Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
604/20.5GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA AGRAVADO
CRIME DE VIOLAÇÃO
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
ERRO DE JULGAMENTO
PERFECTIBILIZAÇÃO DOS DELITOS
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 77.º, 132.º, N.º 2, ALÍNEAS A) E C), 143.º, 145.º, N.º 1, ALÍNEA A), E 152.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 124.º A 127.º, 410.º, N.º 2, E 412.º, N.º 2 E 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: 1. O factor decisivo para a verificação do crime de violência doméstica é a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.

2. A violência doméstica tem de continuar a ser tipificada em tantos casos em que, embora inexistindo agressões físicas, convivem comportamentos ilícitos degradantes por parte de seres humanos que tudo fazem para diminuir o/as parceiro/as ao nível do «objecto», vilipendiando-o/as no seu ânimo e na sua auto-estima.

3. Se a conduta típica integrar vários actos dos quais apenas um se subsume a crime mais gravemente punido, existe uma relação de concurso efectivo de crimes, a ser punido nos termos do artigo 77º do CP, entre o crime de violação e o crime de violência doméstica, não apenas porque constituem crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, mas ainda porque os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciado e foram autonomizados, como tal, na sentença.

4. Perante a indeterminação do número de vezes em que ocorreu um acto sexual não consentido, é curial ter-se aplicado a doutrina do trato sucessivo, à partida pouco ou nada vocacionado para os crimes sexuais, à luz do princípio do «in dubio pro reo».

5. A partir do momento em que reconhecemos a criança como um sujeito de direitos, esta última não deve ser educada de forma violenta, devendo a violência ser eliminada das relações entre as crianças e os adultos.

6. Logo, o poder de correcção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal em Portugal de onde se possa retirar tal conclusão.


Sumário eleborado pelo Relator
Decisão Texto Integral:


RECURSO Nº 604/20.5GCLRA.C1
Processo Comum Singular
Crime de violência doméstica agravado
Crime de violação
Crime de ofensa à integridade física qualificada
Erro de julgamento
Perfectibilização dos delitos
Juízo Local Criminal ... – Juiz ...
Tribunal Judicial da comarca ...

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
            1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA

No processo comum singular nº 604/20.... do Juízo Local Criminal ... (Juiz ...) – comarca ... -, por sentença datada de 2 de Novembro de 2022, foi decidido:
A. PARTE CRIMINAL
a. condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material (artigo 26.º do Código Penal, doravante CP), na forma consumada, e em concurso efectivo, dos seguintes crimes:
· «um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelos artigos 14º, nº1 e 152º, nº 1, al. a) e d), nº 2, al. a), nº 4 e 5, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão,
· um crime de violação de trato sucessivo, p. e p. nos termos do art. 164.º, n.º1 al. b) e n.º3 do CP, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
· um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo disposto nos arts. 143.º e 145.º, n.º 1 al. a) e 132.ºn.º 2 als. a) e c) do C.P.) na pessoa de BB (absolvendo-o do crime de violência doméstica que vinha nesta parte imputado), condenando-o na pena de 6 (seis) meses de prisão».
b. Operando o cúmulo jurídico das penas atrás referenciadas, foi condenado o arguido AA:
· na «pena única de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, ficando tal suspensão da execução da pena condicionada ao cumprimento das seguintes regras de conduta:
o a) frequência de Programa para autores de crimes no contexto da Violência Doméstica (cfr. art. 2.º al. f) da Lei n.º 112/2009 de 16.09o qual constitui uma resposta estruturada dirigida a agressores de violência doméstica que visa promover a consciência e assunção da responsabilidade do comportamento violento e a utilização de estratégias alternativas ao mesmo, com as seguintes componentes estratégicas: Prevenir o cometimento no futuro de factos de idêntica natureza; Permitir o confronto do arguido com as suas ações e tomada de consciência das suas condicionantes e consequências; Procurar o confronto do arguido com os eventuais problemas de que possa padecer, procurando alcançar formas de os eliminar/minorar; Promover a consciência e assunção da responsabilidade do comportamento violento e impulsivo e a utilização de estratégias alternativas ao mesmo, devendo ainda o mesmo sujeitar-se, durante o período de suspensão de execução da pena a todas as ações deste género que a DGRSP lhe proponha;
o b) durante dois anos, não contactar a ofendida, por qualquer meio, seja presencial, seja telefónico, via internet ou outro, não se deslocando à casa que a mesma habita, local de trabalho, nem passar propositadamente em locais onde sabe que a mesma se encontra, do que se excecionam os contactos estritamente necessários para assuntos relacionados com filho comum e desejavelmente através de advogados ou os que tenham a iniciativa da própria ofendida (tudo a ser fiscalizado e acompanhado pela DGRSP, não se aplicando qualquer outra pena a título acessório»).
*
B. PARTE CÍVEL
Foi julgado o pedido de indemnização civil deduzido por CC, parcialmente procedente por provado, «condenando-se o demandado AA no pagamento de indemnização à demandante num valor de €5.000,00 (cinco mil euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais causados, acrescido de juros mora à taxa legal de 4% desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento, no mais se absolvendo do pedido».

            2. O RECURSO
Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):


«I - Referente às questões suscitadas e julgadas, de que merece reparo, como se referiu da invocada acusação e ao processo decorrente, desde a memória futura ao não estar o arguido, como direito que lhe assiste, mas entendamos que não foi só esse o caso.

IV - Do que tudo disse conjuntamente com as filhas uterinas se aceitou como verdade pura e sem mácula.

VI - Como o arguido referiu e de forma clara e transparente, de directa e sem rodeios tudo explicou e respondeu, sem rodeios, dúvidas ou gaguejos.

VIII - De que a acusação não tem consistência suficiente para se poder produzir ou finalizar com a sentença proferida pelo tribunal a quo.
IX - De que não encontramos dano suficiente para produzir tamanha sanção quer criminal quer indemnizatória.
X - Os actos praticados e formas corresponderam à vontade de ambos e à decisão de ambos, de que não provocou qualquer dano físico, psicológico, social ou económico à ofendida.
XI - O verdadeiro dano causado foi antes ora arguido que sofreu com a hospedagem dada, com alimentação fornecida, com as despesas das passagens áreas pagas, com o material escolar, pago, com o cansaço e sofrimento porque passou.
XII - Hoje possivelmente e de certeza que se encontra muito, com menos despesas e condenado a não poder ter a regulação partilhada do filho BB que será o que mais o faz sofrer.
XIII - Daí que faltando estas características essenciais e inerentes não poderá o ofendida beneficiar em prole do prejuízo sofrido com tamanhas calúnias, humilhação e sobretudo de uma vivência que no entender do arguido não aconteceram.
XIV - Os artigos 14.º (dolo), 152.º (violência doméstica), 164.º (violação), 143.º (ofensa à integridade física simples, 145.º (ofensa à integridade física qualificada) e, 132.º (homicídio qualificado), do CPenal, de que se revelam imputáveis ou aplicáveis ao caso concreto ora vertido na acusação que a sentença do tribunal a quo lhe deu cobertura, e não a pertinência devida com os depoimentos das testemunhas arroladas.
XV - Pelo que, pensamos nós não se ter feito a devida aplicação da justiça, ou seja absolvição integral do ora arguido.
XVI - Se as questões suscitadas, da acusação vertida, dos depoimentos prestados e respectivas alegações foram convenientes interpretadas e tomadas em juízo de valoração sobre os mesmos princípios pelo Tribunal “a quo” ou eventualmente deu maior ênfase sobre determinados aspectos do que outros, como se acabou de expor.
XVII - Pelo que o tribunal a quo, com o devido respeito por opinião contrária nos parece ter dado como provada matéria de facto que não o poderia fazer nomeadamente esta já referida.


3. O Ministério Público em 1ª instância e a assistente CC responderam ao recurso, opinando que o recurso NÃO merece provimento.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República pronunciou-se, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância …

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso


            Assim sendo, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
1. Foi bem impugnada a matéria de facto sob a égide do artigo 412º, nº 3 e 4 do CPP?
2. Se sim, houve erro de julgamento?

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA
            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):
1. «Em 13/05/2016, a assistente CC, ..., e o arguido conheceram-se em Moçambique, onde AA trabalhava.
2. Cerca de um mês depois, a assistente e o arguido passaram a viver como se de marido e mulher se tratasse, partilhando cama, mesa e habitação, em Moçambique, dividindo-se a assistente entre a casa do arguido e a sua casa onde estavam as suas filhas e a sua mãe;
3. Vieram a fazer parte do agregado familiar do arguido e assistente as duas filhas de CC, fruto de um anterior relacionamento dela, a saber: DD, nascida em .../.../2005, EE, nascida em .../.../2008;
4. No ano de 2017, o arguido veio para Portugal e, meses depois, veio a assistente bem como as filhas, estas já em 2018;
5. Em maio de 2017, o arguido e a assistente passaram a residir no Alentejo, onde CC tinha muitos amigos e pessoas conhecidas, vindo as filhas a aí igualmente residir em 2018;
6. A 08/10/2017, nasceu o filho comum do casal, BB.
7. Em Setembro de 2019, o arguido e a vítima, acompanhados dos filhos dela e do filho de ambos, vieram viver para ..., passando a residir na Avenida ..., ..., em ..., ....
8. Desde então, o arguido passou a tornar-se possessivo, controlador, agressivo e violento com a assistente, que tratava como um “objeto”;
9. O arguido controlava o telemóvel da assistente via as publicações que CC fazia na rede social “Facebook”, e, se alguém comentava, o arguido ficava logo desconfiado que a assistente o estava a trair.
10. Ademais, o arguido não permitia que CC utilizasse saias curtas ou roupas mais justas;
11.      Se algum indivíduo do sexo masculino olhava para a assistente, logo o arguido ficava furioso e dizia para a referida pessoa: “O que é que estás a olhar? Queres levar para casa?”.
12.      Em consequência, o relacionamento entre o casal deteriorou-se e as discussões entre o casal passaram a ser frequentes.
13.      No decurso das referidas discussões, mais do que uma vez por semana, o arguido dirigia-se à vítima, sua companheira, nos seguintes termos: “puta”, “és um macaco vindo das árvores em África”;
14.      No último ano de vivência comum do casal (que antecedeu o dia 26.12.2020), com frequência semanal durante o ato sexual, o arguido começou a utilizar vibradores, e por uma vez um pepino, os quais introduzia na vagina de CC, sem o seu consentimento e contra a sua vontade.
15.      Quando a assistente dizia ao arguido que lhe estava a doer, que ele a estava a magoar, que não gostava daquelas práticas e lhe pedia para ele parar, o arguido ficava indiferente ao sofrimento da assistente, ao mesmo tempo que lhe dizia “deixa-te de ser esquisita que as pretas todas gostam disto”;
16.      Desde o início do relacionamento e, mesmo quando o casal já vivia em ..., o arguido não permitia que a assistente trabalhasse, o que fazia com que CC estivesse dependente financeiramente dele, tendo de lhe obedecer e com que ele a controlasse diariamente.
17.      Durante esse tempo, com frequência, o arguido dirigia-se à assistente nos seguintes termos: “Não precisas de ir trabalhar! Não tens um prato de comida todos os dias à mesa?!”
18.      Nesse período, o arguido disse à assistente que lhe iria transferir mensalmente a quantia de €700,00 para a sua conta bancária para as “despesas da casa”.
19.      Contudo, apesar de tal quantia mensal estar na conta bancária da assistente, o arguido controlava diariamente o que a assistente gastava e impunha-lhe que ela apenas gastasse/utilizasse tal montante, seguindo as ordens e instruções do próprio, ou seja, destinava-se apenas a pagar as pensões das menores (filhas do arguido), segurança social, água, luz, gás e comida.
20.      Caso a assistente utilizasse tal montante para outros fins, mal se apercebia, o arguido iniciava de imediato uma discussão com CC.
21.      Em data não concretamente apurada mas que se situa no segundo semestre de 2020, CC arranjou trabalho, numa fábrica sita na ... (...), facto que desagradou ao arguido.
22.      Em consequência, desde então, como forma de tentar persuadir a assistente a não ir trabalhar, o arguido proibiu a assistente de utilizar a viatura automóvel dele para ir trabalhar, apenas permitindo que a assistente levasse o veículo de casa até à escola do filho BB.
23.    Aí chegada, o arguido obrigava CC a deixar a viatura junto à escola do menor e, depois, esta última tinha que apanhar dois autocarros até ao trabalho,
24.    sendo que, ao final do dia de trabalho, a assistente tinha que regressar de novo de autocarro até à escola do filho, local de onde já podia regressar para casa no seu veículo.
25.      Em 2020, quando BB tinha já 3 anos, ao jantar, BB bateu com as duas mãos na mesa, facto que irritou o arguido, que o advertiu para não o fazer.
26.      Como criança que é, BB bateu mais uma vez na mesa com as mãos.
27.      De imediato, irritado, o arguido levantou-se, baixou-lhe as calças e as cuecas e desferiu-lhe, com força, várias palmadas no rabo.
28.      Em consequência, BB ficou a chorar e, durante alguns dias, o arguido deixou marcas das suas mãos nas nádegas da criança.
29.      No dia 22/12/2020, no decurso de mais uma discussão, em que o arguido se lhe dirigiu nos termos supra descritos em 13., na presença das filhas, CC disse-lhe “eu não aguento mais, isto acaba aqui”.
30.      De seguida, o arguido pediu a CC que permanecesse lá em casa até ao natal porque iria ter lá em casa os filhos dele e precisava que ela cozinhasse para eles, ao que a assistente acedeu.
31.      No dia 26/12/2020, o arguido disse às filhas da assistente e à assistente que tinham que sair da sua casa;
32.      De imediato, a assistente explicou ao arguido que não tinha para onde ir no imediato até porque tinha três filhos, tendo pedido ao arguido para ir para a garagem, ao que o arguido acedeu.
33.      A assistente levou consigo para a garagem todos os seus pertences e dos filhos.
34.      Em consequência, CC permaneceu três dias e três noites na garagem da residência, sem quaisquer condições, ao frio, dormindo num sofá;
35.      As filhas de CC pernoitaram sempre junto da mãe.
36.      No dia 29/12/2020, CC retirou de casa os seus bens próprios e pessoais, bem como dos filhos, e saiu de casa do arguido, com as duas filhas (sem o menor BB dado que o arguido não autorizou) e foi viver para um apartamento arrendado, inicialmente em ..., e, depois, em ..., sito na Rua ..., ..., ... ..., em ... (...), onde ainda permanecem.
37.      O arguido sabia que a assistente CC era sua companheira, e, sempre que adotou os comportamentos supra descritos, atuou com o propósito, concretizado e reiterado, de a ofender e maltratar psiquicamente de modo a atingir o seu bem-estar físico e psíquico, a sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais.
38.      O arguido agiu do modo descrito, sabendo que infligia maus-tratos psicológicos à sua companheira, CC, humilhando-a e sujeitando-a a tratamentos degradantes e causando-lhe um estado de humilhação, ansiedade e medo permanentes.
39.      Atuou sempre o arguido com manifesta insensibilidade perante a integridade física e psíquica da ofendida CC, que bem sabia dever respeitar, particularmente por ser sua companheira e mãe do seu filho.
40.      Ademais, o arguido sabia que, em quase todas as situações supra descritas, atuava no interior da residência comum do casal e na presença dos filhos menores.
41.      Mais, sabia o arguido que o menor BB era seu filho, com quem residia, muito em particular por se tratar de pessoa particularmente indefesa em razão da idade e, ao atuar da forma acima descrita, agiu com intenção de ofender a integridade física do mesmo;
42.      O arguido conhecia a idade da criança e sabia que a mesma se encontrava ao seu cuidado, sendo responsável pela sua alimentação, higiene, educação, saúde e bem-estar.
43.      Tinha o arguido conhecimento que estava a ofender a sua saúde e a sua integridade física;
44. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
45. Em virtude de todo o supra referido, a demandante:


    • Sentiu angústia, desespero, medo, insegurança, opressão, depressão, humilhação e sentiu-se diminuída enquanto pessoa e mulher.
§ Isolou-se durante alguns meses;
§ A Ofendida não consegue equacionar ter um novo relacionamento.
§ A ora demandante era uma pessoa alegre, feliz, pacífica e cordial.
    • Depois da vivencia com o Arguido, a Ofendida teve um humor triste, amargurado, desconfiado, choroso, retraído e temeroso.
    • Ainda hoje, quando a situação vivida lhe vem à memória ou necessita de a reavivar, sente uma forte angústia e a dor.

*















Com relevo para o que cumpre decidir, mais se provou que:

46. A assistente, no que respeita aos factos referidos em 14 e 15 a assistente declarou desejar procedimento criminal contra o arguido em 08.01.2021;
47. Atualmente arguido e assistente continuam separados e apenas mantêm contactos quanto ao filho comum;
48. As responsabilidades parentais relativas a BB estão reguladas apenas provisoriamente sendo que, em virtude da acusação dos presentes autos quanto ao filho BB, no dia 15.03.2022, foi alterado o regime provisório e determinada “a suspensão de regime de residência alternada, tendo-se fixado a residência do BB junto da mãe, com visitas quinzenais ao pai, em sábados alternados, de sexta a segunda feira, indo este para o efeito busca-lo às escola no final das atividades letivas e entrega-lo na segunda fera, no reinício das mesmas. O pai pagará a título de alimentos enquanto vigorar este regime provisório, o valor de €120,00 a pagar até ao dia 8 de cada mês, por transferência bancária e ainda pagará metade das despesas médicas, medicamentosas e escolares. (…)”
49. Do relatório social elaborado pela DGRSP ao arguido constam, além do mais, as seguintes conclusões: “AA apresenta investimento e preocupação na sua formação escolar e um percurso de vida volvido maioritariamente pela estabilidade familiar e profissional até à ocorrência dos factos que o constituíram arguido nos presentes autos. O empenho e dedicação que dedicou ao trabalho foi promotor da sua estabilidade profissional, embora, se afigure de baixo sucesso económico. Apesar da rutura da relação conjugal continua a beneficiar de uma relação de convívio próxima e presente com os filhos, e com a ex cônjuge. Na comunidade detém boa integração social, não lhe sendo conhecidos impactos negativos relacionados com a sua presente situação jurídico penal.”
50. O arguido:
 a. Atualmente é empregado por conta de uma empresa (A...), auferindo um salário mensal €1200,00 (mil e duzentos euros)
 b. Vive com as suas filhas (duas filhas de 22 anos gémeas), em casa própria, sendo que paga ao Banco relativamente a mútuo contraído para sua aquisição ma prestação que ronda os €300,00 (trezentos euros) mensais;
 c. paga ainda a prestação de alimentos do filho BB no montante mensal de €120,00  (cento e vinte euros);
 d. tem o 12.º ano de escolaridade;
51. O arguido é visto por amigos, colegas de trabalho e ex mulher no essencial como pessoa pacata, pessoa trabalhadora, respeitadora e bom pai;
52. Em 13.09.2022 o arguido não tinha averbada qualquer condenação ao seu registo criminal».


2.2. Foram estes os FACTOS NÃO PROVADOS (transcrição):





2.3. Motivou-se a matéria dada como provada da seguinte forma (transcrição, com sublinhados a bold da nossa autoria):
«
O arguido optou por prestar declarações sobre os factos imputados e nas mesmas começou por afirmar que “não se revê nem numa vírgula no que está escrito na acusação” (sic).
Diz que conheceu CC (a quem chamava e chama de FF) em 13.05.2016, em Moçambique, nunca tendo vivido “maritalmente com ela” em tal país, referindo antes que, pese embora a relação amorosa aí iniciada, cada um tinha a sua casa e vivia na mesma. De resto, refere que a ofendida tinha uma casa onde vivia com as suas filhas (não tendo sido posta em causa pelo arguido nem esta filiação nem a do seu filho BB).
Em Fevereiro de 2017 veio viver para Portugal, e a ofendida veio em Maio de 2017 ter consigo (já grávida de BB que nasceria a 08.10.2017), sendo que as filhas apenas em 2018 vieram para Portugal completar o agregado familiar quando a ofendida as foi buscar a Moçambique, tendo o arguido pago os bilhetes aéreos.
Refere que quando veio de África, o arguido pretendia fixar-se em ..., e ainda viveram todos no Alentejo durante algum tempo, sendo que a ofendida tinha bastantes amigos lá. Contudo, profissionalmente as coisas não estavam a correr bem ao arguido no Alentejo e, por isso, tendo um convite para trabalhar no estrangeiro e para equilibrar finanças teve que ir para a República do Mali durante cerca de um ano tendo a ofendida ficado em ..., vivendo com liberdade de movimentos e tendo os cartões bancários para gerir o seu quotidiano.
No regresso do Mali disseram ao arguido que tinha trabalho na zona de ... (construção e reconstrução de equipamentos e que até hoje o ocupa profissionalmente), pelo que desde Abril de 2019 a Setembro de 2019 esteve em ... e a família em ... até que terminasse o ano letivo, tendo ficado combinado com a ofendida que depois a família se fixaria em ....
Assim, foi em Setembro de 2019 que passou a residir com a ofendida, filho BB e filhas da ofendida, na morada referida em 7 na acusação, em ....
Nega ter controlado a ofendida (nem telemóvel nem facebook), sublinhando ainda que não tinha qualquer controlo sobre o que a ofendida vestia. De resto, refere que fez comentários sobre a roupa dela, por uma vez, em Penafiel, quando iam a um jantar de amigos, porque ela estava vestida com algo parecido com um fato de treino acabando a mesma por vestir outra coisa. Diz que também chegou a falar com ela sobre a roupa interior porque diz que a ofendida usava fio dental e ele gostava de ver boxers mas que nada impôs.
No que tange ao controlo de telefones ou redes sociais, refere que num dia, no telefone da filha DD (que tinha sido de CC), e depois de ter terminado o telefonema da filha com a mãe por lhe ter sido passado o telefone, notou numa mensagem que chegou de uma pessoa que a ofendida lhe tinha falado e viu mensagens de teor sexual da ofendida com essa pessoa, mas falou com a ofendida e as coisas na altura resolveram-se.
Diz que a mesma até se poderá queixar de algum sentimento de controle porque se apercebeu de diferenças entre o que ela dizia e fazia (ex: diz que a mesma vinha para ... de táxi quase todos os dias como veio a saber). Diz ainda que em regra iam os dois às compras mas nunca a proibiu de fazer compras sozinha.
Sublinha que nunca aconteceu dizer o que quer que fosse quando outros homens olhassem para ela. Amou-a muito, era uma “bela mulher, que se arranjava muito”, mas não fez isto.
Nunca lhe chamou as expressões referidas em 13 da acusação. De forma inusitada, acrescentou mesmo que chegou a frequentar prostitutas quando era solteiro e diz que nem essas ofendeu.
Quanto ao comportamento sexual descrito na acusação nos pontos 14 ss refere que é liberal (gostando de usar vibradores, anéis e outros objetos sexuais dizendo até que eram comprados pela ofendida. Nega contudo o uso de pepinos). Diz que o uso desses objetos sexuais era de livre vontade de ambos no casal. Refere aliás que houve alturas em que ela não queria usar objetos e outras vezes era ela própria que os ia buscar. Aliás, quando experimentavam algo que ela não gostava deitavam fora, sublinhando assim que tudo o que foi sexualmente ocorrendo entre eles, ocorreu por mútuo acordo.
Diz que nunca referiu as expressões que se encontram descritas no ponto 15 da acusação e que, no calor do ato sexual a ofendida é que o chamava “cabrão e filho da puta” e até pedia para que ele chamasse nomes mas ele não gostava de o fazer e não o fazia.
Diz que sempre incentivou a ofendida a trabalhar para sua realização pessoal (apenas tendo apresentado resistência quanto a um emprego no Pingo Doce, tendo dito à ofendida que não gostaria que a mesma aceitasse tal emprego por razões familiares porque ela teria que ir trabalhar ao fim de semana).
Descreve ainda que, porque a ofendida não trabalhava, o arguido englobou a ofendida na sua empresa unipessoal como se fosse trabalhadora e transferia-lhe um “ordenado” de cerca de 700,00€, pagando ainda os descontos para a segurança social para lhe dar alguma segurança (aliás realça que ela teve direito a subsidio de desemprego por causa disso mesmo).
Contudo, acrescenta que havia um acordo que desse dinheiro – 700 euros – a ofendida retirava dinheiro para despesas da casa (que eram dividas a meio entre si e a ofendida) com o que gastava cerca de metade deste valor. Só pagou luz numa situação em que a conta que apareceu foi de quase 400 euros e lhe pediu que fosse repartido o encargo entre ambos.
Descreve que a ofendida requalificou a casa da mãe em Moçambique para o que precisou de 5000 euros (pediu o dinheiro ao pai e foi pagando ao mesmo também com este dinheiro que o arguido lhe dava até porque não tinha outra fonte de rendimento).
Refere que também chegou a pedir à ofendida para transferir dinheiro para as suas filhas (por causa da pensão de alimentos) mas diz que o fazia através da ofendida porque quer ofendida quer as filhas do arguido tinham conta na mesma instituição bancária (Millenium BCP),e assim a transferência era imediata mas refere que depois lhe dava a quantia respetiva em numerário.
Confirma que a ofendida arranjou trabalho, por iniciativa própria, em 23.11.2020 numa fábrica sita na ....
Diz que é verdade que a proibiu de usar o carro para ir trabalhar, mas refere que a única razão para o que fez foi o facto de a ofendida não ter à data carta de condução (salvo a de Moçambique) e diz que a mesma não sabia conduzir de forma minimamente segura. De resto, apenas veio a ter carta em Dezembro de 2020. Diz que quando a ofendida vinha a ... ou à ... vinha a 20 a 30 km/h e acabava por fazer fila atrás dela.
Combinaram assim, em face disso, que apenas conduzia até ..., onde era o infantário do BB e aí deixaria o carro estacionado e ia para o trabalho de autocarro (ainda que tivesse algum receio deixava que a mesma levasse o BB no carro mas diz que para tanto a mesma apenas conduzia cerca de 1 Km em linha reta).
Quanto aos factos relativos ao filho BB (imputados em 24 ss da acusação), diz que o seu filho sempre foi muito bem tratado por ambos os pais. Nunca foi objeto de qualquer mau trato. Tendo 5 filhos, 4 deles já criados, não nega que tenha dado palmadas no rabo dos filhos quando eles “passam a red line” (sic).
Diz que se recorda que o filho BB levou uma vez uma palmada e foi para o quarto a chorar (não se recorda já qual foi a situação mas sabe que ele se tinha portado mal). Daí a 5 minutos estava tudo bem. Refere que nunca deixou qualquer marca no filho nem nunca o agrediu nos termos referidos na acusação.
Circunstancia ainda que, a certa altura que pensa ser em finais de Novembro/início de Dezembro de 2020, a ofendida lhe disse que deviam tratar da dupla nacionalidade do filho BB, o que o mesmo achava desnecessário porque o filho poderia escolher fazê-lo aos 18 anos.
Perguntado a que atribui as acusações que lhe são feitas nestes autos, refere que tentou sempre, até ao último momento, que a relação e a família continuassem juntos. Não sabe se a ofendida planeou isto. Houve uma quebra na relação a partir de Setembro de 2020 quando falaram sobre toda a vivência conjugal e diz que a ofendida aí percebeu que as coisas iam mudar, tinham que “lutar juntos” (sic), trabalhar, sendo que também a confrontou nessa altura com omissões e mentiras delas. Começou a notar o desinteresse dela na relação e no projeto familiar (e diz que também acha que tal se deve ao facto de entretanto a casa em Moçambique já estar pronta nesta altura).
Em Dezembro de 2020, perto do Natal mas sem que logre recordar-se do dia concreto, a ofendida já tinha trabalho e a casa de Moçambique estava pronta e diz que “por razões que só ela conhece” (sic) e, nessa noite, ela disse-lhe que queria falar com ele porque se queria ir embora e voltar para Moçambique com os filhos, assim se separando dele. O arguido pediu-lhe que deixasse passar o Natal (por causa das crianças) e que falariam depois disso. Aliás diz que sabe cozinhar, que o fez durante muito tempo para si e para os seus filhos pelo que nunca pediu à ofendida para ficar para cozinhar no Natal.
Depois do Natal falaram (no dia 26.12.2020) e o arguido disse à ofendida que não aceitaria que o BB fosse para Moçambique. Diz que juntou toda a gente à mesa (filho, filhas da ofendida e ofendida) e falaram sobre a questão desta separação, e que tinham que estabelecer “um plano” sobre a saída porque não aguentaria esta situação “6 meses ou mais”. Contudo ressalva que não disse o que consta no ponto 31. Aliás, diz que não percebeu para onde nem quando ela pretendia sair ou ir para Moçambique.
Nessa conversa disse ainda à ofendida que até sair de casa podia dormir no quarto das meninas ou no quarto do BB pedindo apenas que não fosse dormir para a sala para ele próprio poder abrir as janelas e tomar pequeno almoço de manhã.
Contudo, segundo refere, a mesma começou a levar coisas para a cave/garagem. Ele saiu de casa com o BB e foi à GNR ... saber o que podia fazer para evitar que ela desaparecesse com o BB. E pensa até que é isso que está por trás deste processo. O arguido afirma que foi então falar com as suas filhas do anterior casamento e a sua filha GG disse que tinha recebido uma mensagem a dizer que ele a tinha obrigado ir dormir para a garagem, onde havia um sofá, e explicou-lhe que não tinha sido assim. Quando confrontou a ofendida com isso ela disse que queria estar ali.
As filhas da D. CC nunca foram para cave com ela e dormiram sempre em casa, bem como o BB, que aliás, jamais deixaria que o fizesse.
Mais tarde, no dia 28 de Dezembro, o BB não foi para o infantário e foi para as filhas do arguido por sua determinação tendo o arguido dito à ofendida que no final do dia conversavam. Por causa disso, a ofendida chamou a GNR mas ele informou onde estava o menino. À noite, quando estava a ir para casa com o filho ligou-lhe a GNR, sendo que quando chegou a casa, a ofendida ofendeu-o chamando-lhe nomes, e ele disse calmamente que chamaria a GNR se ela continuasse assim, o que acabou por fazer.
Vieram os GNR que já lá tinham estado nesse dia, a ofendida estava em casa, e eles acalmaram a situação, falaram com ela para haver um compromisso quanto ao BB que o arguido tinha receio que ele fosse levado para parte incerta. Diz que a mesma disse aos GNR que estava na cave porque queria.
Nessa noite ligou a seu advogado para redigir um compromisso para que o BB pudesse sair de casa com a mãe.
No dia 29.12.2020, na presença do il. advogado que representa o arguido nestes autos, e até de GNR, após compromisso escrito redigido pelo advogado quanto ao BB, a mesma recusou-se a assinar e saiu para ... e levou tudo (dizendo o arguido que a mesma até levou mais do que devia, v.g. roupas de cama). De todo o modo, por causa dessa recusa o filho BB ficou consigo e disse quando ela quisesse ver o menino que lhe dissesse (em local público).
Em fevereiro de 2021 veio a ser feita a regulação das responsabilidades parentais (no Tribunal ...). Sabe que houve ainda comunicação de toda a situação à CPCJ.
Desde a saída de casa da ofendida, que as coisas não têm estado bem, acha que o objetivo da ofendida é obter “a custódia total do BB” …”para poder fazer o que entender com os filhos” (sic), sem que o arguido mande na vida do BB.
Estas as declarações do arguido, que, como se extrai do referido, nega o essencial dos factos imputados.
Diversa é a posição da assistente e demandante CC que prestou declarações para memória futura e nas mesmas referiu, em suma, que:
· a relação com o arguido começou quando o mesmo trabalhava em Moçambique, tendo-o conhecido numa festa de aniversário de um amigo comum (em 13.05.2016 em Moçambique) altura em que começaram a namorar. Diz que menos de um mês depois estavam a morar juntos. Ela já tinha duas filhas que ele conheceu e foi falando da sua vida e foram-se conhecendo.
· A certa altura ele teve alguns problemas no trabalho e em 2017/2018 ele veio para Portugal, numa altura em que a ofendida já estava grávida. Aliás tinha-lhe dito que tinha o sonho de ter outro rapaz e assim foi.
· O BB nasceu em 2017 já em Portugal.
· Quando vieram de ..., ficaram 15 dias em ... mas depois foram para o Alentejo onde, aliás, nasceu o filho BB.
· Depois de o menino nascer a ofendida diz que começou a sentir a falta de apoio dele (tinha tido um parto complicado e sentia-se mal e estava sozinha enquanto o arguido estava a trabalhar mas sublinhando ao mesmo tempo que ele “não deixava faltar coisas a mim e à criança e foram vivendo” -sic).
· Como sempre tinha dito ao arguido que queria as filhas consigo, quando o BB tinha 5 meses foi a ... ver a mãe e foi buscar as duas filhas e trouxe-as para o Alentejo. Diz que foi o arguido quem pagou as passagens aéreas para tanto porque ela não trabalhava. Quando chegou o arguido disse que seria necessário ir para o Mali trabalhar e confirma que o mesmo foi transferindo dinheiro para viverem no Alentejo.
· Cerca de 1 ano depois o arguido deixou de trabalhar no Mali e enquanto viveram no Alentejo tudo correu bem. A ofendida diz que chegou a trabalhar cerca de 1 ano na Câmara Municipal ... enquanto o arguido trabalhou no Mali. Mas ele preferiu vir para ... porque a família dele vivia em ....
· No Alentejo a única situação foi que chegou a tentar trabalhar num negócio de restaurante e o arguido disse que não seria bom, porque se ia encher de homens e a ofendida aceitou.
· Quando chegaram a ... é que a situação piorou (pensa que em 2019). Não gostava que “mexesse muito nas redes sociais” nos telemóveis. Ele via o telemóvel e nunca proibiu. Depois criou Facebook e tinha fotografias e o arguido começou a dizer que não gostava de alguns comentários que lhe metiam nas fotografias e dizia “estás a revelar-te uma mulher da vida. Estes gajos metem-se contigo, são teus amantes” e numa altura em que recebeu um comentário que dizia “linda” o arguido ficou tão irritado que disse à ofendida que “um dia parto-te a cara”. Diz que o arguido foi vendo o seu telemóvel (ainda que com o seu conhecimento e consentimento). Mas foi ficando um clima mais pesado em casa.
· Começou ainda a controlá-la (não podia usar roupa curta, nem chegava a sair de casa se não trocasse; iam sempre às compras juntos no fim de semana e chegou a perguntar a um homem que, segundo ele, estava a olhar muito para a ofendida dizendo “queres levar para casa?” e ela não gostava disso e dizia-lhe “não tens necessidade disto”. Dizia “olha, estão a olhar para ti… tu és muito jeitosa” chegando a dizer “tu também provocas”, sendo que a ofendida respondia sempre no sentido da desnecessidade daqueles comentários e aquelas palavras.
· Ele tinha um grupo de amigos que costumava jantar e queria levá-la para esse jantar e ele disse que se ela não quisesse ir era porque tinha outro homem.
· Ao início diz que o arguido tratou muito bem as suas filhas, mas quando começou a sentir este ciúmes repercutiu essa raiva nas filhas da ofendida
· O arguido chegou a dizer-lhe “puta, mulher da vida, é por isso que tens uma filha de cada homem (…) vejam o que fazem em minha casa, pago tudo, têm que fazer as coisas da maneira que eu quero, esses gajos do facebook devem ser teus amantes”. Era habitual, semanalmente. A única coisa que lhe respondia era que não dissesse essas coisas em frente às filhas.
· Também chegou a dizer “não quero discussões aqui em casa, aqui não estão em África, aqui não estão nas árvores”.
· Quando mandava as meninas lavar o carro, se ele achasse que estava mal lavado, “vocês não fazem nada, a minha casa está um lixo”. Nunca nada estava bem. Diz que as suas filhas sabem cozinhar, limpar, passar a ferro mas ainda eram crianças e por isso a ofendida disse ao arguido que estava triste com a situação e que se ele achava que elas eram assim, se eram um lixo que comprasse passagens que voltava para Moçambique. Isto foi esfriando a relação.
· Também estava sempre a dizer à sua filha “do meio” que ela comia muito e ele dizia-lhe “comes numa refeição o que eu como em duas….tens que ver como comes que não é o teu pai que compra a comida”.
· Nos últimos meses antes da separação (4 meses antes de Dezembro), quando o arguido trabalhava na B... de ... e ela começou a procurar trabalho e conseguiu trabalho numa fábrica na .... Ele não tinha apoiado essa atividade laboral e disse que não lhe dava boleia (mesmo que a ... fosse a poucos Km da B... onde ele trabalhava). Disse que não deixava a ofendida levar o carro porque era longe e o carro era dele. A ofendida só podia levar o filho BB para a escola em ... e depois apanhava o autocarro para a .... Dizia-lhe “Não sei porque queres trabalhar porque tens todos os dias um prato na mesa”. Um desses dias de trabalho, ao final do dia era para ir até à B... à chuva e uma colega de trabalho (HH) é que acabou por ir buscá-la à empresa porque o arguido não se dispôs a isso.
· Em 26.12.2020 saiu de casa. No dia 24 tinham tido uma discussão no fim da qual pediu à ofendida “peço que fiques para cozinhares porque os meus filhos vêm no Natal”. No dia 26 a mesma disse que queria sair, e o arguido disse que não queria mais cruzar-se consigo em casa e por isso a ofendida pediu se poda ficar na garagem porque não tinha para onde ir. Veio para baixo e trouxe a maior parte das roupas dela e das meninas. Dormiu lá 3 dias (26, 27 e 28 de Dezembro), num sofá que estava na garagem apenas com lençóis.
· No dia 28 ao ligar para a escola disseram que BB não estava lá. Ligou ao arguido e o mesmo disse que tinha mandado o filho para casa da ex mulher dele, para ao pé das irmãs, sendo que as filhas acabaram por querer acompanhá-la.
· Saiu e foi com os direitos que recebeu do final do contrato de trabalho na ... que arrendou casa em ... por €350,00, tendo levado as suas coisas e as filhas. Sublinha que o arguido não deixou levar o BB. Chamou o advogado que o representava que disse que tinha que assinar um acordo para levar o seu filho.
· Nos telefonemas que houve depois disso chegou a chamá-la de preta muitas vezes, dizia que o tinha roubado, que lhe faltavam tachos, edredons, etc.
· Em termos sexuais, em ..., sobretudo quando a relação amorosa ficou mais fria para si, a ofendida começou a não querer ter sexo. Mas quando ele queria, tinha que ser, e “na base de objetos sexuais” (vibradores) que introduzia na sua vagina. Sempre lhe disse não ser a favor disso, dizia que não queria e que lhe doía, que isso nem sequer a excitava mas num dia o arguido até usou um pepino e disse “deixa de ser esquisita que as pretas gostam disto”. Respondeu-lhe “não sei quantas pretas conheceste mas eu não sou uma dessas”. Com o pepino foi uma vez, com vibradores foram várias vezes e até chegou a perguntar ao arguido se ele precisava de ajuda porque sempre conseguiu sem aquilo e agora estava a querer muitas vezes desta forma.
· Não deixa de afirmar que o arguido nunca lhe bateu.
· Em termos monetários, mesmo quando ele estava fora, ele enviava dinheiro mas “ditava o que fazer com o dinheiro” e tinha por exemplo que transferir o dinheiro para as filhas dele, pagar segurança social, coisas para a casa e o resto era para ficar na conta para ser usado quando ele viesse de férias.
· Ele “não tem modos para repreender os meninos” (sic). Ele batia no menino de forma que a ofendida não gostava. Houve uma altura em que lhe tirou as calças e deu uma palmada no rabo do menino que o deixou com marca, bastando o menino estar a bater na mesa durante o jantar e dizendo que “o homem da casa era ele e ninguém mais batia na mesa senão ele”.
· chegou a pedir ajuda à Caritas e a Drª II acompanhou-as durante algum tempo em psicologia sendo certo que as meninas são acompanhadas psicologicamente até à atualidade.
· De abril até agosto o arguido pedia à ofendida voltar para ele; Chegou a dizer à filha da ofendida que comprava telemóveis e lhe dava o que ela quisesse se convencesse a mãe a voltar para ele. Até a chegou a pedir em casamento. Metia as suas fotos nas redes sociais.
· Atualmente, tem contactos com o arguido por telefone por causa do filho BB; regularam as responsabilidades parentais no Tribunal de Família e o arguido já não a tem perseguido.
· Não pensa regressar a Moçambique, atualmente vive cá, tem um trabalho cá e tem agora a vida mais estruturada.
Atenta a versão diversa do arguido e ofendida, e nos termos constantes da ata, determinou-se já em sede de julgamento, a prestação de esclarecimentos pela mesma. Nessa sede, a mesma, questionada, acrescentou em suma que:

  •  refere atualmente estar a viver em Portugal, trabalhando como   cozinheira;
  •  Diz que ela e o arguido, em Moçambique, chegaram a viver na mesma casa, ficando às vezes em casa dele e outras na sua, onde estavam as suas filhas com a sua mãe;
  •  quando veio com o arguido ara Portugal e estava a residir em ..., o arguido mandava o dinheiro para a sua conta, mas era o arguido quem dizia em que ia gastar tal dinheiro;
  •  não se recorda da situação de Penafiel mas diz que o arguido não gostava que ela vestisse roupa curta;
  •  dizia à mesma que ela tinha amantes (v.g. numa uma mensagem de uma pessoa amiga em que o mesmo afirmava “minha preta”, o arguido dizia que ela pretendia ir morar com o senhor em causa);
  •  questionada sobre tal facto, quando precisava de ir a ... vinha muitas vezes de boleia e por vezes de UBER, com o dinheiro que o arguido lhe enviava;
  •  refere que nunca comprou objetos sexuais e nunca pediu a arguido para lhe chamar nomes durante o ato sexual; Quanto aos factos relativos à parte sexual que descreveu nas suas declarações para memória futura, tal decorreu no último ano antes da separação e com uma regularidade semanal;
  •  reafirma que o arguido não queria que a mesma fosse trabalhar; Refere que o mesmo a colocou como trabalhadora da sua empresa e lhe transferia 700 euros mensais. Contudo, com tal dinheiro, mandava a ofendida pagar alimentos das filhas dele (por transferência bancária e sem depois devolver qualquer quantia em numerário), pagar a segurança social, e tinha que lhe apresentar as contas. Não deixa de assumir que por vezes tirava dinheiro para coisas pessoais (fazer as unhas, mas diz que o arguido não deixava de implicar com isso).
  •  refere que o dinheiro do arguido nunca serviu para pagar a requalificação da sua casa em Moçambique e que inclusive fez empréstimo ao banco para tanto (em Portugal, tendo vindo a juntar documento que suporta que contraiu empréstimo bancário.
  • no que tange a conduzir, sublinha que o arguido dizia que a carta de condução de Moçambique só servia em Moçambique e tinham falado que era preciso trocar a carta, algo em que o mesmo não a ajudou. Quem depois a orientou isso foi um amigo JJ e a esposa do mesmo e até ficou uma guia pensa que em 2019 (solicitada informação ao IMT quanto à obtenção de carta oea assistente, e juntos outros documentos pela mesma (art. 340.º do CPP), resulta de fls. 425 e 438 que a ofendida requereu a carta de condução portuguesa em pedido feito ao IMT em 01.10.2019 tendo documento que lhe permitia conduzir até 19.11.2019, vindo a ser titular a carta de condução portuguesa n.º ...10 em 23.12.2020 obtida por troca de carta de condução moçambicana.
  •  Refere que o arguido a deixava conduzir até ao infantário (cerca de 10 Km) e que inclusivamente a deixava também conduzir para tratar de coisas dele (v.g. para ir aos ... buscar peças a um mecânico porque o mesmo lhe pedia “e aí já não achava que não soubesse conduzir” – sic). Contudo, dizia que a ofendida não era capaz de conduzir até à .... Mas a mesma atribuiu isto ao facto de o arguido não querer que a mesma trabalhasse por causa dos ciúmes possessivos.
  •  De resto, onde a ofendida trabalhava (...) e o local de trabalho do arguido (B...) são escassos km, mas o arguido não a levava e dizendo que “não tinha tempo a perder” – sic.. De resto, nos dias em que ofendida ficava a trabalhar até mais tarde chegou a ir a pé da ... até à B..., porque ele não a quis ir buscar, tendo chegado a aceitar a boleia de uma colega de trabalho
  • Sublinha também que o arguido batia no BB. Que num jantar, tendo o BB à data cerca de 3 anos, e porque o mesmo bateu com as mãos na mesa o arguido zangou-se, baixou as calças ao menino e deu umas palmadas fortes tendo ficado marcas da mão no rabo durante alguns dias (“bateu feio no menino”- sic). Refere que a sua filha mais velha até chorou ao ver o ocorrido e que o arguido disse que estava a educar o filho e que a filha mais velha da ofendida não tinha que chorar. Refere que o menino tinha medo do pai.
  •  Refere que a sua ideia é ficar em Portugal, tem emprego cá; Não quer separar o BB do arguido apesar de não gostar da maneira como este trata o BB.
  •  No que tange à situação que precedeu a separação, a certa altura, confirma que aquando da decisão da separação, o arguido disse para a mesma ir para a rua mas ela pediu que a deixasse ficar na garagem. De resto, segundo afirma, ela própria sentia que naquele momento era menos humilhante estar na garagem que estar com o arguido em casa. Contudo, questionada nesta matéria, ressalva que não é verdade que o arguido tivesse dito que podia dormir nos quartos e que só não o podia fazer na sala. De resto, o mesmo disse que era tudo dele e no final até abriu as suas malas para ver se não estava a ser roubado. Não deixou sequer levar uma manta na saída de casa.
  •  Refere que no dia em que saiu de casa, o (il.) advogado que representa o arguido nestes autos, fez um documento para assinarem relativamente ao BB, mas a ofendida disse que queria procurar apoio judiciário para saber o que estava a assinar e por isso recuou-se a assinar sem orientação. Daí ter saído de casa sem o BB, algo que afirma ter-lhe custado muito. Refere ainda que chegou a perguntar ao il. advogado se era obrigada a assinar o documento, e mesmo é que disse ao arguido para não deixar levar a criança.
  •  Suportou isto tudo porque não tinha para onde ir. Chegou uma altura que não aguentou mais e que disse que não queria e que não aguentava mais;
  •  Sublinha que quando veio para Portugal amava o arguido e veio por isso, para terem uma família e serem felizes cá, mas ele acabou por humilhar, “pisar”, “sentia-me um nada” (sic), sentiu-se usada por ele; queria que ele lhe tivesse dado um tempo para sair de casa, que a tivesse tratado como um ser humano e não como a tratou.
  •  refere ainda que tudo isto perturbou as suas filhas, e que inclusive procurou ajuda numa psicóloga. Aliás, as suas filhas até lhe chegaram a dizer e pedir que se voltasse para o arguido que as mandasse para Moçambique.
  •  desabafou com a senhora que lhe fazia as unhas sobre não gostar da vida que estava a levar com o arguido e que as filhas estavam a sofrer, em Moçambique transmitia segurança, apoiava-a e cuidava bem das suas filhas e isso “não foi o que teve cá” (sic)
  •  esta situação marcou-a e atualmente “acha que todos os homens são iguais”, afirmando que “o único homem que faz parte da minha vida é só meu filho”.
A versão da ofendida e arguido são bastante opostas.
*
Vejamos a demais prova produzida.
A testemunha KK (comum à acusação e pedido de indemnização civil) que conhece a ofendida porque a mesma era sua cliente no gabinete de estética por si explorado, apenas conhecendo de vista o arguido por o ter visto uma única vez e casa deles.
Um dia a ofendida, que vivia com o arguido e tinha um filho dele, ligou-lhe a chorar que estava a dormir na cave porque “tinha sido expulsa de casa” e o arguido queria-lhe ainda “tirar o filho” pelo que a testemunha se deslocou ao local, com o marido ver como ela estava e estava já no local a GNR. Recorda-se que ela disse.
A ofendida chegou a desabafar consigo sobre a relação amorosa que tinha com o marido sendo que o que lhe disse será depoimento indireto.
Naquele dia a ofendida até lhe enviou fotos de como estava na cave em que se via roupa no chão (confrontada com o teor de fls. 81 e 127 ss refere que era esta a situação que viu nas fotos).
No final disse que queria sair de casa enquanto chorava a falar disso e precisava procurar de um advogado, até foi a testemunha que lhe indicou uma advogada. Recorda-se que à data a ofendida não trabalhava mas não sabe porquê.
A testemunha DD (filha da ofendida), de 17 anos: - recorda-se que em 2016, viviam em Moçambique
§ no início a mãe e o senhor AA não viviam juntos e meses mais tarde é que passaram viver juntos na casa dele, nós ficámos a viver na nossa casa e ela “ia e vinha de uma casa para outra”. Só quando vieram para Portugal é que ela viveu permanentemente com o arguido.
§ recorda-se que no ano em que o irmão BB nasceu, o arguido veio para Portugal, a mãe veio em 2017 e depois foi lá buscar-nos e elas vieram em 2018.
§ em 2018 estavam todos a viver em ... onde a mãe conhecia e era amiga de muita gente.
§ pouco antes das aulas começarem, pensa que em 2019, vieram residir para a morada referida na acusação em ...;
§ quando vieram para ... tornou-se autoritário e controlava a mãe, “até connosco alterou completamente… tudo tinha que ser à maneira dele”.
§ reclamava com roupa da mãe, quando a roupa era justa ou curta o que era habitual e ela ia mudar de roupa e ficava abatida embora acatasse o que ele dizia; tinha tendência a controlar o telemóvel da testemunha com receio que a mãe estivesse a mandar mensagens através do meu telemóvel que tinha sido da ofendida (refere ele tinha o habito de mexer no meu telemóvel)
§ tb a controlava nas redes sociais (vg estando a esconder e no telemóvel da mãe quando apareciam notificações de mensagens nas redes sociais, ele tentava ver e colocava o telemóvel do lado dele e ela não se queixava).
§ uma vez quando foram ao supermercado estava lá um senhor e o arguido olhou para o senhor e disse “quer levar para casa” e ela nunca dizia nada embora não gostasse deste tipo de situações.
§ era recorrente o arguido chamar nomes à mãe: preta, que ela era um macaco vindo de África (diria que com frequência semanal). Eles discutiam muito.
§ a mãe trabalhou em ..., na Câmara Municipal não sabe quanto tempo e em ... trabalhou na ... em curtos períodos. Em regra estava dependente financeiramente dos rendimentos do arguido. Ela ia de autocarro porque o arguido só deixava levar até à escola do BB em .... Acha que o arguido não queria que ela trabalhasse estava a dificultar a situação. Nesta altura sabe que a mãe tinha carta de condução sem ser portuguesa, só passado umas semanas de começar a trabalhar é que conseguiu ter carta de condução. Uma vez ao almoço o arguido disse que a mãe não sabia conduzir porque tinha tirado a carta de condução em África.
§ não sabe como eles se organizavam em termos de dinheiro nem como eram pagas as despesas de subsistência. Sabe que ele supervisionava o que ela fazia em termos de dinheiro, sabe que ela tinha acesso a contas bancarias e que fazia transferências até para os filhos dele. Ela podia ir a esteticistas etc desde que com autorização para gastar o dinheiro.
§ relativamente ao irmão BB também viu o arguido a agredir o seu irmão (nesta altura do seu depoimento chorou). Descreve a situação nos seguintes termo: já estavam a viver em ... e o BB uma vez estava a bater na mesa e o arguido baixou-lhe as calças e bateu-lhe deixando uma marca no rabo durante vários dias. O irmão ficou a chorar e ficou afastado. Recorda-se por ter sido uma situação com agressividade.
§ por exemplo quando BB brincava ao pé da televisão, e batia no AA por causa disso, era de forma agressiva. O BB tinha medo do pai, quando o pai estava para chegar ele desligava logo a televisão porque sabia que o pai não ia gostar.       Quando ele chegava a casa o arguido mostrava “quem mandava” (sic). No dia a dia o BB mostrava medo.
§ não teve noção que a mãe queria separar-se, só durante uma discussão que ouviu e em que a mãe dizia que queria separar-se. Foram embora depois do Natal e essa discussão terá sido em Dezembro. Depois do Natal houve uma conversa à mesa e disse que estava farto daquela situação e que já não dava mais, que já não viviam como família, e comunicou-lhes que a ofendida e filhas tinham que ir embora e o BB permanecia em casa. A mãe disse que não tinha para onde ir. Pensa que foi ele que disse para irem para a garagem, onde existia um sofá, mas não sabe ao certo. Recorda-se, isso sim, que ele disse à nossa frente que não se queria cruzar com ela. Inicialmente ele disse para ficarmos (as filhas) dentro de casa mas não se sentiu confortável com isso e por isso dormiram lá cerca de 3 noites (só ficando cá em cima o BB).
§ depois a mãe acabou por encontrar uma casa em ... onde foram viver e mais tarde vieram viver para .... Estava presente no dia em que a mãe e elas próprias acabaram por sair de casa, ele acusou a mãe de roubar coisas lá de casa para um reboque, sendo que a GNR foi ao local porque ele não queria que o BB fosse com eles. Diz que algumas coisas até foram descarregados. O BB acabou por não vir com elas. Não se recorda se tentaram chegar a acordo nesse dia.
§ só mais tarde, cerca de um mês, o BB foi viver com elas, pelo menos em parte.
§ pensa que a intenção da mãe é permanecer em Portugal.
§ a ofendida só reagia mais quando ele se “metia connosco”, no início ele tratava-nos bem mas depois piorou sobretudo por causa dos ciúmes dele. Ela tornou-se mais triste, menos faladora (desde que vieram para ...).
§ Não se têm encontrado nem discutido, ao inicio logo após a separação isso acontecia mas depois deixou de acontecer (sem prejuízo do que discutem em Tribunal quanto ao BB).
A testemunha LL (filha da ofendida), de 14 anos, veio para Portugal, recorda-se que em Moçambique parecia tudo bem e eles davam-se muito bem. Ele tinha casa e nós também. Não tem memória se chegaram a viver juntos em Moçambique. Mais tarde a mãe veio com o arguido para Portugal, ela estava grávida do BB, e elas ficaram em Moçambique com avó até terem documentação.
Depois foram viver para ..., e tem ideia que nessa altura as coisas estavam bem e que pioraram em ... (pensa que tudo isto foi em 2018 e 2019).
Reclamava do que ela vestia. Uma vez jantaram em o arguido porque ele viria tarde (22h) e ao chegar reclamou que tinham que ter esperado, que só lhe tinham deixado sobras, o que não me deixava à vontade. Reclamava e dizia que “daqui a pouco não ia caber nas portas de tanto comer”.
Duas situações com a mãe: 1) ele insultou-nos a dizer que eram pretas, que viviam nas árvores, e que comiam muito (esta parte até era para si) e chamou a mãe de puta várias vezes; 2) uma vez estavam a fazer compras e o arguido reclamou com um homem que estava a olhar para a mãe, dizendo “queres levar para casa?”.
Ele demonstrava ciúmes, reclamava que os homens estavam sempre a olhar para ela, até via o telefone da irmã para ver se estavam lá coisas que comprovassem uma traição da mãe (ele pensava que ela usava o telemóvel da irmã, que tinha sido da mãe). Via também o facebook, quem metia likes.
Quando isto sucedia “ela não podia fazer muito…estavam em Portugal sem família, ela não trabalhava, tinha muito receio como ficaria quer ela quer por nós”.
Ele não a deixava conduzir o carro até ao trabalho, tinha que deixar o carro na escola e apanhar autocarro. Ela depois tirou a carta de condução mas sem certeza quando.
Não se apercebeu como eles geriam o dinheiro. Só iam ao supermercado com ele, muito poucas vezes foram sozinhas. Recorda-se de o ouvir dizer que ela não precisava de trabalhar que já tinha comida na mesa.
BB, quando tinha 2 ou 3 anos, se chegasse muito perto da televisão ele ralhava muito, uma vez bateu no BB porque ele estava a jantar e bateu na mesa e ele tirou-lhe as calças e bateu-lhe e no dia seguinte viram que tinha ficado marca. Nestas alturas o BB chorava.
No ultimo mês ouviu o arguido a dizer à mãe que não as queria lá (dizendo que foi para o quarto), depois viu a mãe a chorar e que tinham que arrumar as coisas e ela pediu para ir para a garagem e ele aceitou (ele não queria conviver mais com ela debaixo do mesmo teto). Vinham cá acima cozinhar e à casa de banho.
Elas filhas o arguido deixou ficar cá em cima mas não se sentiram bem e foram dormir com a mãe, que estava muito em baixo, durante cerca de 2 a 3 noites.
Acabaram por sair definitivamente de casa e ir viver para .... Recorda-se que arrumaram as coisas, meteram as coisas num reboque/carro e o arguido estava lá foi lá dizendo que eram dele. Não levaram o BB mas não sabe porquê, vindo o mesmo a viver com elas já apenas em ....
A mãe em Moçambique era uma pessoa muito alegre, em ... também ainda bem mas em ... já não. Sentia-se mal, viu-a chorar várias vezes por causa do comportamento do arguido.
MM, conhece o arguido de vista e a ofendida mora no mesmo edifício em andares diferentes, sendo assim sua vizinha.
Quando ela foi viver ali há 2 anos, viu alterações na ofendida: ela está mais espontânea e alegre. Quando chegou notava-se que estava triste, chorava muito, estava desanimada, e desabafava consigo sobre o que se tinha passado com o arguido.
NN, militar GNR em ..., tendo tido intervenção com a assistente no exercício de funções (cfr. auto de notícia de fls. 79 ss), não conhece o arguido.
Receberam uma comunicação de um pai que tinha levado o filho à revelia da mãe, foram ao local e viram as condições em que estava alojada. Ele não estava lá. Relatámos o que ela disse no auto de notícia. Percebia-se que havia um sofá numa garagem onde ela dormiria e estavam lá sacos com roupa (descrevendo que o que viram foi o que consta das fotos juntas com o auto de fls. 79). Referiu ainda “Notava-se que a senhora estava bastante triste” (sic).
OO, não conhece pessoalmente o arguido, conhecendo a ofendida porque trabalham juntas desde há 2 anos para cá no mesmo sector da de uma empresa a caminho da ... (...). Hoje até são vizinhas e vê que a ofendida trabalha.
Nessa altura a testemunha morava em ..., conheceram-se no trabalho e um dia ela disse que não tinha como ir embora e passou a dar boleia até ... e depois até passou a ir busca-la e levá-la a casa. Na altura ofendida morava perto de .... Estavam ambas recém separadas e desabafam uma com a outra. Emocionalmente ela estava depressiva (não sabe se tomava medicação), estava “acabada” por causa de toda a situação com o arguido.
Neste período de 2 anos ela está mais independente mas emocionalmente ainda está marcada (não quer mais nenhum homem), já não chora tanto como chorava antigamente mas ainda não está a 100%.
HH, não conhece pessoalmente o arguido, conhecendo a ofendida (a quem chama FF) de uma fábrica C... (...) onde ambas trabalharam. Foi durante pouco tempo e há cerca de 1 ao e meio, dois anos atrás (em final do ano de 2020).
Ela trabalhava à sua frente e notava que era uma pessoa que estava muito triste, abalada. Notou numa altura que ela não trazia carro e ela explicou que não o podia trazer, explicando porquê. Num dia, em que estava a chover, ela ligou-lhe porque costuma dar-lhe boleia até à B... onde estava o arguido, e não a tinha avisado porque tinha ido a uma consulta e acabou por ir buscá-la e levá-la para casa dela.
Refere que agora ela “mudou da água para o vinho”(sic), está muito melhor, hoje está mais alegre, mais bonita.
PP, GNR – ... (exerceu em funções em ... de 2020 a 2022). Conhece o arguido de uma ocorrência, ou seja, no exercício de funções.
Receberam telefonema da ofendida e à chegada ao local ela descreveu o que tinha ocorrido. À chegada ela estava já fora da residência, viram a garagem e a mesma informou que estava num sofá da garagem e era um local inadequado para dormir.
Ela estava nervosa, chorosa. Estava também com medo relativamente a um filho que o companheiro tinha levado. Confrontado com as fotografias de teor de fls. 81 e 187 ss., confirma que eram essas as condições da garagem em causa. Questionado a tanto, refere que não verificou se a mesma tinha retirado bens da casa.
QQ (abonatória), trabalhou com ele e ficou uma relação de amizade dom o arguido desde 1979, sempre tendo acompanhado o percurso dele, sobretudo ao nível profissional. Diz que o conhece bem tendo-o como excelente profissional e amigo. Diz que o arguido nunca desabafou consigo sobre o relacionamento amoroso dele. Chegou a ir a Moçambique em trabalho, por duas vezes, uma há mais ou menos 6 anos, e via-o bem e feliz. Tem ainda o arguido como bom pai, tendo assistido várias vezes a telefonemas do arguido à ex mulher a perguntar pelas suas filhas.
RR (abonatória), foi casada com o arguido durante mais de 20 anos, têm filhos em comum e continuou sempre a ter contacto com o arguido mesmo após divórcio. Diz que não sendo “os melhores amigos” mantém um bom relacionamento.
Sabia que o arguido tinha um relacionamento e que teve um filho com a então companheira, mas não sabia de pormenores da vida deles.
Não o tem como pessoa violenta e sempre confiou e ainda confia nele. Vê-o como pai que gosta dos filhos. Quando ele regressou de de Moçambique ficou alguns meses na sua casa (e quarto diferente) e depois veio a companheiro dele e foi viver com a mesma.
Tem o arguido como bom profissional, responsável com as suas obrigações quer familiares quer nas outras (por exemplo sempre cumpriu a obrigação de alimentos para com as filhas).
SS (abonatória), foi chefe dele numa empresa no Algarve na década de 90, e além disso ficou amigo dele e até parceiro de negócios mas nunca esteve em casa dele. Na altura nunca teve queixa dele, tinha um bom comportamento profissional, pessoa responsável e era bem aceite socialmente.
TT (abonatória), sendo amigo do arguido e ex colega de trabalho (mas nunca tendo ido a casa dele) e via-o como pessoa pacata, bom trabalhador.
UU, foi vizinha do arguido e da ofendida durante algum tempo quando os mesmos viveram nos ... e conviveu com os mesmos (cerca de 2 anos).
Nunca viu nada que indiciasse que existia um mau relacionamento entre eles nem nunca lhe foi desabafado pela ofendida ou filhas sobre o arguido. Apercebia-se que o arguido trabalhava porque saía todo o dia. A ofendida esteve empregada num emprego que tinha arranjado na ... mas entretanto ela saiu de lá. Perguntou à ofendida como é que ela ia para o emprego e ela disse que ia transportes públicos, sendo que andava a tirar aulas de condução, porque tinha carta Moçambicana e ia a exame de condução para poder conduzir em Portugal. Quando a CC estava a trabalhar na ..., o arguido pediu a esta testemunha para ir buscar o BB ao infantário e deixar em casa deles com as irmãs.
Recorda-se que um dia o arguido disse que não era preciso ir buscar o menino ao infantário e a ofendida telefonou-lhe a perguntar o que se passava.
Mais tarde, ainda nesse mesmo dia, a ofendida ligou “em tom de ameaça” (o tom que usou e para dizer ao arguido qe nunca mais iria buscar o BB) porque é que ia buscar o BB ao Infantário e a testemunha respondeu que só o fazia porque lhe tinha sido pedido esse favor porque nenhum deles podia ir buscar o menino a horas, e a partir desse dia a ofendida nunca mais falou consigo. (sendo que não sabe contudo o contexto familiar em que as coisas aconteceram e que motivou a reação da ofendida).
Nesse dia viu a GNR em frente a casa deles.
Recorda-se que a ofendida saiu de casa na semana a seguir ao Natal (ou na última semana de Dezembro ou no início de Janeiro).
Sublinha que nunca viu o BB com medo do pai, sempre o viu a correr para os braços do pai, chegou a ver o BB a brincar com o pai na rua.
VV[1], conhece o arguido desde 2014 e ele depois esteve em Moçambique e depois ele voltou. Ele chegou a ser namorado da sua ex-cunhada durante 2 anos e ela falava bem do arguido. O arguido sempre falou consigo e o arguido até chegou a ir a sua casa com o filho BB e com uma das filhas gémeas (pensa que em Julho de 2022), quando o arguido já não estava com a ofendida. Apercebeu-se que a preocupação do AA era se o filho ia para África porque tinha “muita ligação com o filho dele (…) ele é um senhor que ama muito os seus filhos, um pai muito babado”. Vê o arguido como bom pai e como boa pessoa.
JJ, conhece o arguido porque a senhoria do arguido e da ofendida era a irmã da testemunha, que estava no Canadá. Dá-se bem com arguido e ofendida.
Apercebeu-se do final do relacionamento quando a ofendida saiu dali com as duas filhas.
Muitas vezes trouxe a ofendida a ... (o arguido estava a trabalhar) porque ela não tinha carro e a carta moçambicana da ofendida não dava para conduzir. Fez uma série de juízos de valor sobre a mesma, demonstrando animosidade contra a mesma à custa de episódios pessoais (chegou a pedir-lhe para cortar a relva e não agradeceu e começou a ver que ela “falhava em  certas coisas” (sic); Uma vez que a trouxe a ... a uma consulta, nunca mais voltava e acabou por ver que a mesma estava numa manicure, pelo que achou que “a personalidade dela era um bocadinho dúbia” etc), não se tendo assim tido este depoimento como isento e credível.
JJ, conhece o arguido há mais de 20 anos, sendo seu amigo. Trabalhou com o arguido em Portugal e conviveram muito, têm a mesma profissão e morava perto de si em .... Iam a casa um do outro. Chegaram a passar Natal juntos e fins de semana também estavam juntos. Convivia com ele e com a FF (era sempre assim que a tratava). No dia em ele me apresentou não ficou com boa ideia da assistente (que queres beber FF? quero tudo o que tenho direito! o que não lhe caiu bem). Quando a FF foi a Moçambique mostrar o menino à mãe e o arguido disse que ela ir trazer as filhas foram busca-las ao aeroporto. Ele era “impecável” com a assistente quer com as meninas. Inclusive quando foi para o estrangeiro pediu-lhe para ir passando a sua casa ver se era preciso alguma coisa e se fosse preciso ir com elas a algum sítio (chegou até a oferecer-se para ir a ... ajudar com os papéis da escola das meninas mas ela disse que já tinha ido de táxi). Nunca o viu repreender ou faltar ao respeito quer BB quer as filhas da assistente.
WW, GNR em ... e esteve em ... de 2021 a 2022, conhece o arguido, tendo estado presente numa ocorrência no exercício de funções, por causa de uma retirada de bens da residência.
Não se recorda bem da data, mas recorda-se que à sua chegada ao local, estava só a assistente o arguido e recorda-se de ver crianças. Foi o arguido que veio ter consigo.
Quanto ao retirar de bens não se recorda de ter existido qualquer problema, o problema era com quem as crianças iam ficar naquele dia. Tem vaga ideia que o advogado do arguido foi chamado e foi lá para tentar um acordo. Recorda-se de haver tensão sobre quem ficava com a criança mas não se recorda de ter existido qualquer atitude menos própria, pode ter existido  mas não se recorda.
Acha até que o acordo foi assinado por ambos, mas sem certeza. Não se recorda também de ter existido qualquer pressão para assinar. Sabe que o documento tinha pelo menos uma assinatura mas não sabe se ambos assinaram. pensa que a a criança até ficou no local com o pai, e só com a saída da assistente do local é que também se ausentaram do local.
*
Produzida toda a prova importa referir, criticamente, o seguinte:
A versão do arguido é desde logo menos coerente e credível que a versão da ofendida. Com efeito, a versão do arguido apresenta desde logo algumas fragilidades intrínsecas. Por exemplo, apesar de o mesmo negar quase tudo o que fossem factos “dentro de paredes” de casa, não negou o que foi visível exteriormente, v.g. que apenas deixava a ofendida conduzir o carro até à escola de BB mas não a deixava ir para a ... a conduzir quando a mesma aí se deslocava para trabalhar. Refere que a mesma não tinha carta portuguesa válida e não conduzia bem. Mas então questionamo-nos: mais do que se a carta moçambicana era ou não válida, o arguido não se incomodava com a condução da ofendida quando esta tinha o seu filho de tenra idade a bordo mas já se importava se a mesma fosse trabalhar (mesmo que a distância fosse menor)? E o que justificava que, tendo chegado a trabalhar na B... (...) contemporaneamente à ofendida trabalhar em ..., o que dista poucos Km5, em vez de a trazer e levar para casa, a obrigasse a ter que depender de transportes públicos? Não adveio aos autos explicação plausível, nem o arguido soube esclarecer de forma credível, restando concluir que o arguido pretendia dificultar o facto de a ofendida trabalhar, assim a tentando manter sob seu controle e dependência.
Por outro lado, o arguido afirma que a motivação de tudo isto é respeitante ao facto de a ofendida pretender ter “custódia total” de BB, levar para Moçambique, fazer o que entende com exclusão da opinião do arguido.
Não negligenciamos que quando pendem simultaneamente processos de violência doméstica e de responsabilidades parentais cautelas acrescidas se convocam. Contudo, essa motivação não se verificou no caso concreto, nem até agora se respalda nos atos da ofendida. A mesma não manifesta vontade de regressar a Moçambique. Já posteriormente aos factos arranjou, ao invés, novo trabalho (como cozinheira), as crianças estudam, e apesar de ter casa arranjada em Moçambique não voltou a tal país e afirma não querer afastar o arguido do filho.
Ao invés do arguido, o discurso da ofendida (seja em declarações para memória futura sendo que o Tribunal veio a ter contacto com a mesma em julgamento), quer na sua linguagem verbal, quer na sua linguagem não verbal, levou ao entendimento de que a mesma, não obstante demandante e não obstante ter pendente um processo de regulação de responsabilidades parentais quanto ao filho BB, não deixou de descrever os factos de forma coerente, lógica e nalguns pontos corroborada pelo teor de outros depoimentos. Note-se desde logo que a ofendida, embora tenha descrito a atuação do arguido nos termos sobrexpostos, o que fez de forma sincera e emotiva, não deixou de reconhecer alguns pontos em que o arguido teve um comportamento correto (referiu, v.g. que quando viveu no Alentejo “o arguido não deixava faltar coisas a mim e à criança” e que no Alentejo correu quase tudo bem; confirma que oi o arguido quem pagou as passagens aéreas para ir a Moçambique buscar as suas filhas; que a certa altura o arguido via o seu telemóvel mas que tal ocorria com o seu consentimento e não às escondidas; que ao início o arguido tratava muito bem as suas filhas; que nunca lhe bateu; nem deixa de assumir que chegou a usar o dinheiro que o arguido lhe entregava para por vezes vir de táxi a ..., usava Uber, e vinha até à esteticista).
Por outro lado a versão da ofendida, ao contrário da do arguido, é corroborada nalguns pontos da “vida fora de muros”, por prova testemunhal.
Com efeito, veja-se v.g. depoimentos de testemunhas como OO e HH, que nada tendo contra o arguido, não deixaram de aludir a situações em que a ofendida tinha tido necessidade de boleia para a ..., notando-a simultaneamente triste, abalada, “acabada”.
Por outro lado, quanto ao que ocorria na vida familiar, “dentro e muros” e pese embora filhas da ofendida e demandante, não deixaram as testemunhas filhas da mesma se serem convergentes nos depoimentos, quer entre si, quer com as declarações da ofendida (com discursos emotivos, v.g. também quanto ao ocorrido quanto ao irmão BB nos termos supra referidos).
Por outro lado, a corroborar as declarações da ofendida e filhas quanto ao estado anímico que toda a situação doa arguido lhe provocou, e pese embora não se tenha junto qualquer documento comprovativo de diagnóstico clínico de depressão e stress pós traumático, não deixaram as testemunhas de assegurar aqui e ali ao longo dos seus depoimentos que viram a ofendida, que anteriormente alguns descreveram como alegre, agora triste, abalada, acabada, tendo inclusivamente os militares da GNR, no exercício de funções (PP e NN), visto uma pessoa nervosa, fragilizada, triste (cfr. v.g. depoimentos de XX, OO, HH).
Por outro lado, das declarações da ofendida, das suas filhas e da análise da materialidade dos factos à luz de regras de experiência comum, resulta uma situação de dependência económica (incentivada pelo arguido v.g. ao não facilitar quando a ofendida quis trabalhar na ...), de dependência emocional e até geográfica (a ofendida não tinha outra família em Portugal, tinha vindo para este país com o arguido, tinha trazido as suas filhas, e não tinha grandes recursos para se autonomizar do mesmo quando assim pretendesse). E não é o facto de andar de táxi, uber, ou cuidar de unhas, que retira um tal contexto.
Não se diga ainda que a versão da ofendida está fragilizada por, quer quanto à parte sexual, quer quanto ao filho BB, nunca ter ido a consulta, a hospital, ou comprado medicamentos. Não raras vezes, as ofendidas deste tipo de atos sexuais apenas procuram ajuda clínica em situações limite porque têm vergonha de se expor. Por outro lado, o facto de uma criança ter uma marca de mãos na nádega não justifica por si só que procurasse ajuda médica ou medicamentosa (estranho aliás seria que o fizesse salvo se estivesse já a tentar coligir prova para algo, o que não ocorreu).
Por outro lado, as testemunhas QQ, RR, SS e TT ou YY nunca testemunharam o que ocorria dentro de casa do arguido e ofendida, sabendo apenas, nas vezes que com eles estiveram, que aparentavam um relacionamento normal (excluindo-se aqui os juízos de valor que a parcial testemunha JJ afirmou). De todo o modo estas testemunhas vão no sentido de que o BB não deixava de ter uma relação afetuosa com o pai, o que não é contraditório de forma absoluta com o referido pelas filhas da ofendida e ofendida. Com efeito, se a prova se mostra suficiente e segura quanto a uma das situações (birra em que BB bate na mesa e o arguido he desfere palmadas no rabo), já não se mostra suficiente quanto a constantes agressões, maus tratos indignos, que nem aquelas referiram de forma segura e pormenorizada, em face do clima testemunhado por aquelas testemunhas supra citada.
De todo o supra exposto resultaram assim os factos provados n.ºs 1 a 45 e facto n.º 47 resultando os não provados de da prova explicitada nos termos supra não se ter ultrapassado a dúvida razoável, a sua ocorrência, pelo que, no limite, em homenagem ao princípio in dúbio pro reo, vão os factos das als. a) a p) como não provados.
Quanto ao provado em 46, tal resulta do auto de inquirição da ofendida, em sede de inquérito, datado de 08.01.2021 e constante dos autos, resultando o provado em 48 do teor da certidão solicitada ao Procº n.º 85/21.... (e apenso A) – art. 340.º do CPP – e junta aos autos em sede de audiência de julgamento.
Já quanto ao provado sob o n.º 49 atentou o Tribunal no relatório social solicitado pelo Tribunal à DGRSP nos termos do art. 370.º do CPP e que foi junto aos autos, sendo que quanto ao provado em 50 atendeu ainda o Tribunal ao referido pelo arguido quanto às atuais condições económicas e que, nesta parte, se mostrou credível.
Por fim quando ao provado em 51 (modo como é visto, o que não é contraditório com o provado quanto a factos concretos) relevaram sobretudo os depoimentos de QQ, RR, SS e TT ou YY e quanto ao provado sob o n.º 52 atentou-se no certificado de registo criminal junto aos autos, datado de 13.09.2022».

                                  
            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. DA IMPUGNAÇÃO DE FACTO

3.1.1. Alega o recorrente que quer impugnar a matéria de facto.
Diz-se injustiçado, alegando que tudo isto foi montado pela CC, sua ex-companheira para conseguir obter em juízo a «guarda» de seu filho BB, dando uma imagem de «benfeitor» desta mulher e de suas filhas, branqueando em absoluto os comportamentos «violentos» - violência não é só o atentar contra a integridade física de alguém, como é óbvio - que lhe são imputados.
Entendeu, assim, a defesa que houve um erro de julgamento.

3.1.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto por duas vias:
- a via da impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada – cfr. artigo 431º do CPP;
- e a via dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP.
Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação e da Relação de Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412º, nº 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Já na 2ª situação, apela-se ao normatizado no artigo 410º, nº 2 do CPP que estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
3. Erro notório na apreciação da prova.
            Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[2].
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[3].
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97).
O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.
Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.
Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[4].

3.1.3. Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si.
O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP;
c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
 
3.1.4. O recorrente invoca erro de julgamento.
Contudo, a sua invocação e alegação em termos recursórios foi feita em termos muito pouco apropriados.
Já o sabemos - sem prejuízo dos vícios aludidos no artigo 410º do CPP, o tribunal de recurso apenas pode modificar a matéria de facto quando, nos termos do artigo 431º do CPP, se verifiquem os seguintes requisitos:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
         b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do artigo 412º; ou
       c) Se tiver havido renovação de prova.
A situação prevista na alínea a), do artigo 431º, do CPP está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta do processo, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento.
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al.c) do artigo 431º, do CPP, está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP.
A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do artigo 431º do CPP e foi a que o recorrente pretendeu utilizar para impugnar a matéria de facto.
Esta alínea b) do artigo 431º do CPP, conjugada com o artigo 412º, nº 3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devam ser renovadas».
O nº 4 deste artigo 412º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação».
O recorrente deverá indicar a sessão de julgamento em que as declarações ou depoimentos constam e localizar a passagem em causa na gravação, entre os minutos em que produziu prova oralmente, de modo a deixar claro qual a parte da declaração ou depoimento que se quer que o Tribunal de recurso ouça ou aprecie.
Nos termos do nº 6 do artigo 412º do CPP, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e, ainda, de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
A indicação exigida pela alínea b) do nº 3 e pelo nº 4 do artigo 412º do CPP (normas nem sequer invocadas expressamente pelo recorrente, apenas se referindo soa nºs 1 e 2 do artigo 412º), ou seja, das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos, é imprescindível para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal.
Sobre o dever das menções dos nºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP constarem das conclusões da motivação, o STJ, por acórdão de 5 de Julho de 2007 (proc. nº 07P1766, in www.dgsi.pt/jstj), pronunciou-se no sentido de que a redacção do nº 3 do artigo 412º do CPP, por confronto com o disposto no seu nº 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o nº 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…) ”, já o nº 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impor que tal aconteça nas conclusões – no caso do STJ, perante esta margem de indefinição legal e tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, concluiu tal Superior Tribunal que, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões.
No nosso caso, o arguido não faz qualquer impugnação específica relevante (note-se que apenas indica extractos de gravações na motivação e já não nas conclusões), de concreta matéria de facto dada como provada ou não provada na sentença recorrida, por os considerar incorrectamente julgados (nem sequer um número ou letra de facto se indica).
E não indica, pelo menos de forma expressa, nem nas conclusões da motivação - em que o recorrente resume as razões do pedido -, nem na motivação - em que se enuncia especificamente os fundamentos do recurso -, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
Mas é verdade que refere as concretas passagens em que funda a impugnação, indicando a sessão de julgamento em que os depoimentos constam com localização da passagem na gravação, fazendo-o apenas nos artigos 35, 51, 53, 54, 55, 56, 57, 58 e 59.
A alegação deste recurso está muito próxima da ineptidão.
Mas não seremos demasiado formais e ouviremos a prova gravada.
Ouvida a prova em causa, a que conclusões chegamos?
Nenhum que infirme as que foram retiradas pelo Tribunal ....
No artigo 35º - houve ou não pepinos envolvidos em actos sexuais entre o casal? - faz apelo ao seu próprio depoimento, negando essa existência
O tribunal deu como provado que uma vez houve uso de um pepino, acreditando mais na palavra da assistente (depoimento que também ouvimos e que considerámos credível).
Diga-se ainda que esse facto é irrelevante para a prova do crime em apreço pois bastaria a existência de vibradores introduzidos, contra a sua vontade, na vagina da CC – o que o arguido admite até no artigo 34º da motivação - para se considerar haver violação [artigo 164º, nº 1, alínea b) do CP].
No artigo 51º discute-se o incidente do dia 26/12/2020 (a saída de casa da assistente) – ora, nada de noivo é referido pelo arguido no extracto da gravação em causa que possa mexer com a prova de algum facto.
No artigo 53º e 54º, discute-se a «palmada» do pai ao filho BB, invocando-se apenas o depoimento isolado do próprio arguido que considera tal «palmada como um aviso solene sobre o filho que tanto ama».
Nada mais se invoca.
Veja-se que o tribunal deu como provados os factos 25 a 28 com base nos depoimentos da mãe da criança e das suas irmãs uterinas, testemunhas visuais do ocorrido.
Nem sequer o recurso invoca o depoimento destas 3 fontes para as desacreditar.
Finalmente, nos artigos 55 a 59, invocam-se depoimentos de testemunhas abonatórias, RR, SS, UU, ZZ e JJ para se querer provar que afinal o arguido é «pessoa leal, pai babado, não racista, de bom feitio, incapaz de maltratar a CC».
Terão eles essa ideia do arguido, não se duvida.
Contudo, está o mundo cheio de públicas virtudes e de vícios privados.
E os seus depoimentos, só por si, não são capazes de abalar a força dos depoimentos vividos na 1ª pessoa pela CC e suas filhas que, em concreto, convenceram o tribunal da justeza das suas acusações contra este homem.
Não se deixa é de estranhar por que misteriosa razão se traz à colação o facto de a assistente usar UBERs e frequentar manicures, como se isso fosse algo que a denegrisse em termos de carácter.
Como se vê, as provas alegadas nada trazem de novo que infirme as conclusões factuais a que chegou o tribunal.
No fundo, limita-se o recorrente a dizer, na motivação do recurso, a respeito desta factualidade, que a prova produzida em julgamento é manifestamente insuficiente para a dar como provada.
No nosso caso, o recorrente insurge-se contra o facto de o tribunal ter dado mais credibilidade às declarações prestadas pela assistente e pelas testemunhas de acusação em detrimento das declarações prestadas pelas suas testemunhas que foram apenas abonatórias e desconhecedoras da realidade existente dentro de casa do arguido e da assistente (mesmo o habitual bom cidadão pode praticar ilícitos no silêncio dos casarios).
E termina dizendo que o verdadeiro dano «foi o que ele sofreu com a hospedagem dada, com alimentação fornecida, com as despesas das passagens aéreas pagas, com o material escolar pago, com o cansaço e sofrimento porque passou», numa leitura exclusivamente patrimonial de uma relação só aparentemente afectiva que estabeleceu com esta mulher durante cerca de 4 anos.
Não temos, pois, qualquer indício de que houve o denunciado erro de julgamento.

3.1.6. Resta a análise da sentença à luz dos vícios formais do nº 2 do artigo 410º do CPP.
Haverá algum vício?
Para se analisar a decisão recorrida nestes termos há que analisar o seu texto literal e a sua concordância lógica entre o acervo probatório dado como provado e não provado e a respectiva motivação.
E é nessa motivação que reside o cerne de todo o problema e a verdadeira arte de julgar num verdadeiro Estado de Direito onde os tribunais aplicam as leis de forma fundamentada e credível.
Cada autoridade só tem direito ao respeito que conquista – e um juiz, todos os dias, conquista esse respeito sentenciando de forma justa e motivada com base em provas válidas, num juízo de convicção que, depois de ser criado, tem de ser devida e suficientemente explicado ao mundo.
Neste ponto, e aqui chegados, foquemo-nos na questão da prova e da sua leitura em sede de julgamento para a criação de uma convicção (e aí o juiz convencido tem de se transformar, de forma sábia e suficiente, em juiz convincente)[5].
O artigo 127º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto;
De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária[6] ou indirecta;
Como é evidente, e socorrendo-me das palavras sábias do STJ – [cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção], «tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos».
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência e, sobretudo, pela dimensão ética do acto de julgar.
Nesta nobre e hercúlea tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância – a de ... - e o tribunal de recurso – o nosso -, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
            Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
            Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do nº 3 do citado artigo 412º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).
Lemos e relemos a decisão recorrida, elaborada na sequência de um julgamento, em quatro sessões.
              E o juízo que aí foi criado foi condenatório, embora em veste diversa da que consta da acusação do MP.
              Ora, analisando o texto literal da sentença, descortinamos algum erro notório na apreciação da prova?
Ou seja:
§ Perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, o tribunal recorrido violou as regras da experiência?
§ Efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios?
§ Violaram-se as regras sobre prova vinculada ou das legis artis?
§ O tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados?
§ Estamos perante um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido?
§ Extraiu-se de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum?
§ Deu-se como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo?
§ A prova foi erroneamente apreciada?
§ O tribunal afastou-se infundadamente do juízo dos peritos?
§ Deu-se como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica?
§ Na motivação da decisão de facto invoca-se facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso?
§ Declara-se ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido?
§ No âmbito da apreciação da prova indirecta, o tribunal infere de um facto um outro facto, sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão?
§ Houve uma má aplicação do princípio in dubio pro reo?
A todas as perguntas, respondemos NÃO.
Lendo a motivação do tribunal, entendemos que a mesma é suficientemente elucidativa e clara  sobre a tomada de posição e a convicção criada sobre a causa.
            Este Tribunal singular explicou-se e disse de sua justiça.
Repete-se: não se verifica tal erro notório se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
O tribunal, na sua motivação, dissertou sobre as razões pelas quais acreditou nos depoimentos da assistente e suas filhas, em detrimento do depoimento do arguido, por si considerado pouco credível.
Quanto aos restantes vícios do nº 2 do artigo 412º do CPP, eles também inexistem.

3.1.7. Se assim é, então considera-se definitivamente fixada a matéria de facto provada e não provada constante da sentença recorrida, só havendo que averiguar agora se foi feita uma adequada subsunção dos factos ao Direito tido por aplicável (diga-se, contudo, que o recurso é completamente omisso relativamente às questões da dogmática jurídico-penal amplamente discutidos na sentença recorrida, pedindo apenas uma absolvição do arguido com base no erro de julgamento e nada mais – nem sequer invoca, subsidiariamente, inadequação ao nível da dosimetria das penas aplicadas, quer em termos parcelares, quer em termos de cúmulo jurídico).

3.2. SUBSUNÇÃO DOS FACTOS AO DIREITO

   3.2.1. Quanto ao crime de VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, diremos:
O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio (cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima);
No seu tipo objectivo, incluímos as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma - o actual crime de violência doméstica afigura-se complexo, abarcando uma multiplicidade de situações de facto, quer no que toca ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer no que toca aos específicos agentes que o podem cometer (agente ou sujeito activo), quer quanto aos específicos sujeitos que podem dele padecer (vítima ou sujeito passivo), quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias);
Este elenco de Maus-tratos – previsto no artigo 152º do CP - é exemplificativo (crime de execução não vinculada);
Tendo em conta a diversidade de condutas que estão previstas no típico crime de violência doméstica, tendemos aqui a concordar com Catarina Fernandes[7], quando afirma que a violência doméstica pode consubstanciar, tanto um crime de resultado (estando em causa, v.g., maus tratos físicos); como um crime de mera actividade (estando em causa, v.g., provocações e ameaças); como um crime de dano (estando em causa, v.g., privações de liberdade) ou como um crime de perigo (estando em causa, v.g., ameaças e humilhações);
Os maus-tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado («por regra não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime»);
Pese embora a supressão da distinção entre maus tratos reiterados e intensos, entende-se que um único acto ofensivo, sem reiteração, para poder ser considerado «Maus Tratos» e assim preencher o tipo do 152º, continua, hoje, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana (TUDO DEPENDENDO DO CASO CONCRETO)[8];
Exige o tipo um estado de agressão tendencialmente permanente (exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante);
Bastará então a fixação de balizas temporais que permitem assegurar ao agente o seu direito ao contraditório e ao processo equitativo (daí não se exigir a especificação das datas exactas de todas as agressões).
Também tem sido entendido, sendo muito elucidativo o Manual de Violência Doméstica CEJ/CIG, que o relator deste aresto coordenou enquanto Director-Adjunto do CEJ, que «as situações de VD envolvem, geralmente, mais do que uma forma de violência:
ü Violência emocional e psicológica: consiste em desprezar, menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos; criticar negativamente todas as suas ações, caraterísticas de personalidade ou atributos físicos; gritar para atemorizar a vítima; destruir objetos com valor afetivo para ela, rasgar fotografias, cartas e outros documentos pessoais importantes; persegui-la no trabalho, na rua, nos seus espaços de lazer; acusá-la de ter amantes, de ser infiel; ameaçar que vai maltratar ou maltratar efetivamente os filhos, outros familiares ou amigos da vítima; não a deixar descansar/dormir (e.g., despejando-lhe água gelada ou a ferver, passando um isqueiro aceso frente às pálpebras quando ela adormece, etc.), entre muitas outras estratégias e comportamentos.
As últimas estratégias referidas enquadram-se já nos domínios da ameaça e da intimidação, duas outras formas de violência frequentes que visam impedir a vítima de reagir aos abusos perpetrados pelo companheiro.
ü Intimidação: intrinsecamente associada à violência emocional-psicológica, consiste em manter a mulher vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e/ou contra os seus familiares e amigos (sobretudo filhos), a animais de estimação ou bens. O ofensor pode recorrer a palavras, olhares e expressões faciais, agitação motora, mostrar ou mexer em objetos intimidatórios (e.g., limpar a espingarda, carregar o revólver, afiar uma faca, exibir um bastão, dormir com armas à cabeceira da cama, ter armas na mão quando aborda sexualmente a sua companheira). Inclui-se também aqui a utilização dos filhos para a imposição de poder sobre a vítima (e.g., levar os filhos a humilhar a vítima; ameaçar que, em caso de separação, conseguirá afastar as crianças da vítima, ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone). Através destas estratégias, o agressor consegue manter a vítima sob domínio, na medida em que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acaba por viver submergida pela ansiedade e pelo medo.
ü Violência física: consiste no uso da força física com o objetivo de ferir/causar dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes - engloba atos como empurrar, puxar o cabelo, dar estaladas, murros, pontapés, apertar os braços com força, apertar o pescoço, bater com a cabeça da vítima na parede, armários ou outras superfícies, dar-lhe cabeçadas, dar murros ou pontapés na barriga, nas zonas genitais, empurrar pelas escadas abaixo, queimar, atropelar ou tentar atropelar, entre outros comportamentos que podem ir desde formas menos severas de violência física até formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade permanente ou mesmo a morte da vítima.
ü Isolamento social: resulta das estratégias implementadas pelo agressor para afastar a vítima da sua rede social e familiar, dado que uma vítima isolada é mais facilmente manipulável e controlável do que uma vítima com uma boa rede de apoio familiar e social. Estas estratégias consistem basicamente em proibir que a mulher se ausente de casa sozinha ou sem o consentimento do agressor, proibi-la, quando tal é economicamente viável, de trabalhar fora de casa, afastá-la do convívio com a família ou amigos - seja por via da manipulação (“estamos tão bem os dois, para que precisas de mais alguém...”., “o teus pais não gostam de mim”...), seja por via da ameaça à própria ou a terceiros significativos, caso a vítima mantenha contactos sem a sua autorização. Por sua vez, a própria vítima acaba por se afastar dos outros, quer por vergonha da situação de violência que experiencia ou de eventuais marcas físicas visíveis resultantes dos maus tratos sofridos, quer por efeito das perturbações emocionais e psicossociais produzidas por situações de VD/VC continuada, como mais à frente será referido.
ü Abuso económico: associado frequentemente ao isolamento social, é uma forma de controlo através do qual o agressor nega à vítima o acesso a dinheiro ou, mesmo, a bens de necessidade básica (como alimentos, aquecimento, uso dos eletrodomésticos para cozinhar, etc.). Mesmo que a vítima tenha um emprego, a tendência é para não lhe permitir a gestão autónoma do vencimento, que é cativado e usado pelo agressor. Passa também por estratégias de controlo da alimentação e da higiene pessoal (da vítima e, por vezes, também dos filhos), como manter o frigorífico, armários ou dispensas fechados com cadeados, esconder as chaves de diversos compartimentos da casa, controlar as horas a que o aquecimento geral/local ou um esquentador ou cilindro pode ser ligado, manter aquecida apenas uma divisória da casa, na qual apenas o agressor pode entrar/permanecer, bloquear telefones, impedir a ida sozinha a supermercados ou cafés.
ü Violência sexual: toda a forma de imposição de práticas de cariz sexual contra a vontade da vítima (e.g., violação, exposição a práticas sexuais com terceiros, forçar a vítima a manter contactos sexuais com terceiros, exposição forçada a pornografia), recorrendo a ameaças e coação ou, muitas vezes, à força física para a obrigar. Outros comportamentos, como amordaçar, atar contra a vontade, queimar os órgãos sexuais da vítima são também formas de violência sexual. A violação e a coação sexual são alguns dos crimes sexuais mais frequentemente praticados no âmbito da VD mas que muitas das vítimas, por força de crenças erróneas, valores e mitos interiorizados, acabam por não reconhecer como tal, achando, incorretamente, que “dentro do casal não existe violação”, que são “deveres conjugais” ou “exigências naturais” do homem. A violência sexual engloba também a prostituição forçada pelo companheiro».
No nosso caso, o tribunal entendeu que a factualidade apurada consumava o crime de violência doméstica.
Argumenta assim (em transcrição):
«No que concerne a CC, resultaram provadas condutas que consubstanciam violência verbal e emocional do arguido para com a ofendida, num contexto de inferioridade relacional desta última que numa imagem global do facto revelam um elevado desvalor de ação e resultado, como por exemplo:
  • o arguido foi dificultando que a ofendida trabalhasse;
  • o arguido foi controlando os contactos da ofendida, quer nas redes sociais quer no telemóvel;
  • controlava quem olhava para a ofendida e o modo como a mesma se vestia;
  • Apesar de lhe dar dinheiro, controlava o modo como a mesma o podia gastar
  • o injuriou por diversas vezes a ofendida, apresentado diversas vezes ideias até humilhantes: “és uma mulher da vida, um macaco vindo das árvores em África; durante atos sexuais dizia “deixa de ser esquisita que as pretas todas gostam disto”, etc;
  • o não facilitava a vida da ofendida, obrigando-a de forma humilhante a um dia a dia mais difícil, não a auxiliando no transporte para trabalho na ...;
Tudo condutas, que no seu conjunto e ao longo do tempo que durou o relacionamento, puseram em causa a dignidade da ofendida, sobretudo no ano final de relacionamento, e diminuíram a sua auto-estima, humilharam-na, num ambiente de inferioridade relacional da ofendida tudo conforme provado 1 a 36 pelo que estão reunidos os elementos objetivos do tipo matricial do crime de violência doméstica do art. 152.º, nº1 do CP.
Também quanto à ofendida AAA, vejamos se está verificada a agravação prevista no n.º2 do art. 152.º do CP.
A agravação imputada, em abstrato, reconduz-se a uma homenagem à ideia de que os factos são tanto mais graves quanto praticados em frente a crianças cuja formação de personalidade ainda está a decorrer ou quando praticados num domicílio comum que a ação do agressor “é favorecida pelo confinamento da assistente e ao espaço de domicílio e pela inexistência de testemunhas” – cfr, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao Código Penal, Universidade Católica Editora, p. 406.
Ora, no caso dos autos, provou-se que o arguido praticou os factos, por variadas vezes em frente menores de idade e na casa de morada de família (estando assim preenchido o n.º 2 al. a) do art. 152.º do Código Penal).
Assim, é inequívoco que as várias condutas descritas e dadas como provadas, são suficientemente densificadoras do atentado à dignidade da ofendida num contexto relacional de inferioridade, estando-se assim perante maus-tratos para os efeitos do presente tipo legal de crime.
Assim, têm-se por verificados os elementos típicos objetivos do crime em análise quanto à ofendida CC.
Já quanto ao elemento subjetivo, o crime em apreço é um crime doloso (art. 14.º do CP) e implica o conhecimento correto da identidade e características da vítima. Ora, o arguido, face aos factos provados n.º 37 a 40 e 43, 44 praticou as referidas condutas na modalidade mais grave de culpa: o dolo direto (cfr. art. 14.º, n.º1 do Código Penal).
Tendo-se os factos em análise por subsumidos aos elementos típicos objetivos e subjetivos do crime, e inexistindo causas que possam justificar a sua conduta, conclui-se assim que o arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada o crime de violência doméstica na forma agravada p. e p. pelo disposto no art. 152.º, n.º 1 e n.º 2 al. a) do Código Penal».
           
Totalmente de acordo, acrescentando-se apenas que as alíneas aplicáveis do nº 1 do artigo 152º serão as b) e c) [e nunca a) como, aliás, surge na acusação, pois nunca houve casamento entre arguido e assistente].
De facto, os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.
É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade.
Por via do quadro legal, estas acções ilícitas mantêm-se mas perdem autonomia, e daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica.
Mas uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.
Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa (acórdão da Relação de Lisboa de 5/7/2016, Processo nº 662/13.9GDMFR).
Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.
Aqui chegados, diremos que o crime de violência doméstica, pelo menos de forma residual, constitui também um crime específico próprio, justificando a subsunção de algumas condutas que não encontrariam tutela em sede dos demais tipos de crime previstos no nosso Ordenamento.
Neste aspecto, Taipa de Carvalho destaca, “situações de maus tratos psíquicos (como, p. ex., humilhações, ameaças não abrangidas pelo art. 153º, ou o chamado “assédio moral”) que, embora possam in se não configurar uma autónoma infracção”, podem configurar, “quando reiteradas, um mau trato psíquico abrangido pela ratio e pela letra do art. 152º”.
Nestes casos, é, portanto, “a especial relação – que, no presente ou no passado, existe ou existiu entre o agente a vítima – que fundamenta a ilicitude e a punição do agente”.
Também Nuno Brandão fala de microviolência continuada, onde «a opressão de um dos (ex-) parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação» (cfr. Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno - Manual pluridisciplinar CEJ/CIG, 2ª edição, 2020, Coordenação de Paulo Guerra e Lucília Gago).
Em termos subjectivos, caracterizou o tribunal o dolo do arguido como directo.
Damos, pois, o nosso acordo à subsunção jurídica feita pelo tribunal recorrido, assente que estamos muito longe de considerar, como o faz a defesa, que estes comportamentos não têm dignidade penal, antes a tendo à luz da análise global da atmosfera que se foi vivendo entre este homem e esta mulher, toxica q.b., devido a comportamentos atribuídos ao elemento masculino do casal.
Invoca-se, em termos meramente enunciativos, no artigo 91º da motivação – e note-se que nem sequer aí se tenta discutir a sua aplicação ao caso vertente -, um aresto da Relação do Porto, datado de 13/1/2021, onde se descaracteriza a conduta de um agente por se entender que as circunstâncias concretas da prática de injúria, difamação e ameaça em apreço nesses autos não permitia qualificar a prática dos autos como de maus tratos psíquicos, a ponto de subsumir a sua prática ao do crime do artigo 152º do CP.
Mas esse aresto configura uma situação muito diversa da nossa.
Aqui podemos afirmar que a conduta do arguido representa um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica. E provocou, por outro lado, danos na saúde psíquica da vítima (cfr. facto provado nº 45).
Logo, segundo os critérios acima expostos, estaremos perante um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do CP, tendo como vítima a sua ex-companheira.
E diga-se que a violência doméstica tem de continuar a ser tipificada em tantos casos como este em que, embora inexistindo agressões físicas, convivem comportamentos ilícitos degradantes por parte de homens que tudo fazem para diminuir as parceiras ao nível do «objecto», vilipendiando-as no seu ânimo e na sua auto-estima.

3.2.2. QUANTO AO CRIME DE VIOLAÇÃO
O tribunal, no caso, entendeu, com base nos factos apurados (e não houve aqui qualquer alteração de factos[9], tendo e muito bem, caracterizado esta convolação como sendo uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos, a ter tratamento idêntico a uma alteração não substancial de factos, à luz do artigo 358º, nº 3 do CP, cumprindo eficazmente o disposto no nº 1 de tal preceito, não tendo, pois, a defesa sido surpreendida por esta convolação, mercê do facto de ter a ela respondido por requerimento com a referência nº 43735456), que o arguido cometeu, de forma autónoma, um crime de violação, p e p. pelo artigo 164º, nº 1, alínea b) e nº 3 do CP, em trato sucessivo.
Damos o nosso pleno assentimento a esta decisão dogmática, face ao teor dos factos provados nºs 14, 15, 37, 38, 39 e 44, entendendo nós que:
· existe uma relação de concurso efectivo de crimes[10], a ser punido nos termos do artigo 77º do CP, entre o crime de violação e o crime de violência doméstica, não apenas porque constituem crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, mas ainda porque, no caso dos autos, os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciada e foram autonomizados, como tal, na sentença;
· Atento o teor do facto provado nº 14, com indeterminação do número de vezes em que ocorreu tal acto sexual não consentido, é curial ter-se aplicado a doutrina do trato sucessivo, à partida pouco ou nada vocacionado para os crimes sexuais, à luz do princípio do «in dubio pro reo», tal como opina Helena Moniz no seu artigo «Crimes de trato sucessivo (?)[11]», publicado na Revista JULGAR online, em Abril de 2018.
 
3.2.3. QUANTO AO CRIME DE QUE FOI VÍTIMA O FILHO DO ARGUIDO E DA ASSISTENTE

Com base nos factos provados nºs 25 a 28, 41, 42 e 43, o tribunal condenou o arguido, não pela prática de mais um crime de violência doméstica[12], na pessoa do filho, mas pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo disposto nos artigos 143º e 145º, nº 1, alínea a) e 132º, nº 2, alíneas a) e c) do CP (delito de natureza pública), o que é perfeitamente correcto face, sobretudo, à não prova do facto o).
Este homem agrediu o seu filho de forma absolutamente injustificada e grosseira.
Estamos a falar de uma criança com 3 anos que se limitou a bater com as mãos na mesa.
E aqui defendemos veementemente a tese segunda a qual a educação de uma criança não pode nunca passar pelo recurso ao castigo físico.
Disserta assim o acórdão da Relação do Porto de 16/12/2020 (Pº 3204/15.8T9MAI.P1):
«Atualmente, o Código Civil (redação do DL 496/77, de 25/09) designa a relação entre pais e filhos por responsabilidades parentais (art.º 1877.º e ss.) cujo conteúdo é definido, essencialmente nos art.ºs 1878.º e 1885.º, como assistencial e educacional e não corretivo.
Maria Clara Sottomayor, pronunciando-se pela substituição do poder de correção pela educação, refere que “a educação substitui a correção, tendendo a diluir-se a tradicional distinção entre o adulto e a criança, que inferiorizava a criança em relação aos adultos” (…) “O direito dos pais educarem os filhos não abrange o direito de os agredir, de ofender a sua dignidade, integridade física e psíquica ou liberdade”.
Por outro lado, existe inequivocamente uma diferença de grau elevado entre uma relação como a da arguida com as crianças identificados nos autos, e a relação educativa entre os pais e as crianças seus filhos, quer essa diferença advenha da responsabilidade dos pais, pela grande proximidade existencial com os seus filhos; quer do afecto que une [ou é suposto que una] uns aos outros; quer mesmo do reconhecimento que decorre do artigo 29º da Convenção dos Direitos da Criança onde se despõe expressamente que “a educação deve inculcar [entre outros] o respeito pelos pais.”; quer mesmo pelo facto de a família ser reconhecidamente o primeiro pilar da educação das crianças.
Diferença que não pode deixar de estar patente nas diferenças entre os tipos de ilícito previstos no artigo 152º e 152º A. do CP.
A posição da recorrente não leva em conta a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, em cujo preâmbulo se reafirma “o facto de as crianças, devido à sua vulnerabilidade, necessitarem de uma protecção e de uma atenção especiais, e sublinha de forma particular a responsabilidade fundamental da família no que diz respeito aos cuidados e protecção. Reafirma, ainda, a necessidade de protecção jurídica e não jurídica da criança antes e após o nascimento, a importância do respeito pelos valores culturais da comunidade da criança, e o papel vital da cooperação internacional para que os direitos da criança sejam uma realidade”.
Sendo que nos termos do artigo 29 da Convenção, já acima mencionado, “A educação deve destinar-se a promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas, na medida das suas potencialidades. E deve preparar a criança para uma vida adulta activa numa sociedade livre e inculcar o respeito pelos pais, pela sua identidade, pela sua língua e valores culturais, bem como pelas culturas e valores diferentes dos seus».
Também o aresto da Relação de Lisboa, citado na decisão recorrida (Pº 413/15.3PFAMD.L1-3) é claro:
«Entendemos igualmente, conforme plasmado em muitos documentos produzido no âmbito da Unicef, que, ante as práticas ainda massivas de castigos corporais no âmbito dos deveres de educação, e para mudar este estado de coisas, urge criar uma cultura de não violência para com as crianças, e de construção de uma barreira de consciencialização social e individual que afirme ser totalmente inaceitável em qualquer circunstância os adultos expressarem a sua vontade ou as suas frustrações na linguagem da violência.
Alguns Estados têm, aliás, leis que proíbem expressamente a agressão a crianças.
O que se nos afigura, de iure constituendo, uma solução sensata já que o peso dessas palavras, i. e, dessa autonomização típica, por sugerir uma específica representação, transmitiria, de modo mais claro e assertivo, a mensagem de que castigos corporais não são aceitáveis, e, simultaneamente, seria mais eficaz em criar no imaginário colectivo, a ideia de que existem outras formas alternativas de educar. Este seria, pois, o primeiro passo para criar na consciência jurídica colectiva, incluindo em franjas pautadas pela iliteracia em geral, uma nova necessidade, qual seja, a de procurar informação acerca dessas “outras” formas alternativas.
Em segundo lugar, e não obstante o que vimos defendendo “de iure constituendo”, entendemos que, estando em causa uma reflexão no domínio da culpa, a ponderação a fazer deve cingir-se ao contexto psicológico do arguido e à exigibilidade de o mesmo ter actuado de outra forma.
Ora, tais práticas ainda massivas e que, como vimos, não são rejeitadas unanimemente pela jurisprudência nem por toda a doutrina, jurídica ou da lavra de outras ciências sociais, sendo que resultam da transmissão geracional desses comportamentos. Até porque, criança maltratada tende a, como adulto, infligir maus-tratos (v. com interesse, nesta matéria, “Direitos das Crianças e Jovens – Actas do Colóquio”, ISPA/CEJ, pags. 228 a 233, e Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, Porto, Rés Editora, 1984, pg. 303)».
Apesar de múltiplos acórdãos referirem o poder-dever de correcção como parte das responsabilidades parentais, a reforma de 1977 do Código Civil eliminou o “poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas”.
Ou seja, desde 2017,  o castigo físico das crianças também é punido pelo Código Penal, seja pelo crime de violência doméstica ou de maus tratos (artigo 152º) ou de ofensa à integridade física (artigos 143º e 145º).
A nível europeu, a pressão para a abolição dos castigos corporais já vem sendo feita há décadas e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, o principal instrumento jurídico desta temática, proíbe todas as formas destas punições nos artigos 19º e 37º.
Em todo o mundo, 63 Estados já proibiram estes castigos — em 2021, juntaram-se à lista a Coreia do Sul e a Colômbia.
Lado a lado com Portugal, também Espanha, Nova Zelândia, Países Baixos, Togo, Uruguai e Venezuela proibiram esta forma de violência em 2007. Já nos Estados Unidos, por exemplo, ainda é permitido este tipo de castigos em casa e, em 19 estados, não foram banidos nas escolas. O direito de os pais infligirem punições nos filhos não se enquadra legalmente em violência e maus tratos neste país, segundo a plataforma internacional dedicada ao tema End Corporal Punishment.
Numa palavra:
A partir do momento em que reconhecemos a criança como um sujeito de direitos, o sujeito de direitos não deve ser educado dessa forma violenta, devendo a violência ser eliminada das relações entre as crianças e os adultos.
Logo, o poder de correcção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal em Portugal de onde se possa retirar tal conclusão (Portugal aparece como um dos países[13] que alterou a sua legislação tendo em vista o respeito pelos direitos da criança e a abolição dos castigos corporais).
.Os castigos corporais não são permitidos em caso algum e podem constituir uma forma de maltrato e configurar situações de perigo que legitimem a intervenção do sistema de protecção de crianças previsto na Lei de Promoção de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.
No fundo, bater numa criança não passa de “um acto de humilhação” e de uma enorme “falha do adulto”, na douta palavra de Catarina Ribeiro, psicóloga forense.
Portanto, esta agressão dos nossos autos é ilegítima.
E mesmo para a tese daqueles que defendem a possibilidade de algum castigo físico por força de um dever de correcção parental [a justificar, para essa tese, o uso do artigo 31º, nº 2, alínea b) do CP], nem sequer existiu qui qualquer intenção de corrigir uma atitude que não se tem por desrespeitosa por parte desta criança de tenra idade.
Só pode ser, assim, condenado pelo delito em causa, assente que, como entendeu o tribunal:
«Acresce que para existir crime de ofensa à integridade física na sua forma qualificada (art. 145.º, n.º 1 al. a) e 132.ºn.º 2 als. a) e c) do C.P.) e estando a especial censurabilidade da ofensa aferida por referência aos exemplos padrão das als. e) e h) do art. 132.º, n.º2 do CP, importa lembrar que estatuem tais normas que: “2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) ser (…) ascendente (…) da vítima; c) praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade (…);
Ora, regressando aos autos, importa concluir que o arguido, baixou as calças e as cuecas ao filho, e desferiu-lhe, com força, várias palmadas no rabo, tendo BB ficado a chorar e, durante alguns dias, com marcas das mãos nas nádegas.
Assim, não deixou o arguido de ofender a integridade física do seu filho, pessoa com idade bastante inferior à sua (recordemos que tinha 3 anos de idade) e sobre o qual tem o arguido tem o ascendente inerente a ser pai do mesmo, sendo especialmente censurável que o tenha feito numa criança de tal idade, tendo para tanto baixado as caças e cuecas do mesmo (assim infligindo deliberadamente mais dor) e ao ponto de deixar marcas das mãos nas nádegas por alguns dias.
E fê-lo com dolo direto (art. 14.º, n.º1 do CP) – factos provados n.ºs 41 a 44».

3.2.4. SOBRE A MEDIDA DA PENA

3.2.4.1. Do elenco dos factos provados só pode concluir-se como se concluiu e bem, pela sentença recorrida, que os mesmos integram a prática de:
§ NA PESSOA DA ASSISTENTE CC:
o um crime de violência doméstica, p. e p. pelos pelo artigo 152º, nºs 1, alínea b)[14] e c), 2, alínea a), 4 e 5 do CP;
o um crime de violação de trato sucessivo, p. e p. nos termos do artigo 164º, nº 1, alínea b) e nº 3 do CP;
§ NA PESSOA DA CRIANÇA BB:
o um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo disposto nos artigos 143º e 145º, nº 1, alínea a) e 132º, nº 2, alíneas a) e c) do CP.
E foi o arguido condenado nas seguintes penas parcelares:
§ 3 anos de prisão pelo crime de violência doméstica:
§ 1 ano e 6 meses pelo crime de violação;
§ 6 meses de prisão pelo crime de ofensas na pessoa do filho.
Em cúmulo jurídico, encontrou-se uma pena de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução durante o mesmo período, condicionada tal suspensão à frequência de um programa para autores de crimes em contexto de violência doméstica e à obrigação de não contactar a assistente por dois anos [cfr. artigos 50º, nº 2 e 52º, nº 1, alíneas b) e c) do CP].
A defesa não se pronuncia, mesmo que subsidiariamente, sobre tal medida de pena.
Assim sendo, não teremos de directamente abordar a questão, não deixando de se anotar que se valida tal pena, tida por justa e adequada.

3.2.4.2. O mesmo se diga quanto ao pedido de indemnização cível, também agora validado por nós.

3.3. Se assim é, naufraga em absoluto este recurso, só havendo que confirmar a sentença recorrida, assente que não temos por violadas as normas mencionadas no recurso.

3.4. Em sumário, diremos:
1. O factor decisivo para a verificação do crime de violência doméstica é a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.
2. A violência doméstica tem de continuar a ser tipificada em tantos casos em que, embora inexistindo agressões físicas, convivem comportamentos ilícitos degradantes por parte de seres humanos que tudo fazem para diminuir o/as parceiro/as ao nível do «objecto», vilipendiando-o/as no seu ânimo e na sua auto-estima.
3. Se a conduta típica integrar vários actos dos quais apenas um se subsume a crime mais gravemente punido, existe uma relação de concurso efectivo de crimes, a ser punido nos termos do artigo 77º do CP, entre o crime de violação e o crime de violência doméstica, não apenas porque constituem crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, mas ainda porque os factos relativos a cada um dos crimes são dotados de unidade de sentido social diferenciado e foram autonomizados, como tal, na sentença.
4. Perante a indeterminação do número de vezes em que ocorreu um acto sexual não consentido, é curial ter-se aplicado a doutrina do trato sucessivo, à partida pouco ou nada vocacionado para os crimes sexuais, à luz do princípio do «in dubio pro reo».
5. A partir do momento em que reconhecemos a criança como um sujeito de direitos, este último não deve ser educada de forma violenta, devendo a violência ser eliminada das relações entre as crianças e os adultos.
6. Logo, o poder de correcção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal em Portugal de onde se possa retirar tal conclusão.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: 
· A)- em corrigir a sentença, na parte do Dispositivo, ao abrigo do artigo 380º, nº 2 do CPP, no seguintes termos:
· Onde se lê: «um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelos artigos 14º, nº1 e 152º, nº 1, al. a) e d), nº 2, al. a), nº 4 e 5, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão,
· Dever-se-á ler: «um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelos artigos 14º, nº1 e 152º, nº 1, al. b) e c), nº 2, al. a), nº 4 e 5, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão»;
· B)- em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].
Coimbra, 12 de abril de 2023
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro
Adjunto: Cristina Pêgo Branco



[1] E não «II», como por lapso surge na acta de 22/9/2022.
[2] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[3] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).


[4] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.
Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.
Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.
Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.
Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.
No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.
Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».
[5] Como bem escreve André Teixeira dos Santos no artigo «A imparcialidade do juiz do julgamento», publicado na recentíssima Revista do CEJ 2021-I, «a legitimidade da sentença penal assentará, pois, no facto de emanar do órgão jurisdicional competente, num processo equitativo e em que foram asseguradas todas as garantias de defesa. A fundamentação da sentença desempenhará, por conseguinte, a dupla função de conferir transparência à decisão, afastando o arbítrio do julgador, e de possibilitar o controlo da sua bondade, tanto pelas instâncias superiores de recurso como pela sociedade — função de convencer».
[6] Conforme refere Germano Marques da Silva, «é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável.
Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica da entidade que a afere. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos a inferência feita maior ou menor eficácia probatória».
[7] Cfr. E-book CEJ/CIG «Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar (2.ª edição)», coordenado pelo relator deste acórdão, enquanto Director-Adjunto do CEJ (2020). 
[8] Seguimos de muito perto a tese que conclui pela inexistência de uma diferença de natureza substancial entre a violência pressuposta pelo tipo do artigo 152º e a pressuposta pelos tipos base que não se paute pela adição do elemento relacional típico (posição de Maria Elisabete Ferreira – “O Crime de Violência Doméstica Na Jurisprudência Portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Professor Costa Andrade, Vol. I, Direito Penal (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e que constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9º do CC, do tipo de crime previsto no artigo 152º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal.
Defende a autora que o legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica.
Da tutela reflexa de tal bem jurídico resultaria, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma.
A solução punitiva diferenciada do crime base e do crime de Violência Doméstica resultaria do diferente juízo de danosidade social de uma ofensa à integridade física praticada entre dois estranhos (violência interpessoal entre dois estranhos) e a praticada no seio de relações familiares, parafamiliares, emocionais ou de coabitação.
Arredando, desde modo, o apelo a quaisquer critérios extra-típicos de destrinça entre a violência interpessoal e a intrafamiliar, como o das relações de imparidade (Inês Ferreira Leite), a aferição casuística de uma quebra de relação de confiança (Teresa Morais), a susceptibilidade de a acção colocar em causa a dignidade humana ou o livre desenvolvimento da personalidade no contexto relacional pressuposto (Taipa de Carvalho, Nuno Brandão, André Lamas Leite), admitindo que uma ofensa simples praticada em tal contexto relacional, ainda que isolada, integre sem mais indagações, o crime de Violência Doméstica.
Entendemos que, ao nível da carga ofensiva pressuposta e da natureza do bem jurídico tutelado, inexiste qualquer destrinça substancial entre o tipo de violência doméstica e aqueloutros bens tutelados por tipos adjacentes que protejam bens jurídicos pessoais cuja lesão seja instrumentalmente susceptível de fazer perigar a saúde psicofísica da vítima, entendendo que a maior carga de ilicitude material subjacente ao programa legal de combate ao fenómeno da Violência Doméstica se alicerça, exclusivamente, no tipo de relação que intercede entre agente e vítima, não havendo, ao nível interpretativo, de lançar mão, pois, de quaisquer critérios extra-típicos para aferir da subsunção de uma dada conduta violenta ao tipo do artigo 152º, nº 1.
Tal posição, em nosso entendimento, e na linha do opinado no referido Manual CEJ-CIG, «terá a virtude de conferir maior segurança e homogeneidade na aplicação do direito, afastando a margem de incerteza e insegurança que hoje abunda e traduzida na prática generalizada de desqualificação inopinada de atos de violência doméstica em crimes de natureza diversa, muitas vezes de natureza semipública».
[9] O artigo 359º do CPP reporta-se à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, tendo sofrido relevantes alterações com a revisão introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, estabelecendo a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis.
Salienta o STJ, em acórdão de 21 de Março de 2007 (processo 07P024, www.dgsi.pt):
«Alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa.
É este o sentido da definição constante do artigo 1º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal para “alteração substancial dos factos”, que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
Sobre o alcance do conceito de “alteração substancial dos factos” pronunciou-se também a Relação do Porto, em acórdão de 23 de Maio de 2007 (processo 0513936, www.dgsi.pt), nos seguintes moldes:
«Fixemo-nos na imputação de crime diverso.
Como se referiu, o objecto do processo, melhor diríamos, da acusação, que vincula tematicamente o tribunal, é constituído por aquele facto naturalístico que se discute, situado no passado, com a sua identidade, imagem e valoração social, que viola bens jurídicos penalmente tutelados, e por cuja prática o agente é alvo de censura.
No conceito há uma relação dialéctica entre facto e crime.
Por outro lado, nos termos do n.º 4 do art.º 339.º, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação; os factos alegados pela defesa; os factos que resultarem da prova produzida em audiência; as soluções jurídicas pertinentes, em obediência ao princípio da verdade material.
Tendo a discussão da causa esta amplitude, pode acontecer que:
a) Da discussão da causa resulte adição ou modificação dos factos constantes da acusação, sem intervenção da entidade acusadora;
b) O arguido não tenha oportunidade de se defender de todos os factos apurados, violando-se o princípio que lhe consagra todas as garantias de defesa.
Ora, conhecido o conceito de facto e a sua relação dialéctica com o tipo legal; conhecido o thema decidendum; conhecido o objecto do processo; e conhecidas ainda as razões porque não pode ser modificado o objecto do processo, cremos estar em condições de encontrar critérios que nos permitam afirmar se há ou não alteração substancial dos factos.
Cremos poder afirmar que se imputa ao arguido um crime diverso quando:
1. Da referida adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo;
2. Da referida adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social;
3. Da referida adição ou modificação dos factos resulte a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade.
O critério normativo – é disso que se trata – encontrado só fica completo quando se fizer a previsão das situações em que o arguido não teve oportunidade de se defender dos novos factos, com relevância jurídico-penal.
Assim, importa acrescentar que, para efeitos de alteração substancial dos factos, imputa-se ao arguido um crime diverso quando:
4. O arguido não teve oportunidade de se defender dos “novos factos”, não sendo estes meramente concretizadores ou esclarecedores dos primitivos.
Nos termos da 2ª parte da alínea f) do n.º 1 do art.º 1º, estamos ainda perante uma alteração substancial dos factos quando:
5. Por força da modificação ou aditamento de novos factos, resulte o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis ao arguido (…)».
Quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas sejam relevantes para a decisão, a alteração deverá ser considerada não substancial e o seu conhecimento pressupõe, por isso, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º, n.º1, do CPP.
Diga-se ainda que a lei fulmina com nulidade a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts 358º e 359º do CPP [art. 379º, nº 1, b), do mesmo código].
Ora, no nosso caso, NÃO HÁ FACTOS NOVOS, caindo nós na alçada do nº 3 do artigo 358º, cumprido que foi o mecanismo aí previsto (mesmo que se impute ao arguido um novo delito, mas com base nos rigorosos mesmos factos constantes da acusação).
[10] Aqui coloca-se a seguinte questão: nesta hipótese de a conduta típica integrar vários actos dos quais apenas um se subsume a crime mais gravemente punido, há concurso heterogéneo aparente ou efectivo? 
Reconduzimos aqui a discussão ao teor do Manual de Violência Doméstica, elaborado pelo CEJ/CIG em 2020, no qual se opina, com a nossa inteira concordância, o seguinte:
«No caso de pluralidade de atos recondutíveis ao Crime de Violência Doméstica e sendo um dos atos integrador de um crime mais severamente punido, importa ainda indagar se, mercê da operacionalidade da cláusula de subsidiariedade expressa geral, deverá punir-se apenas o agente por um único crime mais grave ou se, pelo contrário, deverá o agente ser punido, em concurso efetivo heterogéneo, pelo crime de Violência Doméstica e pelo crime mais grave.
Ana Maria Barata de Brito aborda expressamente a referida matéria, circunscrevendo a solução por si propugnada de concurso efetivo entre a Violência Doméstica e o crime mais grave aos casos em que, inicialmente, se parta de uma situação de concurso efetivo homogéneo. Ou seja, àqueles casos em que o ato mais gravoso possa ser destacado da restante conduta mercê do funcionamento dos critérios já acima referidos para efeitos de aferição da multiplicidade de sentidos globais-finais de ilicitude.
Conclui esta autora, nestes casos, “considerar como um erro a punição de um agente infrator por um só crime de violência doméstica ou por um só crime mais grave que com este se apresente em concurso indevidamente tido como aparente, quando ele, ao longo de certo período de tempo - curto ou longo, não interessa - insulta, agride, persegue, priva de liberdade, viola, e por vezes mata ou tenta matar a vítima, e, não fora essa especial relação de afeto ou de proximidade existente entre esse agente e a vítima, teria sido esse autor condenado por vários crimes (de injúria, de ofensa à integridade física, de perseguição, de sequestro, de violação, de homicídio) em concurso efetivo”. 
No mesmo sentido de Ana Maria Barata de Brito, Inês Ferreira Leite pugna por uma solução de concurso efetivo entre o crime de Violência Doméstica e a o crime mais severamente punido: “No entanto quando algum dos actos isolados permita a verificação do tipo social de um crime mais grave (…) deverá ser punido em concurso efetivo com os crimes de violência doméstica (…) sempre que, para além dos actos isolados, tenham ocorrido reiterados ataques à saúde da vítima (…) A subsidiariedade verifica-se apenas quando se trate de um acto isolado gravoso - por haver unidade normativa-social - devendo então prevalecer o tipo com a moldura mais abrangente”.
Trata-se aqui dos casos em que uma das condutas isoladamente considerada seja, por si só, suscetível de ser qualificada como violência doméstica e como outro crime mais severamente punido - como sejam os crimes de violação (apenas a modalidade do artigo 164º/1),
Na prática judiciária tem-se assistido a algumas soluções interpretativas que, fazendo uso da cláusula de subsidiariedade expressa geral, afastam automaticamente, sem qualquer juízo material, o tipo do artigo 152º, aplicando apenas a pena do crime mais severamente punido.
Tal solução, na perspetiva de Ana Maria Barata de Brito, a que aderimos, descura a proteção dos bens jurídicos comportando um benefício absolutamente injustificado para o agressor: “Creio que a identificação e o tratamento jurídico adequado do concurso homogéneo na violência doméstica acautelará o efeito perverso e contra legem do benefício do infrator, garantindo a razão de ser da incriminação, que é o aumento de protecção da vítima e a tutela reforçada do bem jurídico”.
Importará, todavia, tal como expressamente faz notar Ana Brito, aferir se podemos, num primeiro momento, cindir a conduta numa pluralidade de atos de Violência Doméstica com autonomia suficiente para efeito de prévia aferição da verificação de uma situação de concurso homogéneo de crimes de Violência Doméstica.
Ou seja, não estaria o aplicador do direito avalizado para destacar da unidade criminosa o ato mais gravoso para, depois, punir em concurso efetivo heterogéneo o agente pela prática de ambos crimes: o de Violência Doméstica e o do crime mais grave.
Não parece, todavia, ser essa a leitura de Inês Ferreira Leite segundo a qual, julgamos, seria possível “destacar” de tal pretensa unidade criminosa o ato mais grave, considerando como fator de cisão da unidade normativa-social do tipo de Violência Doméstica uma alteração significativa da gravidade punitiva dos atos de violência praticados no curso da conduta plural do agente.
Na ótica de Inês Ferreira Leite, apenas existirá relação de subsidiariedade expressa (concurso aparente com aplicação da norma que preveja punição mais severa) caso se verifique uma unidade normativa social do facto, quando, nomeadamente, os maus tratos se reduzam a um ato de maus tratos isolado com gravidade. Já se a conduta se protelar no tempo e se, no curso desse período se verificar um ato mais gravoso, que quebre tal unidade normativa-social, haverá concurso efetivo entre a Violência Doméstica e o tipo legal mais gravoso, já que ambos os tipos foram preenchidos pela conduta do agressor, e nenhum dos tipos, de per se, esgota o desvalor do ilícito do outro, sendo possível determinar a medida das respetivas penas sem incorrer na violação da proibição da dupla valoração.
Tal solução de “destacamento” do ato mais gravoso acautelaria uma diversidade de tratamento a situações de igual desvalor do prisma do conteúdo de ilícito. Pensamos nos casos em que, por exemplo, uma ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145º, nº 1, al. c), seja perpetrada no curso de uma conduta duradoura de maus tratos e no contexto de um mesmo ciclo contextual de violência, entre outros atos menos graves, e, por outro lado, na mesma situação mas em que o ato mais severamente punido fosse o culminar, o ato último, desse mesmo ciclo contextual de violência. Só a esta última situação, na leitura que fazemos da posição de Ana Brito, seria possível defender uma relação de concurso efetivo entre a Violência Doméstica e o crime mais grave que a integre, porquanto na primeira situação considerada estaríamos ainda ante uma unidade criminosa e não ante um concurso efetivo homogéneo.
A solução propugnada por Inês Ferreira Leite, dir-se-á, choca frontalmente com o princípio da legalidade ante a cláusula de subsidiariedade expressa geral contida no artigo 152º, nº 1, do CP, nos moldes a que acima fizemos referência.
Ora, como supra fizemos referência, ao abordar a matéria da subsidiariedade expressa, tal resultado dependerá, uma vez mais, da conceção que se fizer da categoria da subsidiariedade, chamando novamente, nesta sede, à colação a posição de Cristina Líbano Monteiro.
Segundo o modo tradicional de entender as coisas, chama-se «subsidiariedade expressa» àquela categoria que engloba casos de «concurso aparente» criados pelo próprio legislador. Como se o legislador avisasse o intérprete: a tipificação deste comportamento serve apenas o propósito de que o mesmo não fique impune, nas hipóteses em que não for abrangido por outro tipo de maior gravidade, criando-se, assim, por via legal, uma reserva mínima de punição para um dado conteúdo de ilicitude.
Da perspetiva da valoração jurídico-penal, a conduta a que corresponde sanção mais pesada pode constituir crime que nada tenha em comum com o previsto na norma dita subsidiária; i.e., que não represente infração da mesma espécie, ofensiva do mesmo ou de similar bem jurídico.
E daí surge a questão porventura mais relevante e pertinente neste domínio, qual seja a de saber se a «cláusula de subsidiariedade» retira autonomia, sem mais, ao tipo em que está incluída ou se tal eficácia deve submeter-se a considerações de índole material.
A autora refere, fazendo apelo aos ensinamentos de Claus Roxin que, ao menos na literatura alemã, há notícia de três posições doutrinais, duas delas acompanhadas por jurisprudência do Tribunal Federal (BGH), quanto a tal questão.
(…).
Nas palavras de Roxin, «deve exigir-se, nas hipóteses de subsidiariedade geral, que o tipo de moldura penal mais grave proteja, ao menos parcialmente, o mesmo bem jurídico que o tipo subsidiário e, ainda, que a sua realização esteja tipicamente ligada à deste».
A doutrina e jurisprudência alemãs integram, na sua generalidade, a cláusula de subsidiariedade expressa, quando aceite como categoria autónoma, na categoria do concurso aparente e não na de unidade de lei.
Entre nós, como acima já referido, Figueiredo Dias continua a enquadrar a figura no âmbito do tradicional concurso de normas, mais concretamente na modalidade a que designa de “unidade de lei”, categoria do concurso (de normas) a resolver segundo critérios de relação lógico-formal entre normas. O autor remete assim para a lei a responsabilidade pela regra, abdicando de qualquer ‘análise material’ dos ilícitos subjacentes àquelas normas.
Luís Duarte d’Almeida e José Moutinho alargam os limites da questão, colocando-a para lá das fronteiras daquele: o problema de saber se a cláusula exprime real afastamento do tipo menos grave ou, pelo contrário, um simples afastamento da pena normal do concurso efetivo. A pergunta coloca-se assim: o legislador quis estabelecer uma verdadeira relação de subsidiariedade entre normas ou antes uma hipótese privilegiada de punição de um autêntico concurso de crimes[10].
A opinião generalizada da doutrina e da jurisprudência portuguesas vai, todavia, no sentido da qualificação da cláusula legal como um instrumento de «concurso aparente».
Dentro, todavia, desta posição comum que integra a cláusula de subsidiariedade expressa no domínio do concurso aparente há cambiantes, havendo visões mais formais ou mais materiais da categoria; de corte substantivo (relativo à própria identidade do facto) ou afetando apenas as consequências jurídicas do mesmo.
Eduardo Correia considerava, como acima referido, a categoria da subsidiariedade expressa inútil enquanto categoria de concurso aparente, «por ser evidente que nada se adianta com ela para o problema do concurso» (Eduardo Correia, A teoria do concurso, p. 145-146).
Refere Cristina Líbano Monteiro que só numa primeira leitura a posição do Professor Eduardo Correia se revelaria próxima da visão do Professor Figueiredo Dias que reconduz a questão a uma mera opção punitiva do legislador, à margem, portanto, do juízo próprio do concurso aparente: quer da lógica formal da relação de especialidade, quer da lógica valorativa própria da consunção.
Cristina Líbano Monteiro descarta tal possibilidade, porquanto a mesma não se coadunaria com um discurso teleologicamente orientado, com uma abordagem material das questões do direito dos crimes, defendendo, assim, que a posição de Eduardo Correia não dispensa a correcta análise de cada caso, prescindindo da norma dita subsidiária (a norma precludida) apenas quando, de um modo comprovado, o inteiro conteúdo de ilícito e de culpa da situação se mostrasse incluído no delito mais gravoso.
A pretensão legal contida na chamada «cláusula de subsidiariedade expressa» poderia traduzir-se, em diferentes palavras, segundo a autora, com um resultado equivalente ao que segue: «este tipo de ilícito perderá autonomia sempre que o conteúdo de antijuridicidade do caso pertença, sem resto, ao significado intrínseco de um outro preceito mais grave».
No quadro do «concurso de ilícitos» proposto pela autora e do consequente banimento da hipótese do «concurso de normas», a cláusula de subsidiariedade expressa pode ser entendida como um apelo da lei para que o intérprete atente no conteúdo e no sentido de antijuridicidade de cada comportamento. Quer dizer: como a expressão de uma vontade inequívoca, por parte do legislador, de não multiplicar o que é uno, mesmo quando, a um olhar formal, o caso pareça caber em vários preceitos.
Afinal, só deve punir-se ‘mais’ quando o inteiro desvalor de uma atuação não estiver já abrangido pelo significado intrínseco do tipo de ilícito preponderante. A «subsidiariedade expressa» limitar-se-á, assim, a enfatizar o critério material que há de presidir às operações concursais em direito penal.
Conclui a autora, uma vez transposto o raciocínio, do plano formal onde alguns o colocam, para o âmbito dos conteúdos ou sentidos de antinormatividade, nada garantir que o tipo dito «subsidiário» seja sempre preterido podendo até acontecer que deva acumular-se com a norma incriminadora mais gravosa.
Tal interpretação material da «cláusula de reserva» do tipo subsidiário propugnada por Cristina Líbano Monteiro imporia que, no caso, se ajuizasse qual o tipo que melhor captaria o conteúdo de ilícito e, ainda, se a sua efetiva aplicação satisfaria, ou não, as necessidades preventivas criadas pela conduta antijurídica.
Concluindo:
Parece, assim, salvo melhor opinião, que a posição doutrinal de Cristina Líbano Monteiro quanto à natureza da subsidiariedade expressa espalda, nalguns casos, a tese propugnada por Inês Ferreira Leite no domínio do concurso efetivo heterogéneo entre o crime de Violência Doméstica duradouro e um crime com punição mais severa que integre tal duração quando não se possa considerar o conteúdo do ilícito objetivo e subjetivo do primeiro inteiramente recondutível ao tipo mais gravemente punido e este não surja como um ato tipicamente ligado à realização do tipo subsidiário».
[11] Excluindo o entendimento de que os crimes como o de abuso sexual de menor ou o crime de violação sejam crimes de múltiplos atos, excluindo que sejam crimes de atentado ou empreendimento (em que há uma equiparação entre a tentativa e a consumação), excluindo que haja lugar a uma unificação das diversas resoluções numa unidade resolutiva, excluindo que possam ser subsumidos à figura do crime continuado, fica apenas a possibilidade da punição de cada ato sexual de relevo realizado, com todas as dificuldades que se possam encontrar, nomeadamente, de prova.
Na verdade, há (ou pode haver) alguma dificuldade em determinar de forma exata todos os factos que estiveram na base do abuso sexual. É muitas vezes difícil provar se os atos foram praticados todas as semanas, ou todos os dias, ou todos os meses, e ainda provar o início e o fim da prática de tais atos. E por isso, não raras vezes, se dá apenas como provado que o arguido, entre o período x e y, por diversas vezes, mas não menos que duas por semana, por exemplo, ou num número
de vezes superior a 4 por semana, por exemplo, praticou aqueles atos; ou seja, não se determinam com rigor todos os factos, pelo que objetivamente não se determina com rigor o número de vezes que a conduta do arguido preencheu o tipo legal de crime, o que poderá causar alguma dificuldade no exercício do direito de defesa, e até mesmo alguma limitação deste direito. O que terá ainda a consequência de se agrupar vários atos e punir cada grupo de atos como se se estivesse apenas perante um crime de abuso sexual (isto no caso de estarmos perante uma mesma vítima, dado que este agrupamento não tem ocorrido quando são várias as vítimas).
Porém, não nos podemos bastar com imputações genéricas, devemos, tanto quanto possível, especificar a conduta típica e ilícita praticada, com indicação do tempo, lugar e modo da prática do ato; imputações genéricas e imprecisas constituem uma possível lesão do contraditório e do efetivo exercício do direito de defesa. Assim sendo, ter-se-á que provar tantos atos quantos for possível, e apenas punir por estes; com a certeza de que não se tratando de um crime de múltiplos atos, ou de um crime continuado, não vale a regra de que o caso julgado abrange todos os atos realizados no período tempo do “crime continuado impróprio” / “crime de trato sucessivo” julgado e pelo qual foi condenado. Assim sendo, o agente deverá ser punido por tantos crimes quantos os atos levados a cabo e provados, em concurso efetivo de crimes Deverá sempre tentar apurar-se, tanto quanto possível, quantos atos foram efetivamente realizados. De outra forma, dispensando a investigação de determinar (o mais possível) o número de atos singulares que foram praticados, abrindo mão do necessário rigor na investigação, impede-se a valoração jurídico- penal de cada facto relevante praticado pelo arguido.
Porém, se da matéria de facto provada resultar, por exemplo, que a violação ou o abuso/prática sexual de relevo ocorreu por diversas vezes e em número concretamente não apurado então deverá o agente, em atenção ao princípio in dubio pro reo, ser apenas punido por um crime».
[12] A vítima directa é aquela que, em primeira linha, sofre as consequências da actuação criminosa, com impacto na integridade do seu corpo ou mente, enquanto a vítima indirecta experiencia estas actuações e é também afectada por elas, mas de modo diferente, porque é atingida de modo enviesado e, por isso, sem a mesma intensidade ou gravidade.     
A criança que presencia, ouve ou percepciona a violência exercida por um dos progenitores contra o outro, com muito mais acuidade quando esses actos de violência são sistemáticos e se prolongam ao longo de meses e até anos, encontra-se numa situação de vitimização tão ou mais grave do que aquela que é vivenciada pelo próprio progenitor a quem são, em primeira linha, direccionados os atos violentos.
Vem sendo notado que entre testemunhar a violência no seio familiar ou para-familiar e ser vítima de outro tipo de maus-tratos, que lhe sejam directamente dirigidos, existe uma confluência dos efeitos nefastos para a saúde mental da criança.
È, pois, para nós muito claro que, ainda que a criança não seja destinatária imediata do ímpeto do agressor, poderá também ser ela vítima de violência doméstica, quando os actos violentos foram por si presenciados ou percepcionados, reclamando a sua situação uma análise e um tratamento adequados.
E daí:
Quando um homem agride a sua companheira/mulher, mãe de seus filhos, na presença destes, estamos, pois, perante um concurso efectivo de dois crimes de violência doméstica, um em que é vítima o progenitor, agravado pela circunstância de os factos terem sido cometidos na presença da criança, integrando a previsão do art. 152º, nº 1, als. a), b) ou c), consoante o caso, e nº 2, al. a), e outro em que a vítima é a criança que assiste ao desenrolar dos actos violentos de um progenitor contra o outro, subsumível ao tipo agravado, previsto no art. 152º, nºs 1, al. d), e 2, al. a) do Código Penal.
Neste nosso caso, atenta a tenra idade da criança (3 anos, à data dos eventos), parece correcta a decisão o tribunal de não imputar ao arguido mais um delito de violência doméstica, agora na pessoa do filho (pelo facto de ter presenciado o tratamento dado à mãe pelo seu pai), subsumindo apenas à letra dos crimes dos 143º e 145º do CP o comportamento do arguido para com o filho BB.
Quanto às demais filhas da assistente, ambas menores de idade, que terão também assistido a estas cenas, há que dizer que não pode agora este tribunal de recurso acionar o mecanismo do artigo 359º do CPP (sempre havendo novos factos a apurar).
[13] Recentemente, o Parlamento russo, a Duma, aprovou a descriminalização da violência doméstica com 380 votos contra três. A nova moldura legal não prevê penalizações nos casos em que “não existam lesões corporais graves” e quando não ocorram mais do que uma vez por ano e a violência doméstica passa de uma ofensa criminal a uma ofensa administrativa. Retrocessos civilizacionais estes!
[14] E não nº 1, alíneas a) e d) do artigo 152º do CP, como, por lapso, se deixa escrito no Dispositivo, corrigindo-se a sentença recorrida nesta parte, ao abrigo do nº 2 do artigo 380º do CPP.