Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
147/07.2TMAVR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
SEGURANÇA SOCIAL
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO GERAL
HIPOTECA
LEI INTERPRETATIVA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.604, 686, 703, 712, 733, 735, 749, 751 CC, DL Nº 512/76 DE 3/7, DL Nº 103/80 DE 9/12, LEI Nº 110/2009 DE 16/9, ART.2º CRP
Sumário: 1 - Os privilégios imobiliários conferidos à Segurança Social pelos artigos 2.º do DL n.º 512/76, de 3 de Julho, 11.º do DL n.º 103/80, de 9 de Maio, e 205.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pela Lei 110/2009 de 16 de Setembro, são privilégios imobiliários gerais.

2 - Ao contrário do privilégio especial que, por se basear numa relação entre o crédito garantido e a coisa que o garante, se constitui sempre no momento da formação do crédito, os privilégios imobiliários gerais, constituem-se em momento posterior, sendo aplicável ao concurso de credores a lei vigente nesta data.

3 - A alteração introduzida ao artigo 751.º do CC, pelo DL n.º 38/2003, de 08-03, deve considerar-se efectuada por lei interpretativa, o que significa que apenas os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros.

4 - Em face do disposto nos artigos 686.º e 749.º do CC, o crédito garantido por hipoteca prefere ao crédito garantido por privilégio imobiliário geral.

5 - Pelas razões expendidas no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2002, de 16 de Outubro, que se mantém actuais relativamente ao privilégio conferido pelo citado artigo 205.º do CRCSPSS, a interpretação deste preceito no sentido de que o privilégio imobiliário geral nele conferido à Segurança Social prefere à hipoteca nos termos do artigo 751.º do Código Civil, deve ser considerada inconstitucional por violação do artigo 2.º da CRP.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

1. Por apenso ao processo de inventário dos ex-cônjuges R (…) e G (…), no qual o único bem do activo era constituído pelo prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, sob o n.º x.../20000211-A, foram reclamados os seguintes créditos:

Pelo Ministério Público, em representação do Estado, 1.409,92€, relativos a IMI;

Pelo Instituto da Segurança Social, 7.162,11€, relativos a contribuições de R (…), na qualidade de trabalhador independente.

Para além destes créditos, haviam já sido reclamados no próprio processo de inventário, para além de outros, os créditos da Caixa Geral de Depósitos, este garantido por hipoteca registada em 01/08/2000, e de “A(…), Ld.ª”, com penhora registada a seu favor desde 27/10/2006.

A Caixa Geral de Depósitos impugnou o privilégio invocado pelo Ministério Público, alegando que só os créditos inscritos para cobrança no ano de 2008 é que podiam beneficiar do referido privilégio.

O Ministério Público aceitou a impugnação e corrigiu o valor peticionado fazendo-o corresponder ao dos créditos inscritos para cobrança no ano de 2008.

2. Em 22-05-2012 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos onde se considerou que:

 «O crédito sob o n.º 1, na parte inscrita para cobrança no ano de 2008, no total de 754,83€, goza de privilégio imobiliário especial e é graduado em primeiro lugar (art. 748º do C.C.).

O crédito sob o n.º 2 goza de privilégio imobiliário geral sobre o bem imóvel, devendo ser graduado logo após os créditos referidos no art. 748 do CC, isto é: logo depois dos créditos por impostos ao Estado, preferindo à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores (art. 751 do C.C.).

O crédito da CGD goza de hipoteca. A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo - art. 686 do CC - é, por isso, também um direito real de garantia.

O crédito de “A (…)” goza de penhora registada. Pela penhora, o credor adquire o direito de ser pago pelo produto da venda dos bens penhorados com preferência a quaisquer outros credores que não tenham garantia real anterior - nº.1 do art. 822 do Código Civil, graduando-se os créditos garantidos pelas penhoras pela data dos respectivos registos.

Pelo exposto, decido verificar e graduar os seguintes créditos:

1º O reclamado pelo MºPº, relativo a IMI, inscrito para cobrança no ano de 2008, no total de 754,83€;

2º O reclamado pelo I. Segurança Social, no total de 7.162,11€;

3º O da CGD, no total de 108.718,59€, à data de 27.10.2011;

4º O de “A(…)”, no total de 10.705,03€;

5º O reclamado pelo MºPº, relativo ao restante IMI, no total de 655,09€;

6º Os restantes credores (inventário), rateadamente.»


*****

3. Inconformada com a sentença proferida, veio a Caixa Geral de Depósitos, S.A., interpor recurso de apelação de tal decisão, apresentando as seguintes conclusões:

«1ª – A sentença de fls. reconheceu - e bem - o crédito reclamado pela ora recorrente CGD , S.A. “ … no total de 108.718,59 € , à data de 27.10.2011 … “, garantido por hipoteca sobre o “… único bem do activo prédio urbano descrito na CRP de Aveiro sob o número x.../20000211-A (…);

2ª - Foi também reconhecido, para além de outros, naquela sentença de fls. - e sem que mereça reparo - o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social I.P , “…no total de 7.162,11 € , relativo a contribuições de trabalhador independente ” , que “… beneficia de privilégio imobiliário geral …”, nos termos do artigo 11º , nº 1 , do Decreto-Lei nº 103/80 , de 9 de Maio. (…)

5ª - Por Ac. Tc nº 363/2002, publicado no DR , nº 239 , Série I – A de 16/10/2002 , foi declarada “ …. a inconstitucionalidade com força obrigatória geral , das normas constantes do artigo 11º do Decreto – Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil”.

6º - Entendeu o Tribunal Constitucional que tal interpretação viola o princípio da confiança decorrente do princípio do Estado de direito democrático constitucionalmente plasmado no art. 2º da CRP.

7º - Ao graduar o crédito do Instituto da Segurança Social, IP para ser pago pelo produto da venda do imóvel inventariado com preferência sobre o crédito hipotecário da ora recorrente CGD, S.A. violou a sentença recorrida o preceituado nos arts. 686º, nº 1 e 751º do C. Civil, art. 2º da CRP e a orientação constitucional vinculativa contida no citado Ac. TC. 363/2002».

Termina concluindo que a sentença recorrida seja revogada, proferindo-se acórdão que gradue o crédito da ora recorrente para ser pago pelo produto da venda do imóvel penhorado com preferência sobre o crédito do Instituto da Segurança Social, IP, com as demais consequências legais.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II. Objecto do recurso[2]

A questão a decidir prende-se com a graduação de pagamento aos credores através da venda do imóvel que constitui o único activo do processo de inventário, impondo-se saber se deve haver prevalência do crédito da recorrente Caixa Geral de Depósitos, S.A. garantido por hipoteca, relativamente ao crédito do Instituto da Segurança Social, I.P.- Centro Distrital de Aveiro, que goza de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo.

Para o efeito cumpre, in casu, apreciar as seguintes sub-questões:

- qual o regime processual aplicável ao presente recurso;

- qual a lei relativa aos privilégios imobiliários aplicável;

- infringiu ou não a sentença recorrida o preceituado nos artigos 686.º, n.º 1, e 751.º do Código Civil[3], o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa[4] e a orientação vinculativa contida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2002.


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III. Fundamentação de Facto

Ao abrigo dos artigos 713.º, n.º 2 e 659.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, e com base nos elementos constantes dos autos, para além dos créditos reclamados e respectivos montantes que constam na sentença de graduação, e não se mostram colocados em causa, resultam ainda provados os seguintes factos, com interesse para a decisão do recurso:

- O crédito da Caixa Geral de Depósitos encontra-se garantido por hipoteca registada sobre o imóvel em 01/08/2000;

- O crédito do Instituto da Segurança Social, IP, foi reclamado em 14-02-2012, na sequência de citação efectuada para o efeito nos termos do artigo 865.º do Código de Processo Civil, reportando-se às contribuições de R..., inscrito no regime dos trabalhadores independentes, em falta dos meses de Dezembro de 2001 a Novembro de 2005.


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IV. Fundamentação jurídica

IV.1. - Regime processual aplicável ao presente recurso

Os presentes autos correm por apenso a processo de inventário instaurado no ano de 2007.

Porém, considerando que a presente reclamação de créditos deu entrada em juízo em 14-02-2012, e o recurso versa sobre a graduação efectuada na sentença aqui proferida, ao recurso é aplicável o regime processual decorrente do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, atenta a previsão ínsita nos respectivos artigos 11.º e 12.º.


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IV.2. -  Lei relativa aos privilégios imobiliários aplicável ao caso

O Instituto da Segurança Social veio em 14-02-2012 reclamar os créditos decorrentes da falta de pagamento das contribuições de R (…), inscrito no regime dos trabalhadores independentes, referentes aos meses de Dezembro de 2001 a Novembro de 2005.

Para o efeito, invocou os privilégios que são conferidos à Segurança social nos artigos 204.º, n.º 1, e 205.º do Código dos Regimes Contributivos do Regime Previdencial do Sistema de Segurança Social (CRCSPSS), aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro.

Ao invés, a recorrente, invoca a violação do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, relativamente às quais foi declarada a “inconstitucionalidade com força obrigatória geral, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do CC.

Vejamos, então, qual a lei aplicável no presente concurso de credores.

O princípio da graduação de créditos vem previsto no artigo 604.º, n.º 1, do CC, de acordo com o qual “[n]ão existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito a ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.”

Existindo, porém, causas legítimas de preferência, a lei confere a prioridade no pagamento a esses credores, em relação aos credores comuns.

No n.º 2 do referido artigo mostram-se elencadas exemplificativamente como causas legítimas de preferência - além de outras admitidas na lei, e para o que ora nos interessa -, a hipoteca e o privilégio.

Beneficiando a recorrente de hipoteca e o recorrido de privilégio sobre o prédio urbano, portanto, sobre a coisa imóvel (cfr. artigo 204.º, n.º 1, alínea a), e 688.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Civil), que avançou para venda como único bem do activo do devedor, vejamos quais os efeitos de cada uma destas causas legítimas de preferência.

A hipoteca de que beneficia a recorrente resultou de contrato, estando legalmente definida como hipoteca voluntária – cfr. artigos 703.º e 712.º do Código Civil -, e foi constituída para garantia dos direitos de crédito decorrentes de empréstimo efectuado pela Caixa Geral de Depósitos a R... e outra, garantindo à credora o direito de ser paga pelo valor da coisa imóvel hipotecada, pertencente ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo  – cfr. artigo 686.º do Código Civil.

A hipoteca consubstancia-se, pois, em garantia real de cumprimento de obrigações presentes ou futuras, condicionais ou incondicionais, e tendo o referido direito de hipoteca sido objecto de registo, o mesmo produz efeitos em relação a terceiros, designadamente no confronto dos outros credores reclamantes que com a recorrente concorrem sobre o mencionado imóvel – cfr. artigo 687.º do Código Civil.

Considerando os contornos do caso que nos ocupa, é, pois, de salientar que, em geral, o direito de crédito do credor hipotecário relativamente a determinado imóvel só cede perante o direito de crédito dos credores que disponham de algum privilégio imobiliário especial ou de prioridade de registo.

Vejamos, então, se o crédito de que goza o Instituto de Segurança Social está garantido ou não garantido por privilégio imobiliário especial, porquanto apenas este poderia preferir à hipoteca.

De acordo com a noção que nos é dada pelo artigo 733.º do CC, “privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”.

Trata-se, portanto, de uma preferência resultante da lei, não podendo esta garantia, ao contrário da hipoteca, ser constituída por contrato.

Em conformidade com o disposto no artigo 735.º do CC, os privilégios creditórios encontram-se divididos em duas espécies: mobiliários e imobiliários, dependendo de incidirem, respectivamente, sobre bens móveis ou sobre imóveis.

Por seu turno, os privilégios mobiliários são gerais ou especiais, consoante incidam sobre o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor, ou apenas sobre o valor de determinados bens móveis; enquanto os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais – artigo 735.º, n.ºs 2 e 3, do CC.

O facto de estarmos perante um privilégio geral ou especial releva sobremaneira atenta a diferente eficácia que a lei estabelece para cada um deles relativamente aos direitos de terceiro.

Assim, enquanto o privilégio geral não vale contra terceiros titulares de direitos que recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente - artigo 749.º, n.º 1, do CC -; o privilégio imobiliário especial, é oponível a terceiros que adquiram o prédio, e prefere à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores – artigo 751.º do CC.

A referida redacção do artigo 751.º foi introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, excluindo claramente do artigo 751.º do CC os privilégios imobiliários gerais.

Ora, esta alteração legislativa sobreveio à divisão de entendimentos suscitada pela questão de saber se os privilégios imobiliários gerais criados pela legislação avulsa posterior à publicação do actual Código Civil, seguiam o regime dos privilégios imobiliários gerais, aplicando-se-lhes o disposto no artigo 749.º do CC, ou seguia antes o regime dos privilégios imobiliários especiais, aplicando-se-lhes o preceituado no artigo 751.º do mesmo diploma.

A doutrina e a jurisprudência largamente maioritárias inclinaram-se no sentido de que o artigo 751.º do CC na redacção anterior que apenas se referia a privilégios imobiliários, não distinguindo entre os gerais e os especiais, continha um princípio geral insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, fundando este entendimento, em síntese, em primeiro lugar, no facto dos privilégios imobiliários gerais não serem conhecidos aquando do início da vigência do actual Código Civil; e em segundo lugar, porque, não estando sujeitos a registo, afectavam gravemente os direitos de terceiro, violando os princípios da segurança jurídica e da confiança no direito[5].

            Considerando que o citado DL n.º 38/03, surgiu aquando da existência de divergentes interpretações sobre a norma em apreço, conferindo-lhe uma nova redacção na qual veio estabelecer que apenas os privilégios imobiliários especiais preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores, deve concluir-se que o legislador interveio para decidir aquela questão controvertida, razão pela qual estamos perante uma norma interpretativa a qual se aplica retroactivamente, salvaguardados os efeitos já produzidos (artigo 13.º, n.º 1, do CC) e sendo, consequentemente, aplicável aos casos em que outras leis tenham estabelecido privilégios imobiliários gerais.

            De facto, lei interpretativa “[é] aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado”[6], o que, como ficou suficientemente demonstrado supra chegou a ocorrer, decidindo a jurisprudência maioritária no sentido consagrado com a nova redacção.

            “Para que a lei nova possa ser interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.

            Se o julgador ou o intérprete em face de textos antigos não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a lei nova veio a consagrar, então a lei é inovadora”[7].
Ora, como vimos no caso que nos ocupa, a nova lei veio claramente consagrar um regime que a própria jurisprudência já tinha considerado como possível em face da lei antiga, pelo que devemos considerar que a nova lei é interpretativa pela sua própria natureza por acolher uma das soluções objecto da querela jurisprudencial.

Assim, deve concluir-se que apenas os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros.

Como vimos, os privilégios imobiliários conferidos pelo Código Civil, são sempre especiais.

Porém, os privilégios imobiliários conferidos à Segurança Social não se contam entre eles, porquanto os mesmos foram consagrados por leis extravagantes.

Por isso, há que determinar qual a natureza da garantia conferida por lei aos créditos da Segurança Social.

Conforme era entendimento unânime no domínio dos artigos 2.º do DL n.º 512/76, de 3 de Julho, e 11.º do DL n.º 103/80, de 09 de Maio, o legislador consagrou para os créditos da Segurança Social, um privilégio imobiliário geral, uma vez que o mesmo não tem qualquer limitação temporal e não se refere a bens imóveis determinados, como ocorre com os privilégios imobiliários especiais, mas aos que existam no património do devedor no momento da instauração do processo executivo.

De facto, “o Código Civil não subdistingue, no quadro dos privilégios imobiliários, entre os gerais e os especiais, por, na concepção adoptada, todos eles incidirem sobre determinados bens imóveis”[8], ou seja, todos eles eram sempre privilégios especiais, porque incidiam apenas sobre o valor dos bens ali concretamente identificados.

Ora, na situação concreta dos presentes autos o privilégio não se refere a bens concretizados ou determinados pelo que não só não há qualquer relação directa entre o único imóvel do executado e a dívida à Segurança Social, sendo patente a afinidade ou paralelismo existente entre o privilégio mobiliário geral do Código Civil que é independente da existência de qualquer relação entre o crédito e o bem que o garante, e o legalmente conferido para os créditos devidos à Segurança Social.

Conclui-se, por isso, que o privilégio imobiliário conferido por lei à Segurança Social é um privilégio imobiliário geral[9].

No caso dos autos, como vimos, pelo Instituto de Segurança Social foram reclamados em Fevereiro de 2012, os créditos por contribuições devidas desde Dezembro de 2001 a Novembro de 2005, com base no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pela Lei 110/2009 de 16 de Setembro, estabelece no seu artigo 204.º, n.º 1, que: “[o]s créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora, gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil”, acrescentando o n.º 2 do preceito que: “[e]ste privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.”

Seguidamente, sob a epígrafe “Privilégio imobiliário”, o artigo 205.º da mesma codificação, prescreve que “[o]s créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil”.

O regime legal a que aludem estas disposições entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2011, em face da redacção conferida pela Lei n.º 119/2009, de 30 de Dezembro, ao artigo 6.º do citado CRCSPSS.

Ora, o privilégio creditório geral «[s]urge com a constituição do direito de crédito que garante, mas a sua eficácia depende do acto de penhora sobre os bens que são objecto da sua incidência, o que significa que a sua constituição se verifica quando ocorrerem os actos ou os factos de que a lei faz depender a sua atribuição, e que se concretizam nos bens penhorados na acção executiva ou apreendidos no processo de falência»[10].

Portanto, a lei competente para a graduação de créditos no concurso de credores é a lei vigente ao tempo deste concurso, salvo pelo que respeita aos créditos hipotecários, relativamente aos quais os efeitos de direito produzidos no domínio da lei antiga são respeitados na vigência da lei nova, como resulta do artigo 12.º, n.ºs, 1 e 2, do CC[11].

Consequentemente, à graduação de créditos efectuada nos presentes autos deve ser aplicado o regime previsto no CRCSPSS, em vigor à data da respectiva reclamação, isto apesar de os créditos já estarem constituídos anteriormente.

No entanto, a solução legal ora consagrada não diverge, no fundo, quanto à questão que nos foi colocada, atenta a previsão do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/08, de 9 de Maio[12]; e da que já havia sido consagrada no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho[13].

Assim, caso o artigo 11.º do citado DL n.º 103/80, fosse a norma aplicável ao caso em apreço, seria cristalino que a sentença recorrida havia sido proferida ao arrepio da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral declarada pelo invocado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/02 de 17 de Setembro, publicado no DR n.º 239, 1.ª Série-A, de 16-10-2002, na interpretação defendida na mesma no sentido de o privilégio imobiliário geral nela conferido à Segurança Social preferir à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do CC[14].

De facto, tendo as declarações de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral os efeitos previstos no artigo 282.º da CRP (artigo 66.º da Lei 28/82, de 15/11), e sendo estas decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas, prevalecendo inclusivamente sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer outras autoridades, nos termos do artigo 2.º da referida Lei 28/82, de 15/11, é evidente que se teria de aceitar liminarmente que o entendimento expresso na decisão recorrida, segundo a qual o privilégio imobiliário geral conferido à segurança social pelo artigo 11.º do DL 103/80, de 9/5, prefere à hipoteca, seria inconstitucional.

Porém, este acórdão foi proferido antes da alteração legislativa introduzida ao referido preceito do Código Civil pelo DL n.º 38/2003, de 08-03, e evidentemente ao novo Código dos Regimes Contributivos do Regime Previdencial do Sistema de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, sendo nosso entendimento que a questão colocada pela recorrente encontra actualmente clara solução na lei.

De facto, a referida alteração ao artigo 751.º do Código Civil veio resolver a questão ao clarificar que apenas os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros.

Ora, como já vimos, conferindo a lei aos créditos da Segurança Social, apenas um privilégio imobiliário geral, classificação que, alias, foi adoptada na própria sentença recorrida, não podia a mesma, atenta a data em que foi proferida, invocar para proceder à graduação do crédito da Segurança Social nos termos em que o efectuou, o disposto no artigo 751.º do CC, atenta a redacção actual do preceito que apenas confere o direito de sequela aos privilégios imobiliários especiais.

Isto posto, conclui-se não ser aplicável ao caso em apreço a norma do artigo 11.º do DL 103/80, declarada inconstitucional com força obrigatória geral se entendida no sentido de conceder aos créditos da Segurança Social prioridade na graduação relativamente a créditos garantidos com hipoteca registada, mas antes o preceito equivalente da lei aplicável ao caso em apreço, o artigo 205.º do CRCSPSS.

Ora, conferindo a lei aos créditos da segurança social apenas um privilégio imobiliário geral, e reportando-se a norma do artigo 751.º do CC na redacção actualmente em vigor, apenas aos privilégios imobiliários especiais, conclui-se que o privilégio imobiliário concedido pelo artigo 205.º do CRCSPSS, é um privilégio geral, sendo-lhe aplicável o regime do artigo 749.º do CC e não o do artigo 751.º do mesmo diploma.

Por isso, a decisão recorrida, ao dar preferência ao crédito reclamado pela Segurança Social relativamente ao crédito reclamado pela recorrente, garantido por hipoteca, não pode, por isso, manter-se, razão por que o recurso apresentado merece provimento.

Ex abundanti, dir-se-á que, ainda que actualmente a solução do recurso não resultasse cristalina da redacção vigente do artigo 751.º do CC, como entendemos que resulta, então, sempre seria - porque tal é de conhecimento oficioso – de declarar o artigo 205.º do CRCSPSS inconstitucional, na interpretação de que o privilégio imobiliário geral ali concedido prefere ao crédito hipotecário.

Na verdade, todos os fundamentos expressos no citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2002, de 16 de Outubro, se mantém actuais relativamente ao privilégio conferido pelo citado artigo 205.º, aplicando-se quanto à lei actual as considerações que então foram expendidas quanto à necessidade de declarar inconstitucional a norma correspondente da lei anterior na referida interpretação, em face da violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

Por tudo o exposto, o crédito hipotecário da reclamante, ora recorrente, deve, sem dúvida, prevalecer sobre os créditos da segurança social.


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V. Síntese conclusiva:

I - Os privilégios imobiliários conferidos à Segurança Social pelos artigos 2.º do DL n.º 512/76, de 3 de Julho, 11.º do DL n.º 103/80, de 9 de Maio, e 205.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social aprovado pela Lei 110/2009 de 16 de Setembro, são privilégios imobiliários gerais.

II - Ao contrário do privilégio especial que, por se basear numa relação entre o crédito garantido e a coisa que o garante, se constitui sempre no momento da formação do crédito, os privilégios imobiliários gerais, constituem-se em momento posterior, sendo aplicável ao concurso de credores a lei vigente nesta data.

III - A alteração introduzida ao artigo 751.º do CC, pelo DL n.º 38/2003, de 08-03, deve considerar-se efectuada por lei interpretativa, o que significa que apenas os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros.

IV - Em face do disposto nos artigos 686.º e 749.º do CC, o crédito garantido por hipoteca prefere ao crédito garantido por privilégio imobiliário geral.

V - Pelas razões expendidas no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2002, de 16 de Outubro, que se mantém actuais relativamente ao privilégio conferido pelo citado artigo 205.º do CRCSPSS, a interpretação deste preceito no sentido de que o privilégio imobiliário geral nele conferido à Segurança Social prefere à hipoteca nos termos do artigo 751.º do Código Civil, deve ser considerada inconstitucional por violação do artigo 2.º da CRP.


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VI. Decisão:

Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., revogando a sentença recorrida na parte respeitante à graduação impugnada, que ora se reformula nos termos seguintes:

2.º - O crédito da CGD, no total de 108.718,59€, à data de 27.10.2011;

3.º - O crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, no total de 7.162,11€, mantendo a restante ordem de graduação nos termos decididos.

Sem custas.

Notifique.

                                                           *

 Albertina Pedroso ( Relatora )

Virgílio Mateus

Carvalho Martins

[2] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do CPC, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[3] Doravante abreviadamente designado CC.
[4] Doravante abreviadamente designada CRP.
[5] Cfr. citado Ac. do STJ de 11-09-2007, proferido no processo n.º n.º 07A2194, disponível em www.dgsi.pt, citando Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1994, pág. 850 e segs; Menezes Cordeiro, Salários em Atraso e Privilégios Creditórios, ROA, Ano 58, págs 645 a 672; Salvador da Costa, Concurso de Credores, 3ª ed, pág. 315 e segs; A. Luís Gonçalves, Privilégios Creditórios, Evolução Histórica, Regime e sua Inserção no Tráfego Jurídico, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXVII, 1991, pág. 7; Ac. S.T. J. de 5-2-02, Col. Ac. S.T.J., X, 1º, 71 ; Ac. S.T.J. de 25-6-02, Col. Ac. S.T.J., X, 2º, 135 ; Ac. S.T.J. de 24-9-02, Col. Ac. S.T.J., X, 3º, 54; Ac. S.T.J. de 19-10-04, Col. Ac. S.T.J., XII, 3º, 67; Ac. S.T.J. de 13-1-05, Col. Ac. S.T.J., XIII, 3º, 86 ; Ac. S.T.J. de 12-9-06, Col. Ac. S.T.J., XIV; 3º, 47; Ac. S.T.J. de 14-11-06, Col. Ac. S.TJ., XIV, 3º, 107 ; Ac. S.T.J. de 30-11-06, Col. Ac. S.T.J., XIV, 3º, 140.
[6] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, nota l ao art. 13°.
[7] Cfr. J. Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1983, pág. 247.
[8] Cfr. Salvador da Costa, ob. cit., pág. 174.
[9] Tratando a questão nestes termos, podem ver-se, a título exemplificativo, os Acs. STA, de 16-10-2002, proferido no processo 0964/02; e de 07-07-2004, proferido no processo 0337/04, citando em abono da posição expendida quanto à natureza do privilégio outros acórdãos do mesmo Supremo Tribunal, posição também seguida nos Acs. do TC que infra se referirão e que previamente ao que declarou a inconstitucionalidade da interpretação com força obrigatória geral se haviam pronunciado no sentido da inconstitucionalidade da interpretação, classificando o privilégio imobiliário conferido à Segurança Social como geral.
[10] Cfr. Salvador da Costa, in O Concurso de Credores, pág. 171. Também Menezes Cordeiro in Direito das Obrigações, vol. II, pág.. 500, entende que, ao contrário dos privilégios gerais, o privilégio especial baseia-se sempre numa relação entre o crédito garantido e a coisa que o garante, sendo que este se constitui no momento da formação do crédito, ao contrário daqueles, que se constituem em momento posterior - penhora ou instauração da execução.
[11] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 11-09-2007, proferido no processo n.º 07A2194, citando Savigny in  System des Heutigen Romischen Rechs, Vol. VIII, pág. 445 e segs. E este tem sido o entendimento seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça em inúmeros arestos proferidos relativamente à questão de saber se o artigo 377.º do Código do Trabalho aprovado pela Lei 99/03, de 27 de Agosto, se aplica aos créditos constituídos antes da sua entrada em vigor – cfr. no mesmo sentido, para além dos citados no referido acórdão, ainda o Ac. de 28-02-2008, proferido no processo 07A4423, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[12] Que estatuía: ARTIGO 11.º - (Privilégio imobiliário) Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil.»
[13] Que dispunha: Art. 2.º Os créditos pelas contribuições do regime geral de Previdência e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil.
[14] Note-se que já nos anteriores Arestos em que o Tribunal Constitucional se havia debruçado sobre a questão, havia entendido neste mesmo sentido conforme se pode concluir do texto do Acórdão n.º 160/00, de 22/03/00, publicado na 2ª série do DR, de 10/10/00, onde se discorreu:
"Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio (...) pode ser confrontado com uma realidade - a existência de um crédito da Segurança social - que frustrara a fiabilidade que o registo naturalmente merece.
Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal, e atento o seu âmbito de privilégio geral, e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (...) a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico". Esta fundamentação, que pôs o acento tónico no registo, foi retomada na sua essência no Acórdão n.º 354/00, de 05/07/00, publicado na mesma série do DR, de 07/11/00, que alertou ainda para a questão do direito de sequela, em todos sendo pacífica a classificação do privilégio imobiliário da Segurança Social, como geral.