Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
611/11.9PBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: EXTINÇÃO DO DIREITO DE QUEIXA
COMPARTICIPAÇÃO
Data do Acordão: 01/15/2014
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 115.º, N.ºS 1 E 3, DO CP
Sumário: I - A norma do n.º 3 do artigo 115.º do CP é um reflexo da indivisibilidade da queixa, traduzido na impossibilidade legal de o titular do direito de queixa, em caso de comparticipação, escolher a pessoa que há-de ser punida.

II - Se a assistente, configurando embora uma situação de comparticipação relativa a um crime de difamação, apenas apresentou queixa contra dois dos três comparticipantes, omitindo a autora do escrito intitulado de difamatório, e, realizado o inquérito, somente acusou aqueles, e não também esta, ocorre a situação configurada no referido artigo 115.º, n.º 3, do CP.

III - Não podendo a queixa ser renovada, por há muito ter decorrido o prazo previsto no artigo 115.º, n.º 1, do CP, e tendo já sido formulada acusação nos ditos termos, extinguiu-se o direito de queixa e de acusação particular quanto a todos os comparticipantes.

Decisão Texto Integral:        Decisão Sumária – artº 417º nº6 al. c) do Cód. Proc. Penal

No processo supra identificado foram os arguidos A... e B..., completamente identificados nos autos, acusados pela assistente C... , acompanhada pelo Ministério Público, da prática de um crime de difamação, p.p. pelo artigo 180º do Código Penal.

Desagradados com a acusação vieram os arguidos requerer a instrução.

Efectuadas as diligências de instrução requeridas veio a proceder-se ao debate instrutório, findo o qual foi proferida decisão de não pronúncia dos arguidos, fls.210 e seg.

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Inconformado com o assim decidido, veio a assistente, C..., recorrer, extraindo da respectiva motivação as seguintes

Conclusões:

1ª O teor da peça processual – contestação – apresentada pelos arguidos tem carácter atentativo da honra e consideração da assistente, ora recorrente;

2ª – Com tais expressões os arguidos não quiseram apenas retirar credibilidade à pretensão jurídica deduzida pela recorrente em juízo, antes quiseram atingi-la e ofendê-la na sua honra, o que conseguiram;

3ª – As expressões supra aludidas não surgem como meio necessário à defesa dos arguidos, mesmo no contexto da contestação à acção civil;

4ª – Inexiste prova da veracidade das expressões proferidas pelos arguidos, nem fundamento sério para as considerar/reputar de verdadeiras;

5ª – Ao não pronunciar os arguidos pelo crime de que vinham acusados, o tribunal recorrido como que negou, salvo o devido respeito, a protecção dos bens jurídicos em causa;

6ª – Violando, assim, as normas dos artºs 286º e 307º do CPP, no sentido em que, face à função de comprovação judicial, a nível indiciário, da bondade da acusação deduzida e nos termo de tudo quanto aqui foi dito, deveriam os mesmos terem sido pronunciados.

Termina, pedindo que a decisão instrutória seja substituída por outra que pronuncie os arguidos pela prática do crime de difamação, p.p. pelo artº180º do Código Penal.

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O recurso foi recebido.

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O Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso defendendo a manutenção da decisão recorrida.

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Já nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, acompanhou quanto ao mérito, a resposta da 1º instância, arguindo, porém a nulidade da decisão instrutória por omissão de pronuncia, por o tribunal recorrido não se ter pronunciado acerca da questão da tempestividade de queixa contra a advogada subscritora da contestação.

Pede que o tribunal declare nula a decisão instrutória por omissão de pronúncia, envie o processo à 1ª instância para conhecer do recurso.

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Vejamos:

Como supra se referiu, a decisão instrutória, conheceu do mérito do recurso, proferindo decisão de não pronuncia. Porém, conforme melhor consta da dita decisão, quando sintetiza as questões postas pelos requerentes da instrução, logo no ponto consta:

I – A assistente desconsiderou o facto de a peça processual em causa nos autos ter sido subscrita por advogado, não tendo apresentado queixa contra a subscritora de tal peça processual, pelo que, nos termos do disposto no artigo 115º nº3 do Código Penal, a circunstância de não ter sido exercido o direito de queixa contra um dos participantes, aproveita aos restantes.

II – (…)

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Mas, depois de enunciar as questões postas e sobre as quais devia omitir pronúncia, o tribunal “a quo”, sob a epígrafe “Saneamento”, proferiu decisão tabelar acerca da competência e sobre questões prévias e incidentais, referindo nenhumas existirem obstativas ao conhecimento de mérito, pelo que, logo começou a decidir acerca dos indícios existentes, mérito da causa a que foi chamado a pronunciar-se, olvidando pronúncia sobre aquela questão prévia levantada, relativamente à qual jamais emitiu qualquer opinião apesar de avonde ter referido que o escrito no qual teriam sido produzidas por escrito as expressões alegadamente ofensivas da honra e consideração da assistente, se consubstancia numa peça processual subscrita por mandatário judicial e das consequências a retirar do facto de a queixa não ter sido formulada contra o mandatário, subscritor da referida peça, mas tão só aos mandantes, réus na acção onde a peça, contestação, foi produzida.

Ao assim proceder, a decisão recorrida violou e comando do artº 308º nº3 do CPP, (Como serão todos os que doravante se indicarem sem menção de diploma) por não se ter pronunciado acerca do pressuposto processual da queixa contra todos os comparticipantes, artº 115 nº3 do CP, que constitui uma questão prévia susceptível de obstar à apreciação do mérito da causa.

Porém, a lei não comina esta omissão com nulidade, nem absoluta nem relativa, artºs 119º e 120º. Sabido que entre nós o regime das nulidades está sujeito ao princípio do “numerus clausus”, sendo que o artº 379º nº1 al. c), omissão de pronúncia, é privativa das sentenças, não existindo norma que permita aplicar esta norma aos despachos, o vício integrador de uma omissão de pronúncia tem de ser levado à conta de irregularidade – artº 123º nº1.

Contudo, porque o vício invocado afecta o valor da decisão de “não pronuncia”, ela pode ser oficiosamente reparada por este tribunal de recurso, artº 123, nº 2, certo sendo que a questão posta, extinção do procedimento criminal é do conhecimento oficioso, artº 417, nº 6 , al. C) do C.P.P., o que passa a fazer-se de seguida

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Como se deixou referido, a assistente apresentou queixa contra os arguidos, imputando-lhes um crime de difamação que estes teriam praticado numa peça processual, subscrita por mandatário neste caso, a Ex.ª ma Advogada Sandra Valéria Correia, que em nome dos réus contestou uma acção cível que lhes foi proposta pela assistente, sendo nessa peça processual, contestação, que foram escritas as expressões que consideram ofensivas da sua honra (fls. 2 a 4 e 46 e 58).

Na sequência da queixa assim efectuada, veio a ofendida, entretanto constituída assistente, fls. 77, a deduzir acusação particular, fls 97, contra os referidos arguidos, com fundamento na parte da contestação inserta no seu artº 16º com o seguinte teor:

“E é aqui que reside o cerne da questão, a autora, como forma de retaliação de não ter sido convidada para o referido casamento, ao contrário do que aconteceu com os demais vizinhos, optou por inadvertidamente demandar judicialmente os RR. (…).

E ainda no artº 76º do mesmo articulado, onde se afirma:

“Atente-se a autora é conhecida pelos vizinhos como sendo uma pessoa conflituosa, quer com familiares, quer com os demais vizinhos, que faz uso dos meios judiciais para obter ganhos monetários”.

Por último, no artº 77º da referida contestação consta:

“Mais a autora utiliza os presentes autos como retaliação aos réus por estes não a terem convidado para o casamento da filha, bem como pelo facto do processo-crime contra ela apresentado não ter sido arquivado como aconteceu com o do A.”.

Depois de afirmar que os arguidos ofenderam a honra e consideração da assistente, e que sabiam que lhe estavam a imputar factos e a formular juízos que não correspondiam à verdade, agindo de forma livre e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei, imputa-lhes a autoria material de um crime de difamação p.p. pelo artº 180º do Cód. Penal.

Esta acusação foi acompanhada pelo Ministério público, fls. 99, que com base nas partes da contestação acabadas de referir, a afirmando que queriam ofender como ofenderam a honra e consideração da assistente imputando-lhe factos que não correspondiam à verdade, imputa aos arguidos a prática de um crime de injúria p.p. pelo artº 181º nº1 do Código Penal.

 Notificados das acusações vieram os arguidos requerer a instrução com o desfecho supra referido, sem que no despacho de pronuncia se tivesse apreciado a questão prévia ora em análise ( e ainda a questão da alteração de alteração de factos que dizem ter sido feita na acusação do MºPº onde lhes é imputado crime diverso, questão que também não foi apreciada).

Quid inde?

Admitindo que os excertos da contestação referidos nas acusações são ofensivos da honra da assistente, logo ressalta à vista, que eles têm de ser atribuídos não só aos arguidos, como também à causídica que no âmbito do mandato judicial os escreveu e os deu a conhecer integrando-os num processo judicial, que tem por objecto um litígio sobre direitos reais, propriedade de prédios de ambos e muro que os delimita (conf. petição inicial e contestação juntas a fls. 46 e seg. e 58 e seg.).

Com efeito, a mandatária não estava obrigada pelo mandato que lhe foi conferido para a acção cível a escrever os excertos supra referidos, e se o fez foi por sua livre vontade, sendo a principal autora dos referidos escritos, irrelevantes para a defesa dos direitos reais em questão, diga-se.

Ora, assim sendo, e dando de barato que existe crime - o que só por mera hipótese de raciocínio se admite – a mandatária é, pelo menos, co-autora desse crime.

E, dizemos pelo menos, porque se dá de barato que a causídica deu conhecimento aos arguidos de todo o teor da peça processual que enviou aos autos e que eles concordaram com ela, designadamente com as expressões indicadas, porque a não ser assim será ela, a única autora.

Ou seja, no caso vertente estamos perante uma comparticipação criminosa em que são co-autores ao arguidos e a causídica que é a autora do escrito onde foi cometido o alegado crime.

Efectivamente, de harmonia com o disposto no artº 26º do Cód. Penal, “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

A autoria, perspectivada em sentido amplo, é a participação no cometimento do crime, sendo, pois, autor quem dá causa ou domina o facto (a pessoa física que, material ou intelectualmente, realiza a conduta típica).

Socorrendo-nos dos ensinamentos do Simas Santos e Leal Henriques (Código Penal Anotado, vol 1º, 3ª ed. Rei dos Livros, pág. 335) :“Se a realização da conduta provêm de uma acção individual temos a simples autoria ou autoria singular.

Se, ao contrário, resulta de uma acção colectiva – decisão conjunta de mais do que uma pessoa ou execução igualmente conjunta – temos a co-autoria.”

Não há dúvida, que tal como a assistente apresenta a queixa, o crime que diz ter sido cometido resultou da decisão conjunta da subscritora da contestação e dos seus representados, sendo que a primeira foi a autora material do mesmo já que é a responsável técnica pela peça onde as expressões que se dizem integradoras do crime foram cometidas.

Ora, o crime imputado aos arguidos, difamação, artº 180º nº1 do Cód. Penal, é um crime de natureza particular, artº 188º nº1 do mesmo diploma, ou seja, em que para a instauração do procedimento criminal é necessária a queixa, que é condição de procedibilidade do inquérito, e, posteriormente, a constituição de assistente e a dedução de acusação particular.

Temos então, que a assistente configurando embora uma comparticipação criminosa apenas apresentou queixa contra os aqui arguidos, sendo que só contra eles o MºPº tinha legitimidade para investigar, mas não a apresentou contra a autora material, a autora do escrito, e, consequentemente, realizado o inquérito, apenas acusou os réus na acção cível deixando de fora a mandatária que os representou.

A omissão da queixa contra um dos participantes, fê-la incorrer na alçada do artº 115º nº3 que dispõe “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.

Esta norma é um reflexo da indivisibilidade da queixa, que se traduz em negar-se a titular do direito de queixa, em caso de comparticipação criminosa, a faculdade de escolher a pessoa que há-de ser punida.

A este princípio está subjacente a ideia de política criminal informadora do nosso sistema jurídico de que em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime, ou seja a violação do bem jurídico protegido com a incriminação, e, reflexamente, os seus autores, de tal modo que em caso de comparticipação o titular do bem ofendido com o crime não pode escolher a ou as pessoas que hão-de ser punidas em detrimento de outras (salvo casos excepcionais de relações familiares que aqui não se verificam, com acontece por exemplo no furto praticado por familiares directos – que aqui não tem aplicação). Solução contrária seria de todo irrazoável, pois que permitiria situações de vingança privada, o que o direito penal moderno repudia. O que está em causa é a perseguição de um crime e só reflexamente a satisfação de interesses de natureza pessoal.

Citando o Prof. Marques da Silva “ A queixa traduz-se na manifestação de vontade de instauração de um processo para a averiguação da notícia do crime e do respectivo procedimento contra os agentes responsáveis (Processo Penal, vol I, 2ªed, verbo, pag. 59), constituindo assim um direito que deve ser exercido contra todos os comparticipantes, pois, tratando-se de crime de natureza particular, se o assistente apenas acusa alguns dos comparticipantes, renuncia ao direito de acusar os demais, renúncia que nos termos dos arts, 116 nº3 e 117 do Cód.Penal, aproveita aos restantes.

No nosso caso, verifica-se que também a causídica que subscreveu a contestação deveria ter sido perseguida criminalmente, configurando a lei esta omissão como desistência, quer da queixa quer da acusação, que aproveita aos restantes, de onde resulta que o procedimento criminal não podia prosseguir contra qualquer dos comparticipantes artº 115º nº3 do C.Penal.

Não podendo a queixa ser renovada por há muito ter decorrido o prazo a que se reporta o artº 115º nº1 do mesmo diploma, e tendo já sido formulada acusação apenas contra os arguidos, operou a extinção do direito de queixa e de acusação particular quanto a todos os participantes.

Destarte, e sem necessidade de mais considerações, e visto o disposto no artº 417 nº6 al. c), decide-se julgar extinto o direito de queixa e acusação particular, artº 115º nº3 e, consequentemente declarar extinto o procedimento criminal instaurado nestes autos contra todos os arguidos, ordenando-se oportunamente o arquivamento dos mesmos.

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Ficando prejudicadas as questões levantadas no recurso.

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Sem tributação.

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Coimbra, 15 de Janeiro de 2015

(Cacilda Sena - relatora)