Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/14.3T8PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: REMESSA DO PROCESSO
PRAZO
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
MINISTÉRIO PÚBLICO
PRAZO ORDENADOR
Data do Acordão: 11/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 41.º E 62.º DL 433/82 DO RGCOC
Sumário: I - O art.41.º, n.º 1, do RGCO, não limita, de modo algum, a aplicação do processo criminal, como direito subsidiário, à chamada fase judicial do processo de contra-ordenação, pelo que se tem entendido, que o mesmo é aplicável quer a esta fase, quer à referida fase administrativa.

II - O legislador, ao impor o prazo curtíssimo de 5 dias à autoridade administrativa para ponderar a revogação da decisão administrativa ou a remessa dos autos ao Ministério Público, não quis, seguramente, precludir a possibilidade, após aquele prazo, da autoridade administrativa praticar os actos de revogação ou de remessa dos autos.

III -Trata-se de um prazo ordenador.

Decisão Texto Integral:



            Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

     Relatório

Por decisão do Ministério da Administração Interna - da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária - proferida no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 284797332, o arguido A... , residente na Rua (...) Castanheira, Coz,  foi condenado pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 150.º, n.ºs 1 e 2, 135.º, n.º 3, al. b), 138.º e 145.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, na coima de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) e  na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias.

Inconformado com a decisão administrativa veio o arguido A... interpor recurso de impugnação judicial, nos termos do art.59.º e seguintes do DL 433/82, de 27.10.

            Admitido o recurso de impugnação e realizada a audiência de julgamento, a Ex.ma Juíza da Comarca de Leiria, Instância Local de Porto de Mós, Secção Criminal, J1, por sentença proferida a decidiu julgar improcedente o recurso apresentado pelo arguido A... e, consequentemente manter a decisão da autoridade administrativa que lhe aplicou, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos artigos 150.º, n.ºs 1 e 2, 135.º, n.º 3, al. b), 138.º e 145.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, a coima de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) e a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias.

Não se conformando também com a douta decisão judicial de 9 de Dezembro de 2014, dela interpôs recurso o A... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1.º - O Arguido A... , foi condenado pela prática de contra-ordenação p. p. pelos artigos 150.º, n.º 1 e 2, 135.º, n. 3, al. b), 138.º e 145.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, na coima de € 750,00 (Setecentos e Cinquenta Euros), e ainda na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta dias) dias.

2.º - Questão a apreciar: É a de saber, in casu, se existe ou não nulidade por violação do prazo previsto no artigo 62.º. n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10 (RGCC).

3.º - O Arguido remeteu à Autoridade Administrativa o respectivo recurso de impugnação da Decisão por esta proferida, tempestivamente, em 05.02.2014,

4.º - A autoridade Administrativa pronunciou-se, em 08.08.2014. cerca de 6 (seis) meses depois, pela inexistência dos motivos para revogar a decisão, mantendo-a (cfr. fls. 29), tendo os autos sido remetidos ao Ministério Público em 03.09.2014. cerca de 1 (um) mês depois do despacho de manutenção da decisão, neles dando entrada em 05.09.2014 (cfr. fls. 2).

5.º- Em sede de audiência de julgamento, alegou o Arguido que Autoridade Administrativa ao não ter cumprido o prazo de 5 dias previsto no artigo 62.º, n.º 1, do RGCC, entre o recebimento do recurso e a remessa do mesmo ao Ministério Público, incorreu em violação do preceito em referência, constituindo esta uma nulidade insanável.

6.º - Determina o art. 62.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas: “Recebido o recurso e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação”. - negrito e sublinhado nosso.

7.º - O RGCC não refere, todavia, qual a sanção ou consequência da inobservância desse prazo de cinco dias para o envio do processo ao Ministério Público, não devendo por isso considerar-se tal inobservância isenta de consequências, pois aquando da interpretação da Lei deverá sempre atender-se à intenção do legislador, que quando legisla não estabeleceria prazos se a sua observância ou inobservância fosse indiferente e inconsequente.

8.º - Assim, excedido tal prazo, sempre se deverá entender verificada a existência de uma nulidade insanável, a qual deve ser oficiosamente declarada, por aplicação do disposto nos artigos 119.º, al. b), 122.º, n.º 1, e 48.º, todos do Código Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41.º do RGCC. (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.01.2004, in www.dgsi.pt)

9.º - Dispõe o artigo 62.º do RGCO: “De que recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação. Até ao envio dos autos, pode a autoridade administrativa revogar a decisão de aplicação da coima”. - negrito e sublinhado nosso.

10.º - O processo contra-ordenacional assume a natureza de procedimento administrativo até à sua fase judicial, sendo de admitir, em todos os casos não expressamente previstos e em que a lei a tal não se oponha, o recurso às normas e princípios do Código de Procedimento Administrativo.

11.º - O Tribunal Constitucional, por Acórdãos de 29/02/2003 e 4/02/2003, publicados no DR, II Série, de 16 de Abril e 23 de Maio de 2003, veio afirmar que o processo contra-ordenacional assume estruturalmente uma especial natureza mista, com uma clara feição de procedimento administrativo até à fase judicial, sendo que, em todas as circunstâncias não expressamente previstas (e não havendo disposição normativa que a tal se oponha), se terá de admitir o recurso à disciplina e princípios que genericamente regem esse tipo de procedimento.

12.º - Um dos princípios que deverá reger o procedimento administrativo é o princípio da legalidade.

13.º - Determina a Constituição que a Administração prossegue um interesse público “no respeito pelos direitos e interesse legalmente protegidos dos cidadãos” - art.266.º CRP, como corolário do disposto no art.3.º, que determina que o Estado se subordina à lei fundamental e se funda na legalidade democrática. Daí a subordinação da Administração não só à Constituição como à Lei.

14.º - Esse princípio foi vertido no art.43.º do RGCO, “O processo das contra-ordenações obedecerá ao princípio da legalidade”, constituindo a trave mestra onde deve assentar a actuação das autoridades administrativas ao longo de todo o processo.

15.º - Por tudo isso, não podemos considerar, de que, na Administração, vigora o princípio de que o que não é proibido é permitido. Como salienta Diogo Freitas do Amaral, in Direito Administrativo, vol. II, ed. 1998, pág. 46, “a lei não é apenas um limite à actuação da Administração, é também o fundamento da acção administrativa”.

16.º- Quer isto dizer que hoje em dia não há um poder livre de a Administração fazer o que bem entender, salvo quando a lei lhe proibir: pelo contrário, vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça.

17.º- Por outras palavras, a regra geral, em matéria de actividade administrativa, não é o princípio da liberdade, é o princípio da competência.

18.º - Segundo o princípio da liberdade, pode-se fazer tudo aquilo que a lei não proíbe;

19.º - Segundo o princípio da competência, pode-se fazer apenas aquilo que a lei permite.

20.º - Tudo quanto se disse permite atingir aquilo que nos parece a mais correcta interpretação do art.62.º do RGCO, e ela é a de que, recebido a impugnação judicial, a autoridade administrativa só pode tomar uma de duas atitudes: ou envia os autos ao Ministério Público, para os efeitos previsto no n.º 1; ou revoga a decisão de aplicação da coima.

21.º - Se o legislador, nesse art.62.º quisesse conceder à autoridade administrativa o poder de proferir nova decisão, ou enviar os autos para o Ministério Público quando assim entendesse, certamente os termos utilizados seriam outros e não teria sido estabelecido qualquer prazo.

22.º - Aliás, aceitar a solução contrária seria abrir caminho a que, sempre que a autoridade administrativa, analisando a impugnação apresentada, entendesse que algo haveria que alterar ou completar, poderia proferir nova decisão, sem qualquer limite quanto ao seu número, para além de que, poderia também entender que lhe era vantajoso, por qualquer razão, apenas remeter os autos para o Ministério Público quando assim entendesse, mas sempre antes da verificação do prazo prescricional, o que convenhamos, é repudiado pelo mais elementar bom senso.

23.º- A consequência da não remessa dos autos no prazo de 5 dias (previsto no n.º 1 do citado art.62.º) após o recebimento do primitivo recurso é a nulidade insanável, qual deve ser oficiosamente declarada.

24.º - Dispõe o art.122.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, aplicável ex vi do art. 41.º do RGCO, que “as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem bem como os que dele dependerem e aquelas que puderem afectar”.

25.º - Ora, no caso concreto, nulo é todo o processado posterior à verificação da nulidade insanável, data em que os autos deveriam ter sido remetidos ao Ministério Público e em que se verificou a omissão que originou a nulidade.

26.º- Com isto, fica bem claro que posição adoptada na sentença em crise, não poderá ser acolhida, pois o que está em causa não é se a nulidade se verifica após a recepção da acusação pelo Ministério Público, mas sim antes, considerando que a violação do referido prazo faz precludir o direito de a Entidade Administrativa enviar os autos para o Ministério Público, o que equivale a acusação.

27.º - Não podendo também considerar-se o referido prazo, por analogia, semelhante ao prazo de duração do inquérito, considerando-o um prazo meramente ordenador.

28.º - A interpretar-se analogicamente este prazo, sempre se teria que considerar este semelhante ao estabelecido para a participação de crime ao Ministério Público - o que , como bem sabemos, a sua inobservância, faz precludir o direito de participação criminal.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e determinar a sua substituição por outra que reconheça a nulidade insanável invocada.

        O Ministério Público na Comarca de Leiria, DIAP de Porto de Mós, respondeu ao recurso interposto pelo arguido pugnando pela sua improcedência e manutenção na íntegra da douta sentença recorrida. 

          O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder, mantendo-se a douta decisão recorrida.      

           Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta ao parecer.

           Colhidos os vistos cumpre decidir.

       Fundamentação

Do despacho recorrido consta, designadamente, o seguinte:

« Da invocada nulidade por violação do prazo previsto no artigo 62.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 433/82, de 27.10 [RGCC]:

Decorre de fls. 28 dos autos, que o aqui arguido remeteu à Autoridade Administrativa o respectivo recurso da impugnação da Decisão por esta proferida, tempestivamente, em 05.02.2014.

A autoridade Administrativa pronunciou-se, em 08.08.2014, pela inexistência de motivos para revogar a decisão, mantendo-a [cfr. fls. 29], tendo os autos sido remetidos ao Ministério Público em 03.09.2014, neles dando entrada em 05.09.2014 [cfr. fls. 2].

Em sede audiência de julgamento, alegou o arguido que a Autoridade Administrativa, ao não ter cumprido o prazo de 5 dias previsto no artigo 62.º, n.º 1, do RGCC, entre o recebimento do recurso e a remessa do mesmo ao Ministério Público, incorreu em violação do preceito em referência, constituindo esta nulidade insanável.

Cumpre decidir:

Determina o art. 62.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas [de futuro, apenas RGCC]: “Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação”.

 O RGCC não refere, todavia, qual a sanção ou consequência da inobservância desse prazo de 5 dias para o envio do processo ao Ministério Público.

Excedido tal prazo, há quem entenda ter-se por verificada uma nulidade insanável, qual deve ser oficiosamente declarada, por aplicação do disposto nos artigos 119.º, al. b), 122.º, n.º 1, e 48.º, todos do Cód. Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41.º do RGCC [cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.01.2004, disponível no sítio www.dgsi.pt].

Desde já se adianta não partilharmos dessa posição.

Por deveras elucidativa da posição a que aderimos, transcreve-se o seguinte segmento do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a respeito da questão sub judice [Acórdão datado de 20.10.2013, no P. 208/13.9TBGRD.C1, disponível no sítio www.dgsi.pt]: 

“[…] Em primeiro lugar, consideramos não ser de chamar à colação o art. 48º do CPP que, como aí se consigna expressamente, regula para a “legitimidade para promover o processo penal”.

A legitimidade é pressuposto processual e reporta-se à relação que a parte deve ter para que possa promover um processo.

  Por isso, que o art. 48º do CPP, refere que o Mº Pº tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º, ou seja, dos casos de crimes particulares e dos semipúblicos, em que a lei confere a legitimidade aos titulares dos interesses lesados.

 Ora, a falta de legitimidade não pode ser confundida com a inobservância de um prazo.

 Por outro lado, como é sabido, no caso de contra-ordenações não estamos no âmbito de um processo penal, pois ao ilícito de mera ordenação social não é conferida dignidade penal.

Em consonância, a legitimidade para promover processo contra-ordenacional é conferida a autoridades administrativas consoante o ilícito em apreço; em questões rodoviárias e infracções ao Código da Estrada (e respectivo Regulamento), a aplicação de coimas e sanções acessórias é da competência da ANSR: cf. art. 169º do CE.

 O prazo dos 5 dias situa-se antes do envio dos autos ao Mº Pº, vinculando apenas a autoridade administrativa.

Portanto, se bem o entendemos, só após o envio dos autos ao Mº Pº, em obediência ao art. 62º nº 1 do RGCO é que o Mº Pº tem conhecimento do processo e só a partir daqui ele fica no âmbito da sua legitimidade, seja para acusar (o que acontece ao tornar os autos presentes ao juiz, como refere esse art. 62º), seja para retirar a acusação (cf. art. 65º-A do RGCO).

Daqui resulta que, a existir a dita nulidade, ela só poderia ocorrer após a recepção dos autos pelo Mº Pº, pois só nessa altura lhe é conferida legitimidade para a promoção do processo.

Concluindo, o prazo de 5 dias estabelecido no art. 62º nº 1 do RGCO é um prazo meramente ordenador - à semelhança, por exemplo, do prazo de duração do inquérito (art. 276º do CPP) -, cuja inobservância não torna os actos inválidos.”.

Concluímos, assim, em conformidade com os argumentos plasmados no Acórdão supra transcrito, pela inexistência da invocada nulidade.

            (…)

Factos Provados:

Compulsados os autos, e com pertinência para apreciação da responsabilidade contraordenacional do arguido, mostram-se provados os seguintes factos:

1.No dia 24.04.2013, pelas 03H40, na EN 243, Zona Industrial da Amarela, área desta Instância Local de Porto de Mós, circulava o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula (...) IE conduzido por B..., titular da carta de condução n.º (...) , residente na Rua (...) Castanheira, propriedade do arguido A... , residente em idêntica morada.

2.Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o referido veículo circulava na mencionada via pública sem que a responsabilidade pelo risco resultante da sua utilização estivesse transferida para uma entidade seguradora, encontrando-se caducada a apólice de seguro desde o dia 05.06.2012.

3.O arguido não agiu com o cuidado a que estava legalmente obrigado e de que era capaz.

4.O arguido não procedeu ao pagamento voluntário da coima.

Mais se provou que:

5. O arguido não tem averbado no seu registo de condutor a prática de qualquer contra-ordenação.

Factos não provados:

Com relevância para a decisão do presente recurso de impugnação, não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente, os alegados pelo arguido no seu recurso de Impugnação da Decisão da Autoridade Administrativa:

     a) Que nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas nos autos, o veículo identificado supra em 1. da rubrica  “factos provados”, se encontrasse imobilizado na sua propriedade por se encontrar avariado desde Abril de 2012.

Motivação da matéria de facto:

O Tribunal fundou a sua convicção a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, bem como nos documentos juntos aos autos, em conjugação com as regras da experiência comum.

Assim, considerou o Tribunal os elementos documentais juntos aos autos, mormente os de fls. 1 [e 2], 3, 5 a 6, 7 a 8, 9, 10 a 15 [ e 16 a 21e 22 a 28] e 30 a 33 dos autos, e o depoimento da Testemunha C... , o qual, com conhecimento directo dos factos – que lhe advém da circunstância de ter sido o agente autuante – não só corroborou o teor do auto de contraordenação por si elaborado, como também, e para além do que nele ficou expresso, relatou, de forma circunstanciada, precisa e coerente, todo o contexto da prática dos factos, com especial relevo para o modo como foram identificados o veículo automóvel em causa nos autos, o respectivo proprietário e, bem assim, a respectiva condutora, de modo que, no espírito do julgador, nenhuma dúvida se suscitou quanto à prova dos factos que se acham inscritos supra na correspondente rubrica.

De salientar apenas, no que tange ao elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional, que o mesmo se acha sustentado pela circunstância de a apólice de seguro de encontrar caducada, tudo levando a crer estarmos em presença de uma conduta meramente negligente.

            No que respeita à matéria de facto tida como não provada, a convicção do Tribunal resultou da circunstância de, em relação à mesma, nenhuma prova ter sido feita em juízo. ».

*
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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. (Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do arguido A... a questão a decidir é a seguinte:

- se violação do prazo de 5 dias previsto no artigo 62.º. n.º 1, do Decreto-Lei n.433/82, de 27/10 (RGCC) constitui uma nulidade insanável nos termos do art.119.º, alínea b), do C.P.P. , que determina ser nulo todo o processado posterior a essa nulidade.

Passemos ao seu conhecimento.

            Na defesa de que a violação do prazo de 5 dias previsto no artigo 62.º. n.º 1, do Decreto-Lei n.433/82, de 27/10 (RGCC) constitui uma nulidade insanável nos termos do art.119.º, alínea b), do C.P.P., determinando que seja nulo todo o processado posterior a essa nulidade, o arguido A... aduz  no essencial os seguintes argumentos:

- O art.62.º do RGCO estabelece que recebido o recurso deve a autoridade administrativa enviar, no prazo de cinco dias, os autos ao Ministério Público que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação e, ainda, que até ao envio dos autos, pode a autoridade administrativa revogar a decisão de aplicação da coima;

- O RGCC não refere qual a sanção ou consequência da inobservância desse prazo de cinco dias para o envio do processo ao Ministério Público, pelo que deverá atender-se à intenção do legislador no estabelecimento do prazo;

- O processo contra-ordenacional assume a natureza de procedimento administrativo até à sua fase judicial, sendo de admitir, em todos os casos não expressamente previstos e em que a lei a tal não se oponha, o recurso às normas e princípios do Código de Procedimento Administrativo;

- O Tribunal Constitucional, por Acórdãos de 29/02/2003 e 4/02/2003, publicados no DR, II Série, de 16 de Abril e 23 de Maio de 2003, veio afirmar que o processo contra-ordenacional assume estruturalmente uma especial natureza mista, com uma clara feição de procedimento administrativo até à fase judicial, sendo que, em todas as circunstâncias não expressamente previstas (e não havendo disposição normativa que a tal se oponha), se terá de admitir o recurso à disciplina e princípios que genericamente regem esse tipo de procedimento;

- Um dos princípios que deverá reger o procedimento administrativo é o princípio da legalidade, determinando a Constituição que a Administração prossegue um interesse público “no respeito pelos direitos e interesse legalmente protegidos dos cidadãos” (art.266.º C.R.P.), como corolário do disposto no art.3.º, que determina que o Estado se subordina à lei fundamental e se funda na legalidade democrática. Daí a subordinação da Administração não só à Constituição como à Lei. ;

- Esse princípio foi vertido no art.43.º do RGCO, e por isso vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça;

- A regra geral em matéria de actividade administrativa não é o princípio da liberdade, é o princípio da competência;

- Por tudo quanto se disse, recebido a impugnação judicial, a autoridade administrativa só pode tomar uma de duas atitudes: ou envia os autos ao Ministério Público, para os efeitos previsto no n.º 1 do art.62.º do RGCO; ou revoga a decisão de aplicação da coima. Se o legislador, nesse art.62.º quisesse conceder à autoridade administrativa o poder de proferir nova decisão, ou enviar os autos para o Ministério Público quando assim entendesse, certamente os termos utilizados seriam outros e não teria sido estabelecido qualquer prazo;

- A consequência da não remessa dos autos no prazo de 5 dias previsto no n.º 1 do art.62.º do RGCO após o recebimento do primitivo recurso é a nulidade insanável, qual deve ser oficiosamente declarada, como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.01.2004, in www.dgsi.pt.

- O art.122.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, aplicável ex vi do art. 41.º do RGCO, determina que “as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem bem como os que dele dependerem e aquelas que puderem afectar”;

- Ora, no caso concreto, o arguido, ora recorrente, remeteu à Autoridade Administrativa em 05.02.2014, o recurso de impugnação da decisão por esta proferida; a autoridade Administrativa pronunciou-se, em 08.08.2014 e concluindo pela inexistência de motivos para revogar a decisão, manteve-a (cfr. fls. 29).

- Os autos de contra-ordenação foram remetidos ao Ministério Público, pela Autoridade Administrativa,  em 03.09.2014, neles dando entrada em 05.09.2014 (cfr. fls. 2);

- O decurso do prazo de 5 dias a que alude o art.62.º, n.º1 do RGCO faz precludir o direito de a Entidade Administrativa enviar os autos para o Ministério Público, sendo nulo é todo o processado posterior à verificação da nulidade insanável, que ocorreu na data em que os autos deveriam ter sido remetidos ao Ministério Público.

Vejamos.

O direito das contra-ordenações tem fortes ligações ao Direito Penal, que se materializam na existência de múltiplas soluções normativas comuns criadas no espaço da dogmática penal e que se fundamentam no facto de, tal como este, fazer parte do direito sancionatório de carácter punitivo.

Deste modo não é surpreendente que o art.32.º do RGCO tenha sido definido o direito penal como direito subsidiário e que, coerentemente, o Código de Processo Penal seja o direito subsidiário, no que se refere ao regime processual, por força do disposto no artigo 41.º do mesmo Regime.

Por força do disposto no artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, que tem por epígrafe «direito subsidiário», sempre que o contrário não resulte deste diploma, «são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal».

Decorre deste dispositivo que o Código de Processo Penal é direito subsidiário relativamente ao processo das contra-ordenações, o que pressupõe o recurso às soluções normativas daquele código sempre que se constate a inexistência de solução própria nos quadros do regime específico das contra-ordenações.

É comum falar-se numa fase administrativa do processo e numa fase judicial do processo de contra-ordenação, designando-se por aquela o conjunto dos actos que vão desde a notícia da contra-ordenação até à decisão administrativa e a fase judicial aquela que se inicia com a apresentação ao Juiz do recurso de impugnação judicial, até à decisão nos tribunais ( art.62.º e seguintes do RGCO).[4]

O art.41.º, n.º 1, do RGCO, não limita, de modo algum, a aplicação do processo criminal, como direito subsidiário, à chamada fase judicial do processo de contra-ordenação, pelo que se tem entendido, que o mesmo é aplicável quer a esta fase, quer à referida fase administrativa.

Em suma e como bem acentua Manuel Ferreira Antunes « O direito contra-ordenacional constitui um género do direito penal, um direito penal especial […]. Não é um direito administrativo ou direito penal administrativo[…]. O direito subsidiário é o direito penal e o direito processual penal e não o direito administrativo.». É um “direito penal secundário” como lhe chama a Prof.ª Fernanda Palma , «…disfarçado no poder da Administração Pública, mais por conveniências práticas , do que por preocupações de rigor da sua natureza jurídica.».[5]

Deste modo, é deveras controverso que as normas Código do Processo Administrativo sejam aplicáveis como legis generalis relativamente ao RGCO, propendendo nós no sentido negativo, no que somos acompanhados, na doutrina, nomeadamente, pelo Prof. Costa Pinto[6], pelos Cons. Oliveira Mendes e Santos Cabral[7] e pelo Desemb. Beça Pereira[8]. Uma solução diferente cria alguns riscos de bloqueio da actividade sancionatória por cruzamento de regimes e garantias jurídicas. Desde logo, o RGCO não prevê o recurso hierárquico da decisão de aplicação da sanção.

Embora o procedimento administrativo e o direito administrativo estejam excluídos, em primeira linha da aplicação subsidiária - pois o direito das contra-ordenações é moldado no Direito Penal e o processo contra-ordenacional beneficia das garantias processuais muito exigentes para com o Estado, consagradas no art.32.º, n.ºs 1 e 10 da Constituição da República Portuguesa - , não têm de ser afastados, em qualquer circunstância, da sua aplicação.

As regras de organização administrativa e do relacionamento entre os seus órgãos e agentes, entre outras regras, têm de ser respeitadas e são efectivamente aplicadas no âmbito da competência para a aplicação das sanções, sem que daí se possa defender que elas violam a autonomia do processo de contra-ordenação.[9] 

De todo o modo, não é necessário recorrer ao processo administrativo, como o faz o recorrente,  para se concluir que o processo de contra-ordenação está integralmente sujeito ao princípio da legalidade, pois tal resulta do art.43.º do RGCO, onde é expressamente consagrado.

É pacífico o entendimento de que em face do princípio da legalidade processual a entidade que promove o processo de contra-ordenação está vinculado estritamente à lei e não a quaisquer considerações de oportunidade.

Feita esta breve introdução à questão objecto de recurso, adiantamos desde já que não nos parece racional que o recorrente A... , para decidir a presente questão, realce a necessidade do recurso às normas e princípios do Código de Procedimento Administrativo na chamada fase administrativa - em aparente prejuízo da autonomia do processo de contra-ordenação e da aplicação subsidiária em primeira linha do direito penal e do processo penal – e, em seguida, não indique uma única norma do procedimento administrativo para decidir da natureza do prazo de 5 dias a que alude o art.62.º, n.º1 do RGCO e , ainda por cima, invoca como solução para a  consequência da violação daquele prazo apenas normas do processo penal.

A referência feita pelo recorrente A... à natureza de procedimento administrativo do processo contra-ordenacional até à sua fase judicial e aos princípios da legalidade e da competência da actividade administrativa, para concluir que “por tudo quanto se disse, recebido a impugnação judicial, a autoridade administrativa só pode tomar uma de duas atitudes: ou envia os autos ao Ministério Público, para os efeitos previsto no n.º 1 do art.62.º do RGCO; ou revoga a decisão de aplicação da coima” e que “ Se o legislador, nesse art.62.º quisesse conceder à autoridade administrativa o poder de proferir nova decisão, ou enviar os autos para o Ministério Público quando assim entendesse, certamente os termos utilizados seriam outros e não teria sido estabelecido qualquer prazo”, só adquire sentido quando se lê o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.01.2004, mencionado na motivação e conclusões do recurso.

A motivação e as conclusões do recurso do arguido A... são praticamente uma transcrição, não declarada, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.01.2004, em que se discutiam duas questões:

    a) se a autoridade administrativa estava legitimada a proferir uma segunda decisão após ter emitido uma outra sobre que veio a recair impugnação judicial, defendendo o recorrente uma resposta afirmativa por invocação da natureza administrativa do processo contra-ordenacional até à entrada em juízo da impugnação judicial e por vigorar na administração o princípio de que o que não  é proibido é permitido.

   b) e qual a consequência da não remessa a juízo no prazo previsto no art.62.º do RGCO.

Toda a motivação do presente recurso apresentado pelo arguido A... relativa à natureza de procedimento administrativo do processo contra-ordenacional até à sua fase judicial e aos princípios da legalidade e da competência da actividade administrativa, em detrimento do princípio da liberdade da actividade administrativa, constitui a argumentação usada naquele acórdão da Relação de Lisboa para decidir que o princípio da legalidade não permitia à autoridade administrativa, face ao estabelecido no art.62.º do RGCO, proferir nova decisão depois de recebida a impugnação judicial, por apenas lhe restar a possibilidade de enviar os autos ao Ministério Público ou de revogar a decisão de aplicação da coima.

Propriamente sobre a questão da alínea b), da não remessa a juízo do processo no prazo previsto no art.62.º do RGCO, o mesmo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.01.2004, diz apenas e só o seguinte:

«  b)- a consequência da não remessa a juízo, no prazo previsto no artº 62º, nº 1, do Dec.Lei nº 433/82, de 27/10, da impugnação judicial de fls. 45 e ss:

   Igualmente bem se decidiu no que toca à consequência da não remessa dos autos no prazo de 5 dias (previsto no nº 1 do citado artº 62º) após o recebimento do primitivo recurso (o de fls. 45 e ss): não tendo o IDICT remetido o recurso tempestivamente interposto, cometeu uma nulidade insanável, qual deve ser oficiosamente declarada.

   Dispõe o artº 122º, nº 1, do Cod. Proc. Penal, aplicável ex vi do artº 41º do RGCO, que “as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar”, acrescentando o nº 2 do mesmo preceito que “a declaração de nulidade determina que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição (...).

   Concorda-se, por isso, com a solução adoptada na sentença e que passamos a transcrever, sendo inútil o acrescentar do que quer que seja:

“Ora, no caso concreto, nulo é todo o processado posterior a 18 de Março de 2003, data em que os autos deveriam ter sido remetidos ao Ministério Público e em que se verificou a omissão que gerou a nulidade. No entanto, e no caso concreto, é legalmente impossível a repetição dos actos inválidos pois que o processo já se encontra numa fase judicial não podendo agora o juiz remetê-lo à entidade administrativa. De igual sorte não pode o Tribunal conhecer do primeiro recurso interposto já que o mesmo não foi submetido a juízo.

Resta assim declarar a nulidade do processado posterior a 18 de Março de 2003 e ordenar o arquivamento dos autos nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 3, pois que sendo inválida a decisão porque ferida de nulidade, fica sem objecto o presente processo”.           

Pelo que falecem as conclusões do recurso.».

Ou seja, a invocação da natureza de procedimento administrativo do processo contra-ordenacional até à sua fase judicial e dos princípios da legalidade e da competência da actividade administrativa, em detrimento do princípio da liberdade da actividade administrativa, são argumentos que podem ser relevantes para decidir se a autoridade administrativa pode alterar ou não a sua decisão após a apresentação do recurso de impugnação judicial, como parece ter ocorrido naquele acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.01.2004; no caso em apreciação, porém, a decisão da ANSR que aplicou ao arguido A... uma coima e respectiva sanção acessória, não foi alterada após a interposição do recurso de impugnação judicial e nem o recorrente indica, nem o Tribunal da Relação vislumbra, daquela argumentação, nada que permita concluir que a consequência da não remessa a juízo pela autoridade administrativa, no prazo previsto no artº 62º, nº 1, do RGCO é a preclusão do direito de a Entidade Administrativa enviar os autos para o Ministério Público e da nulidade de todo o processado posterior à data em que os autos deveriam ter sido remetidos ao Ministério Público.

Limita-se o recorrente a afirmar, sem o justificar, que o prazo previsto no art.62º, nº 1, do RGCO preclude o direito da entidade administrativa enviar os autos para o Ministério Público e a concluir, seguidamente, sem qualquer explicação e por simples remessa para os artigos 119.º, alínea b) e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 41.º do RGCO, que é nulo todo o processado posterior à data em que os autos deveriam ter sido remetidos ao Ministério Público.

Perante o exposto é fundamental, antes do mais e em primeiro lugar, definir o tipo de prazo previsto no art.62.º, n.º1 do RGCO.

O prazo processual é definido pelo Prof. Antunes Varela como o « período de tempo dentro do qual um acto pode ser realizado (…) ou a partir do qual um outro prazo começou a correr (prazo dilatório ou suspensivo)». [10]

Como assertivamente esclarece o Prof. Germano Marques da Silva, após consignar que « os prazos processuais permitem a coordenação dos diversos actos, sob um ponto de vista temporal, garantindo a celeridade da decisão dos processos, a certeza e a estabilidade das situações jurídica[s], o tempo necessário para a afirmação e defesa dos direitos fundamentais.», os prazos processuais penais podem ser classificados como dilatórios, peremptórios e prazos ordenadores.

Os primeiros « marcam o momento a partir do qual o acto processual pode ser praticado ou ter início a sua execução , a qual se encontra, de certo modo suspensa no decurso do prazo. (…). Os prazos peremptórios estabelecem o período de tempo dentro do qual o acto pode ser praticado (terminus intra quem). Se o acto não for praticado no prazo peremptório, também chamado preclusivo, não poderá mais, em regra, ser praticado. (…). 

Os prazos ordenadores estabelecem um limite de tempo para a prática dos actos, mas nem por isso se praticados após esse limite perdem a validade. A generalidade dos prazos processuais para a prática de actos pelo tribunal, pelo Ministério Público, na fase de inquérito, e pela secretaria são prazos meramente ordenadores. Exemplo de prazo ordenador é o da duração do inquérito ( art.276.º). O decurso do prazo estabelecido por lei para a duração do inquérito tem efeitos processuais, nomeadamente para efeitos de publicidade ( art.89.º, n.º 6) e para aceleração processual ( arts. 108.º a 110.º) , mas a prática dos actos para além do prazo máximo da sua duração não os torna inválidos, contrariamente ao que sucede com os prazos peremptórios.».[11]

Retomando o caso concreto, entendemos que resulta medianamente claro da interpretação dos n.ºs 1 e 2 do art.62.º do RGCO que o prazo de 5 dias ali previsto  destina-se a possibilitar à autoridade administrativa recorrida ponderar a possibilidade de revogação da decisão de aplicação da coima, se reconhecer a existência de alguma ilegalidade formal ou substancial, e para proceder ao acto de expediente que é a remessa dos autos ao Ministério Público se não revogar essa decisão.

A intenção do legislador , com o estabelecimento de um acto tão curto, como o é o prazo de 5 dias – note-se que o prazo regra para efeitos processuais penais são 10 dias – , é o de acelerar o andamento do processo, o que é racional se tivermos em consideração, designadamente, que os prazos de prescrição do procedimento são relativamente curtos.

Na primitiva redacção do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, que aprovou o RGCO, quando os prazos de prescrição ainda eram mais curtos,  o prazo indicado no art.62.º era de 48 horas.

O prazo de 5 dias insere-se no fim de uma fase processual de investigação em tudo idêntica ao do fim da fase do inquérito em processo penal, em que à autoridade administrativa resta a opção de revogar a sua decisão ou remeter os autos ao Ministério Público.

Pelo exposto, entendemos que uma interpretação literal, sistemática, histórica e teleológica deve conduzir à conclusão que o legislador ao impor o prazo curtíssimo de 5 dias à autoridade administrativa para ponderar a revogação da decisão administrativa ou a remessa dos autos ao Ministério Público, não quis, seguramente, precludir a possibilidade, após aquele prazo, da autoridade administrativa praticar os actos de revogação ou de remessa dos autos.

A norma não limita a possibilidade de serem remetidos os autos aos 5 dias, de modo a que decorridos estes dias já não poderão ser remetidos, sendo pois um prazo ordenador.

Uma interpretação no sentido de que aquele prazo é peremptório, preclusivo, não poderia deixar de ser considerado inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade e do acesso ao direito, nos termos dos artigos 18.º e 20.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa, pois deixaria desprotegidos, sem justificação razoável, os demais utilizadores das vias rodoviárias e os consumidores dos mais variados serviços, que são protegidos através do direito contra-ordenacional.   

Concordamos assim com o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de Outubro de 2013, cujo conteúdo essencial consta reproduzido na primeira parte da douta sentença recorrida, quando decidiu que o prazo de 5 dias a que alude o art.62.º, n.º1 do RGCO não é um prazo peremptório, mas ordenador.

As consequências da remessa dos autos ao Ministério Público após o prazo de 5 dias, que no caso é um facto provado, poderão ser de nível disciplinar ou de prescrição do procedimento, mas nunca, salvo o devido respeito por opinião contrária, de nulidade insanável por aplicação do disposto nos artigos 119.º, al. b), 122.º, n.º 1, e 48.º, todos do Código Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41.º do RGCC. 

O art.119.º do Código de Processo Penal estatui que constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, « b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência.».

O princípio da oficialidade da promoção processual, a que ali se alude, sofre as limitações e excepções decorrentes da existência dos crimes semipúblicos e dos crimes particulares.

Proclamando o artigo 48.º  do C.P.P. a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, logo aí se ressalvam as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º, as quais conformam, justamente, as excepções a que o n.º 2 do artigo 262.º se refere. Nos crimes semipúblicos o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa.

Nos crimes semipúblicos e particulares a promoção do procedimento pelo Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas; sem a queixa o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, instaurando o inquérito. Nos crimes particulares há, ainda, a necessidade de constituição de assistente para que o procedimento seja instaurado com a abertura de inquérito. A queixa (nos crimes semipúblicos), a queixa, a constituição de assistente e a acusação particular (nos crimes particulares) são pressupostos da admissibilidade do processo, neste sentido, pressupostos processuais, que constituem limitações (nos crimes semipúblicos, em que a denúncia não substitui a acusação, mas tem necessariamente de a preceder) e mesmo autênticas excepções (nos crimes particulares) ao princípio da promoção oficiosa do processo penal.

Perante esta breve exposição sobre o princípio da oficialidade da promoção processual não vislumbramos  como se pode defender que o acto de não remessa no prazo de 5 dias,  pela autoridade administrativa ao Ministério Público - que certamente até desconhece a existência do processo -, constitui uma nulidade insanável por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, não pode proceder o recurso interposto pelo arguido da douta sentença recorrida, que nenhuma censura merece.

   Decisão

   Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e manter a douta sentença recorrida.

             Custas pelo arguido/recorrente, fixando em 4 Ucs a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                                             

   *

Coimbra, 18 de Novembro de 2015

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro - adjunto)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Neste sentido “ Assento n.º 1/2001; já no sentido de que a fase judicial se inicia anteriormente, com a impugnação judicial ante a autoridade administrativa, cfr. Cons. Oliveira Mendes e Santos Cabral, in  “ Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina 2.ª edição, pág. 90.
[5] Cfr. “Reflexões sobre o Direito Contra-Ordenacional”, SPA Editores, 1997, pág. 41 e seguintes.
[6]  In RPCC, 1997, pág. 261.
[7]  Obra citada, pág. 90.
[8]  In “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas anotado”, Almedina, 4.ª edição, pág .80.
[9] No sentido de que normas administrativas, relativas a competência da administração, podem ser aplicadas a actos praticados no processo contra-ordenacional decidiram, entre outros o acórdão n.º 179/2005, do Tribunal ConstitucionalIn www.tribunalconstitucional.pt

[10] Cfr. Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 63.

[11] Cfr. Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, 2011, páginas 83 e 84.