Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
174656/129YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: RECURSO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
CONCLUSÕES
ÓNUS DA ESPECIFICAÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 685 B CPC /1961, 640 Nº1 B) CPC 2013
Sumário: 1. O tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objecto do recurso, sendo que, tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada nas alegações.

2. No recurso da matéria de facto, incumbe ao recorrente o cumprimento da alínea b) do n.º 1 do art.º 685º-B, do CPC de 1961/640º, n.º 1, alínea b), do CPC de 2013, indicando expressamente os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

3. Sob pena de rejeição da impugnação da decisão de facto, o recorrente deverá indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição (n.º 2 do mesmo art.º do CPC de 1961/n.º 2, alínea a), do mesmo art.º do CPC de 2013).

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. S (…), S. A., instaurou procedimento injuntivo[1] contra Hospital H (...), actual U (...), E.P.E.[2], pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 5 116,93 (correspondente a € 3 205,91 de capital, € 1 809,02 de juros e € 102 de taxa de justiça), alegando, em síntese, que prestou serviços à Ré consistentes na reparação de uma fuga de gás num capilar (“chiler 2”) e manutenção, conforme lhe foi requerido, e que esta não pagou a correspondente retribuição (factura n.º 520009812, no valor de € 3 205,91, vencida em 30.8.2006).

A Ré contestou, referindo que a A. não procedeu à reparação que lhe fora solicitada, sendo que o “chiler” partiu em menos de duas horas, após a reparação alegadamente efectuada pela A., pelo que não está obrigada ao pagamento da quantia a que se refere a factura (art.º 428º, n.º 1, do Código Civil/CC).

Veio a A. responder referindo que a assistência solicitada foi efectuada nos dias 08.7.2006 e 09.7.2006, justificando-se a mesma pelo esforço a que o equipamento está sujeito, facto que não é imputável à A. mas ao uso que a Ré dá ao equipamento; os trabalhos foram correctamente executados e as unidades deixadas em correcto funcionamento.

Realizado o julgamento, o Tribunal (2º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco) julgou a acção procedente, e, em consequência, condenou a Ré a pagar à A., a quantia de € 3 205,91 (três mil duzentos e cinco euros e noventa e um cêntimos), a que acrescem juros à taxa comercial, que vencidos até 22.10.2012, se fixam em € 1 809,02 (mil oitocentos e nove euros e dois cêntimos) e vincendos até efectivo e integral pagamento, e absolveu a Ré da quantia peticionada a título de taxa de justiça.

Inconformada, a Ré interpôs a presente apelação, em 26.6.2013, formulando as seguintes conclusões[3]:

1ª - Da discussão da matéria de facto resulta provado o referido nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 de fls. 60 (ponto “VI-A “ da “conclusão” da alegação de recurso).

2ª - Da discussão da matéria de facto e com fundamento no depoimento da testemunha (…), técnico de frio, empregado da recorrida, que procedeu à intervenção no gerador de água gelada avariado, resulta que não foi efectuada a reparação pedida pela recorrente.

3ª - Com a sentença recorrida foi, assim, violado o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 655º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).

4ª - A recorrente, na sua contestação, deduziu a excepção do incumprimento, por parte da recorrida, nos termos do disposto no art.º 428º, n.º 1, do CC, mas a sentença recorrida não se pronuncia sobre a mesma.

5ª - A sentença recorrida violou, por conseguinte, o disposto no art.º 660º, n.º 2, do CPC.

Remata dizendo que deve ser julgada nula a sentença recorrida (art.º 668º, n.º 1, alínea d), do CPC) ou, quando assim se não entenda, ser revogada e julgada procedente a excepção deduzida na contestação, sendo, em qualquer dos casos, concedido provimento ao recurso.

A A. respondeu à alegação de recurso, afirmando, além do mais, que a recorrente “fundamenta a sua discórdia remetendo para o depoimento da testemunha apresentada pela recorrida, (…)” mas “não indica passagens, não indica a gravação, enfim, limita-se a tecer considerações sobre o depoimento da referida testemunha que, salvo erro e com todo o merecido e devido respeito, não corresponde ao que efectivamente foi dito em Tribunal”, e que, relativamente à matéria da invocada “excepção”, a recorrente “apenas refere este ponto nas conclusões não tendo feito qualquer menção a esta ´pretensa nulidade` em sede de alegações”, concluindo, a A., pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, é inequívoco que a Ré diz haver erro na apreciação da prova e pugna para que sejam dados como provados os factos enumerados em “A” da “conclusão” da alegação de recurso (e respectiva fundamentação); contudo, lidas as “alegações” e tendo presente a Lei Processual Civil aplicável [Código de Processo Civil de 1961, na redacção conferida pelo DL n.º 303/2007, de 24.8[4] - cf. art.ºs 5º e 7º da lei n.º 41/2013, de 26.6[5]], importa verificar se a recorrente cumpriu, ainda que em reduzida expressão, as exigências adjectivas, sendo que uma resposta negativa, por si só, determinará a improcedência do recurso, porquanto nada mais importará conhecer.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) No âmbito da sua actividade comercial, a solicitação da Ré, a A. procedeu à reparação de uma fuga de gás num capilar, denominado “chiller 2” e à respectiva manutenção, em 08.7.2006 e 09.7.2006.

b) Na sequência deste trabalho emitiu a factura n.º 520009812, no montante de € 3 205,91 que se venceu em 30.8.2006.

c) A Ré não liquidou a referida factura.

d) Os trabalhos foram correctamente executados e as unidades deixadas em correcto funcionamento.

            2. E deu como não provado:

            a) A A. não procedeu à reparação que lhe fora solicitada pelo hospital.

b) Sendo que o “chiller” partiu em menos de duas horas de uso, após a alegada reparação.

c) As reparações realizadas ocorreram devido ao esforço a que o equipamento está sujeito, e que traduz o uso que a Ré dá ao equipamento.

3. Seguiu-se a “fundamentação de facto” de fls. 50 e 51.

4. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão [art.º 685º-A, n.º 1, aditado pelo DL n.º 303/2007, de 24.8], ou seja, ao ónus de alegar acresce o ónus de concluir, indicando quais os fundamentos do recurso – as razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, importando que a alegação feche pela indicação resumida das razões por que se pede o provimento do recurso (a alteração ou a anulação da decisão).

E o tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objecto do recurso; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objectiva que haja sido dada ao recurso, no corpo da alegação[6], sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada nas alegações.[7]

5. No tocante ao conhecimento da excepção de não cumprimento do contrato, é evidente, por um lado, que nada consta da fundamentação/corpo da alegação de recurso e, por outro lado, que, na sentença recorrida, a Mm.ª Juíza a quo pronunciou-se sobre a “exceptio non adimpleti contractus” (fls. 52 verso e seguinte).

É pois infundado e processualmente inadmissível o que consta das últimas “conclusões” da alegação de recurso.

6. Reza o art.º 685º-B que “quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.” (n.º 1) “No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.” (n.º 2)

Tais requisitos da impugnação da decisão de facto justificam-se pela simples razão de que importa alegar o porquê da discordância, isto é, em que é que tais depoimentos, de per si ou conjugados com a restante prova, contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido.

Trata-se da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário atendendo, por um lado, a que ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada, e, por outro lado, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar, assim se garantindo o efectivo cumprimento do princípio do contraditório (art.ºs 685º, n.º 5 e 685º-B, n.º 3).[8]

A exigência prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 685º-B constitui uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.[9]

            7. No caso em análise, a prova pessoal produzida em 1ª instância foi gravada e era possível a identificação precisa e separada dos depoimentos [cf. fls. 47 verso e art.º 3º, n.º 3, do Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15 000/art.º 1º do DL n.º 269/98, de 01.9, na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24.8].

            Porém, a Ré/recorrente, na sua impugnação da decisão sobre a matéria de facto, além de pugnar por decisão diversa da referida em II. 1. e 2., supra, e indicar a factualidade que em seu entender deveria ser dada como provada – cf. “alínea A) – 1 a 7”, da “conclusão” da sua alegação de recurso –, não menciona uma qualquer passagem/excerto da gravação que implique decisão diversa da recorrida, limitando-se, tão-somente, a indicar a respectiva “versão”, “perspectiva” e/ou “interpretação” de um dos quatro depoimentos produzidos em audiência de discussão e julgamento (fls. 47 verso e 58), e que, segundo a Ré, justificaria a (total) modificação da decisão de facto.

Salvo o devido respeito por entendimento contrário, ante o descrito regime jurídico, verifica-se ostensivo desrespeito das exigências claramente estabelecidas na lei em matéria de impugnação da matéria de facto, na medida em que a recorrente diz discordar do decidido [e concluiu que “o juiz ´a quo` decidiu contra a prova produzida, julgando os factos de forma arbitrária”/fls. 59] mas não indica quaisquer excertos dos depoimentos produzidos em audiência de discussão e julgamento (as passagens da gravação em que se funda) susceptíveis de demonstrar os pretensos erros na decisão da matéria de facto.

Ademais, ressalvado o respeito sempre devido por opinião diversa, a simples leitura da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, inclusive, no que tange ao conteúdo e à ponderação daquele concreto depoimento (fls. 50 verso, 51 e 51 verso), nada indicia no sentido propugnado pela recorrente.

Contudo, e decisivamente, não pode nem deve esta Relação reapreciar a decisão sobre a matéria de facto.

 Não resta, assim, alternativa à total rejeição do recurso da decisão relativa à matéria de facto.

8. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Ré/apelante.


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03.6.2014



Fonte Ramos ( Relator )

Inês Moura

Fernando Monteiro



[1] Depois transmutado em acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
[2] Art.º 2 do DL n.º 318/2009, de 02.11.
[3] A Ré, notificada para juntar ao processo “suporte digital (editável)” da alegação de recurso, veio dizer que “não conservou em memória informática as alegações de recurso, pelo que não lhe é possível juntar aos autos a referida peça processual em suporte digital ´word`” (sic) (fls. 78 a 80).
[4] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[5] Vide, entre outros, A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 15.
[6] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 308 e segs. e 358 e segs.; J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33 e os acórdãos do STJ de 21.10.1993 e 12.01.1995, in CJ-STJ, I, 3, 84 e III, 1, 19, respectivamente.
[7] Cf. o citado acórdão do STJ de 12.01.1995.
[8] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 15.09.2011-processo 1079/07.0TVPRT.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[9] Vide A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 3ª edição, 2010, Almedina, pág. 159.
    De resto, quando o legislador introduziu um efectivo grau de jurisdição em matéria de facto, através do DL n.º 39/95, de 15.02, deixou expresso no preâmbulo deste diploma, nomeadamente:
   “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
   Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
   A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
(…)
   Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado (…).”