Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380/17.9JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: OBTENÇÃO DE DADOS DE TRÁFEGO
REQUISITOS
Data do Acordão: 11/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JIC – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 2.º, N.º 1, AL. A), 4.º, N.º 1, ALÍNEAS A) A F), DA LEI N.º 32/2008, DE 17 DE JULHO, ART. 189, N.º 2, DO CPP; ARTS. 26.º, 34.º E 18.º DA CRP
Sumário: I - Os valores constitucionais da descoberta da verdade material e da realização da justiça, mesmo em matéria criminal, estão sujeitos aos limites impostos pela dignidade e pelos direitos fundamentais das pessoas e que processualmente se traduzem nas proibições de prova, em relação às quais o artigo 32.º, n.º 8, da CRP, estabelece, quanto à questão que agora nos ocupa, que são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão nas telecomunicações.

II - A obtenção de dados de tráfego e de localização como aqueles que o Ministério Público pretende só pode ocorrer em relação às pessoas referidas no artigo 9.º, n.º 3, da Lei 32/2008, de 17-07, e no n.º 4 do artigo 187.º do CPP, ou seja, a) o suspeito ou arguido; b) a pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou c) a vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido.

III - É também pressuposto que existam razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves.

IV - Exige-se ainda que a decisão judicial de transmitir os dados respeite os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados.

V - Não é permitido que se aceda a dados de tráfego e de localização de um conjunto indeterminado de pessoas que efectuaram comunicações, accionado células de antenas de comunicações, na expectativa de, entre elas, descortinar quem possa ter praticado o ilícito investigado.

VI - Pretende-se, pois, obter dados de tráfego e de localização, desejavelmente de suspeitos, mas seguramente de muitos “não suspeitos”.

VII - O que não é permitido pela salvaguarda do sigilo das telecomunicações, consubstanciada nos apertados limites estabelecidos na Lei n.º 32/2008 e nas exigências constitucionais de adequação, necessidade e proporcionalidade.

Decisão Texto Integral:









Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório 

1. No âmbito dos autos de inquérito registados sob o n.º 380/17.9JACBR que correm termos na Procuradoria da República da Comarca de Leiria, DIAP de Leiria (1.ª Secção), o Mmo. Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Instrução Criminal – Juiz 2, proferiu despacho, em 25 de Setembro de 2017, em que indeferiu o requerimento do Ministério Público no sentido de autorizar que as operadoras de telecomunicações móveis X... , Y... e Z... informassem os autos de todas as chamadas efectuadas e recebidas (tráfego das células apresentadas, bem como o tráfego respeitante às frequências e bandas com a mesma localização e o mesmo azimute) e todos os eventos de rede que permitam identificar os aparelhos/cartões que na data e hora que indica estiveram registados nas antenas/células que identifica.

2. Inconformado com aquele despacho, o Ministério Público dele veio interpor recurso, pugnando pela sua revogação e finalizando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1 – No caso dos autos, é indubitável a gravidade do crime em investigação, pois o roubo foi praticado com recurso a arma de fogo.

2 - Este tipo de criminalidade cria forte perturbação psicológica nas vítimas e forte alarme social.

3 – É urgente a necessidade de “travar” os agentes do crime, pois é muito provável que continuem a actividade criminosa, tendo em consideração o interesse público do Estado em exercer o ius puniend, justifica-se, a nosso ver, a autorização judicial das informações requeridas, face à prevalência daquele interesse público sobre o interesse privado tutelado pelo princípio da reserva da vida privada, que, na nossa óptica, se manterá quase intocável face ao tratamento que a informação irá ser objecto.

4 - As informações relativas ao eventos de rede requeridas irão fornecer apenas os números de código (que corresponderão a números de telemóvel) e serão estes números de código que serão confrontados pelo o.p.c. com números de código já obtidos pelo o.p.c. no âmbito de outros processos de inquérito que correm termos em diversas comarcas deste país em que os agentes do crime utilizaram o mesmo “modus operandi” do utilizado nestes autos.

5 - Requer-se a Vs. Exas. seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho objecto de recurso e substituindo-o por outro que autorize as operadoras de telecomunicações móveis a fornecer aos autos as informações requeridas a fls. 81 a 86 dos autos”.

3. Admitido o recurso, o Mmo. Juiz de Instrução proferiu despacho de sustentação da decisão recorrida.

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.° do Código de Processo Penal (doravante CPP), emitiu parecer em que acompanha a posição manifestada no recurso, assinalando que, contrariamente ao que está subjacente ao despacho recorrido, existem no processo dois suspeitos, duas pessoas que se indiciam ter praticado o crime, as quais não foram ainda determinadas, sendo que as diligências requeridas visam precisamente a sua identificação que não se afigura possível de outra forma.

5. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre agora decidir.

                                                            *

II – Fundamentação 

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[1], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[2].

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada a questão que se suscita é a de saber se estão preenchidos todos os requisitos de que a lei faz depender o deferimento da obtenção de dados de tráfego requerida pelo Ministério Público, objecto da decisão recorrida.

                                                         *

2. O despacho recorrido e outros elementos relevantes.

2.1. Em 21 de Setembro de 2017, o Ministério Público apresentou o seguinte requerimento ao Mmo. Juiz de Instrução (transcrição):

“Iniciaram-se os presentes autos com a queixa, de fls. 5 e 6 dos autos, apresentada por factos susceptíveis de configurar a prática, ema abstracto, por desconhecidos de um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b) (por referência à alínea f) do nº 2 do artigo 202º do Código Penal), do Código Penal, porquanto, pelas 11 horas e 30 minutos do dia 2 de Agosto de 2017, depois de ofendido A... ter estacionado a carrinha que utiliza na sua actividade profissional de distribuidor de tabaco no parque de estacionamento, situado em frente ao estabelecimento denominado " (...) ", sito na Rua (...) , em Pombal, acompanhado do seu filho, B... de 13 anos de idade, foram abordados por dois indivíduos do sexo masculino, de identidades desconhecidas, encapuzados, que usavam luvas e um deles empunhava uma pistola, obrigaram os ofendidos a sair da viatura automóvel referida, apoderaram-se da mesma que conduziram até à Rua (...) , em Pombal; no interior da carrinha estava, nomeadamente, várias caixas de tabaco, no valor de cerca de 30.000,00 (trinta mil) euros e cerca de 10.000,00 (dez mil) euros em numerário, que os agentes do crime levaram consigo.

Até ao momento, foram realizadas diversas diligências investigatórias, com vista a identificar os agentes do crime, designadamente, as seguintes:

A fls. 14 e 15 dos autos, consta o Relatório de exame pericial médico-legal relativo ao ofendido B... do qual resulta que o mesmo apresentava lesões físicas no tronco e num dos braços.

A fls. 34 a 37 dos autos, consta o Relatório de exame pericial do qual resulta, designadamente, que o telemóvel deixado pelos agentes do crime no interior da viatura automóvel apresentou um vestígio digital com valor identificativo, todavia, até ao momento não resultou qualquer identificação.

A fls. 38 dos autos, foi solicitada às operadoras de telecomunicações móveis nacionais a preservação dos dados e eventos de rede relativos ao período compreendido entre as 11 horas e a as 11 horas e 45 minutos do dia 2 de Agosto de 2017 e às células referidas a fls. 39 a 41 dos autos.

A..., inquirido a fls. 68 e 69 dos autos e ali melhor id., disse, nomeadamente, que os indivíduos tinham a cara tapada e usavam luvas e que um dos indivíduos lhe apontou uma pistola ao corpo, dizendo para sair da viatura automóvel.

B... inquirido a fls. 72 dos autos e ali melhor id., disse, além do mais, que um dos indivíduos, que estava encapuzado, agarrou-o pelas pernas, arrastando o seu corpo para fora da viatura automóvel.

Entretanto apurou-se que dois indivíduos com os telemóveis indicados a fls.77 dos autos, venderam tabaco junto das escolas de Pombal.

Ora, tal informação, caso seja deferido o requerimento infra, será muito útil para comparação com os eventos de rede preservados.

O crime de roubo agravado em investigação nestes autos é punível com pena de prisão de três a quinze anos, revestindo-se os factos de bastante gravidade por terem sido praticados com recurso a arma de fogo, aliado ao facto, deste tipo de ilícito criminal criar forte alarme social.

Por outro lado, é provável que o caso dos autos não se trate de uma acção isolada dos referidos indivíduos e que presentemente continuem a sua actividade delituosa que se reveste de muita perigosidade, atento, designadamente, o facto de usarem armas de fogo no cometimento dos crimes.

Acresce que, é provável, a nosso ver, que os agentes dos crimes, na altura do seu cometimento, fossem portadores de telemóveis e que os mesmos se encontrassem ligados, uma vez que é comum nos dias de hoje as pessoas trazerem consigo telemóveis.

Por se entender que a diligência que ora se promove é indispensável para a descoberta da verdade, designadamente, para averiguar a identidade dos agentes dos crimes, sendo a prova, de outra forma, impossível, pois actuaram encapuzados e utilizando luvas (o que inviabiliza o seu reconhecimento pessoal e a recolha de vestígios lofoscópicos) requer-se a V. Exa., nos termos do disposto no nº 2 do artigo 189º e alínea a) do nº 1 e alínea a) do no 4 do artigo 187º, artigo 252º-A e artigo 268º, nº 1 alínea f), todos do Código de Processo Penal, se digne autorizar, com nota de muito urgente, as operadoras de telecomunicações móveis seguintes informarem os autos dos seguintes elementos de prova (a remeter em formato digital):

1 - Identificação de todas as chamadas efectuadas e recebidas (tráfego das células apresentadas, bem como o tráfego respeitante às frequências e bandas com a mesma localização e o mesmo azimute) e todos os eventos de rede (cuja preservação já foi solicitada como referimos), que permitam identificar os aparelhos/cartões que estiveram registados nas antenas/células, tendo em conta as variáveis abaixo identificadas, na data e hora abaixo mencionadas, na zona onde ocorreu o assalto, próximo do " (...) ", entre as 11 horas e 11 horas e 45 minutos do dia 2 de Agosto de 2017:

1. 1. - Junto da " X... ":

Ci (original)
Células Nome
CGI
    Azimute
(...)
(...)
(...)
        (...)
(...)
(...)
(...)
        (...)
(...)
(...)
(...)
         (...)
(...)
(...)
(...)
        (...)
(...)
(...)
(...)
       (...)

1. 2. – Junto da " Y... ":

Code Station
Name Site
CGI
Azimute
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)

1. 3. – Junto da " Z... ":

Cell_Identifier
Site_Name
CGI
  Azimute
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)
(...)

2 - Identificação de todas as chamadas efectuadas e recebidas (tráfego das células apresentadas, bem como o tráfego respeitante às frequências e bandas com a mesma localização e o mesmo azimute) e todos os eventos de rede (cuja preservação já foi solicitada como referimos), que permitam identificar os aparelhos/cartões que estiveram registados nas antenas/células, tendo em conta as variáveis abaixo identificadas, na data e hora abaixo mencionadas, na zona onde foi abandonada a carrinha do tabaco após a fuga, na saída Este de Pombal, entre as 11 horas e 30 minutos e as 12 horas e 15 minutos do dia 2 de Agosto de 2017:

2. 1. – Junto da " Z... ":

Cell Identifier
Site_Name
CGI
Azimute
(...)
(...)
(...)
    (...)
(...)
(...)
(...)
    (...)
(...)
(...)
(...)
     (...)
(...)
(...)
(...)
     (...)
(...)
(...)
(...)
     (...)

2. 2. – Junto da " Y... ":

Code Station
Name Site
CGI
Azimute
(...)
(...)
(...)
    (...)
(...)
(...)
(...)
    (...)
(...)
(...)
(...)
    (...)
(...)
(...)
(...)
    (...)

2. 3. – Junto da " X... ":

Ci (original)
Células_Nome
                 CGIAzimute
(...)
(...)
    (...) (...)
(...)
(...)
(...)
  (...)


(...)
(...)
(...)
  (...)

(...)
(...)
(...)
  (...)
(...)
(...)
(...)
  (...)

2.2. Em 25 de Setembro de 2017, o Mmo. Juiz de Instrução proferiu a decisão recorrida, que tem o seguinte teor (transcrição):

“Promoveu o Ministério Público, em 21/09/2017, a fls. 81 a 86, o seguinte:

«(…) Por se entender que a diligência que ora se promove é indispensável para a descoberta da verdade, designadamente, para averiguar a identidade dos agentes dos crimes, sendo a prova, de outra forma, impossível, pois actuaram encapuzados e utilizando luvas (o que inviabiliza o seu reconhecimento pessoal e a recolha de vestígios lofoscópicos) requer-se a V. Exa., nos termos do disposto no nº 2 do artigo 189º e alínea a) do nº 1 e alínea a) do nº 4 do artigo 187º, artigo 252º-A e artigo 268º, nº 1 alínea f), todos do Código de Processo Penal, se digne autorizar, com nota de muito urgente, as operadoras de telecomunicações móveis seguintes informarem os autos dos seguintes elementos de prova (a remeter em formato digital):

1 - Identificação de todas as chamadas efectuadas e recebidas (tráfego das células apresentadas, bem como o tráfego respeitante às frequências e bandas com a mesma localização e o mesmo azimute) e todos os eventos de rede (cuja preservação já foi solicitada como referimos), que permitam identificar os aparelhos/cartões que estiveram registados nas antenas/células, tendo em conta as variáveis abaixo identificadas, na data e hora abaixo mencionadas, na zona onde ocorreu o assalto, próximo do “ (...) ”, entre as 11 horas e 11 horas e 45 minutos do dia 2 de Agosto de 2017: (…)

2 - Identificação de todas as chamadas efectuadas e recebidas (tráfego das células apresentadas, bem como o tráfego respeitante às frequências e bandas com a mesma localização e o mesmo azimute) e todos os eventos de rede (cuja preservação já foi solicitada como referimos), que permitam identificar os aparelhos/cartões que estiveram registados nas antenas/células, tendo em conta as variáveis abaixo identificadas, na data e hora abaixo mencionadas, na zona onde foi abandonada a carrinha do tabaco após a fuga, na saída Este de Pombal, entre as 11 horas e 30 minutos e as 12 horas e 15 minutos do dia 2 de Agosto de 2017 (…)».

Como resulta inequívoco do n.º 2 do artigo 189º do C. P. Penal, a obtenção de dados de tráfego e de localização como aqueles que o Ministério Público pretende só pode ocorrer em relação às pessoas referidas no n.º 4 do artigo 187º do mesmo diploma legal. O mesmo decorre do disposto nos artigos 4º, n.º 1 e 9º, n.ºs 1 e 3, ambos da Lei n.º 32/2008, de 17/07, aplicável ao solicitado pelo Ministério Público. No caso concreto, pretende-se lograr a identificação de suspeitos da prática de crime de roubo agravado, sendo evidente que a diligência pedida visa precisamente chegar à identificação de suspeitos e não, como exige a lei, incidir sobre dados de tráfego e localização relativos a suspeito ou suspeitos concretos. Dito de outro modo, o que é pretendido é que se aceda a dados de tráfego e de localização de um conjunto indeterminado de pessoas que efectuaram comunicações accionando células de antenas de telecomunicações, na esperança de, entre todas, descortinar quem possa ter praticado os crimes investigados. Ou seja, pretende-se obter dados de tráfego e de localização, desejavelmente, de suspeitos mas, seguramente, de muitos “não suspeitos”.

Parece evidente que a salvaguarda do sigilo das telecomunicações, plasmada nos apertados limites em que se admite a obtenção de dados de tráfego e de localização, nos termos das normas legais citadas, não consente tal identificação de suspeitos com recurso a “varrimento” de dados de número indeterminado de pessoas, a grande maioria (na melhor das hipóteses) ou todas (na pior) absolutamente alheias aos factos investigados.

Neste sentido, vejam-se os seguintes arestos (todos disponíveis na internet em www.dgsi.pt):

1. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/09/2010 (Processo n.º 20/10.7GCLLE-A.E1, Relator Juiz Desembargador Edgar Valente):

«(…) De acordo com o disposto no artº 189º, nº 2 do CPP, a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo. (…) Nas situações em que se pretende a obtenção de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações relativos a uma determinada área geográfica e a determinado intervalo temporal, não é possível relacionar tais dados/registos com qualquer ''suspeito'' (existe apenas a possibilidade de poderem vir a dizer respeito a suspeitos, possibilidade que pode nem sequer se concretizar, vindo a ser abrangida apenas uma miríade de cidadãos anónimos que não praticaram qualquer crime). (…) A pretensão referida (…) vai necessariamente abranger um leque muito alargado de cidadãos que não possuem o estatuto jurídico-processual de ''suspeito'' e, como tal, é ilegal (…)».

2. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/10/2011 (Processo n.º 19/11.6GCEVR-A.E1, Relator Juiz Desembargador Fernando Ribeiro Cardoso):

«(…) No caso apreciando, não há suspeitos nem arguidos e pretendia-se com a promoção desatendida obter informações que abarcam um universo ilimitado, incaracterístico e indiferenciado de destinatários para partir daí em busca de um suspeito. (…) A exigência de individualização do suspeito enquanto interveniente processual, designadamente para efeitos do nº 4 do artigo 187.º do CPP, não se confunde com a sua identificação completa, mas não dispensa a existência de dados factuais tendentes a essa identificação, com base nos quais possa individualizar-se uma pessoa determinada. (…) Não está concretizado nenhum alvo com certas e determinadas características nem, ao menos, uma palpável hipótese criminosa assente em meios de prova (que não o pretendido) identificáveis susceptíveis de uso justificado no processo. (…) Não existe, ainda que minimamente, uma qualquer probabilidade forte de os elementos pretendidos das operadoras poderem vir a evidenciar um qualquer suspeito dos actos em investigação. (…) Ou seja, o que se pretende através da promoção indeferida não é tanto a autorização para uso de um certo meio de obtenção de prova, mas antes a autorização para que se abra um caminho que possa vir a se meio de obtenção de prova; pretende-se que se destape uma caixa de Pandora e que dela ressalte o fio que haverá de conduzir a uma pista de investigação e permita dar corpo a um qualquer grau de suspeita, até agora inexistente. (…) Trata-se, manifestamente, de pretensão que, para além de ferir os ditames legais, se apresenta desprovida de razoabilidade, é desproporcionada e inadequada e que a perseguição do crime em investigação não justifica, face à devassa intolerável que o seu deferimento claramente constituiria (…)».

3. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/06/2012 (Processo n.º 342/11.0JAFAR.E1, Relatora Juíza Desembargadora Maria Fernanda Palma):

«(…) A obtenção de dados de localização celular e de registos de realização de conversações ou comunicações não deve ser autorizada quando reportada a um número de pessoas incertas (…)».

4. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/2015 (Processo n.º 54/15.5GCBNV-A.E1, Relatora Juíza Desembargadora Maria Leonor Esteves):

«(…) A falta de suspeito ou suspeitos determinados contra quem dirigir as escutas telefónicas, os pedidos de obtenção de dados de tráfego ou os pedidos de localização celular, é obstáculo intransponível à realização deste tipo de meios de obtenção de prova. (…) Recolher informações de pessoas inocentes, na esperança de, de entre estas, se “apanhar” algum suspeito, é desproporcional aos fins visados, sendo, pois, uma compressão inconstitucional e ilícita do direito à privacidade e à inviolabilidade das comunicações (…)».

5. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/02/2015 (Processo n.º 2063/14.2JAPRT-A.P1, Relator Juiz Desembargador Neto de Moura):

«(…) O suspeito de um crime não tem de ser completamente identificado ou individualizado bastando que seja pessoa determinável ou identificável.(…) Se os dados de localização celular que se pretendem obter não tem como alvo um suspeito, mas um conjunto de pessoas não identificadas e unidas apenas pelo simples facto de estarem num dado local num dado momento não é admissível a obtenção de dados de localização celular relativos a um número indeterminado de pessoas (…)».

6. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/06/2016 (Processo n.º 48/16.3PBCSC-A.L1-9, Relator Juiz Desembargador Sérgio Calheiros da Gama:

«(…) Tendo, num processo crime em fase de inquérito, requerido o Ministério Público, ao Juiz de Instrução Criminal, que fosse oficiado às operadoras de telemóveis o envio de listagem contendo todos os dados de tráfego - registos completos das comunicações efectuadas e recebidas nas BTS com indicação da hora e com indicação dos números chamados e chamadores, incluindo as mensagens de texto, duração e hora das chamadas e localização celular - relativos aos cartões SIM que operaram num determinado período de tempo, quanto às antenas que identificou (…), mas não estando concretizados alvos determináveis, e atingindo a diligência pretendida um universo ilimitado e indiferenciado de cidadãos que não se integram no conceito jurídico-penal de “suspeitos”, o deferimento da sua realização iria contra o disposto na al. a) do n.º 3 do art. 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, para além de não respeitar os princípios da proporcionalidade e da adequação cuja observância o n.º 4 desse normativo e o art. 18.º, n.º 2, da CRP impõem (…)».

7. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/03/2017 (Processo n.º 1585/16.5PBCSC-A.L1-5, Relator Juiz Desembargador Artur Vargues:

«(…) O regime dos artigos 187º a 189º, do CPP, aplica-se aos “dados sobre a localização celular”, obtidos em tempo real e intercepção das comunicações entre presentes, enquanto o consagrado na Lei nº 32/2008, de 17/07, tem como âmbito de aplicação os dados que concernem a comunicações relativas ao passado, ou seja, arquivadas. (…) Na densificação do conceito de suspeito aceita-se que pode ele não ser determinado - que se não conheça a sua identificação completa – não pode, porém, dispensar-se a existência de dados factuais tendentes a essa identificação, com recurso aos quais possa ser identificável e tal desiderato não se satisfaz pela circunstância de dezenas ou mesmo centenas de pessoas terem efectuado comunicações telefónicas em três áreas geográficas em período temporal próximo ao momento da prática do crime de roubo em investigação, tendo feito activar a mesma antena, quer no que respeita ao emissor, quer ao receptor. (…) No decurso do inquérito deve o Juiz de Instrução Criminal indeferir o requerimento do Ministério Público em que impetra se ordenasse às operadoras de telemóveis a remessa para os autos, relativamente a dia concretizado, no período entre as 08:45 horas e as 09:15 horas, de “listagem – em suporte digital e formato Excel – com: identificação dos cartões telefónicos que tenham recebido ou realizado chamadas de voz ou texto de ou para cartões presentes na mesma célula em questão e a seguir identificada – nº chamador e nº chamado activados na mesma célula; identificação dos IMEI em que esses cartões operavam na altura; identificação dos titulares desses cartões ou códigos de carregamento Multibanco dos mesmos. Quanto às antenas que se identificam a Fls. 16 e vs. dos presentes autos”, tendo em atenção o estabelecido nos artigos 1º, nº 1, 2º, nº 1, alínea g), 4º, 9º, nº 3, alínea a), da Lei nº 32/2008, de 17/07, 1º, alínea e), do CPP, 26º, nº 1 e 34º, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa (…)».

Termos em que, face ao exposto, indefiro o promovido pelo Ministério Público.

Devolva ao DIAP”.

2.3. Em 2 de Outubro de 2017, o Mmo. Juiz de Instrução sustentou a decisão recorrida do seguinte modo (transcrição, com excepção das notas de rodapé):

“Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Fazendo uso da prerrogativa prevista no n.º 4 do artigo 414º do C. P. Penal, venho sustentar a decisão recorrida.

                                                                *

II.

O Ministério Público, nas conclusões do recurso que interpôs, alerta para a gravidade do crime que investiga, para as suas consequências nas vítimas e comunidade em geral, sustenta que o interesse público do Estado em exercer o ius puniendi deve prevalecer sobre a reserva da vida privada afectada pela informações que pretende ver obtidas, sustentando que estarão apenas em causa números de código, minimizando a potencial devassa da vida privada.

Importa ter presente que o Ministério Público pretende obter dados relativos à localização celular de todos os telemóveis/cartões que accionaram um conjunto de células/antenas de telecomunicações em dois períodos de 45 minutos cada um. Trata-se de matéria que (ainda que discutivelmente) é enquadrada no âmbito do sigilo das telecomunicações e não genericamente na reserva da vida privada, como se sustenta na peça recursiva.

Estando em causa dados armazenados, atinentes a eventos passados, valerá a previsão da Lei n.º 32/2008, de 17/07, embora, para o que aqui interessa, a idêntico resultado se chegaria sempre por aplicação das disposições conjugadas dos artigos 187º, n.º 4, al. a) e 189º, n.º 2, ambos do C. P. Penal. Tantos nestes normativos como no que se considera aplicável – o artigo 9º, n.º 3, al. a), da Lei n.º 32/2008, de 17/07 – o legislador é cristalino ao exigir que os dados de localização celular a obter – artigo 4º, n.º 1, al. f), da Lei n.º 32/2008 – respeitem ao suspeito ou arguido e não ao conjunto indeterminado de pessoas cujos equipamentos de comunicação móvel accionaram antenas destinadas a tal comunicação.

O argumento da gravidade do crime não pode servir para tornear a norma legal imperativa, especialmente nesta matéria. A Lei n.º 32/2008 visou, por imposição de regulamentação europeia (transposição da Directiva 2006/24/CE), regular e limitar o modo de conservação e acesso, no tempo e quanto ao fundamento, de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações. Essa Directiva surgiu num contexto específico, na sequência de ataques terroristas a Londres, motivando a que o Conselho da Europa, na sua Declaração de 13/07/2015, tenha reafirmado «a necessidade de aprovar o mais rapidamente possível medidas comuns relativas à conservação de dados de telecomunicações»1. A Directiva surge na esteira da consideração «da importância dos dados de tráfego e dos dados de localização para a investigação, detecção e repressão de infracções penais» e, por isso, da necessidade de «garantir a nível europeu a conservação durante um determinado período dos dados gerados ou tratados, no contexto da oferta de comunicações, pelos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações»2. Deixou-se claro que os objectivos da Directiva se traduziam na «harmonização das obrigações que incumbem aos fornecedores de conservarem determinados dados e assegurarem que estes sejam disponibilizados para efeitos de investigação, detecção e repressão de crimes graves tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro» (destaque e sublinhado meus) e que as estipulações da Directiva teriam presente a conformidade com o princípio da proporcionalidade e, consequentemente, não excederiam o necessário para atingir aqueles objectivos3 e respeitariam «os direitos fundamentais e os princípios consagrados nomeadamente na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia», visando assegurar «que sejam plenamente respeitados os direitos fundamentais dos cidadãos em matéria de respeito pela privacidade e pelas comunicações e de protecção dos dados pessoais»4.

Perante este enquadramento, o legislador português estabeleceu regras para acesso a dados de localização celular arquivados no quadro de investigações de crimes graves (tendo seguramente em mente o terrorismo) e, ainda assim, exigiu que tal acesso só pudesse fazer-se relativamente a dados, para o que aqui interessa, atinentes a arguidos e suspeitos e não a todos os utilizadores, num concreto período e em concretas áreas, de redes de telecomunicações.

Note-se que a referida Directiva foi entretanto julgada inválida pelo Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (Grande Secção), de 08 de Abril de 20145, precisamente por não assegurar a proporcionalidade na restrição os direitos ao respeito pela vida privada e familiar e à protecção de dados pessoais, consagrados nos artigos 7º e 8º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Numa das vertentes, essa falta de proporcionalidade consistia em determinar-se a conservação de todos os dados de tráfego, mesmo sem indícios de que o visado estaria ligado, ainda que de modo indirecto ou longínquo, com crimes graves6.

Também não pode invocar-se para legitimar um acesso irrestrito a um conjunto de dados de localização o facto de se tratar de números de código. Esse é um pressuposto de toda a regulamentação relativa ao acesso a metadados, tido em mente pelo legislador (europeu e português) quando limitou o acesso aos dados de certas categorias de pessoas.

De resto, o entendimento plasmado no despacho recorrido é aquele que, sem excepção (tanto quanto se saiba), tem vingado na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores nos últimos anos, desconhecendo-se a decisão a que alude o Ministério Público na fundamentação do recurso.

Independentemente do que se disse, o mais grave é que o Ministério Público refere na fundamentação do recurso que o que visa alcançar seria (será) conseguido com recurso a meio muito menos lesivo dos interesses privados e com plena satisfação do interesse público que visa prosseguir. Se é conhecida a identidade de dois suspeitos, se são conhecidos os números de telemóvel que usam (e por essa via se poderá chegar aos IMEI dos aparelhos), a resposta à questão de saber se se encontravam, aquando da prática do crime, em zona coberta por concretas antenas/células obtém-se solicitando às operadoras informação sobre se aqueles concretos equipamentos/cartões accionaram aquelas concretas antenas/células naqueles concretos períodos de tempo. Algo que respeita a exigência legal contida na alínea a) do n.º 3 do artigo 9º da Lei n.º 32/2008, que respeita a proporcionalidade imposta pelo n.º 1 do mesmo artigo e que evita procedimento de indiscriminado “varrimento” de dados sensíveis quando a busca se circunscreve a algo concreto e determinado.

Razões pelas quais, em meu modesto entendimento, a fundamentação do recurso, longe de pôr em causa o acerto do despacho recorrido, valida inexoravelmente o aí decidido.

                                                                *

V. Ex.as, porém, decidindo, farão, como sempre, melhor JUSTIÇA”.

                                                           *

3. Apreciando.

No presente inquérito investiga-se a prática de um crime de roubo agravado, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.os 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), ambos do Código Penal, ao qual é aplicável a pena de 3 a 15 anos de prisão.

Conforme refere o Ministério Público na promoção desatendida, mostra-se indiciado que, no dia 2 de Agosto de 2017, pelas 11h30m, depois do ofendido A... ter estacionado a carrinha que utiliza na sua actividade de distribuidor de tabaco no parque de estacionamento em frente ao estabelecimento denominado " (...) ", sito na Rua (...) , Pombal, acompanhado do seu filho, B... , de 13 anos de idade, foram abordados por dois indivíduos do sexo masculino, de identidades desconhecidas, encapuzados, que usavam luvas e um deles empunhava uma pistola, obrigaram os ofendidos a sair da viatura automóvel referida, apoderaram-se da mesma que conduziram até à Rua (...) , Pombal, sendo que no interior da dita carrinha estavam, nomeadamente, várias caixas de tabaco, no valor de cerca de 30.000,00 € (trinta mil euros) e cerca de 10.000,00 € (dez mil euros) em numerário, que os agentes do crime levaram consigo.

Estando ainda por determinar a identidade dos autores do indiciado crime, o Ministério Público veio requerer ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal que se autorizasse as operadoras de telecomunicações X... , Y... e Z... a fornecer os elementos relativos a identificação de todas as chamadas efectuadas e recebidas (tráfego das células apresentadas, bem como o tráfego respeitante às frequências e bandas com a mesma localização e o mesmo azimute) e todos os eventos de rede que permitam identificar os aparelhos/cartões que estiveram registados nas antenas/células respeitantes aos locais que indica (próximo do “ (...) ”, onde se deu o roubo, e saída Este de Pombal, onde foi abandonada a carrinha do tabaco após a fuga), na data e hora que também indica, referentes à ocasião dos factos.

A pretensão assim deduzida inscreve-se no âmbito da obtenção de dados de tráfego e de localização celular conservados pelos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes pública de comunicações, nos termos previstos na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15-03, relativa ao acesso e conservação dos dados de tráfego e de localização das comunicações para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades e que estabelece um regime processual privativo da referida matéria.

Para efeitos do mencionado diploma, entende-se por dados os dados de tráfego, os dados de localização e os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador [artigo 2.º, n.º 1, alínea a)]. Tais dados estão sujeitos à conservação temporária pelos referidos fornecedores de serviços e abrangem os que se revelem necessários para encontrar e identificar a fonte e o destino de uma comunicação, para identificar a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento, e para identificar a localização do equipamento de comunicação móvel [artigo 4.º, n.º 1, alíneas a) a f)].

Na linha do que sustentam os Acórdãos da Relação de Lisboa de 22-06-2016 (processo n.º 48/16.3PBCSC-A.L1-9), 07-03-2017 (processo n.º 1585/16.5PBCSC-A.L1-5) e 25-10-2016 (processo n.º 223/16.0GBLLE.E1)[3], o regime estabelecido na citada Lei n.º 32/2008 refere-se à obtenção dos dados de comunicações já ocorridas e que se encontram preservados ou conservados. Já o artigo 189.º, n.º 2 do CPP e a extensão do regime das escutas telefónicas nele consagrada tem em vista os dados recolhidos em tempo real.

De todo o modo, os requisitos de acesso aos dados previstos num e noutro regime são, no essencial, os mesmos[4], como também é ponto assente que ambos se traduzem em meios de obtenção de prova restritivos do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, tutelado no artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e, mais directamente, do sigilo das telecomunicações (cf. artigo 34.º, n.os 1 e 4 da CRP), devendo enquanto tais obedecer às exigências de adequação, necessidade e proporcionalidade consagradas no artigo 18.º da Lei Fundamental.

Tendo ainda presente que os valores constitucionais da descoberta da verdade material e da realização da justiça, mesmo em matéria criminal, estão sujeitos aos limites impostos pela dignidade e pelos direitos fundamentais das pessoas e que processualmente se traduzem nas proibições de prova, em relação às quais o artigo 32.º, n.º 8 da CRP estabelece, quanto à questão que agora nos ocupa, que são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão nas telecomunicações.
Como se assinala no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 403/2015[5], a protecção do sigilo das comunicações consagrada no artigo 34.º, n.º 4 da CRP, compreende tanto o conteúdo da comunicação propriamente dito como os dados de tráfego atinentes ao processo de comunicação. O acesso aos dados de tráfego[6] pode constituir uma ingerência gravosa na vida privada das pessoas, já que permitem aceder a informações relativas a todas as chamadas efectuadas, incluindo as chamadas para as linhas de serviço de emergência, SOS e similares, ao número de chamadas, aos números de telefone chamados, à hora de início e duração de cada delas, à posição geográfica e direcção da deslocação que o utilizador efectuou durante a realização de uma determinada chamada. 
Sublinhando-se ali, pois, que “a privacidade da comunicação, como corolário da reserva da intimidade da vida privada, abrange não apenas a proibição de interferência, em tempo real, de uma chamada telefónica, como também a impossibilidade do ulterior acesso de terceiros a elementos que revelem as condições factuais em que decorreu uma comunicação”.
Ou, como refere o Tribunal de Justiça da União Europeia, que em sede de decisão prejudicial já foi chamado a pronunciar-se sobre se a Directiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, objecto de transposição pela Lei n.º 32/2008, se mostra conforme com os artigos 7.°, 8.° e 11.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, os dados em questão permitem, designadamente, saber qual é a pessoa com quem um assinante ou um utilizador registado comunicou, e através de que meio, assim como determinar o tempo da comunicação e o local a partir do qual esta foi efectuada. Além disso, permitem saber com que frequência o assinante ou o utilizador registado comunicam com certas pessoas, durante um determinado período, pelo que, considerados no seu todo, são susceptíveis de permitir tirar conclusões muito precisas sobre a vida privada das pessoas cujos dados foram conservados, como os hábitos da vida quotidiana, os lugares onde se encontram de forma permanente ou temporária, as deslocações diárias ou outras, as actividades exercidas, as relações sociais e os meios sociais frequentados.[7]

Voltando aos requisitos de acesso aos elementos em análise, conforme dispõem os artigos 4.º, n.º 1 e 9.º, n.os 1 e 3, ambos da Lei n.º 32/2008[8], a obtenção de dados de tráfego e de localização como aqueles que o Ministério Público pretende só pode ocorrer em relação às pessoas referidas no artigo 9.º, n.º 3 da citada Lei e no n.º 4 do artigo 187.º do CPP, ou seja, a) o suspeito ou arguido; b) a pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou c) a vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido.

Por outro lado, é também pressuposto que existam razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves (artigo 9.º, n.º 1 da Lei n.º 32/2008[9]), o que segundo a definição do artigo 2.º, n.º 1, alínea g), da mesma Lei, corresponde aos crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima, sendo que a densificação do indicado conceito “criminalidade violenta” se encontra plasmada no artigo 1.º, alínea j), do CPP, que remete para as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.

Por fim, exige-se ainda que a decisão judicial de transmitir os dados respeite os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados (artigo 9.º, n.º 4 da Lei n.º 32/2008).

In casu, atendendo à definição que nos é dada pela conjugação dos citados artigos 2.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 32/2008 e 1.º, alínea j), do CPP, verifica-se que o crime de roubo indiciado nos autos integra o conceito de crime grave, para efeitos do diploma.

Já quanto à exigência de que apenas pode ser autorizada a transmissão de dados relativos ao suspeito ou arguido, imposta no artigo 9.º, n.º 3, alínea a), da mesma lei, dos elementos que a esse respeito foram indicados na promoção desatendida não resulta que a mesma esteja preenchida.

Na verdade, como bem se refere na decisão recorrida, a diligência pedida pelo Ministério Público visa obter a identificação de suspeitos da prática do aludido crime e não, como diz a lei, incidir sobre dados de tráfego e localização relativos a suspeito ou suspeitos concretos. Noutras palavras, o que é pretendido é que se aceda a dados de tráfego e de localização de um conjunto indeterminado de pessoas que efectuaram comunicações, accionado células de antenas de comunicações, na expectativa de, entre elas, descortinar quem possa ter praticado o ilícito investigado. Pretende-se, pois, obter dados de tráfego e de localização, desejavelmente de suspeitos, mas seguramente de muitos “não suspeitos”.

O que não é permitido pela salvaguarda do sigilo das telecomunicações, consubstanciada nos apertados limites estabelecidos na Lei n.º 32/2008 e nas exigências constitucionais de adequação, necessidade e proporcionalidade.

Aliás, no caso vertente, embora tal não tenha sido invocado no dito requerimento do Ministério Público, que só o referiu na motivação de recurso, existem dois indivíduos eventualmente suspeitos cuja identificação e números de telemóveis que utilizam vêm indicados a fls.73 e 77 dos autos.

Ora, como assinala o Mmo. Juiz de Instrução no despacho de sustentação, se é conhecida a identidade dos referidos suspeitos e bem assim os números de telemóvel que utilizam, a resposta à questão de saber se na ocasião da prática do indiciado crime aqueles se encontravam em zona coberta por concretas antenas/células obtém-se solicitando às operadoras de telecomunicações informação sobre as chamadas realizadas por um determinado número e à localização espacial dessas chamadas (do equipamento com o qual foram realizadas), num determinado período de tempo, por referência a uma antena que distribuiu o sinal. Solução que respeita a exigência imposta pelo artigo 9.º, n.º 3, alínea a), da Lei n.º 32/2008 e se mostra conforme com a proporcionalidade exigida pelo n.º 4 do mesmo normativo, evitando o procedimento de indiscriminado “varrimento” de dados sensíveis que são objecto da indicada tutela constitucional, já que a pesquisa e obtenção de elementos se circunscreve a algo concreto e determinado.

Ao invés, a promoção desatendida pelo despacho recorrido, para além de nada explicitar quanto à apontada existência de eventuais suspeitos com equipamento de telecomunicações já identificados nos autos, reveste uma amplitude tal que não é compatível com a determinabilidade mínima de visados imposta pelo n.º 3, alínea a), do mesmo artigo, a que acresce que não assegura as exigências constitucionais de proporcionalidade plasmadas no artigo 9.º, n.º 4 da Lei n.º 32/2008, na medida em que a pretendida obtenção de dados é passível de se traduzir na recolha de informação sensível relativamente a número indeterminado de pessoas, bastando para tanto que tenham accionado os seus telemóveis nos referidos lapsos de tempo do dia 02-08-2017, activando as células ou antenas que abrangem as áreas geográficas indicadas, nas quais se poderiam encontrar então diversos utilizadores: note-se que está em causa um período do dia em que é normal e razoável supor que se efectuam mais comunicações (entre as 11h00m e as 12h15m), que a primeira das áreas visadas se situa em pleno centro urbano, nas imediações de um estabelecimento comercial – “ (...) ” – e de uma escola secundária, ainda que em período de férias de Verão, e que a segunda, embora já na zona limítrofe da cidade, se encontra na proximidade de uma via como o IC 8.

Para sustentar que tais exigências de proporcionalidade estão salvaguardadas, invoca-se ainda no recurso que as pretendidas informações relativas aos eventos de rede irão fornecer apenas os números de código que corresponderão a números de telemóvel e serão estes números de código que serão confrontados pelo OPC com número de códigos já obtidos pelo OPC no âmbito de outros processos de inquérito que correm termos em diversas comarcas deste país em que os agentes do crime utilizaram o mesmo modus operandi do utilizado nos presentes autos, pelo que o interesse privado tutelado pela reserva da vida privada se manterá quase intocado, face ao tratamento a que irá ser objecto a informação obtida.

Sucede, porém, que tais aspectos de ordem procedimental, destinados a salvaguardar exigências como a confidencialidade da informação, não dispensam a verificação dos requisitos que legitimam a obtenção dos dados em questão, impostos pelo citado artigo 9.º, mormente os que respeitam à determinabilidade dos sujeitos visados, nos termos previstos no seu n.º 3.

E, recorde-se, o que foi requerido pelo Ministério Público consistiu na identificação de todas as chamadas efectuadas e recebidas e todos os eventos de rede que permitam identificar os aparelhos/cartões que estiveram registados nas células ou antenas existentes nos locais indicados, no dia e hora também indicados, o que implica que o leque de visados integre todos aqueles que efectuaram comunicação telefónica nas áreas mencionadas e em período próximo do momento da prática do crime indiciado nos autos, fazendo activar a correspondente antena, sendo estes critérios manifestamente insuficientes para satisfazer as exigências mínimas de densificação factual do conceito de “suspeito” que, como é sabido, embora não se confunda com a sua identificação completa, não dispensa a existência de elementos com base nos quais se possa individualizar uma pessoa determinada[10], o que está longe de ser assegurado com a supra referida delimitação assente no universo indiferenciado de utilizadores de telemóvel na data, hora e locais assinalados.

Ademais, a diligência requerida está claramente aquém do patamar mínimo que suportaria as exigências também constitucionais de adequação e necessidade, vertidas no citado artigo 9.º, n.º 4, uma vez que a existência de suspeitos e de telemóveis determinados permitiria a obtenção dos pertinentes elementos através de meios muito menos lesivos dos direitos fundamentais em análise e com plena satisfação do interesse público de investigação criminal que se visa prosseguir, meios esses que o Ministério Público não procurou, optando antes por requerer uma solução que, na ponderação concreta que no caso se impõe efectuar, extravasa o âmbito consentido por uma restrição justificada do direito à reserva da intimidade da vida privada e, mais directamente, da inviolabilidade das comunicações.

É certo que o indiciado roubo é um crime grave e susceptível de gerar grande intranquilidade nas vítimas e na comunidade em geral. Porém, não é menos verdade que, à luz dos preceitos constitucionais supra citados, tal não justifica a ingerência na vida íntima e privada de um número indeterminado de pessoas alheias aos factos que decorreria da diligência pretendida, face aos amplos moldes em que foi requerida, pondo-se, assim, em crise dados sensíveis que são objecto da tutela constitucional atrás referida.

Bem andou, pois, o Mmo. Juiz de Instrução que pelas razões fundadas que invocou no despacho recorrido, complementadas pelos motivos que aduziu na sustentação, decidiu inferir a promovida obtenção de dados de tráfego e de localização. 

Devendo, pois, o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

                                                         *

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.

Sem tributação.

Coimbra, 8 de Novembro de 2017 

(O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

(Helena Bolieiro - relatora)

(Brízida Martins – adjunto)                                         


[1] Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág.271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193.
[2] Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.
  
  
[3] Arestos disponíveis na Internet em <http://www.dgsi.pt>. Cf. ainda António Henriques Gaspar et al., Código de Processo Penal Comentado (anotação de Santos Cabral ao artigo 189.º), 2.ª ed., Almedina. 2016, pág.786, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., Universidade Católica Editora, 2011, anotação 12 ao artigo 127.º, pág.348.
[4] Cf. João Conde Correia, “Prova digital: as leis que temos e a lei que devíamos ter”, in Revista do Ministério Público, ano 35, n.º 139, pág.33.  
[5] Acórdão proferido em 27-08-2015 e disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150403.html>.
[6]  Dados de tráfego entendidos na acepção mais ampla que abrange os dados de tráfego e os de localização que têm por base um concreto acto de comunicação. Ou seja, os dados de tráfego na classificação tripartida “dados de base”, “dados de tráfego” e “dados de conteúdo”, adoptada pelo Tribunal Constitucional desde o seu Acórdão n.º 241/2002, e que correspondem aos elementos funcionais obtidos por referência à dinâmica exterior que envolve uma concreta comunicação: a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, o equipamento de telecomunicações e a sua localização.
[7] Cf. Acórdão do TJUE de 8 de Abril de 2014, proferido nos processos apensos C293/12 e C594/12.  
[8] Quanto aos mesmo dados a obter em tempo real, cf. artigo 189.º, n.º 2 do CPP.
[9] Quanto aos dados a obter em tempo real, cf. artigo 189.º, n.º 2 do CPP.
[10] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18-10-2011, proferido no processo n.º19/11.6GGEVR-A.E1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.