Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
79/08.7GAPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES
CRIME DE INJÚRIA
LEGÍTIMA DEFESA
RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO LIVRE CONVICÇÃO DO JULGADOR
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 06/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 31º,32º,143º,180ºE 181ºDOCP,124º,125º,127º,412º,428ºDO CPP.
Sumário: 1.O recurso sobre a matéria de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
2.O preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
3.O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido; ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
4.A actuação em legítima defesa exige, para além do mais, que a agressão (ilícita) seja actual, no sentido de estar em execução ou iminente.
Decisão Texto Integral: 30

Relatório

Pelo Tribunal judicial da Comarca de Penacova, sob pronúncia que recebeu a acusação do Ministério Público, e acusação particular da assistente RM , que o Ministério Público acompanhou e o Ex.mo Juiz de julgamento apenas recebeu em parte, foram submetidos a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, os arguidos
RM , casada, empregada doméstica, filha de E e de M, nascida em 14---.72, .. residente … Lorvão;
OT, casada, doméstica, filha de A e de O nascida em 17.---.43, …residente… Lorvão
MR casado, servente de pedreiro, filho de A e de M nascido em 30….48, --- residente, S. Mamede,
imputando
- o Ministério Público, a cada um dos arguidos, OT e MR a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo art. 143.º, n.º1, do Cód. Penal, e, à arguida RM, a prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo art. 143.º, n.º1, do Cód. Penal , e
- a assistente RM, à OT a prática de um crime de injúria, p. p. pelo art. 181, n.º1, do Cód. Penal.

A assistente RM deduziu pedido de indemnização cível contra a OT requerendo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 750,00, por danos não patrimoniais, acrescido de juros até efectivo e integral pagamento.

Na veste de ofendido, MR deduziu contra a arguida RM um pedido de indemnização civil por danos patrimoniais e não patrimoniais, no montante, respectivamente, de € 87,20 e € 1.500,00.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 27 de Novembro de 2009, decidiu:
- absolver a arguida RM da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo art. 143.º, n.º1 , do Cód. Penal, de que vinha acusada;
-condenar cada um dos arguidos pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143.º, n.º1, do Cód. Penal, na pena de noventa dias de multa, à taxa diária de sete euros, o que perfaz o montante global de quatrocentos e cinquenta euros (€ 630,00,00);
- condenar a arguida OT pela prática de um crime de injúria p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 40 dias de multa;
- em cúmulo jurídico, condenar a arguida OT na pena única de cento e dez dias de multa, à taxa diária de sete euros, o que perfaz o montante global de setecentos e setenta euros (€ 770,00).
Mais se decidiu julgar parcialmente procedentes os Pedidos de Indemnização Civil formulados e, consequentemente, condenar:
- a demandada OT a pagar à demandante RM o valor de seiscentos euros (€ 600,00) por danos não patrimoniais, acrescido de juros legais desde a presente sentença até efectivo e integral pagamento, e
- a demandada MR a pagar ao demandante MR o valor de duzentos e cinquenta euros (€ 250,00) por danos não patrimoniais, acrescido de juros legais desde a presente sentença até efectivo e integral pagamento.

Inconformada com a douta sentença dela interpôs recurso a arguida concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1. Não foi produzida prova alguma que permita concluir, que a ora Recorrente tenha praticado o crime pelo qual foi condenada.
2. Ao contrário da decisão ora recorrida, não foram relatados factos pelas várias testemunhas que permitissem concluir ao Douto Tribunal a quo, com a certeza que é exigível, que a ora Recorrente tenha desferido um pontapé em qualquer zona do corpo do co-arguido MR nem tão pouco que o tenha arranhado na face.
3. A Recorrente, porque se encontrava grávida, limitou-se a defender-se “protegendo” o seu rosto e zona abdominal.
4. As declarações prestadas por OT no seu todo e da forma como o fez, tais declarações não poderiam nunca servir para que o Douto Tribunal a quo formasse a sua convicção no sentido de que a Arguida Regina tenha praticado qualquer crime.
5. Tendo em conta as declarações prestadas por MR no seu todo e da forma como o fez, tais declarações não poderiam nunca servir para que o Douto Tribunal a quo formasse a sua convicção no sentido de que a Arguida Regina tenha praticado qualquer crime.
6. Não pôde o Douto Tribunal a quo ter tido em conta o depoimento da testemunha MR Simões para condenar a ora Recorrente pelo crime de ofensas à integridade física de MR pois este afirmou peremptoriamente que a MR não agrediu quem quer que fosse.
7. Do depoimento da testemunha HU resulta que a Arguida, ora Recorrente, não praticou o crime pelo qual vem condenada.
8. O depoimento de CS foi um depoimento totalmente impregnado de mentira e visivelmente parcial.
9. Para a1ém de não resultar dos depoimentos prestados em sede de julgamento prova suficiente de que a ora Recorrente tenha agredido o co-arguido MR, acresce que dos restantes elementos probatórios existentes nos autos também não resulta que a Recorrente tenha praticado qualquer crime.
10. O Douto Tribunal a quo fez presunções sem qualquer suporte fáctico,
11. O Douto Tribunal a quo se olvidou dos mais elementares princípios em Processo Penal, desde logo, do Princípio Do In Dubio Pro Réu.
12. Pelo que, dada a prova produzida, entende a Recorrente que (a falta) desta impunha a sua absolvição.
13. O elevado grau de probabilidade necessário à condenação não se verificou, em sede de audiência de julgamento, nem de qualquer outro elemento de prova !
14. E, em consequência, a Arguida deveria ser absolvida na integra do pedido de indemnização civil deduzido pelos Ofendidos/Demandante.
15. Entendendo-se que em sede de julgamento se fez prova de que ora Recorrente praticou os factos pelos quais vem acusada, ie, que deferiu um pontapé na zona pélvica do co-arguido MR e que o arranhou na face, tendo em conta todo o circunstancialismo dado como provado, a mesma agiu em legitima defesa;
16. As agressões de que a Recorrente estava a ser alvo eram actuais e i1ícitas, apenas exerceu a defesa necessária para repelir essas mesmas agressões e sempre numa atitude de "defendendi", como a própria testemunha Hugo Silva referiu por diversas vezes em julgamento.
17. E, em consequência, deveria a mesma ser absolvida da prática do crime pelo qual vinha acusada por força do disposto no art. 31.º do CP.
18. Tendo em conta o circunstancialismo apurado e que a Recorrente aufere o rendimento mínimo nacional deveria ser condenada na pena de multa no seu mínimo, ie, na pena de 10 dias de multa à taxa diária de 5,00 € o que perfaz o montante global de 50,00 € (cinquenta euros);
19. Por falta de prova da existência de danos não patrimoniais, havendo antes prova que não existiram quaisquer danos na esfera jurídica do arguido MR, não deveria ter sido fixado pelo Douto Tribunal a quo qualquer valor a título de indemnização por danos sofridos por aquele.
D) Normas Violadas:
1. Art. 32.º da C.R.P.;
2. Art. 31.º e 32.º do C.P.;
3. Art. 71.º do C.P.
Termos em que e, nos mais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, e deve a mui douta Sentença de que se recorre, ser revogada na parte em que:
1. Condena a Arguida MR, ora Recorrente, pela prática de um crime de ofensas à integridade física, devendo ser proferida, em substituição daquela, decisão absolutória, por aplicação do principio do in dubio pro reo;
Caso assim não se entenda,
1. Deve a mui douta Sentença de que se recorrei ser revogada, e substituída por outra que absolva a ora Recorrente pela verificação da causa de exclusão da ilicitude Legítima Defesa:
Caso assim não se entenda, ainda,
1. Deve a mui douta Sentença de que se recorre, ser revogada na parte em que condena a arguida ao pagamento de uma multa no valor de 630,00 €, devendo ser substituída por outra que fixe aquele valor no seu limite mínimo, ie, 10 dias à taxa de 5,00 €, o que perfaz um valor total de 50,00 €, e, ainda,
2. Ser revogada na parte em que fixa como valor indemnizatório a pagar ao co-arguido MR o valor de 250,00 €, substituindo-a por outra em que não haja qualquer condenação àquele título.

O Ministério Público na Comarca de Penacova respondeu ao recurso interposto pela arguida RM Maia da Silva, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e confirmação da douta sentença recorrida.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
1. No dia 04.04.08, cerca das 18:00, a arguida RM pelo menos, desferiu um pontapé na zona pélvica de MR e arranhou-o, na face, provocando-lhe dores.
2. A arguida OT puxou os cabelos da arguida RM magoando-a.
3. O arguido desferiu na arguida RM socos em várias partes do corpo e um pontapé na perna esquerda
4. Em consequência, a arguida RM sofreu diversas lesões nos membros superiores e inferiores, e na zona do crânio e do tórax, as quais lhe determinaram um período de cinco dias de doença sem incapacidade para o trabalho.
5. Os arguidos agiram de modo livre, voluntário e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
6. A arguida RM deslocara-se à R. …. Lorvão, nas circunstâncias de tempo em apreço para carregar um saco de adubo e batatas, acompanhada do seu irmão, pelo menos.
7. Quando aí chegou, os seus co-arguidos encontravam-se nas imediações, junto à residência da testemunha SE
8. Nesse momento, em termos não concretamente apurados, os arguidos iniciaram discussão, dirigindo a arguida OT à arguida RM as expressões “O teu marido é um corno; na ponta dos cornos só tem bolotas".
9. Em circunstâncias não apuradas, os arguidos MR e OT s aproximaram-se de RM.
10. A certa altura, os arguidos confrontaram-se fisicamente nos termos sobreditos, tendo sido separados pelo irmão da arguida RM, a testemunha HU.
17. Imediatamente antes dos confrontos, a arguida RM disse ao arguido MR "Coitadinho, corno de merda" e "eu não tenho medo de homens".
11. Ao proferir as aludidas expressões, a arguida OT agiu de modo livre, deliberado e consciente, com o propósito de atingir a arguida RM na sua honra e consideração.
12. A arguida RM sentiu-se vexada.
I 3. À data, encontrava-se grávida.
14. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
15. Apresentam escassos recursos sócio-culturais, o que é mais ostensivo nos arguidos OT - muito dispersa no discurso e com comportamentos despropositados -, e MR
16. A arguida OT proferiu diversos palavrões em tribunal desnecessariamente, relatando incessantemente diversas situações sem para tal ter sido instada, repetindo inúmeras vezes o gesto que na sua versão o marido e co-arguido fez quando foi atingido com um pontapé na zona genital; levantando a camisola para explicar o que disse quando lhe foi dirigida a expressão "porca", e referindo-se ao que uma testemunha trazia na mala do carro - droga, nas suas palavras -, em sede de declarações finais.
17. Vivem em casa própria e auferem rendimentos que pouco ultrapassam o valor do salário mínimo nacional, não tendo despesas extraordinárias de assinalar, e praticando agricultura de subsistência.
18. HU, irmão da arguida RM, é de compleição física superior a qualquer dos arguidos.
Factos não provados
Não se provou que:
- No dia 03.04.06, cerca das 18:30, a arguida RM tivesse embatido com o seu veículo automóvel ou qualquer outro no joelho direito de MR , provocando-lhe um hematoma.
- A arguida OT dirigiu a RM as expressões "O puta, tu passas aqui tão depressa porquê? Havias de ficar aqui com os cornos espalhados no chão, nada vem para junto da minha casa sua puta, anda cá que come-las aqui e hoje; cale-se sua vaca; ó puta vais embora, onda cá que ficas aqui estendida sua vaca".
- A arguida OT arrancou vários e avultados punhados de cabelo à arguida RM.
-A arguida RM gritou por socorro.
Também não resultou qualquer facto que permita afirmar que a arguida RM é pessoa séria e considerada e que tente afastar os filhos de qualquer situação de violência ou promiscuidade nem que tivesse ficado prejudicada na sua auto-estima ou que tivesse sentido pânico ou receio peta vida nem que os factos se tivessem repercutido na sua vida familiar ou que se sinta envergonhada.
Por demonstrar ficou ainda que a arguida RM tivesse perguntado aos arguidos “isso é comigo”, referindo-se à conversa que aqueles estavam a ter com a arguida SE, nem que lhe tivessem respondido que sim, que era pelo dia anterior.
Por apurar ficou igualmente que o arguido tivesse perdido dois dias de trabalho, ou que seja pacato e educado, querido e respeitado ou que o episódio tivesse sido comentado de forma jocosa na Comunidade, ou ainda que o arguido/demandado tivesse ficado prejudicado na sua integridade psíquica.
Por último, não resultou que, nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, os arguidos OT e MR soubessem que a arguida RM estava grávida.
Motivação
Foram muito ténues os denominadores comuns aos depoimentos, tendo-se o julgamento pautado pela mentira guarnecida pelo palavrão fácil e despropositado.
Na verdade, não pode deixar de registar-se a facilidade com que cada um dos arguidos repetiu palavrões em audiência, quantas vezes a despropósito face ao contexto do diálogo, e em dissonância como o que cada um dos co-arguidos referiu.
Ao reflectir na prova testemunhal produzida, o tribunal teve em conta desde logo o exame médico-legal de que foi alvo a arguida RM e do qual resulta que no dia 07.04.08, três dias após o sucedido, a arguida apresentava lesões na cabeça, no tórax, nos braços e perna esquerda equimoses e hematomas compatíveis com a descrição que faz da conduta dos seus co-arguidos.
Dos poucos que se registaram, foi denominador comum a circunstância de os factos terem ocorrido no sítio onde se encontrava a arguida RM, o que impõe a conclusão de que pelo menos o arguido MR teria ido ao encontro da arguida RM que, acompanhada pelo menos do irmão HU, pessoa robusta e jovem, não saiu do lugar e dirigira antes ao arguido a expressão “não tenho medo de homens”.
Por outro lado, por nenhum dos arguidos ou testemunhas foi referido que então, já junto da arguida RM, tivessem mantido qualquer outra conversa para além dos palavrões trocados. Apenas foi referido pelos arguidos MR e OT e pela testemunha SE que antes falavam de um episódio que teria ocorrido no dia anterior em que a arguida RM atingira o arguido MR no joelho como o seu veículo ao passar na estrada peto primeiro, que circulava a pé.
Temos assim, num olhar breve e fácil delineado um quadro em que o propósito não foi conversar, tendo o arguido sido atraído pela expressão não tenho medo de homens e tendo encostado a arguida RM à parede na versão da testemunha SE que ostensivamente pretendeu favorecer os arguidos MR e OT. Pois, deu conta de ter visto o arguido a empurrar para a parede RM mas não pode garantir se para além disso, o arguido molestou ou não a última de outra forma, apesar de ter estado sempre a escassos metros a olhar.
Três dias depois, a arguida RM apresentava lesões pelo corpo todo.
Ora, é manifesto que os actos reflectem intenções. De tal modo, que a lei penal pune os chamados actos de execução, cujas características legitimam a conclusão de que os mesmos precedem seguramente outros que, àqueles aliados se subsumem a um tipo legal de crime.
Por conseguinte, afigura-se ostensivo que o arguido MR se dirigiu à arguida Regina com intenção de a molestar fisicamente.
Todavia, a arguida RM e a testemunha HU negam que a primeira tivesse atingido o corpo de MR , irmão de RM, afirma, contudo, que previamente, a arguida OT e a sua irmã se envolveram com puxões de cabelo mútuos, sem que soubesse dizer quem havia começado. Explicou que a guerra de mulheres é pelos cabelos e que apenas se meteu no meio quando o arguido atingiu a irmã e apenas para separá-los.
É certo que a arguida RM não vem pronunciada pela prática de qualquer acto na pessoa da co-arguida tendo até negado que o tivesse feito. Motivo pelo qual, nesta parte, se atendeu ao depoimento de HU. Testemunha que precisou que, antes e enquanto separava, o arguido desferiu diversos murros e pontapés na irmã e que esta apenas se defendia sem, nas suas palavras, bater. Ora, o que é natural, e tendo em conta que os ânimos estavam exaltados, como a própria expressão de RM leva a concluir, é que a arguida Regina pontapeasse igualmente.
Na tarefa de cindir depoimentos, tivemos em conta os denominadores comuns, as regras da experiência e os factos desfavoráveis à parte que cada um dos declarantes pretendeu favorecer. No entanto, com esta limitação e na medida em que os relatos foram todos diferentes, não foi preciso precisar quem começou as hostilidades físicas. Certo é que, face à presença de HU, a arguida RM poderia simplesmente ter-se afastado. Assim sendo, as próprias lesões que apresenta inculcam a ideia de que as hostilidades demoraram mais tempo do que o necessário para dali se afastar com a ajuda do irmão, pelo que arredada está desde logo a hipótese de ter agido com intuito meramente defensivo. Ao contrário, a arguida RM ali permaneceu porque pretendeu agir activamente. Bastava a testemunha HU colocar-se em frente à irmã para a proteger, atenta a sua compleição física.
A irmã do arguido MR depôs com naturalidade, relatando com pormenor, porque instada, os arranhões que viu na cara do arguido nos dias seguintes.
A irmã de RM deu conta do estado de espírito da última nos dias que se seguiram, aborrecida com a situação.
O marido da arguida RM, V mostrou não ter conhecimento de qualquer dos factos em questão.
Por seu turno, o filho do casal de arguidos OT e MR explicou, contrariando a versão dos pais, que o arguido não coxeava antes dos factos ocorridos dia 04.04.08 e que continuou sempre a trabalhar.
OT referiu que, na véspera, o marido vinha com o joelho negro, a coxear e que o saco de plástico que trazia apresentava marcas de roda. Marcas que o arguido, instado e ouvido separadamente, negou.
Ora, não se ignora que os factos que aconteceram no dia 04 foram consequência de anterior desentendimento. Mostra-se provável que a arguida RM tivesse passado de carro com velocidade peto arguido MR . Todavia, ante as aludidas contradições, não foi possível apurar com segurança o que efectivamente se passou. Registe-se que, durante as declarações prestadas, o arguido manifestou a convicção de que a arguida RM não o atingira com o carro de propósito, mas, apenas por irresponsabilidade pelo facto de circular com excessiva velocidade. Ora, assim sendo, sempre seria de questionar se a arguida seguia veloz ou se o arguido circulava fora do passeio/berma.
Não se ignora que se escalpalizam pequenas peças de factos que normalmente acontecem muito rapidamente. Rapidez que, aliada à perspectiva do contexto histórico e geográfico de cada um, condiciona os relatos. Todavia as contradições verificadas ultrapassam as que podem ser determinadas por essa diferença de perspectiva.
Em suma, cada arguido relatou apenas o que lhe convinha, tendo sido, aqui ou ali, atraiçoados por um ou outro lapso freudiano ou por um ou outro apontamento da testemunha com quem contavam. A saber, no essencial, HU versus SE.
Registou-se ainda que OT e SE relataram da mesma forma a reacção da primeira - levantando a camisola para aquilatar da limpeza - , na sequência de a arguida RM lhe ter dirigido a expressão "porca". Facto sem relevância já que OT não instaurou por isso procedimento criminal, mas que demonstra o tipo de linguajar recíproco entre os arguidos. Ora, a arguida Regina também isto negou pelo que foi evidente que pretendeu igualmente ocultar qualquer facto que lhe fosse desfavorável.
Para prova das respectivas condições sócio-económicas, valeram as declarações dos arguidos.
Foram ainda tidos em conta os Certificados do Registo Criminal junto aos autos.
Os factos não provados resultaram de ausência de prova e da aplicação do princípio constitucionalmente protegido da presunção de inocência e do seu corolário “in dubio pro reo”.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos , face às conclusões da motivação da recorrente RM as questões a decidir são as seguintes :
- se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento e violou o princípio in dubio pro reo ao dar como provados os factos que constam do ponto n.º1 da sentença recorrida, uma vez que da prova produzida não resulta a certeza exigível de que a recorrente desferiu um pontapé ao co-arguido MR e o arranhou na face;
- se, a entender-se que em sede de julgamento se fez prova de que a recorrente deferiu um pontapé na zona pélvica do co-arguido MR e o arranhou na face, tendo em conta todo o circunstancialismo dado como provado deveria a recorrente ter sido absolvida por haver agido em legítima defesa;
- se a pena de multa aplicada à arguida RM é excessiva, devendo ser reduzida para o mínimo legal de 10 dias, à taxa diária de € 5; e
- se, por falta de prova da existência de danos não patrimoniais, não devia ter sido fixada qualquer valor de indemnização a favor do ofendido/arguido MR, devendo ser absolvido do pedido de indemnização.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
A modificação da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as seguintes condições, enunciadas no art.431.º do mesmo Código:
« a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou
c) Se tiver havido renovação de prova .”.
A situação prevista na alínea a), do art.431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta do processo, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento.
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al.c) do art.431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do art.431.º do C.P.P..
Esta alínea b) do art.431.º do C.P.P., conjugada com o art. 412.º, n.º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:
« a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
c) As provas que devam ser renovadas.»
E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.»
O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. ( n.º 6 do art.412.º do C.P.P.).
Sobre o dever das menções dos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P. constarem das conclusões da motivação, o STJ já se pronunciou no sentido de que a redacção do n.º 3 do art.412.º do C.P.P., por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…) ”, já o n.º 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impor que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, quando o recorrente tenha procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões. – cfr. acórdão do STJ, de 5 de Julho de 2007, proc. n.º 07P1766, www.dgsi.pt/jstj.
O art.417.º, n.º 3 do C.P.P., na actual redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, permite o convite ao recorrente para completar ou esclarecer as conclusões formuladas.
No presente caso, a recorrente RM indica nas conclusões da motivação os concretos factos que foram dados como provados na sentença recorrida e que considera incorrectamente julgados - os constantes do ponto n.º 1 - e, ainda, minimamente, as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida, e que são, devidamente interpretados, as suas próprias declarações, as declarações dos arguidos OT e MR e os depoimentos das testemunhas MR e HU
Embora nas conclusões da motivação, quanto à prova produzida oralmente na audiência, não faça a arguida RM, menção aos respectivos suportes técnicos, por referência ao consignado na acta, indicando as concretas passagens em que se fundamenta a impugnação, essa menção é feita na motivação do recurso.
Deste modo, por uma questão de economia processual, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, o Tribunal da Relação considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, que a recorrente Regina impugna, ao abrigo do disposto nos artigos 412.º, n.ºs 3 e 4 e 431.º, al. b), do C.P.P..
No âmbito de impugnação da matéria de facto, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova , previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal , que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
As normas da experiência são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento , encontrando afloramento , nomeadamente , no art. 355.º do Código de Processo Penal . È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova.
O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais “. - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .
Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Do exposto resulta que, para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Em suma, o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
O objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289.
Como salienta o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, “ a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º , tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1.º, pág. 51.
Quanto ao princípio in dubio pro reo, invocado pela recorrente RM, o mesmo decorre do principio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui, designadamente, que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido. Ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido - cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 ( C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177 ) .
A recorrente RM impugna nas conclusões da motivação a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida no ponto n.º 1, isto é, que « No dia 04.04.08, cerca das 18:00, a arguida RM, pelo menos, desferiu um pontapé na zona pélvica de MR e arranhou-o, na face, provocando-lhe dores.».
Alega para este efeito, e em síntese, o seguinte:
- das declarações da arguida/recorrente prestadas em audiência de julgamento e cujos segmentos se transcrevem na motivação, resulta que a mesma não agrediu o arguido MR quando este e a OT se dirigiram a si, limitando-se a proteger o seu rosto e a zona abdominal das agressões dos co-arguidos. Perante as agressões dos co-arguidos ficou “calada e quieta”;
- as declarações da arguida OT prestadas em audiência de julgamento e cujos segmentos se transcrevem na motivação, são confusas e contraditórias, pois declarou, designadamente, que a arguida RM se dirigiu aos co-arguidos e, apesar de entre a arguida RM e o arguido MR estarem a arguida OT e a testemunha HU, a arguida RM pontapeou o arguido MR nas “zonas baixas” e arranhou-o nas duas faces, colocando-o a sangrar. Pontapeou ainda a arguida OT na perna esquerda e partiu-lhe os óculos , que atirou ao chão. Nem ela nem o arguido MR “ mexeram” na RM;
- as declarações prestadas pelo arguido MR na audiência de julgamento, cujos segmentos transcrevem, coincidiram com as prestadas pela sua mulher OT, no sentido de que “ não mexeram” na arguida RM
Ainda assim, apresentou versões diferentes das prestadas pela OT relativamente a perguntas que não era previsível que lhe fossem feitas. Enquanto a arguida OT disse que no dia 3 de Abril de 2008 a arguida RM terá batido com o carro na perna do arguido MR ficando este com a perna “toda preta” e “esfacelada”, o arguido MR declarou que a perna não ficou negra, mas inchada. Enquanto a arguida OT refere que com a pancada do carro da arguida RM o saco que o arguido MR transportava com a “bucha” caiu ao chão, ficando com marcas das rodas no saco, o arguido MR disse que o saco da “bucha” que levava caiu ao chão, mas não ficou com marcas de roda do carro. A arguida OT declarou que a arguida RM a agrediu no rosto de modo que os óculos caíram ao chão e se partiram o arguido MR disse que não viu os viu cair, e que a OT é que dizia que lhe deitaram os óculos ao chão;
- a testemunha MR, no depoimento prestado na audiência de julgamento, cujos segmentos se transcrevem, declarou que não assistiu ao início da contenda, mas na parte a que assistiu declarou, peremptoriamente, que não viu a arguida RM agredir os arguidos MR e OT, e que aquela é que foi agredida por estes arguidos;
- a testemunha HU, no depoimento prestado na audiência de julgamento, cujos segmentos se transcrevem, declarou, de forma descomprometida, que a sua irmã RM e a OT tinham puxado os cabelos uma à outra, mas a arguida RM não deu qualquer pontapé ao arguido MR, nem o arranhou. A arguida RM, que foi agredida pelos arguidos MR e OT apenas se protegia para evitar ser agredida, pois estava grávida.
- o depoimento da testemunha SE prestado na audiência de julgamento, cujos segmentos se transcrevem, é totalmente impregnado de mentira pois disse que assistiu a tudo, a uns 5 ou 10 m dos arguidos, e apenas viu a arguida RM bater no arguido MR e que não viu este arguido a bater na arguida RM. Ainda assim, não disse que viu dar um pontapé na zona pélvica do arguido MR.
Desta prova produzida não se pode concluir que a recorrente praticou o crime pelo qual foi condenada. O Tribunal ao ter dado como provado que a recorrente agrediu o MR violou o princípio in dubio pro reo.
Vejamos.
O Tribunal da Relação procedeu à audição integral das declarações dos arguidos RM, OT e MR e ainda dos depoimentos das testemunhas MR, HU e SE
Os segmentos daquelas declarações dos arguidos e depoimentos das testemunhas, transcritos pela recorrente RM na motivação do recurso, correspondem no essencial ao que por todos eles foi dito na audiência em julgamento.
Como refere a recorrente RM na motivação, nas declarações prestadas em audiência, negou ter dado um pontapé ao MR e ter-lhe arranhado a cara. Afirmou, designadamente, que estava grávida de 8 semanas e que ficou “calada e quieta”, tendo sido os arguidos MR e OT quem a agrediu corporalmente.
A testemunha MR declarou, designadamente, que não assistiu ao início dos confrontos, mas na parte que presenciou não viu a recorrente RM a agredir o MR nem a OT. Estes é que agrediram corporalmente a arguida RM.
Nas mesmas águas da arguida RM navegou a testemunha HU, irmão dela, negando que esta tenha agredido em qualquer momento o arguido MR , embora tenha acrescentado que, numa primeira fase, a arguida OT chegou sozinha até junto da RM e que ambas puxaram o cabelo uma à outra.
Uma outra versão dos factos, na parte em causa, é apresentada pelos arguidos OT e MR. Nas suas palavras, “não mexeram” na arguida RM, tendo sido esta que os agrediu, designadamente ao arguido MR, com um pontapé no meio das pernas e o arranhou com as unhas na cara.
A testemunha Selene, declarou, por sua vez, designadamente, que inicialmente apenas o arguido MR se dirigiu à arguida RM, ficando a arguida OT consigo. Que quando o arguido MR chegou junto da arguida RM agarraram-se um ao outro e quando aquele a encostou a um parede, não lhe estando a fazer mal, ela começou-lhe logo aos pontapés , por baixo e pelo lado do irmão, que se veio meter entre eles. Ela deu pontapés ao arguido MR, mas não sabe se foi “nas partes baixas”. Não viu nem o arguido MR, nem a arguida OT ,que entretanto se juntou ao marido, a baterem à arguida RM. O arguido MR ficou arranhado na cara, escorrendo sangue, pelo que devia ter sido das unhas da arguida RM. Apenas viu a arguida RM a bater aos arguidos MR e OT.
Perante estas declarações e depoimentos, concordamos com a parte da fundamentação da douta decisão recorrida quando menciona que cada arguido relatou apenas o que lhe convinha , tendo sido aqui e ali atraiçoados por um ou outro lapso – como é o caso referido pela recorrente, por exemplo, dos arguidos MR e OT, quando não estiveram de acordo em pormenores, aliás irrelevantes, como o joelho do arguido MR ter ficado ou não negro em resultado duma pancada dada pelo veículo automóvel da arguida RM, no dia anterior aos factos, e a existência de marcas ou não num saco transportado pelo arguido MR, na mesma altura, causadas pelo mesmo veículo da arguida Regina.
O exame médico-legal a que se sujeitou a ofendida RM, no dia 7-4-2008, na sequência da queixa apresentada contra os arguidos MR e OT, é compatível com as agressões que a mesma imputa a estes, desmentindo a versão dos arguidos MR e OT, de que não agrediram a RM, e coloca em causa o depoimento da testemunha SE enquanto declarou que não viu qualquer agressão dos arguidos MR e OT à RM.
O arguido MR não foi sujeito a exame médico-legal, pois que só apresentou queixa contra a RM aquando do seu interrogatório, em 11-9-2008 ( cfr. folhas 65 a 68).
Apesar da ausência desse exame, o Tribunal a quo declarou na fundamentação da sentença, que a irmã do arguido MR – MD – “ depôs com naturalidade, relatando com pormenor, porque instada, os arranhões que viu na cara do arguido nos dias seguintes.”.
Este depoimento da testemunha MD, valorado positivamente pelo Tribunal recorrido, no âmbito da imediação e da oralidade, não sofreu impugnação com factos objectivos nas conclusões da motivação – nem na motivação –, pelo que, conjugado com as declarações dos arguidos MR e OT e depoimento da testemunha SE, permitem dar como provado que a arguida RM, no dia 4-4-2008, arranhou o MR na face.
Para credibilizar o depoimento da testemunha HU, diz a recorrente que esta testemunha até referiu de forma descomprometida que a sua irmã RM se envolveu numa luta com a arguida OT, tendo ambas puxado os cabelos uma à outra.
Se tivermos porém, em conta, que a arguida OT não apresentou queixa crime contra a arguida RM por ofensas à integridade física podemos concluir que a sua declaração não comprometeu criminalmente a sua irmã. Como se menciona na fundamentação da sentença, essa declaração, que evidenciou que a arguida RM também faltou á verdade sobre os factos narrados, é ainda o resultado de uma falha de uma testemunha com que a RM contava para suportar a sua versão dos factos.
Relativamente ao pontapé na zona pélvica, no meio das pernas, que o MR afirmou que lhe foi dado pela arguida RM, e confirmado pela sua mulher, importa realçar que a testemunha SE, embora declarando não poder afirmar que a arguida RM o atingiu naquela zona corporal, esta dava-lhe pontapés por baixo e pelo lado do irmão.
A recorrente insurge-se contra a parte da fundamentação da matéria de facto da decisão recorrida, onde se diz “… o que é natural , e tendo em conta que os ânimos estavam exaltados, como a expressão da RM leva a concluir, é que a arguida RM pontapeasse igualmente.”, porquanto tal presunção não tem qualquer suporte fáctico.
Salvo o devido respeito, em face das regras da experiência comum, é “natural” que uma mulher que diz para um homem, imediatamente antes dos confrontos físicos , “Coitadinho, corno de merda” e “eu não tenho medo de homens”, que, envolvendo-se em confronto físico com esse homem a quem assim se dirigiu, fique “ quieta e calada”, tanto mais que em dado momento foi agredida por ele e até surge no local o irmão dela, com compleição física superior á desse homem.
Como ensina o Prof. Enriço Altavilla, « O interrogatório, como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras.» - “ Psicologia Judiciária”, Vol. II, Arménio Amado, Coimbra, 3.ª Edição, pág. 12.
No caso em análise, o Tribunal a quo cindiu as declarações e depoimentos , valorando positivamente, no âmbito da imediação e da oralidade, partes delas nos termos que constam da fundamentação da matéria de facto.
A convicção do Tribunal recorrido expressa na sentença, adquirida na base da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, no sentido de que a arguida RM praticou os factos dados como provados no ponto n.º1, não é irracional, nem viola as regras da experiência comum, como atrás se deixou já consignado.
O Tribunal da Relação não vê razões para concluir que o Tribunal a quo devia ter decidido de modo diverso aquela matéria de facto, pelo que está deste modo afastada a existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Lendo a fundamentação sobre a matéria de facto da sentença recorrida não se vislumbra ainda nela que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pela arguida RM dos factos que deu como provados.
O que resulta daquela é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à prática pela arguida/recorrente dos factos dados como provados.
Afastada fica assim, igualmente, a violação pelo Tribunal recorrido – e bem face à prova produzida – do principio “in dubio pro reo”, pelo que se considera definitivamente fixada a matéria de facto nos termos que constam da sentença recorrida.
Improcede assim integralmente esta questão.
A segunda questão objecto de recurso é se, a entender-se que em sede de julgamento se fez prova de que a recorrente deferiu um pontapé na zona pélvica do co-arguido MR e o arranhou na face, perante todo o circunstancialismo dado como provado, deveria a recorrente ter sido absolvida por haver agido em legítima defesa, nos termos do art.31.º do Código Penal.
Alega a recorrente Regina, para este efeito, que as agressões de que ela estava a ser alvo eram actuais e i1ícitas, e que apenas exerceu a defesa necessária para repelir essas mesmas agressões e sempre numa atitude de “defendendi”, como a própria testemunha HU referiu por diversas vezes em julgamento.
Passemos a decidir a questão.
A legítima defesa vem prevista no art.º 32.º do Código Penal e consiste no facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.
Seguindo aqui o Cons. Maia Gonçalves, os requisitos para que se verifique a exclusão da ilicitude, por legitima defesa, são os seguintes:
« a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter direito de a fazer; não se exige que ele actue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra actos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro;
b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio. Trata-se de um afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontre em posição de o fazer, sendo à força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela C.R.P.
c) Animus deffendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente.
Cremos que a necessidade objectiva de defesa constitui o cerne da tutela privada de bens jurídicos que a figura acolhe em seguimento do disposto no art.21.º da Constituição da República.
Já quanto à necessidade subjectivamente conduzida pela vontade de se defender, a intenção de defesa, o chamado animus deffendendi, a larga maioria do entendimento a nível de jurisprudência, continua a exigir que o agente actue com este animus e que a sua actuação seja adequada a evitar a lesão iminente, para que possa ter-se por verificada a legítima defesa.
Neste sentido, diz-se no acórdão do STJ, de 14 de Maio de 2009, que « Essencial, pressuposto estrutural à legítima defesa, é , mesmo , o “ animus defendendi”, a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima;…» - proc. n.º 389/06.8GAACN.C1.S1 , in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Évora, de 18/03/2010, proc. n.º 341/08.9GCSLV.E1, in www.dgsi.pt.
Negando a necessidade do chamado " animus defendendi " para a verificação da legítima defesa, pronunciam-se os Prof.s Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, II, pág. 97) , Figueiredo Dias (Direito Penal I, pág. 408) e Taipa de Carvalho ( Direito Penal, Parte Geral, II, 219), e o acórdão do STJ de 19.1.99 ( BMJ 483, pág. 57). De qualquer modo, como afirma Taipa de Carvalho no local citado, é sempre necessário que se tenha conhecimento de todos os elementos ou pressupostos objectivos da justificação por legítima defesa.
Neste capítulo, são ainda necessárias ponderações normativas e ético-sociais para determinar se uma acção é imposta ou não através da legítima defesa. Assim, a pré-ordenação intencional de agressão para poder lesar outrem sob o manto protector da legítima defesa ou uma crassa desproporção para com o dano iminente podem afastar aquela causa de exclusão da ilicitude.
Traçados, assim, esquematicamente, os contornos da figura, atentemos nos factos provados.
Dos factos provados resulta, no essencial, que no dia 04.04.08, cerca das 18:00, a arguida RM..., Lorvão, para carregar um saco de adubo e batatas, acompanhada do seu irmão, pelo menos ( ponto n.º6).
Quando a arguida RM aí chegou, os arguidos MR e OT encontravam-se nas imediações, junto à residência da testemunha SE ( ponto n.º7).
Em termos não concretamente apurados, os arguidos iniciaram uma discussão, dirigindo a arguida OT à arguida RM as expressões “O teu marido é um corno; na ponta dos cornos só tem bolotas". ( ponto n.º 8) e, em circunstâncias não apuradas, os arguidos MR e OT aproximaram-se da RM ( ponto n.º 9).
Imediatamente antes dos confrontos, a arguida RM disse ao arguido MR “Coitadinho, corno de merda” e “eu não tenho medo de homens” ( ponto n.º 17, primeiro deles).
A certa altura, os arguidos confrontaram-se fisicamente ( ponto n.º 10), tendo a arguida RM desferido um pontapé na zona pélvica de MR e arranhado este na face, provocando-lhe dores ( ponto n.º1); arguida OT puxou os cabelos da arguida RM, magoando-a ( ponto n.º 2 ); e o arguido MR desferiu na arguida RM socos em várias partes do corpo e um pontapé na perna esquerda ( ponto n.º 3), causando a esta diversas lesões nos membros superiores e inferiores, e na zona do crânio e do tórax, que lhe determinaram um período de cinco dias de doença sem incapacidade para o trabalho ( ponto n.º 4).
A arguida RM encontrava-se grávida ( ponto n.º 13 ).
Os arguidos foram separados pelo irmão da arguida RM, a testemunha HU ( ponto n.º10).
Para defender a existência da legítima defesa a recorrente faz, nas conclusões da motivação e na motivação, uma interpretação conjugada dos factos dados como provados nos pontos n.ºs 13, 9, 2, 3,4, e 1, com o parágrafo 8 da fundamentação e o que a testemunha HU terá dito a propósito da actuação da arguida RM – onde declara designadamente não ter visto a sua irmã a pontapear o arguido MR, mas só a defender-se.
O certo, porém, é que Tribunal a quo não incluiu entre os factos dados como provados que a arguida RM desferiu um pontapé na zona pélvica de MR e arranhou-o na face, como forma de evitar a lesão eminente do seu corpo ou a eventual interrupção da gravidez, ou que tenha actuado desse modo para fazer cessar a agressão por parte do arguido MR e que o tenha feito com animus deffendendi.
Na parte do recurso em que impugnou a matéria de facto a recorrente RM não pediu o aditamento, à factualidade provada, daqueles factos necessários à verificação da legítima defesa.
Como vimos, dos factos provados, resulta apenas que a arguida RM e o arguido MR ofenderam-se corporalmente um ao outro.
Do exposto resulta que não se têm como verificados os pressupostos da legítima defesa invocada pela recorrente RM e, consequentemente, não se mostra excluída a ilicitude da sua conduta, descrita no ponto n.º1 dos factos provados, e integradora do crime de ofensas à integridade física simples.
Importa agora decidir se a pena de multa aplicada à arguida RM é excessiva, devendo ser reduzida para o mínimo legal de 10 dias, à taxa diária de € 5.
Subsumindo os factos dados como provados ao disposto no art.143.º,n.º 1 do Código Penal temos como pacífico que a arguida RM, com a sua conduta relativamente ao MR , preencheu, em autoria material, todos os elementos constitutivos do crime de ofensas à integridade física simples.
O crime de ofensas à integridade física simples em causa é punível com pena prisão até 3 anos ou pena de multa de 10 a 360 dias .
No presente caso , o Tribunal recorrido , atento o disposto no art.70.º do Código Penal , optou pela aplicação à arguida RM de pena de multa , em detrimento da pena de prisão prevista no tipo legal.
Na determinação concreta da pena de multa deve o juiz começar por fixar o número de dias de multa.
Estes, por expressa remissão do art.47.º, n.º1 do Código Penal , serão determinados de acordo com os critérios estabelecidos no art.71.º do Código Penal .
Assim, na graduação do número de dias da pena de multa deve o Tribunal atender à culpa do agente e ás exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra este.
A culpa é um juízo de reprovação pessoal feita ao agente de um facto ilícito-típico , porquanto podendo comportar-se de acordo com o direito , optou por se comportar em contrário ao mesmo. A conduta culposa é expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual o agente tem, por isso, de responder perante as exigências do dever-ser da comunidade.
A culpa tem uma função limitadora do intervencionismo estatal pois a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa, nomeadamente por razões de prevenção, que vêm enunciadas no art. 40.º, n.º 1 do Código Penal.
A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer para dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente (prevenção geral negativa ou de intimidação) , quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e , assim , no ordenamento jurídico-penal ( prevenção geral positiva ou de integração).
A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.
A arguida RM defende a redução do número de dias de multa em que foi condenada – 90 dias –, para o mínimo legal de 10 dias, aludindo nas conclusões da motivação ao “ circunstancialismo apurado”.
A este propósito, na motivação do recurso, remete para os pontos n.ºs 1, 2, 3,4 e 9 dos factos dados como provados na sentença e para o § 8 da fundamentação – em que se refere ser ostensivo que o arguido MR se dirigiu á recorrente com intenção de a molestar fisicamente – para concluir que não deveria ter sido condenado em 90 dias de multa, como o foram também os outros arguidos.
Vejamos.
O que está aqui em causa é se os dias da pena de multa aplicada à recorrente RM foram os adequados, perante os critérios legais acabados de enunciar. Não cumpre aqui decidir da justeza ou não das penas aplicadas aos outros arguidos.
Feito este parêntesis, diremos que, sendo pequena, não é diminuta a ilicitude dos factos imputados à arguida RM considerando que atingiu o MR com um pontapé na região pélvica, para além de ainda o ter arranhado na face.
As consequências para o MR foram pequenas, traduzindo-se em dores.
Agiu com dolo directo, que é a mais censurável forma de culpa, sendo que “Imediatamente antes dos confrontos, a arguida RM disse ao arguido MR "Coitadinho, corno de merda" e "eu não tenho medo de homens" – ponto n.º 17 ( o primeiro deles, pois existem dois com o mesmo número) dos factos dados como provados.
A conduta da arguida RM ocorre num quadro de ofensas corporais recíprocas com o arguido MR, sem que tenha sido possível apurar quem iniciou as agressões corporais.
Se é verdade que, não tendo a arguida RM antecedentes criminais e estando inserida na família e no trabalho, as razões de prevenção especial, ligadas à reintegração da mesma na sociedade , não são as mais prementes , também importa realçar que na sentença não se deram como provadas circunstâncias relevantes como a confissão e o arrependimento, nem se mostra ter pretendido reparar as consequências dos danos causados ao lesado MR.
As exigências de prevenção geral - quer sob a forma negativa , de intimidação , quer sob a forma positiva , de incentivo aos cidadãos a aprofundarem a consciência de que as normas penais são válidas e eficazes – não são de desprezar , tendo em conta o elevado número de crimes contra a integridade física.
Considerando a moldura penal da multa aplicável ao crime de ofensas à integridade física simples e as circunstâncias ora referidas, onde se não pode esquecer a modesta condição social e a existência de ofensas recíprocas trocadas com o MR, o Tribunal da Relação entende que a pena de 90 dias multa fixada na sentença recorrida é equilibrada, pois não ultrapassa, em concreto , a culpa e as razões de prevenção geral e especial.
Deste modo são de manter os dias de multa fixados na douta sentença recorrida.
Relativamente ao quantitativo diário da multa, importa relembrar que de acordo com o n.º2 do art.47.º do Código Penal « cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500 , que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.».
A recorrente pretende que a taxa diária das penas de multa fixada pelo Tribunal recorrido se situe no limite mínimo de € 5, porquanto aufere o rendimento mínimo nacional.
Está dado como provado que a arguida RM vive em casa própria e aufere rendimentos que pouco ultrapassam o valor do salário mínimo nacional, não tendo despesas extraordinárias de assinalar e pratica agricultura de subsistência - ponto n.º 17 ( o segundo deles ).
Se em situações de indigência ou quase indigência, como acontece , por exemplo , com os desempregados que não recebem subsídios ou estudantes que apenas recebem de pais pobres pequenas quantias avulsas, poderá o quantitativo diário da multa aproximar-se do limite mínimo legal de € 5, tal já não deverá acontecer a quem vive em casa própria, auferindo rendimentos que pouco ultrapassam o valor do salário mínimo nacional, não tem despesas extraordinárias de assinalar e pratica agricultura de subsistência.
A pena de multa tem de representar uma censura suficiente do facto e, simultaneamente , uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada .
A taxa diária da pena de multa pretendida pela recorrente , de € 5, peca por defeito e «não teria correspondência com o sofrimento que implica a privação de liberdade pelo número de dias (mesmo que só normativamente correspondente) .»- ( Cfr. Prof. Figueiredo Dias ” “Direito Penal Português , as consequências jurídicas do crime” , Notícias Editorial, § 189 ) .
A taxa diária de € 5, pelo seu reduzido montante, colocaria em causa as finalidades próprias da multa , como pena criminal , pecuniária.
Deste modo, entendemos manter a taxa diária de multa fixada pelo Tribunal recorrido em € 7.
A última questão a decidir é se, por falta de prova da existência de danos não patrimoniais, não devia ter sido fixada qualquer valor de indemnização a favor do ofendido/arguido MR, devendo ser absolvido do pedido de indemnização.
A recorrente RM alega para este efeito que o filho do demandante, HS declarou em audiência, conforme resulta dos segmentos transcritos do seu depoimento, que o demandante MR não se sentiu envergonhado, humilhado ou vexado com as ofensas que lhe foram causadas pela demandada RM.
Vejamos.
Antes do mais diremos que o Tribunal da Relação manteve a decisão recorrida quanto à parte penal, designadamente que a arguida RM desferiu um pontapé na zona pélvica do MR e o arranhou na face, provocando-lhe dores (ponto n.º 1 dos factos provados).
È por esta factualidade enunciada no ponto n.º 1 dos factos provados que é atribuída a indemnização por danos não patrimoniais, sendo que não consta dos factos provados, nem da fundamentação de direito da sentença, que a indemnização visou ressarcir um sentimento de vergonha, humilhação ou vexame causado pela demandada RM.
Posto isto, acrescentamos aqui que o art.400.º, n.º 2 do Código de Processo Penal estatui que «Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa a indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.».
A expressão “só” foi introduzida pela Lei n.º 59/98, que acrescentou ainda uma nova exigência antes não contida no n.º2 do mesmo artigo: o valor do pedido, para efeitos de admissão de recurso da decisão cível, tem de ser superior à alçada do tribunal recorrido.
No actual regime, mesmo que a sucumbência seja superior a metade da alçada do tribunal não é admissível o recurso se o valor do pedido se situar dentro da alçada do tribunal recorrido.
Em matéria cível, a alçada dos tribunais de 1ª instância era à data da dedução do pedido de indemnização e ainda é, de € 5.000,00 (art.24.º, n.º1 da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção do DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2008).
No caso em apreciação o valor do pedido de indemnização global formulado pelo demandante MR , contra a demandada RM é de € 1 587,20, correspondendo € 87,20 a danos patrimoniais e € 1 500,00 a danos não patrimoniais.
A demandada RM foi condenada, na sentença recorrida, a pagar ao demandante MR Ralha o valor de duzentos e cinquenta euros (€ 250,00) por danos não patrimoniais, acrescido de juros legais desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento
Tendo o Tribunal da Relação mantido a decisão recorrida quanto à parte penal, designadamente que desferiu um pontapé na zona pélvica do MR e o arranhou na face, provocando-lhe dores, e resultando do exposto que o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil não satisfaz nenhum dos dois requisitos necessários à sua admissibilidade, enunciados no art.400.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, impõe-se não conhecer do recurso interposto da parte da sentença relativa à indemnização civil, por inadmissibilidade do mesmo.
Em suma, o Tribunal da Relação não reconhece a violação pela sentença recorrida de qualquer das normas jurídicas invocadas pela arguida/recorrente nas conclusões da motivação, pelo que resta confirmar aquela decisão.

Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida RM e manter a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente , fixando em 5 Ucs a taxa de justiça , sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,