Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
135/16.8T9GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO IN ITINERE – ESCADAS EXTERIORES DA CASA DO SINISTRADO
JUROS DE MORA PELAS PRESTAÇÕES DE ACIDENTE DE TRABALHO EM ATRASO.
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO DO TRABALHO DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO - SECÇÃO SOCIAL
Decisão: SENTENÇA REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 135º CPT; 8º E 9º DA LAT (LEI Nº 98/2009, DE 4/09).
Sumário:
I – Do artº 135º do CPT – norma imperativa – resulta que na sentença, o juiz, além do mais, fixa também, se forem devidos, juros de mora pelas prestações em atraso mesmo que não tenham sido pedidos.
II – O artº 135º CPT consagra um regime jurídico especial para a mora no domínio das pensões e indemnizações e que se sobrepõe ao regime da mora estipulado pelos artigos 804º e 805º do C. Civil.
III – Os juros de mora são devidos desde o dia seguinte ao da alta, sobre o valor do capital de remição e até à sua efetiva entrega, pois desde aquele o devedor incorreu em mora e este capital mais não é do que uma forma de pagamento unitário da pensão anual e vitalícia.
IV – A lei nº 98/2009, de 4/09, veio alargar o conceito de acidente de trabalho in itinere, ao estabelecer nos artºs 8º e 9º, nº 1, al. a) e nº 2, al. b), que se considera acidente de trabalho o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador e as instalações que constituem o seu local de trabalho.
V – O artº 9º, nº 2, al. b) da LAT deve ser interpretado no sentido de abranger os acidentes ocorridos nas escadas do logradouro da moradia do trabalhador, antes de se entrar na via pública, logo que transposta a porta de saída daquela residência e desde que o sinistrado se desloque para o seu local de trabalho, no trajeto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo mesmo.
Decisão Texto Integral:
Acordam Relatora – Paula Maria Roberto
Adjuntos – Ramalho Pinto
Felizardo Paiva na Secção Social (6ª Secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

A…, residente em (…)

intentou a presente ação especial de acidente de trabalho, contra:

R…, com sede em (…)

alegando, em síntese, que:
No dia 23/12/2015, quando saiu do interior da sua residência a fim de se dirigir ao seu local de trabalho, após ter saído a porta da residência, iniciou a descida das escadas exteriores da mesma que dão acesso a um pequeno logradouro e, em seguida, à via pública, sendo que, no último degrau, escorregou, torceu o pé e desequilibrou-se, caindo desamparada e tendo batido, ainda dentro do logradouro junto ao portão que se encontrava fechado, com o ombro e sentido, desde logo, uma forte dor no pé esquerdo, não conseguindo levantar-se do chão; em consequência, sofreu uma entorse do tornozelo esquerdo, ficando com edema ligeiro e sequelas de entorse no membro inferior esquerdo, o que lhe determinou uma ITA de 59 dias, sendo-lhe devida a indemnização de € 841,34; ficou a sofrer de uma IPP de 4,5%; o sinistro de que foi vítima é o típico acidente de trabalho in itinere, ocorrido já no trajeto entre a residência e o local de trabalho e, como tal, indemnizável e, assim, tem direito a receber a pensão anual de € 234,16 obrigatoriamente remível.
Termina dizendo que deve a presente ação ser julgada procedente, por provada e, em consequência, ser a Ré condenada a reconhecer que o acidente é um acidente de trabalho e a pagar à A. a pensão anual, a indemnização por ITA, a quantia de € 40,32 referente às despesas de transporte e a quantia de € 54,06 referente às despesas suportadas com medicamentos e juros de mora, à taxa legal, contados a partir do vencimento das obrigações.
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A Ré seguradora apresentou contestação alegando que:
O acidente em causa não ocorreu no trajeto entre a residência da sinistrada e o seu local de trabalho; as escadas onde, alegadamente, ocorreu o sinistro, constituem propriedade privada da A., parte integrante da sua habitação, pelo que, o sinistro em causa não configura um acidente in itinere; deste modo, o sinistro sofrido pela A. não integra o conceito de trabalho consagrado na LAT e inexiste qualquer obrigação de a ora contestante indemnizar a sinistrada.
Termina, dizendo que improcede a presente ação, com as legais consequências.
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Foi proferido o despacho saneador de fls. 110 e segs., selecionada a matéria assente e elaborada a base instrutória.
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Procedeu-se a julgamento conforme resulta da ata de fls. 114 e segs..
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Foi, depois, proferida sentença (fls. 117 e segs.) e cujo dispositivo é o seguinte:
Em face do exposto decide o Tribunal:
Condenar a ré «R…» a:
i. Reconhecer que o acidente que vitimou a autora A…, no dia 23 de dezembro de 2015, é um acidente de trabalho e que dele resultaram lesões e sequelas que motivaram uma incapacidade parcial permanente e um período de incapacidade temporária absoluta;
ii. Pagar à autora A… as seguintes importâncias:
a. € 1 913,75 (mil novecentos e treze euros setenta e cinco cêntimos), correspondente ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 156,11 (cento cinquenta e seis euros onze cêntimos), montante acrescido de juros de mora, contados desde 1 de fevereiro de 2016, sobre o valor da pensão, até integral e efetivo pagamento;
b. € 556,14 (quinhentos cinquenta e seis euros catorze cêntimos), a título de indemnização devida por incapacidade temporária absoluta, montante acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde 24 de dezembro de 2015, até integral e efetivo pagamento;
c. € 54,06 (cinquenta e quatro euros seis cêntimos, a título de despesas, montante acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da tentativa de conciliação até integral e efetivo pagamento;
d. € 39,00 (trinta e nove euros), correspondente às despesas de transporte em deslocações obrigatórias, valor acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da tentativa de conciliação até integral e efetivo pagamento, acrescendo ainda as quantias que, a idêntico título, tenham sido e venham a ser suportadas pela autora após a tentativa de conciliação.
II.
Condenar a ré «R…» no pagamento das custas do processo, na proporção de 68% (sessenta e oito por cento).”
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A A. patrocinada pelo Ministério Público, notificada desta sentença, veio interpor recurso que conclui da forma seguinte:
“1. Com base nos elementos do processo, na prova produzida e no resultado do exame pericial do GML, pronunciou-se a sentença recorrida:
a. Fixando em 3% a incapacidade permanente da sinistrada A…, resultante das lesões e sequelas do acidente que sofreu em 23/12/2015,
b. e condenando R…, além do mais que aqui não releva, a pagar-lhe:
b.1. o montante de 1.913,75 €, com data de vencimento em 01/02/2016, correspondente ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 156,11 €;
b.2. juros de mora sobre o valor da pensão anual de 156,11 €, a partir daquela data.
2. A seguradora não foi condenada no pagamento da pensão anual e vitalícia de 156,11 €, não criou a sinistrada uma expectativa de recebimento daquele valor, nem a seguradora se constituiu na obrigação de o pagar, funcionando tão-só o valor anual da pensão como elemento de referência para o cálculo do capital de remição (com a data da alta, a idade da sinistrada e a taxa correspondente prevista no anexo à Portaria 11/2000).
3. A condenação efectiva da seguradora é no pagamento do capital de remição da pensão, no montante de 1.913,75 €, com vencimento em 01/02/2016, pelo que é sobre o valor do capital de remição que devem incidir os juros de mora a fixar nos termos do art.º 135 do CPT, desde a data do respectivo vencimento até integral pagamento.
4. Ao decidir a incidência dos juros de mora sobre o valor anual da pensão e não sobre o valor do capital de remição, o tribunal violou ou interpretou erradamente os art.ºs 42º, nº 2 e nº 3 al. c) e 75º, nº 1 da Lei 98/2009.
Nestes termos,
deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida na parte em que condena R… a pagar à sinistrada A… o capital de remição no valor de 1.913,75 €, com vencimento em 01/02/2016, acrescido de juros de mora sobre o valor da pensão anual de 156,11 €, substituindo-a por outra que condene a seguradora a pagar à sinistrada o capital de remição da pensão anual de 156,11 €, no montante de 1.913,75 €, com vencimento em 01/02/2016, acrescido de juros de mora sobre o valor do capital de remição, desde a data de vencimento até integral pagamento, com o que se fará JUSTIÇA.”
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A Ré, notificada desta sentença, veio também interpor recurso que concluiu nos seguintes termos:
(…)
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A Ré recorrida respondeu ao recurso interposto pela A. alegando, além do mais, que:
(…)
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A A. recorrida também apresentou resposta ao recurso interposto pela Ré alegando, além do mais, que:
(…)
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Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
a-) Factos provados constantes da sentença recorrida:
(…)
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b) - Discussão
Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º, n.º 1, do NCPC), salvo as que são de conhecimento oficioso.
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Cumpre, então, conhecer as seguintes questões suscitadas pelas recorrentes:
Do recurso da A.:
Se a Ré devia ter sido condenada a pagar à A. o capital de remição no montante de € 1.913,75, acrescido de juros de mora desde a data do seu vencimento até integral pagamento.
Do recurso da Ré
Se o acidente dos autos não preenche o conceito de acidente de trabalho tipificado no artigo 8.º da LAT nem o conceito de acidente in itinere (artigo 9.º da LAT).

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Do recurso da A.
Se a Ré devia ter sido condenada a pagar à A. o capital de remição no montante de € 1.913,75, acrescido de juros de mora desde a data do seu vencimento até integral pagamento.
Alega a A. recorrente que a condenação efectiva da seguradora é no pagamento do capital de remição da pensão, no montante de € 1913,75, com vencimento em 01/02/2016, pelo que, é sobre o valor do capital de remição que devem incidir os juros de mora a fixar nos termos do artigo 135.º do CPT, desde a data do respectivo vencimento até integral pagamento.
Na sentença recorrida a Ré foi condenada a pagar à A. a quantia de € 1.935,75, correspondente ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 156,11, montante acrescido de juros de mora, contados desde 01/02/2016, sobre o valor da pensão, até integral pagamento, decisão sustentada nos acórdãos desta Relação de 23/04/2009 e de 02/05/2014, disponíveis em www.dgsi.pt.
Vejamos, então, se o decidido se deve manter.
Conforme resulta do disposto no artigo 135.º do C.P.T., na sentença o juiz, além do mais, fixa também, se forem devidos, juros de mora pelas prestações em atraso.
Dúvidas não há de que estamos perante uma norma imperativa que impõe ao juiz a obrigatoriedade de condenação em juros de mora mesmo que não tenham sido pedidos.
Na verdade, estamos perante direitos indisponíveis daí que o legislador tenha criado um regime especial para a mora no âmbito dos acidentes de trabalho.
Conforme se refere no Acórdão do S.T.J. de 10 de julho de 2013 Disponível em www.dgsi.pt.:
<<(…) 2. O artigo 135.º do actual Código de Processo do Trabalho consagra um regime jurídico especial para a mora no domínio das pensões e indemnizações e que se sobrepõe ao regime geral estipulado nos artigos 804.º e 805.º do Código Civil.
3. Sendo a pensão devida emergente de incapacidade permanente parcial inferior a 30%, a qual é obrigatoriamente remida, os juros de mora são devidos desde o dia seguinte ao da alta, sobre o valor do capital de remição e até à sua efectiva entrega, pois, a partir daquela, o devedor incorreu em mora e este capital mais não é do que uma forma de pagamento unitário da pensão anual e vitalícia.>> (sublinhado nosso).
Aliás, tem sido este o mais recente entendimento desta Relação e secção Cfr., entre outros, os acórdãos de 21/02/2018, proferidos nos processos n.ºs 757/16.7T8GRD.C1 e 1261/16.9T8GRD.C1, por ora, inéditos e 02/03/2018, proferido no processo n.º 13086/15.4T8SNT.C1, também inédito. .
Como se escreve no Ac. da RP de 04/06/2012, processo n.º 105/10.0TTVRL.P1 - <<Trata-se de um regime excepcional ou especial em que a mora não depende da demonstração da culpa do devedor, bastando que se verifique o atraso no pagamento, desde que não imputável ao credor, parecendo tratar-se de uma mora objectiva. (…) Assim, trata-se mais de reintegrar – com juros – o valor do capital na data do vencimento da prestação, do que propriamente da punição do devedor relapso, na ideia de que as prestações derivadas do acidente de trabalho têm natureza próxima dos alimentos, cujo valor deve ser mantido aquando do recebimento>>.
Neste sentido ver, ainda, entre outros, os Acórdãos do STJ de 14/04/1999, CJ, STJ, 1999, 2.º, 262 e de 09/06/1999, BMJ, 488.º, 334; da RL de 04/05/2016 e de 11/05/2016, disponíveis em www.dgsi.pt; da RE de 09/03/2016, disponível em www.dgsi.pt; da RP de 18/10/2010, de 12/11/2012 (processo nº 941/08.7TTGMR.P1), de 04/06/2012 e de 07/07/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt e de 24/09/2012 (processo n.º 404/09.3TTMAI.P1), de 15/09/2014 (processo n.º 298/13.4TTVFR.P1) e de 07/04/2016 (processo n.º 1163/15.6T8PNF.P1).
Como se refere, ainda, nos acórdãos da RP de 29.05.2006 In www.dgsi.pt, Processo n.º 0610535, relatado pelo saudoso Desembargador Ferreira da Costa. e de 18.10.09 In www.dgsi.pt, Processo 509/09.0TTMTS.P1 relatado pelo Exm.º Desembargador Eduardo Petersen Silva e, ainda, no mesmo sentido e pelo mesmo relator, o Acórdão de 24.01.2011, in CJ, TI, pág. 247., sendo deste último o que passamos a citar:
Dispõe o artº 17º nº 1 al. d) da Lei 100/97 de 13.9 que o sinistrado terá direito, se do acidente resultar incapacidade permanente parcial inferior a 30%, ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho.
Dispõe o mesmo artigo, no seu nº 4, que “(…) começam a vencer-se (…) as pensões por incapacidade permanente no dia seguinte ao da alta”.
Dispõe o artigo 33º nº 1 da mesma Lei: “Sem prejuízo do disposto na alínea d) do nº 1 do artº 17º, são obrigatoriamente remidas as pensões vitalícias de reduzido montante, nos termos que vierem a ser regulamentados”.
O artigo 135º do CPT (aprovado pelo DL 480/99 de 9.11) – que aliás se mantém na versão actual (DL 295/2009 de 13.10) estabelece que “Na sentença final o juiz (…) fixa também, se forem devidos, juros de mora pelas prestações pecuniárias em atraso”.
O artº 804º do Código Civil (intitulado Princípios gerais) estabelece:
“1. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido”.
Dispõe o artº 805º do Código Civil (intitulado Momento da constituição em mora):
“1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;

b) Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
3 - Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número”.
Este o quadro legislativo em que se move a questão sob recurso.
Começamos por notar que o artº 17º nº 4 da Lei 100/07 de 13.9 Hoje os n.ºs 1 e 2 do artigo 50.º da lei n.º 98/2009 de 04/09. não ajuda à compreensão, pois refere a data de vencimento das pensões omitindo, em termos literais, o vencimento do capital de remição constante da alínea d) do nº 1. Trata-se porventura duma transposição da disposição correspondente na Lei nº 2127 de 3-8-65, Base XVI nº 4, com o mesmíssimo texto, sem que se tenha acautelado que a al. c) do nº 1 da mesma Base deu origem a duas estipulações diferentes na lei que lhe sucedeu, ou seja, às alíneas c) e d) do artº 17º nº 1 da Lei 100/97. Em termos literais, na Lei nº 2127 não se previa a condenação no pagamento dum capital de remição, mas no pagamento de pensão que, no máximo, podia ser obrigatoriamente remível (Base XXXIX).
O texto do nº 4 do artº 17º sugere ou determina que o capital de remição não se vence no dia seguinte ao da alta? Sugere ou determina que a entidade responsável não é condenada no pagamento do capital de remição mas sim no pagamento da pensão sobre a qual mais tarde se calculará o capital?
(…)
Não cremos que o texto do nº 4 do artº 17º acima citado possa sugerir nem determinar nem uma coisa nem outra. Claramente não pode contrariar o que consta da própria alínea d) do nº 1 do artº 17º Hoje a alínea c) do n.º 3 do artigo 48.º da nova LAT.-, que é que a prestação que é devida ao sinistrado – e que a responsável é condenada a pagar – é o capital de remição duma pensão, e não a própria pensão. São coisas diferentes, são valores diferentes, e a conclusão 2ª do recurso está bem afastada do artº 17º citado: em lado algum se prevê que na incapacidade permanente e parcial inferior a 30% a responsável é condenada a pagar uma pensão até ao momento em que, com base nela, se calcule um capital de remição, momento a partir do qual (ou talvez a partir da data designada para a entrega do capital de remição) a condenação se converte numa condenação a pagar o capital.
Por outro lado, e em termos de interpretação sistemática, o nº 4 do artº 17º da Lei 100/97 reporta-se aos números que o antecedem, designadamente ao nº 1, devendo entender-se que previne todas as prestações indemnizatórias dele constantes, resultando assim que a expressão “pensões por incapacidade permanente” utilizada no nº 4 deve ser lida como “prestações por incapacidade permanente”, em conformidade com a epígrafe do preceito e com o corpo do nº 1 do preceito.
Relativamente ao vencimento do capital – que será naturalmente, por razões do próprio processo, apurado em data posterior à do dia seguinte ao da alta – impõe-se anotar o desvio determinado pelo artº 135º do CPT relativamente à disciplina civilística resultante dos artigos 804º e 805º do Código Civil.
Na verdade, e citando o Acórdão desta Relação proferido no processo 0610535 com o número convencional JTRP00039246 que se pode consultar em www.dgsi.pt, que por sua vez cita o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1990-02-02 - P. 2285 – :
“O artº 138º do Código de Processo do Trabalho”, actual artº 135º, “é uma norma especial em relação ao regime geral do Código Civil (artºs 804º e 805º) no que respeita à obrigação de pagamento de juros de mora.
Tem carácter imperativo, pelo que há lugar à fixação de juros de mora desde que se verifique atraso no pagamento de pensões e indemnizações, independentemente de culpa no atraso imputável ao devedor. [cfr. Prontuário de Legislação do Trabalho, CEJ, Actualização n.º 35, Novembro de 1990, com anotação de Cruz de Carvalho]
Daí que se venha entendendo que os juros de mora sejam devidos mesmo que o sinistrado ou beneficiário não os tenha pedido, independentemente de interpelação, por se tratar de direitos de existência e exercício necessários, pelo que o Tribunal deve fixá-los oficiosamente, se não forem pedidos. Trata-se de um regime excepcional ou especial em que a mora não depende da demonstração da culpa do devedor, bastando que se verifique o atraso no pagamento, desde que não imputável ao credor, parecendo tratar-se de uma mora objectiva. Por outro lado, sendo um regime especial, afasta a aplicação das regras do direito civil também quanto à questão da liquidez da dívida, pois o facto de o crédito não estar liquidado por razões de natureza processual e de orgânica judiciária, por exemplo, não impede a constituição em mora – cfr. o disposto nos Art.ºs 804 e 805.º, ambos do Cód. Civil. Assim, trata-se mais de reintegrar - com os juros - o valor do capital na data do vencimento da prestação, do que propriamente da punição do devedor relapso, na ideia de que as prestações derivadas do acidente de trabalho têm natureza próxima dos alimentos, cujo valor deve ser mantido aquando do recebimento.
Assim, verificado atraso no pagamento, são devidos juros, desde que a mora não seja imputável a culpa do credor. Repare-se que se o sinistrado, por exemplo, tendo discordado do resultado do exame médico efectuado na fase conciliatória, requerer exame por junta médica, o retardamento do pagamento das prestações derivado do processado mais complexo a que deu causa, gera juros de igual forma, porque a mora, embora imputável ao credor, não o é a título de culpa, derivando apenas de vicissitudes processuais e de orgânica judiciária.
Ora, in casu, havendo ainda que proceder ao cálculo do capital da remição a efectuar pela Secretaria, são devidos juros até à entrega efectiva do capital, uma vez que existe mora, ainda que não imputável ao devedor a título de culpa.
(…)
Se, assim, o regime de juros em matéria de responsabilidade infortunística laboral é especial relativamente ao regime civilístico, e em particular se os juros são devidos independentemente do momento em que é liquidada a quantia em dívida – e note-se que a quantia em dívida é a do capital de remição e não a da pensão – o argumento de que não é possível haver mora antes do apuramento do capital, porque ainda não existe, não se sabe quando vai existir porque isso depende da iniciativa do Tribunal, já não tem sentido. A aplicação do artº 135 do CPT em conjugação com o artº 17 nº 4 da Lei 100/97 produz a ficção da existência, determinando a obrigatoriedade, para o momento do dia seguinte ao da alta.
(…)
A remição obrigatória faz intervir na relação jurídica a ponderação legislativa dos valores em conflito: - nos casos de pequena incapacidade a Lei sacrifica a compensação efectiva da perda de capacidade de trabalho ou de ganho, por uma previsão genérica da duração do dano e da taxa de juro. Se impõe à responsável um pagamento antecipado, esse pagamento beneficia dum desconto, reportando-se à expectativa de vida e à expectativa das condições económicas que determinam a fixação da taxa de juro – artigo 57º do DL 143/99 de 30.4 e Portaria 11/2000 de 13.1.
Estão assim, do ponto de vista do legislador, e que é inatacável, equilibradas as posições, direitos, obrigações e expectativas do sinistrado e da entidade responsável, e esse equilíbrio tem de se afirmar também no que toca aos juros das prestações devidas. Explicando doutro modo: - se aparentemente é mais oneroso pagar juros sobre o capital de remição - cujo valor será maior do que o da pensão anual - do que pagar juros sobre o valor de cada prestação parcelar que integra a pensão anual, essa maior onerosidade não existe em substância, no fundo, porque o valor do capital já contém em si o equilíbrio determinado pelo legislador.
Em suma, não há substancialmente razão alguma que impeça que seja sobre o capital de remição, devido desde o dia seguinte ao da alta, que devam incidir os juros, até à efectiva entrega do capital. E é assim possível ser coerente e determinar que seja sobre o objecto da condenação que devam incidir os juros, enquanto condenação acessória. Tendo a recorrente sido condenada a pagar o capital de remição, deve sobre ele pagar juros, desde a liquidação retrotraída ao dia seguinte ao da alta, por força do artigo 17 nº 4 da Lei 100/97, até à sua entrega.” fim de citação.
Por fim, e no mesmo sentido, o acórdão da RP de 29/02/2016 (processo n.º 1272/15.1T8MTS.P1), ao que julgamos, inédito, quando refere que:
Acresce que à luz da nova LAT – Lei nº98/2009 de 04.09, aplicável ao caso – o entendimento acima referido não se altera em face do disposto nos artigos 23º, alínea b), 47º, nº1, alínea c), e nº3, 48º, nº3, alíneas a), b) e c), 50º, nº2, 72º, nº1 e 75º.
Deste modo, e reafirmando aqui tal posição, podemos concluir que os juros de mora devem incidir sobre o capital de remição e são devidos desde o dia seguinte ao dia da alta e até ao dia da entrega do capital de remição.”
Desta forma, uma vez que o tribunal a quo não procedeu em consonância com o disposto nos citados normativos, a sentença recorrida, nesta parte, não está conforme o direito substantivo, impondo-se a sua revogação, em conformidade.
Assim, tendo em conta que a pensão por incapacidade permanente começou a vencer-se no dia 01/02/2016, dia seguinte ao da alta (n.º 2, do artigo 50.º da Lei n.º 98/2009 de 04/09) e, sendo certo, que aquela condenação em juros é independente de a culpa no atraso do pagamento ser imputável ao devedor, bem como da interpelação deste para cumprir, os juros são devidos desde aquela data do seu vencimento, ou seja, desde 01/02/2016 e calculados sobre o respetivo capital de remição pois, a partir da mesma, o devedor incorreu em mora e este mais não é do que uma forma de pagamento unitário da pensão anual e vitalícia (n.º 3, c), do art. 48.º da Lei n.º 98/2009 de 04/09).
Procede, assim, a pretensão da A. recorrente, encontrando-se a Ré seguradora obrigada a pagar à sinistrado os juros de mora vencidos e vincendos, a contar desde 01/02/2016, sobre o valor do capital de remição e até integral e efetivo pagamento.
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Do recurso da Ré
Se o acidente dos autos não preenche o conceito de acidente de trabalho tipificado no artigo 8.º da LAT nem o conceito de acidente in itinere (artigo 9.º da LAT).
A Ré recorrente alega que o evento dos autos não preenche o conceito de acidente de trabalho tipificado no artigo 8.º da LAT, dado que não ocorreu nem no seu local de trabalho, nem no tempo de trabalho da A. e não preenche o conceito de acidente in itinere consagrado no artigo 9.º da mesma lei, posto que o acidente ocorrido num espaço privado, sobre o qual o trabalhador mantém domínio integral, não constitui acidente de trabalho; as escadas onde ocorreu o acidente encontram-se no domínio exclusivo da A., não se verificando ainda o risco de autoridade da empregadora e, ainda, que o acidente sofrido pela A. não ocorreu no “trajeto protegido”.
A este propósito, consta da sentença recorrida, além do mais, o seguinte:
Antes de mais, verifica-se que o evento ocorreu num momento em que a autora se deslocava para o seu local de trabalho, a fim de dar início à prestação de trabalho para o respectivo empregador.
No âmbito da disposição que consagra o acidente in itinere, a situação em causa só poderá enquadrar-se na hipótese prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 9º da Lei dos Acidentes de Trabalho, (…).
No presente caso interessa-nos a alínea b), dado que o evento ocorreu precisamente quando a autora se deslocava da sua residência habitual para o seu local de trabalho.
Esta norma, ao aludir à deslocação entre dois espaços, no caso, a residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o local de trabalho, permite pressupor que o legislador pretendeu excluir os eventos ocorridos dentro da residência do sinistrado.
Essa exclusão justificar-se-á pela necessidade de delimitação do espaço de responsabilidade do empregador perante a multiplicidade de ocorrências no quotidiano diário.
Efetivamente, se não fosse operada uma tal restrição, qualquer acidente, ocorrido no interior da residência do trabalhador, constituiria um acidente de trabalho.
Na medida em que o trabalhador entra na sua residência, ou nela se mantém, encontra-se num espaço privado, sobre o qual mantém o domínio integral, sem interferência do empregador, razão pela qual o risco corre exclusivamente por sua conta.
(…)
Importa assim determinar se o evento ocorrido nas escadas exteriores da residência do trabalhador se pode considerar como verificado na residência deste.
O conceito de residência não poderá buscar-se no conceito civilístico de imóvel, conforme o artigo 204º do Código Civil, devendo antes ter em mente o que se expôs quanto ao risco e o domínio do facto.
Na nossa ótica, se, no interior da residência, entre portas, digamos assim, o trabalhador tem o domínio exclusivo do facto, correndo o risco exclusivamente por sua conta, independentemente de pretender ou se aprestar a dirigir-se ao local de trabalho ou dele estar a regressar nesse momento, pelo contrário, fora de portas essa exclusividade esbate-se e a determinação do risco fica dependente da intencionalidade do ato no decurso do qual o acidente ocorre.
Deste modo, se o trabalhador abandona o interior da sua residência com a intenção de se deslocar ao logradouro do seu prédio, a fim de realizar uma qualquer actividade prévia à deslocação para o local de trabalho, ainda que aquela actividade preceda de imediato a referida deslocação, entendemos que o acidente que possa ocorrer não constituirá acidente de trabalho.
Porém, se o acidente ocorre no exterior da residência, quando o trabalhador se aprestava a deslocar-se para o local de trabalho, ou após a realização da tarefa, num momento em que o trabalhador se desloca com a intenção de se dirigir ao local de trabalho, essa específica intencionalidade situa a conduta do trabalhador dentro do domínio de autoridade do empregador, transferindo o risco para este.
Assim será ainda que o trabalhador se encontre dentro de um espaço vedado mas exterior à residência, vista esta no sentido de edifício vedado por paredes e alguma forma de cobertura.
Ou seja, havendo necessidade de delimitar o espaço em que cessa o risco do empregador, passando este a correr por conta do trabalhador, entendemos que esse espaço não deverá ultrapassar a fronteira física do edifício.
Neste sentido, em face dos factos provados, haverá que concluir pela qualificação do acidente como de trabalho.”
Vejamos:
Resulta da matéria de facto provada que a A. reside numa moradia unifamiliar, a cuja porta de saída, sita no 1º piso, se seguem as escadas exteriores, que dão acesso a um pequeno logradouro, e, em seguida, à via pública, estando esse espaço totalmente vedado, sendo que, no dia 23/12/2015, cerca das 10.40/10.45 horas, a A. saiu do interior da sua residência a fim de se dirigir ao seu local de trabalho, sito nas instalações (…), para ali iniciar o seu período laboral, cerca das 11.00 horas, desse mesmo dia. Após ter saído a porta, na circunstância temporal supra enunciada, quando se encontrava já a descer o último degrau das escadas, a A. escorregou, torceu o pé e desequilibrou-se, caindo desamparada e batendo, ainda dentro do seu logradouro, junto ao portão que se encontrava fechado, com o ombro, sentindo, desde logo, uma forte dor no pé esquerdo, não conseguindo levantar-se do chão e, ainda, que por força do descrito acidente, a A. sofreu uma entorse do tornozelo esquerdo, ficando com edema ligeiro e sequelas de entorse no tornozelo esquerdo, lesões que vieram a determinar-lhe, de forma direta e necessária, um período de incapacidade temporária absoluta de 39 dias, entre o dia 24 de dezembro de 2015 e o dia 31 de janeiro de 2016.
Por outro lado, <<é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho>>, entendendo-se por local de trabalho <<todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador>> e <<por tempo de trabalho além do período normal de trabalho o que precede o seu início, em actos de preparação ou com eles relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho>> - nºs 1 e 2 do artigo 8.º da LAT.
Acresce que, esta lei de reparação de acidentes de trabalho procede à extensão do conceito de acidente de trabalho pois, conforme resulta do seu artigo 9.º:
<<1. Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho (…), nos termos referidos no número seguinte;
(…)
2. A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
(…)
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o se local de trabalho; (…)>>.
Assim sendo, facilmente se conclui que o acidente de trabalho não é apenas aquele que ocorre no local e no tempo de trabalho propriamente ditos e a noção de local de trabalho a que já fizemos referência e que consta do citado artigo 8.º da LAT continua a ter presente a teoria do risco económico ou de autoridade Cfr. Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, Almedina, págs. 42 e 43..
<<I – A responsabilidade do empregador relativamente aos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores não assenta no chamado risco profissional, mas sim no risco económico ou de autoridade. II – É a teoria do risco económico ou de autoridade que está subjacente ao conceito de acidente de trabalho contida no art. 6.º n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13-9. III – O conceito de acidente de trabalho contido naquele normativo não exige a existência de um nexo de causalidade entre o acidente e a prestação do trabalho propriamente dita; apenas exige um nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral. (…)>> Acórdão do STJ de 17/12/2009, disponível em www.dgsi.pt..
Posto isto, regressando ao caso dos autos, dúvidas não existem de que o evento em causa ocorreu quando a A. se deslocava da sua residência para o local de trabalho, cerca de 15 m antes do início do seu período laboral, sendo que, após ter atravessado a porta da sua moradia, quando se encontrava já a descer o último degrau das escadas exteriores da mesma que dão acesso a um pequeno logradouro e, de seguida, à via pública, a A. escorregou, torceu o pé e desequilibrou-se, caindo desamparada ainda dentro daquele logradouro.
Por outro lado, como já ficou dito, a sentença recorrida concluiu pela qualificação do acidente como de trabalho.
Pois bem, a Ré recorrente não se conforma com a decisão recorrida porque entende que o acidente ocorrido num espaço privado, sobre o qual o trabalhador mantém domínio integral, não constitui acidente de trabalho; as escadas onde ocorreu o acidente encontram-se no domínio exclusivo da A., não se verificando ainda o risco de autoridade da empregadora e, ainda, que o acidente sofrido pela A. não ocorreu no “trajeto protegido”.
E, na verdade, a jurisprudência não tem sido unânime quanto à qualificação de um evento desta natureza como acidente de trajeto.
Vejamos, então, se estamos perante um acidente in itinere.
Como se decidiu no acórdão do STJ de 26/10/2011, disponível em www.dgsi.pt, pese embora ainda na vigência da anterior LAT:
<<(…) Para que se esteja em face dum acidente de trajecto indemnizável, já não exige o legislador o preenchimento daqueles exigentes requisitos da lei anterior, bastando para tanto que o acidente ocorra no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer.
Trata-se da consagração das modernas teorias que consideram que o risco de acidentes neste percurso é inerente ao cumprimento do dever que incumbe ao trabalhador de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a prestação resultante do contrato de trabalho, constituindo assim uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias.
Por isso, sendo o trabalhador obrigado a fazer o percurso necessário ao cumprimento da sua obrigação de trabalhar no lugar determinado pela sua entidade patronal e usando, para tanto, as vias de acesso e os meios de transporte disponíveis, justifica-se que os acidentes ocorridos neste percurso e no tempo habitualmente gasto para o percorrer, já gozem da protecção própria dum acidente de trabalho, conforme prescrevia o artigo 6º, nº 2, do DL nº 143/99, de 30/04.
Por outro lado, estão abrangidos nesta previsão legal, os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente gasto entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho – alínea a)>>.
Acresce que, conforme resulta do artigo 6.º da anterior LAT e do n.º 2, a), do artigo 6.º do DL n.º 143/99, considerava-se também acidente de trabalho o que se verifique no trajeto entre a residência do trabalhador, “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho”, redacção esta que, como já vimos, não foi acolhida na nova LAT ao consagrar no seu artigo 9.º, n.º 1, que se considera também acidente de trabalho o ocorrido “no trajecto de ida para o local de trabalho (…), nos termos referidos no número seguinte;” e no n.º 2 que a “alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador: (…) b) entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o se local de trabalho; (…)”.
E face a esta alteração poderá considerar-se como acidente de trabalho in itinere aquele que ocorre no logradouro da moradia do sinistrado ou, mais concretamente, nas escadas exteriores da mesma, após a transposição da porta de acesso àquela para estas?
A este propósito escreveu o Professor Júlio Gomes “O acidente de trabalho”, Coimbra Editora, págs. 179 a 181. que “em certos casos pode ser delicado saber em que local exato é que principia o trajeto protegido e, mesmo, quando é que deve considerar-se findo.
O problema tem-se colocado, sobretudo, quando o trabalhador reside em uma fracção de um prédio em regime de condomínio ou propriedade horizontal. Em tal hipótese deverá considerar-se que a tutela dos acidentes de trabalho só se inicia quando o trabalhador acede à via pública ou, mesmo antes quando abandona a sua fracção e entra nas áreas comuns (pondo-se, é claro, o mesmo problema também quanto ao término do trajeto)? A questão é de resposta delicada, não só porque o direito comparado mostra que as duas soluções são possíveis e defensáveis – compare-se a situação alemã que, em princípio, considera que o trajeto tutelado relativamente a acidentes de trabalho, só tem início quando se acede à via pública, com a francesa que opta por considerar que o condómino inicia o trajeto protegido já quando sai da sua fração para se deslocar nas áreas comuns do prédio – mas e sobretudo porque já teve resposta expressa na nossa lei, em norma entretanto revogada, sem que tenha sido substituída por outra em que o legislador tome expressamente posição sobre esta questão.”
Como se decidiu no acórdão do STJ de 18/02/2016, disponível em www.dgsi:
Com efeito, nessa situação, a dúvida que subsiste é se:
- A tutela dos acidentes de trabalho só deve iniciar-se quando o trabalhador acede à via pública?
- Ou deve considerar-se que o seu início ocorre antes, quando o trabalhador abandona a sua fracção ou moradia unifamiliar e entra nas áreas comuns ou pertencentes àquele?
(….)
Está aqui em causa, o acima referido e revogado art. 6.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, segundo o qual era considerado acidente in itinere o ocorrido nas partes comuns do edifício em cuja fracção habitasse o sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública.
(…)
5. Estipula o art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, que o intérprete deve presumir, na fixação e alcance da lei, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Princípio que deve nortear o intérprete quando confrontado com a tarefa de descortinar o sentido e alcance da norma.
Ora, resulta expressamente da conjugação da actual redacção do art. 9º, nº 1, alínea a), e n.º 2, alíneas a) e b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que basta que o evento danoso ocorra entre a residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o local de trabalho do sinistrado, para que, por si só, seja considerado como acidente in itinere e, como tal, tutelado pelo respectivo regime jurídico.
A norma actualmente em vigor mostra-se redigida em termos que permite desde logo excluir do conceito os acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador.
Mas já não permite que se conclua, de imediato, no sentido de que não abarca os que se verifiquem entre a residência, após transposição da porta desta, e o local de trabalho.
O que bem se compreende, na medida em que se assiste, frequentemente no dia-a-dia, atenta a normalidade da vida, que os únicos meios de ligação da habitação à própria via pública, e destas para o local de trabalho, são feitos através de percursos que incluem acessos diversos, v.g., a escadas, pátios, logradouros, garagens, etc., sejam estes espaços comuns ou próprios do trabalhador sinistrado.
6. A este propósito decidiu-se no Acórdão da 1.ª Secção, deste Supremo Tribunal, datado de 25.03.2010, que incidiu sobre o caso de um acidente ocorrido quando o sinistrado descia as escadas de sua casa, escadas essas que davam acesso a um pátio, que confinava com um portão que limitava a propriedade do sinistrado da via pública e quando este se dirigia a um seu escritório, situado em compartimento do rés-do-chão, anexo à sua residência, que:
“… As áreas comuns de edifícios são elementos e partes características que só existem nos prédios constituídos em propriedade horizontal ou em regime de compropriedade, pelo que quando se elaborou a definição de acidente de trabalho in itinere, no art.º 6.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, o legislador não teve presente outro tipo de residências, como por exemplo, as vivendas unifamiliares, onde, por natureza tudo é espaço próprio e não há áreas comuns, mas que nem por isso deixam de ter, por via de regra, partes exteriores à habitação (escadas, pátios, logradouros, etc.), pertencentes ao mesmo dono e ao mesmo prédio e por onde obrigatoriamente se sai a caminho do emprego”.
Tendo-se concluído nos seguintes termos:
“II. Na situação prevista estão expressamente contempladas duas situações: a de condomínios ou de compropriedade (em que se haja de se passar por áreas comuns para a via pública) ou a de habitações com acesso directo à via pública.
III. Há no entanto lacuna legal relativamente às situações em que a porta de acesso da habitação dá para uma área exterior, própria ou particular, antes de atingir a via pública a caminho do local de trabalho, ou o local de trabalho se situe nessa mesma área adjacente à habitação, e que deve ser resolvida lançando mão da analogia.
IV. Considera-se assim acidente “in itinere”, sob pena de violação do princípio de “não discriminação”, o ocorrido nas escadas exteriores de uma habitação quando o sinistrado se desloque para o seu local de trabalho, onde recebe clientes, e este se situe em anexo à sua residência, ainda dentro de propriedade própria”.
Exarando-se a seguinte fundamentação:
(…) «Não raras vezes as escadas exteriores ou pátios são os únicos meios de ligação da habitação à via pública, pelos quais é preciso passar antes que se chegue à porta, portão ou simples demarcação da entrada que serve de ligação directa com a via pública.
Nem por isso, no entanto, se pode concluir que o legislador quis estabelecer diferenciação de protecção entre os segurados que vivam em condomínios ou em compropriedade, com aqueles que vivem em moradias unifamiliares, ora protegendo uns (condóminos ou comproprietários), ora desprotegendo outros (proprietários singulares), quando, em igualdade de circunstâncias saiam da sua habitação a caminho do emprego.
A ocorrer tal interpretação, estar-se-á a violar o princípio da não discriminação, consagrado no art. 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.»
É certo que o aresto em causa incidiu sobre um acidente ocorrido em 2002, por conseguinte, em data em que vigorava o art. 6º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril, e a Lei nº 100/97, de 13 de Setembro.
Porém, já na vigência dessa legislação o Supremo Tribunal de Justiça entendia que o legislador embora só tivesse tido presente, quando elaborou a definição de acidente de trabalho in itinere, os edifícios dessa natureza – constituídos em propriedade horizontal ou em regime de compropriedade – sem fazer referência concreta às vivendas unifamiliares (“onde por natureza, tudo é espaço próprio e não há áreas comuns, mas que nem por isso deixam de ter, por via de regra, partes exteriores à habitação (escadas, pátios, etc.), pertencentes ao mesmo dono e ao mesmo prédio e por onde obrigatoriamente se sai a caminho do emprego”), não podia ser sufragada a aplicação da norma baseada numa interpretação que conduzia a uma diferenciação dessa natureza.
Interpretação que favorecia uns cidadãos, protegendo os que vivem em condomínios, mas desfavorecia outros a quem seria denegada a protecção: os que habitam moradias unifamiliares.
Pelo que, aceitá-la seria contemporizar com a discriminação dessas realidades e incorrer na violação dos princípios constitucionais ínsitos nos arts. 13º e 26º, nº 1, da CRP.
Se o legislador acaso foi inábil na redacção do preceito, não se pode pedir ou esperar do intérprete que se alheie das consequências que daí possam advir. Até porque cabe a este reconstituir a partir dos textos legais o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
E uma delas, como resulta do aresto supra citado, é a necessidade de abarcar no conceito de acidente in itinere também a realidade das moradias unifamiliares, colocando os seus proprietários singulares em igualdade de condições com as dos proprietários ou comproprietários de edifícios, sempre que saiam da sua habitação a caminho do seu local de trabalho.
Interpretação que, em nosso entender, o texto da lei comporta e não é contrariada pela lei actual, face ao conceito alargado de acidente de trabalho plasmado nos arts. 8º e 9º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, com a extensão do conceito de acidente de trabalho.
7. É certo que ao estabelecer este conceito de acidente de trabalho, no Regime Jurídico de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais (Lei nº 98/2009), o legislador acabou por eliminar a referência discriminatória que resultava da anterior redacção do art. 6º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril. E que assentava no seguinte segmento: “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações do local de trabalho”.
Eliminação que ao ser materializada pelo legislador permite que se integre no conceito não apenas essas partes comuns, anteriormente já incluídas, mas outras que se situem, de acordo com os normativos em vigor, entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador sinistrado e as instalações que constituem o seu local de trabalho, sejam partes comuns de prédios em condomínio, sejam logradouros de uma habitação/vivenda unifamiliar.
Defender o contrário seria enveredar por uma interpretação restritiva do conceito de acidente in itinere, com tendência para abarcar os acidentes ocorridos na via pública ou em áreas comuns e já não os que tivessem lugar em logradouro pertencente apenas ao trabalhador.
Ora, se fosse essa a intenção do legislador, por certo teria mantido a redacção anterior.
E se a suprimiu, só pode ter sido com um duplo objectivo: o de, por um lado, pôr fim à referida distinção e, por outro, dar oportunidade à Jurisprudência de, in concreto, definir e delimitar a sua aplicação.
Interpretação de outra natureza poderia atentar contra a própria filosofia que esteve subjacente à aprovação do regime actual dos acidentes de trabalho, sobre a qual se pronunciou o Acórdão desta Secção, do STJ, datado de 30/3/2011, onde se fez a análise e a evolução histórica do conceito, podendo ler-se, a este propósito, que:
“Daí adveio a necessidade da adaptação do seu regime à evolução da realidade sócio-laboral e ao desenvolvimento da legislação complementar no âmbito das relações de trabalho, da Jurisprudência e das Convenções Internacionais.
Por isso, a filosofia que esteve subjacente à nova lei, foi a da concretização duma melhoria do sistema de protecção dos trabalhadores e das prestações conferidas às vítimas de acidentes de trabalho e de doenças contraídas no trabalho e por causa dele.
Uma das melhorias trazidas pela nova lei foi em matéria de aciden-tes de trabalho in “itinere”, conforme iremos constatar através da análise da evolução histórica deste conceito”.
Destarte, o critério que conduz à caracterização de um acidente como ocorrido in itinere, nos termos previstos nos arts. 8º e 9.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, deve bastar-se com a saída (“ultrapassagem”/transposição) da porta da residência por parte do trabalhador sinistrado, para um espaço exterior à sua habitação, quer esta se situe num edifício condominial, quer numa moradia unifamiliar, podendo o acidente in itinere ocorrer ainda antes de se entrar na via pública, para se dirigir ao seu local de trabalho, através do respectivo trajecto que utiliza nessa ida.” – fim de citação.
Acompanhamos todas as considerações expostas no acórdão do STJ que acabámos de transcrever, razão pela qual, regressando ao caso dos autos, não podemos deixar de concluir que tendo a sinistrada transposto a porta da sua moradia, a fim de se dirigir ao seu local de trabalho, cerca de 15 m antes do início do período laboral e, nas escadas exteriores da mesma, escorregado, torcido o pé e desequilibrando-se, caindo desamparada e batendo, ainda dentro do seu logradouro, junto ao portão que se encontrava fechado, com o ombro, estamos perante um acidente de trabalho in itinere tal como se encontra previsto nos artigos 8º e 9º, n.º 1, a) e n.º 2, b), ambos da LAT, sendo que, o facto de o evento em causa ter ocorrido no logradouro da moradia da A. e não já na via pública, “não retira à deslocação empreendida pela Autora, em cujo contexto veio a ocorrer o acidente, a ligação à prestação de trabalho a que se dirigia e no qual reside o fundamento último do regime dos acidentes de trajecto, sendo por isso indiferente que a sinistrada tivesse o “domínio” ou a “propriedade” do espaço onde ocorre o acidente, na medida em que este espaço já se situa fora da sua residência”, existindo já o denominado risco de autoridade apenas dependente do nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral.
Ao contrário do alegado pela recorrente, o acidente dos autos ocorreu no “trajeto protegido” pelo RRATDP.
No mesmo sentido decidiu esta Relação nos processos n.ºs 12/14.7TTFIG.C1, 375/12.9TTLRA.C1 e 257/13.7TUFIG.C1, inéditos; a Relação de Lisboa nos acórdãos de 25/10/2017 e de 11/10/2017; a Relação do Porto no acórdão de 22/04/2013 e a Relação de Guimarães nos acórdãos de 30/11/2016 e de 26/02/2015, todos disponíveis em www.dgsi.pt No sentido de que não é acidente de trajeto o ocorrido em propriedade privada, cfr. os acórdãos da RL de 07/10/2015, da RP de 19/10/2015 e da RE de 24/05/2011, todos disponíveis em www.dgsi.pt. .
Assim, à laia de conclusão, o acidente que vitimou a sinistrada é um acidente de trabalho in itinere e, como tal, suscetível de reparação nos termos previstos na LAT e constantes da sentença recorrida.
Improcedem, assim, as conclusões da Ré recorrente.
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Na procedência do recurso da A. e improcedência do recurso da Ré, impõe-se a revogação e manutenção da sentença recorrida, respetivamente e em conformidade.
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V – DECISÃO
Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se:
- na procedência do recurso da A., em revogar a sentença recorrida, condenando-se a Ré seguradora a pagar à A. o montante de € 1.913,75 (mil novecentos e treze euros setenta e cinco cêntimos), correspondente ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 156,11 (cento cinquenta e seis euros onze cêntimos), montante aquele acrescido de juros de mora, contados desde 1 de fevereiro de 2016, até integral e efetivo pagamento e,
- na improcedência do recurso da Ré, em manter a sentença recorrida.
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Custas de ambos os recursos a cargo da Ré recorrida e recorrente.
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Coimbra,2018/04/12
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(Paula Maria Roberto)
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(Ramalho Pinto)
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(Felizardo Paiva)