sendo certo que uma tal solução implicaria que um dos cônjuges pudesse pôr e dispor de participações sociais que não lhe pertencem em exclusivo, delapidando o património comum do casal sem que o outro cônjuge tivesse a possibilidade de controlar e evitar a prática desses actos.
No sentido que defendemos também se pronunciou José Miguel Duarte A Comunhão dos cônjuges em participação social, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Vol. II., quando afirma: “O art. 8.°, n.° 2, nada dispõe sobre esta matéria, uma vez que que se limita a regular a legitimidade, dos cônjuges titulares da participação social, “nas relações com a sociedade”. Sendo norma especial relativamente à contida no art. 1678.°, n.° 3, (1.a parte), do CC, segundo a qual qualquer dos cônjuges detém legitimidade para a prática de actos de administração ordinária dos bens comuns. Não pretende regular mais do que isto. Quanto à legitimidade para a alienação de bens móveis comuns, a regra civilística é a da necessidade de consentimento de ambos os cônjuges (art. 1682.°, n.° 1, do CC). Como excepções a esta regra, estão os actos de disposição que se reconduzem à administração ordinária dos bens, e os relativos a bens cuja administração caiba apenas a um dos cônjuges, nos termos do n.° 1 e das alíneas a) a f) do n.° 2 do art. 1678.° do CC (cfr. art. 1682.°, n.° 2, do CC). Ora, entre esses bens, não se encontram as participações sociais, em si mesmas consideradas”.
Acrescenta o citado autor:
“…é de realçar que, na lei civil, se surpreende uma relativa coincidência entre os poderes de administração e os poderes de disposição de bens comuns, que são atribuídos a apenas um dos cônjuges, em virtude de uma especial e forte ligação entre determinadas categorias de bens e um dos membros do casal. Seja porque tais bens provêm do trabalho ou dos direitos de autor de um dos cônjuges, seja porque apenas um dos cônjuges adquiriu o bem ainda antes de celebrado o casamento, seja porque o bem foi doado a um dos cônjuges ou a ambos com exclusão da administração por parte do consorte, seja por se tratar de bens utilizados por um dos cônjuges como seu instrumento de trabalho (art. 1678.°, n.° 2, do CC).
Ora, convenha-se que a circunstância, que pode aliás ser de carácter meramente ocasional, de apenas um dos cônjuges outorgar o contrato aquisitivo da participação social comum, não é comparável às enuncidas no art. 1678.°, n.° 2, para dela poder assacar-se ao “cônjuge adquirente” poderes exclusivos de alienação e oneração. Essa circunstância só justifica, nos precisos termos consagrados pela lei societária, que apenas o “cônjuge que adquiriu” seja “considerado como sócio nas relações com a sociedade”.
A razão de ser do art. 8.°, n.° 2, do CSC, ao contrário das normas civilísticas que conferem legitimidade exclusiva a um dos cônjuges para a administração de determinados bens comuns, não repousa tanto numa especial ligação entre a participação social e um dos cônjuges, mas sim na necessidade de favorecer o regular funcionamento de uma pessoa colectiva em que os cônjuges participam”.
Concordamos inteiramente com tais afirmações, sendo que tal posição é igualmente subscrita por J. P. Remédio Marques Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. I, 2ª edição, págs. 168 e 169., pelo Acórdão do STJ de 29/06/2006 (processo nº 06B1447), pelo Acórdão do STJ de 19/06/2008 (processo nº 08B871) e pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 01/03/2012 (processo nº 144/11.3TBPNI.L1-2) Todos os Acórdãos citados estão disponíveis em http://www.dgsi.pt. .
Concluímos, portanto, em face do exposto, que, ainda que os direitos societários correspondentes a participação social inserida em património comum do casal apenas possam ser exercidos pelo cônjuge que tem a posição de sócio (por força do disposto no artigo 8º do CSC), o exercício desses direitos estará dependente do consentimento do outro cônjuge sempre que tal consentimento seja exigido pela lei civil que regula as relações entre os cônjuges – cfr. artigos 1678º, nº 3 e 1682º do CC –, ou seja, sempre que o exercício desse direito configure um acto de administração extraordinária ou acto de alienação ou oneração de participação social cuja administração caiba aos dois cônjuges por não se inserir em nenhuma das situações previstas no nº 1 e nº 2 do artigo 1678º do CC.
Ora, a participação social em causa nos autos não se insere em nenhuma das situações previstas nos nºs 1 e 2 do citado artigo 1678º (pelo menos nada se provou e nada se alegou nesse sentido) e, portanto, os actos de administração extraordinária e os actos de alienação e oneração sobre tal participação só poderiam ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges – artigos 1678º, nº 3 e 1682º, nº 1, do CC.
Considerando que a amortização da quota tem como efeito a sua extinção – cfr. artigo 232º, nº 2, do CSM –, o consentimento prestado pelo sócio à amortização da quota ou o voto favorável em deliberação que vise tal amortização está longe de constituir um acto de administração ordinária, uma vez que não se destina à conservação ou normal frutificação da quota, visando, pelo contrário, a sua extinção e, consequentemente, a extinção de todos os direitos que à mesma eram inerentes e que ainda não estejam vencidos Neste sentido, J. P. Remédio Marques, ob. cit., pág. 169., correspondendo, portanto, a um acto equiparável à alienação da quota. Assim sendo e ainda que, por efeito do disposto no artigo 8º do CSC, só ele pudesse exercer o direito de voto na assembleia da Ré, o aludido sócio não podia votar favoravelmente a amortização da sua quota sem o consentimento do seu cônjuge (a aqui Autora) a quem também pertencia a aludida quota por estar integrada no património comum.
Consequentemente e tendo resultado provado que N (…) votou favoravelmente a tal amortização sem o consentimento da Autora (seu cônjuge), impõe-se concluir que esse voto é anulável em conformidade com o disposto no artigo 1687º do CC. E a anulabilidade desse voto reflecte-se na deliberação que veio a ser tomada, determinando a sua anulabilidade – ao abrigo do artigo 58º, nº 1, a), do CSC –, uma vez que esse voto foi determinante e essencial para a formação dessa deliberação, dada a circunstância de o referido sócio (marido da Autora) ser titular de metade do capital social.
Neste sentido se pronuncia José Miguel Duarte Ob. cit. quando, citando Maria Rita Lobo Xavier Reflexão sobre a Posição do Cônjuge Meeiro em Sociedades por Quotas”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1994, pp. pp. 108 a 125. , afirma que “…neste tipo de deliberações, cuja execução pode ter um efeito idêntico ao da alienação da quota, o exercício do voto pelo “cônjuge considerado sócio nas relações com a sociedade”, carece do consentimento do seu consorte. Sem esse consentimento, o voto é anulável, podendo o cônjuge não sócio arguir a invalidade do voto e, logicamente, impugnar a deliberação social tomada, no pressuposto de que o voto inválido foi indispensável para a formação da maioria requerida para a aprovação da deliberação”. Foi também nesse sentido que se decidiu no Acórdão do STJ de 19/06/2008, supra citado, em cujo sumário se pode ler: “Sendo a participação social bem comum do casal, o acto do sócio que vota a deliberação de dissolução da sociedade é um acto de administração extraordinária (…) Proibindo o art. 1678º, nº 3 do CC a prática de actos de administração extraordinária sem o consentimento do outro cônjuge, necessita o cônjuge sócio do consentimento do seu consorte para votar deliberação de dissolução da sociedade comercial. …Estando tal voto, na falta do dito consentimento, viciado, sendo, por isso, anulável, desde que na deliberação tenha reflexo”.
Refira-se, por último, que é totalmente irrelevante o facto – invocado pela Apelante – de o sócio N (…) e a Autora se encontrarem separados de facto e com divórcio a decorrer na Comarca de Leiria e de, por causa desse facto e da falta de comunicação entre ambos, ser impossível obter o consentimento da Autora e ser impossível deliberar sobre a amortização da quota. Na verdade, se é certo que, à data da deliberação aqui em causa, o casamento ainda não havia sido dissolvido e a quota em questão continuava a integrar o património comum do casal, também é certo que o litígio entre os cônjuges não inviabilizava em absoluto a amortização da quota, sendo certo que o consentimento da Autora poderia ser suprido judicialmente (cfr. artigo 1684º, nº3, do CC), caso a mesma se recusasse a prestá-lo e caso se viesse a concluir que essa recusa era injusta ou injustificada.

Em face do exposto e sem necessidade de maiores considerações, impõe-se julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.
******
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Coimbra, 16 de Outubro de 2018

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora)
António Magalhães
Ferreira Lopes