Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3892/12.7TBLRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
CIRE
EXCESSO MANIFESTO DE OBRIGAÇÕES DO INSOLVENTE
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 121º, Nº 1, AL. H) DO CIRE.
Sumário: O excesso manifesto das obrigações do insolvente a que se alude na alínea h) do nº 1 do art.º 121º do CIRE tem de resultar objetivamente dos termos do negócio, significando um desequilíbrio ou desproporção flagrante a partir da simples análise desses termos.
Decisão Texto Integral:








Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Por apenso à insolvência de S..., S.A., a correr termos pelo Juízo de Comércio de Leiria, Comarca de Leiria, veio R..., S.A.., instaurar ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente que foi declarada pelo AI quanto ao contrato de compra e venda do usufruto, outorgado pela devedora em 13.02.2012, do prédio urbano inscrito sob o artigo ... da freguesia de ..., e dos bens móveis ali existentes, bem como da marca comercial R...; e também quanto ao arrendamento pelo período de 15 anos, automaticamente renovável por períodos de 5 anos, outorgado pela devedora em 01.08.2011, do prédio urbano destinado a armazém sito na Zona Industrial de ..., concelho de Évora, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo ...

Alega, para tanto, que o direito de resolução operado já caducara no momento em que foi exercido; que com a celebração dos contratos resolvidos a insolvente fez uma gestão correta do seu património, já que foi forçada a alienar parte da sua atividade e dos seus bens a terceiro por dificuldades em obter acordos de reestruturação da dívida junto da banca; sem embargo, ficou ainda detentora de vasto património imobiliário no valor de €7.474.000,00, continuando a auferir proventos pelos serviços prestados a seis empresas; pelo que não se verificou prejuízo para os credores, não estando reunidos os pressupostos tanto da resolução incondicional como da incondicional invocados pelo sr. AI.

Contestou a Massa Insolvente de S..., S.A., aduzindo que os contratos de compra-e-venda de usufruto de 13.02.2012 e de arrendamento de 01.08.2011 foram celebrados com o filho do administrador da insolvente na qualidade de representante da R..., S.A., pelo que a sua resolução era incondicional ex vi da alínea h) do nº 1 do art.º 121 do CIRE; além disso, tais contratos prejudicaram os credores da insolvente tendo o representante da sociedade que contratou com insolvente perfeito conhecimento da situação desta, pelo que a resolução também se fundou no disposto no art.º 120 do CIRE (resolução condicional). Terminou com a improcedência da ação.

No saneador foi julgada improcedente a alegada excepção da caducidade da resolução.

A final foi a acção julgada improcedente por não provada e, em função disso, a Ré absolvida do pedido.

Inconformada, recorreu a Autora R..., S.A., recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutiva.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação a recorrente levanta as seguintes questões:

Reapreciação da matéria de facto;

Falta de fundamentação da resolução operada;

Ausência do requisito do prejuízo para os credores;

Pedido subsidiário de restituição das quantias paga no âmbito dos contratos resolvidos e manutenção dos contratos de trabalho.

Contra-alegou a apelada Massa Insolvente, batendo-se pela improcedência do recurso.

Reapreciação da matéria de facto.

Quer a apelante que a decisão sobre a matéria de facto que considerou não provada em e), f), g), h), i), j) e l) deveria ser revertida passando os factos respectivos a integrar o elenco dos factos provados.

São estes os factos em causa:

e) Ao abrigo do contrato de usufruto a impugnante assumiu perante os trabalhadores os pagamentos de todos os créditos laborais, designadamente, os créditos relativos à antiguidade.

f) Findo o contrato de usufruto todos os vínculos laborais transferidos voltariam para a insolvente.

g) Os custos mensais com a assunção do referido conjunto de trabalhadores foram levados em consideração na fixação da venda do usufruto.

h) Tais custos mensais ascendiam a um valor médio de € 85.000,00.

i) A devedora não possuía quaisquer ações judiciais em curso que fosse ré, demandada, arguida executada ou requerida.

j) Nas ações referidas no artigo 41.º dos factos provados encontrava-se a ser acionado judicialmente um valor total de créditos no valor de € 1.000.000,00, com um recebimento médio mensal de € 5.000,00.

l) Relativamente aos acordos judiciais aludidos no artigo 42.º dos factos provados os créditos em divida perfazem o montante de 1.000.000,00, correspondendo a uma média de recebimentos mensais de € 15.000,00.”

A factualidade em causa pode subdividir-se em dois temas: o das vantagens para devedora com a transferência dos trabalhadores que teria acompanhado o contrato de compra-e-venda do usufruto do imóvel de Leiria e o atinente aos proventos resultantes das ações de cobrança instauradas pela devedora e dos acordos por ela celebrados com os credores.

...

Não decorre de qualquer dos elencados depoimentos que os custos com os trabalhadores tenham sido levados em conta na contrapartida paga pela venda do usufruto ou que os mesmos regressariam no final do contrato.

...  

Destarte, na parcial procedência da impugnação deduzida é a seguinte a matéria de facto que se tem por definitivamente provada:

...

Sobre a não especificação dos fundamentos da resolução.

Alega a A. e ora apelante que as cartas de resolução que lhe foram enviadas pelo Administrador da Insolvência em 28.10.2016 continham uma indicação genérica dos fundamentos da resolução, não habilitando, desse modo, os interessados ao conhecimento preciso do que seria necessário ao exercício do contraditório.

Mas não tem razão.

Como deflui do teor das cartas – cfr. o factos provados em 24 e 25 – além de mencionar os normativos legais da resolução condicional e incondicional em que se fundava, o Sr. Administrador Judicial identificou claramente os negócios que se deviam considerar resolvidos. Além disso, especificou o prejuízo que resultaria para os credores da devedora, para ele traduzido no retardamento e maior dificuldade destes em receber os respectivos créditos – requisito da resolução condicional – tal como advertiu para o facto de em tais negócios as obrigações assumidas pela devedora excederem manifestamente as da contraparte – requisito da resolução incondicional da alínea h) do nº 1 do art.º 121 do CIRE.

A ação de impugnação da resolução tem sido considerada uma ação de simples apreciação negativa, pelo que é sempre ao réu – neste caso, à Massa Insolvente – que cabe provar os factos constitutivos da resolução (art.º 343, nº 1, do CC). A declaração de resolução deve elencar os factos essenciais e suficientes para a compreensão dos motivos da resolução e para o exercício do contraditório pela impugnante. Não carece, por isso, de conter uma exaustiva e pormenorizada indicação dos factos que a justificam, mas de revelar de forma inequívoca as razões invocadas para a destruição do negócio, permitindo ao destinatário a sua posterior impugnação (cfr. neste sentido o Acórdão do STJ de 29-04-2014, proferido no P. nº 251/09.2TYVNG-R.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt). Há elementos que resultam da mera análise objetiva dos negócios que se encontram documentados e que quem impugna já conhece, pelo que não têm que ser referidos na comunicação resolutiva. Há, no entanto, outros elementos, estes externos à documentação dos negócios, que devem ser apontados de modo inteligível pelo Administrador da Insolvência. É o que sucede com a invocação do prejuízo para os credores e a do terceiro. No caso vertente, o sr. Administrador da Insolvência, além de explicar, em ambas as comunicações resolutivas, em que consistiu o prejuízo dos credores, teve ainda o cuidado de alegar a da ora impugnante como terceira, relevando a circunstância – comum a ambos os negócios – de o administrador da impugnante que neles interveio ser filho do administrador da devedora, bem como de conhecer a situação difícil desta e mesmo a sua iminente insolvência. Ou seja, a impugnante dispunha de todos os dados para se opor à resolução se e quando quisesse fazê-lo.

Donde que a objeção contida nesta questão não possa ser acolhida.

Sobre a não verificação do requisito do prejuízo dos credores.

As cartas de resolução de cada um dos negócios enviadas pelo AI à A., ora apelante, implicam dois tipos de resolução: uma de carácter incondicional, a da alínea h) do nº 1 do art.º 121º do CIRE, outra condicional fundada no art.º 120º, nºs 1, 2 e 4 do mesmo Código.

A decisão recorrida acolheu a bondade dos fundamentos de uma e outra das resoluções.

Sustenta a apelante que não houve prejuízo para os credores ou para a massa em qualquer dos negócios resolvidos.

Sem razão.

Na resolução incondicional, e nos termos do nº 3 do art.º 120º do CIRE, os actos descritos no art.º 121º “presumem-se prejudiciais à massa sem admissão de prova em contrário”.

Na situação da referida alínea h) do nº 1 do art.º 121º exige-se que as obrigações assumidas pelo insolvente “excedam manifestamente as da contraparte”.

Afigura-se-nos que a apelante também se quis insurgir contra este prejuízo manifesto, pelo que desde já se irá proceder à sua apreciação.

Trata-se aqui de apurar se o prejuízo da insolvente/devedora com as obrigações assumidas diante das vantagens auferidas é patente perante os próprios termos do negócio, sem que haja necessidade de ponderação de outros dados coadjuvantes. Ou seja, se a partir desses termos é flagrante o excessivo desequilíbrio da prestação a que a devedora se vinculou, se há neles uma desproporção que salta à vista.

Não se nos afigura que seja esse o caso.

Pensamos que, sem mais, os valores que figuram nos contratos como contrapartidas a pagar pelo impugnante – €225.000,00 pelo imóvel e €200.000 pelos móveis, no usufruto, e €750,00 no arrendamento, pela renda mensal – não podem considerar-se em si mesmos exíguos para compensar a insolvente da cedência do usufruto e do arrendamento que os mesmos titularam.

O que serve para dizer que o eventual excesso das obrigações assumidas pela devedora Sogestalei não é um excesso manifesto.

Em todo o caso, alega a apelante que não se demonstrou que os negócios resolvidos tenham causado prejuízo à insolvente, e, por conseguinte, à massa insolvente e aos credores. Para tanto avança com os seguintes três argumentos:

A transferência para a impugnante dos custos de cerca de € 80.000 suportados pela devedora S... com os quase 60 trabalhadores que exerciam a sua actividade na unidade do imóvel de ...;

As receitas provenientes das rendas convencionadas e dos serviços que a devedora continuou a prestar;

A existência de património remanescente.

Não a acompanhamos, porém, na conclusão que desta factualidade visa retirar.

Se não vejamos.

A resolução condicional que aqui é colocada em causa é a prevista no art.º 120º, nºs 1, 2, 4 e 5 do CIRE.

Esta resolução depende do preenchimento de três requisitos:

Prática do acto resolvido nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

Prejuízo para a massa insolvente;

Má fé do terceiro.

Sustenta a A., ora apelante, que está provado que os actos resolvidos redundaram em benefício da devedora S..., com isso pretendendo afirmar que deles não resultou qualquer prejuízo para a respectiva massa insolvente.

Mas não é isto que se conclui de tudo quanto se encontra plasmado na materialidade apurada.

É antes o contrário.

Na verdade, decorre dos factos provados em 35 e 36 que “a quase totalidade dos trabalhadores ao serviço da insolvente passaram para R..., S.A.” e que a celebração do arrendamento “teve em vista a assegurar a manutenção da actividade comercial da insolvente”.

Isto significa que, mediante contratos que vigorariam ao longo de várias dezenas de anos, a devedora S... pretendia transferir para a impugnante R... toda a sua atividade essencial, passando para ela o gozo dos imóveis onde a exercia, juntamente com os respectivos equipamentos produtivos e os trabalhadores.

Ora não vemos como após tão dilatados prazos seria possível o suposto “regresso” dos trabalhadores à devedora.

Nem compreendemos a alegação de que a devedora ficou em melhor situação só porque transferiu para a impugnante R... os custos que até então suportava com aqueles trabalhadores.

Transferir “custos com os trabalhadores” é esgrimir com um rematado eufemismo.

O que na realidade com ele se esconde é a perda do potencial produtivo – e de lucro – que podia ser gerado com esses mesmos trabalhadores.

Destarte, para além de uma inevitável e fortíssima desvalorização dos imóveis, esta transferência da força de trabalho operada como os negócios resolvidos acarretou a perda de quase todo o potencial de lucro que poderia advir da principal – e praticamente única - atividade ali desenvolvida pela devedora, atividade que, como resulta do processo, girava toda ela em torno da produção e comercialização de alimentos compostos para animais (rações).

É ainda de notar que foi convencionado o pagamento do preço estipulado para o usufruto do imóvel de ... em cerca de cinco anos quando o gozo deste se estenderia por um prazo de trinta anos. E que o arrendamento do prédio de Évora tinha um prazo inicial de quinze anos.

Como é óbvio, a observância integral destes prazos iria depreciar – e muito – o valor de mercado dos imóveis.     

Restando à devedora S... o papel residual de prestadora de serviços, pelos quais auferia um irrisório provento mensal de €6.000,00 (facto provado em 38), é clara a lesão dos direitos dos credores com os contratos de usufruto e arrendamento resolvidos na medida em que a satisfação dos seus créditos ficou irremediavelmente comprometida.

E a titularidade da propriedade do prédio rústico sito em Penamacor, aludido em 23-c da matéria provada, cujo valor de mercado se desconhece.

O prejuízo dos credores é, por conseguinte, insofismável em face da considerável diminuição da garantia patrimonial de que dispunham até à consumação dos negócios resolvidos, sem que tal diminuição se possa dizer de algum modo atenuada pelo património remanescente ou pela actividade residual de prestação de serviços da devedora.

Não tendo sido questionados os restantes pressupostos da resolução condicional (o prazo de dois anos anteriores à da do início do processo e a da impugnante), a decisão recorrida de julgar a impugnação improcedente tem de ser mantida.

Sobre os pedidos subsidiários.

Por fim insurge-se a A. contra a decisão de absolver a da instância quanto aos pedidos subsidiários de condenação da massa insolvente no pagamento das quantias pagas ao abrigo dos contratos resolvidos e na assunção dos vínculos laborais que ficaram a cargo da impugnante por força dos contratos resolvidos.

Almeja, portanto, a condenação da Ré em consequência da manutenção da resolução dos contratos.

No entanto, afigura-se-nos aqui que – tal como se escreve na sentença – a ação de impugnação é uma ação de simples apreciação, pelo que não abarca a possibilidade de ser proferida uma condenação da Ré Massa Insolvente, nem mesmo por via de um pedido subsidiário. Aliás, qualquer condenação que implicasse um novo encargo para a massa insolvente não poderia prescindir do contraditório dos credores, contraditório que nesta acção está absolutamente ausente.

Donde que, também neste segmento, o recurso improceda.

Pelo exposto, ainda que por fundamentação não inteiramente coincidente, julgam a apelação improcedente e confirmam a sentença recorrida.

Custas pela A. e apelante.

               Coimbra, 9 de Março de 2021

Sumário:

O excesso manifesto das obrigações do insolvente a que se alude na alínea h) do nº 1 do art.º 121º do CIRE tem de resultar objetivamente dos termos negócio, significando um desequilíbrio ou desproporção flagrante a partir da simples análise desses termos.