Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
86755/21.8YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: INJUNÇÃO
EXCEPÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO
Data do Acordão: 06/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 428.º, N.º 1 E 762.º, N.º 2, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL, E ARTIGO 576.º, N.º 3, DO CPC
Sumário: Num contrato de compra e venda que tenha por objeto várias prestações de coisas, deve recursar-se a atuação da exceptio com fundamento na prestação de coisa defeituosa, se o cumprimento defeituoso se refere a uma coisa relativamente à qual não é pedido o pagamento do preço ou, em qualquer caso, por violação da proporcionalidade, enquanto dimensão da boa fé, se o mau cumprimento, considerada a globalidade do valor económico das prestações, maxime do preço, assumir um relevo mínimo ou uma importância escassa.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 

1. Relatório.        

B... promoveu contra M..., Lda., procedimento de injunção, pedindo, no respetivo requerimento, o pagamento da quantia de € 210.941,50€, acrescida das quantias de € 2 369,25, de juros de mora vencidos, de € 40.00 e de € 153,00.

Fundamentou esta pretensão no facto de ter fornecido à requerida, a pedido desta, diversos bens da sua área de comercialização, designadamente, batas, batas cirúrgicas, cobre-botas, fatos, toucas de diversos modelos e tamanhos, pelo preço global de € 210 941,50, que aquela não lhe pagou, e de ter despendido € 40,00 com a cobrança da dívida e € 153,00 com a taxa de justiça.

A requerida defendeu-se, na oposição, por excepção dilatória, invocando a nulidade de todo o processo por ineptidão do requerimento inicial, e por excepção modificativa dilatória material, alegando que a requerente lhe forneceu máscaras faciais 3 Ply, Tipo II, modelo M3PII, que foram retiradas do mercado, na sequência de circular do Infarmed, o que lhe acarretou o custo global de € 1 147,63, pelo que, nos termos do art.º 428.º do Código Civil, lhe assiste a faculdade de recusar o pagamento total do preço.

Determinado que o processo prosseguisse os termos do processo comum de declaração, a requerente respondeu que o preço cujo pagamento reclama da requerida não inclui o das máscaras faciais referidas pela última.

A acta da audiência prévia, realizada no da 25 de Fevereiro de 2022, garante que pela Mmª. Juiz de Direito do Tribunal Judicial da comarca ..., Juízo Central ... – Juiz ..., foi comunicado que o Tribunal pondera conhecer de imediato o mérito da causa, tendo sido concedida a palavra ao Ilustre Mandatário da Autora para discussão das questões de facto e de Direito suscitadas nos autos, tendo o mesmo usado da palavra para o efeito entre as 09h36 e as 09h38m, o que ficou devidamente gravado no sistema integrado de gravação existente neste Tribunal. De seguida, pela Mmª. Juiz de Direito foi concedida a palavra ao Ilustre Mandatário da Ré para discussão das questões de facto e de Direito suscitadas nos autos, tendo o mesmo usado da palavra para o efeito entre as 09h38 e as 09h41m, o que ficou devidamente gravado no sistema integrado de gravação existente neste Tribunal. Aquela acta assegura ainda que, neste momento, pela Mmª. Juiz de Direito foi proferido Despacho Saneador-sentença, o qual foi comunicado às partes por súmula e será inserido, de imediato, no sistema informático, fazendo parte integrante desta acta.

No despacho saneador, a Sra. Juíza de Direito, julgou improcedente a excepção dilatória da nulidade de todo o processo por ineptidão do requerimento e inicial e, depois de observar que entre as partes foram concluídos contratos de compra e venda, que a requerida não efetuou o pagamento do preço devido e que a última invocou o cumprimento defeituoso no tocante à entrega de máscaras faciais, mas que esta prestação respeita a relação contratual distinta da que se encontra em apreciação nos presentes autos, na medida em que as quantias cujo pagamento foi solicitado pela Autora dizem respeito ao preço devido pela entrega de batas cirúrgicas, coberturas para calçado pelo joelho, fatos (SMMS), de tamanhos L e XXL, toucas cirúrgicas, toucas azuis, fatos de tamanho L, XL e XXL, fatos de bloco operatório de tamanhos L, XL e XXL e coberturas para calçado azul não tecido, julgou também improcedente a excepção do não cumprimento do contrato invocada pela sociedade Ré e logo a condenou a pagar à Autora a quantia de € 123.821,00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa de juro comercial, desde o dia 26 de Abril de 2021 até integral pagamento, bem como a quantia de € 87.120,50, acrescida de juros de mora, calculados à taxa de juro comercial, desde o dia 14 de Maio de 2021 até integral pagamento, e a quantia de € 40,00, devendo o pagamento da quantia de € 153,00, correspondente à taxa de justiça paga pela Autora ser por esta exigido, se assim o entender, através da apresentação da competente nota discriminativa e justificativa de custas de parte.

É esta decisão que a requerida impugna no recurso, no qual pede a sua revogação e substituição por outra que considere todos os factos trazidos aos autos, incluindo o facto que o Tribunal a quo olvidou na matéria de facto e de direito controvertida.

A recorrente, ordenada pelo propósito de inculcar o mal fundado da decisão impugnada, extraiu da sua alegação estas conclusões:

1.  Nos termos dos Artigos 195.º, n.º 1, e 615.º n.º 1 d), ambos do CPC, a sentença proferida enferma de uma nulidade processual, que influi no exame e decisão da causa, porquanto o tribunal a quo conheceu de imediato do mérito da causa, sem antes facultar às partes a discussão controvertida de facto e de direito

2. Aquando da realização da Audiência Prévia, o tribunal comunicou que ponderava conhecer de imediato o mérito da causa.

3. Apesar da aqui Apelante ter manifestado a intenção de realização da audiência de julgamento por entender como necessária a produção de prova com vista à descoberta da verdade material e para a boa decisão do mérito da causa, o tribunal a quo acabou por proferir despacho saneador-sentença e por decidir pela procedência da ação.

4. Não pode, no entanto, a Apelante aceitar tal desfecho e solução, porquanto não se coaduna com decisões que, em nome de pretensas celeridades, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda não possíveis até à fase do saneador.

5. Sendo a audiência de julgamento o momento processual propício à clarificação da factualidade invocada, nomeadamente, no sentido de clarificar a influência que teve sobre o negócio da Apelante e na colocação dos produtos fornecidos no mercado português, o facto da Apelada ter fornecido determinados produtos que não preenchiam os requisitos necessários para serem colocados no mercado.

6. Sucede que, sem mais nada, o tribunal a quo procedeu de imediato à prolação de decisão de mérito, entendendo que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total do pedido deduzido.             

7. A verdade é que, neste contexto, a sentença assim proferida traduz uma decisão-surpresa, cerceando-se a Apelante não só do exercício do contraditório como da oportunidade de discutir o mérito da causa – seja em audiência prévia, seja em audiência de julgamento.

8. Tal omissão constitui uma nulidade processual, nos termos dos Artigos 195.º n.º 1 e 615.º n.º 1 d), ambos do CPC, por influir no exame e decisão da causa.

9. Violando, igualmente, o direito fundamental da Recorrente ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, previsto do art.º 20.º da CRP.

10. Devendo, assim, a decisão recorrida ser revogada, devendo ser declarado nulo o saneador sentença recorrido e, em consequência, ser determinada a baixa do processo à 1ª instância para que aí se dê cumprimento ao prosseguimento dos autos mediante a realização de audiência com vista a facultar às partes a discussão de facto e de direito.

Na resposta a apelada concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Factos provados.

O Tribunal de que provém o recurso, considerou provados os factos seguintes:

1. A Autora B... tem sede na ..., onde se dedica, de forma habitual e com desígnio lucrativo, entre outras actividades, à exportação de equipamentos de protecção individual.

2. A Ré M..., Lda., é uma sociedade comercial cujo objecto se centra na compra e venda de produtos farmacêuticos, ortopédicos e afins, bem como à importação e exportação.

3. No âmbito da normal prossecução das respectivas actividades, a Autora forneceu à Ré, a pedido desta, diversas batas, batas cirúrgicas, cobre-botas, fatos e toucas de diversos modelos e tamanhos.

4. Todos os bens foram expedidos pela Autora por via marítima, até Lisboa, tendo a Ré suportado os respectivos custos de transporte.

5. Após a chegada a Portugal dos bens a que se alude em 3., os mesmos foram recebidos pela Ré, que os aceitou e incorporou no seu património, não tendo apresentado nenhuma reclamação quanto à qualidade, quantidade e preço de tais bens.

6. A Autora apurou a quantidade, designação e preço dos bens a que se alude em 3., titulando por facturas a venda dos mesmos à Ré.

7. Por referência aos bens a que se alude em 3., a Autora emitiu e enviou à Ré, que as recebeu, as seguintes facturas:

- factura ...4, datada de 31 de Janeiro de 2021, no valor de € 123.821,00, referente a bata cirúrgica, cobertura para calçado pelo joelho, fato (SMMS) de tamanhos L e XXL e touca cirúrgica, da qual consta, relativamente às condições de pagamento, a menção “30 dias após a entrega dos artigos”;

-  factura ...6, datada de 26 de Fevereiro de 2021, no valor de € 87.120,50, referente a touca azul, fato macacão de tamanhos L, XL e XXL, cobertura para calçado pelo joelho, fato de bloco operatório de tamanhos L, XL e XXL, touca cirúrgica e cobertura para calçado azul não tecido, da qual consta, relativamente às condições de pagamento, a menção “30 dias após a entrega dos artigos”.

8. As mercadorias a que se refere a factura ...4 foram entregues à Ré no dia 26 de Março de 2021.

9. As mercadorias a que se refere a factura ...6 foram entregues à Ré no dia 13 de Abril de 2021.

10. No seu articulado de oposição a Ré M..., Lda. justificou o não pagamento das quantias peticionadas pela Autora a título de preço com base na alegação de que esta lhe forneceu máscaras faciais 3Ply Tipo II, modelo M3PII que, na sequência da circular informativa emitida pelo Infarmed a 27 de Agosto de 2021, foram retiradas do mercado nacional devido a “marcação CE indevida, não existindo o cumprimento de todos os requisitos legais aplicáveis a nível europeu, incluindo o facto de a documentação técnica se encontrar incompleta”.

11. Nos artigos 22º e 23º do seu articulado de oposição a Ré alegou o seguinte: “verificado que está o fornecimento defeituoso de produtos pela Requerente, não existindo, conforme se constata, intenção de reparar os defeitos enunciados pela Requerida, considera-se para os devidos efeitos o contrato celebrado incumprido. Sendo certo que a Requerente incumpriu as suas obrigações, ao fornecer à Requerida produtos que não apresentavam as devidas condições de comercialização.”.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito objectivo do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (art.º 635.º, nºs 2, 1ª parte, 3.º a 5.º, do CPC).

A decisão impugnada é constituída pelo despacho saneador, proferido acto contínuo à realização da audiência prévia, que, entre outros objetos, julgou improcedente a excepção dilatória material do contrato não cumprido, invocada pela apelante, e logo condenou esta no pedido formulado pela apelada. A recorrente acha que aquela sentença é nula, por constituir uma decisão surpresa, dado ter conhecido de imediato do mérito da causa, sem antes facultar às partes a discussão controvertida de facto e de direito, devendo ordenar-se o prosseguimento da instância para, em audiência final, se clarificar a influência que teve sobre o negócio da Apelante e na colocação dos produtos fornecidos no mercado português, o facto da Apelada ter fornecido determinados produtos que não preenchiam os requisitos necessários para serem colocados no mercado.

Tendo em conta os parâmetros de cognição representados pelo conteúdo da decisão impugnada e das alegações de ambas as partes, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se a sentença impugnada se encontra ferida com o desvalor da nulidade por excesso de pronúncia e se deve ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento da instância para a apreciação, na sentença final, da excepção do contrato não cumprido, oposta pela apelante à apelada.

A resolução destes problemas vincula a que se examine a causa de nulidade substancial da sentença apontada e os pressupostos e modo de funcionamento da exceptio inadimpleti contractus.

3.2. Nulidade substancial da sentença impugnada.

A sentença é nula quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, portanto, quando esteja viciada por excesso de pronúncia (art.º 615.º. nº 1 d), 2ª parte, do CPC). Por força deste corolário do princípio da disponibilidade objectiva, verifica-se um tal excesso, por exemplo, sempre que o juiz utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou absolve num pedido não formulado.

Este desvalor da decisão radica, segundo a apelante, nesta precisa circunstância: a de constituir uma decisão-surpresa.

Entre os princípios instrumentais do processo civil, i.e., aqueles que procuram optimizar os resultados do processo, conta-se, seguramente, o princípio da cooperação intersubjectiva, de harmonia com o qual, as partes e o tribunal devem colaborar entre si na resolução do conflito de interesses subjacente ao processo (art.º 7.º nº 1 do CPC).

O tribunal está, portanto, vinculado a um dever de colaboração com as partes, dever que se desdobra, entre outros, no dever de consulta[1]: o tribunal tem o dever de consultar as partes sempre que pretenda conhecer de matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (art.º 3.º, nº 3, do CPC). É o que sucede, por exemplo, quando o tribunal enquadra juridicamente a situação de forma diferente daquela que é perspectivada pelas partes ou quando, na audiência prévia, pretendendo o juiz conhecer de alguma excepção dilatória ou do mérito da causa, não faculta às partes a discussão, de facto e de direito, relativas à matéria da excepção ou do fundo da causa (art.º 591.º, n.º 1, b), do CPC)

Este dever – que se mantém durante toda a tramitação da causa - tem uma finalidade evidente: evitar as chamadas decisões-surpresa, i.e., as decisões, ainda que sobre matéria de conhecimento oficioso, sem a sua prévia discussão pelas partes.

Uma decisão dessa natureza afecta um valor particularmente relevante da decisão judicial - o da previsibilidade: a decisão do tribunal deve corresponder aquilo que é alegado e discutido durante o processo, não devendo as partes ser – desagradavelmente – surpreendidas com uma decisão que, embora baseada numa matéria de conhecimento oficioso, aprecia uma questão que nenhuma das partes alegou ou discutiu. É objeto de controvérsia saber se a violação do dever de consulta, na vertente considerada, se resolve numa nulidade processual ou antes numa nulidade, por excesso de pronúncia, da sentença, ela mesma (art.ºs 195 e 615.º, n.º 1, d), do CPC)[2].

Todavia, no caso do recurso, é desinteressante discutir este aspeto do regime da violação do dever de consulta. É que não há qualquer razão, por mais leve que seja, para que se fale em decisão-surpresa.

Na espécie do recurso, a acta da audiência prévia – cuja força probatória, enquanto documento autêntico, não é questionada no recurso – garante que as partes foram advertidas, pela Sr.ª Juíza de Direito, do seu propósito de conhecer, logo no despacho saneador do mérito da causa, e que foi facultada aos Srs. Mandatários das partes a palavra para discutirem as questões de facto e de direito em torno das quais gravita o litígio entre ambas, faculdade de que os Exmos. Advogados fizeram uso.

Estando plenamente provado que as partes foram prevenidas sobre a intenção da Sr.ª Juíza de Direito de decidir de mérito logo no despacho saneador, aviso a que se seguiu a discussão ou debate sobre a matéria de facto e de direito pertinente à causa – é patente que a recorrente se não pode queixar de ter sido surpreendida por aquele despacho ter conhecido logo do objeto da causa. A audição prévia das partes sobre a possibilidade de conhecimento do mérito da causa destinou-se, precisamente, a evitar decisões-surpresa, a obviar que as partes, ambas, fossem surpreendidas, contra a sua expectativa, infundada ou não, com o imediato conhecimento do objeto da causa no despacho saneador.

Não há, assim, a mínimo fundamento para, por este motivo, imputar à sentença impugnada o desvalor da nulidade substancial, seja qual for o entendimento que se tenha por preferível no tocante à consequência jurídica que se deve associar ao proferimento de uma decisão-surpresa.

Questão inteiramente diversa, claro está, é a de saber se o estado da causa – logo no plano de facto - permitia, ou possibilitava o conhecimento imediato do seu objeto, já nesse momento, maxime da excepção do contrato não cumprido.

A resposta a esta questão reclama o exame dos pressupostos da antecipação do conhecimento do objeto da causa para o despacho saneador e dos pressupostos daquela excepção dilatória material.

3.3. Pressupostos da antecipação para o despacho saneador da apreciação do mérito da causa.

O despacho saneador tem, entre outras, por função, apreciar tanto os aspectos jurídico-processuais da acção como o mérito desta (art.º 595.º, n.º 1, do CPC). No contexto das funções atribuídas ao despacho saneador, a apreciação daqueles aspectos constitui a sua finalidade primária e o seu conteúdo essencial, enquanto o conhecimento do mérito é uma finalidade meramente eventual.

O despacho saneador destina-se, antes de mais, a verificar a admissibilidade da apreciação do mérito e a regularidade do processo (art.º 595.º, n.º 1, a) do CPC). De resto, é de toda a vantagem em que o controlo dessa admissibilidade não seja relegada para uma fase adiantada da acção e é ela que justifica a atribuição daquela função de saneamento a tal despacho. No plano das funções atribuídas ao despacho saneador, a apreciação daqueles aspectos constitui o seu conteúdo essencial, enquanto o conhecimento do mérito é uma finalidade eventual: o despacho saneador visa fundamentalmente evitar a que se atinja a fase da sentença sem qualquer controlo sobre a admissibilidade da apreciação do mérito da causa e que, por isso, se possa frustrar a função essencial dessa sentença.

Na verdade, a apreciação do mérito da acção e o proferimento da decisão sobre a sua procedência ou improcedência é realizada, em regra, na sentença final (art.º 607.º do CPC). Mas em certas condições, essa apreciação pode ser antecipada para o despacho saneador: o tribunal pode conhecer do mérito da acção nesse despacho sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciação do pedido, de algum dos pedidos cumulados, do pedido reconvencional ou ainda da procedência de alguma excepção peremptória (art.º 595.º, n.º 1, b), do CPC). Caso isso suceda, o despacho saneador fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença e dele cabe, naturalmente, recurso de apelação (art.º 595.º. n.º 3, 2ª parte, e 644, n.º 1, do CPC).

Portanto, o conhecimento imediato do mérito só se realiza – mas deve realizar-se - no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento; caso contrário, i.e., se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final.

É curial que a decisão jurisdicional seja pronta; mas é igualmente conveniente que seja justa.

Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, a lei quer que o mérito da causa seja arrumado logo no saneador. Mas não sacrificou a esses princípios outras exigências também axiologicamente relevantes. O mérito da causa será julgado no despacho saneador se a questão puder ser decidida nesse momento, i.e., se o processo o permitir, sem necessidade de mais provas (art.º 595, nº 1, b), do CPC). Quando isso ocorre, não há necessidade que o processo atravesse a fase complicada, morosa, pesada e dispendiosa da instrução e da audiência discussão e julgamento. A esta luz, o conhecimento do mérito da acção, logo naquele despacho, não é desconforme nem com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva nem com o direito ao processo equitativo.

Às partes é constitucionalmente garantido que o direito de atuar em juízo deve efectivar-se através de um processo equitativo, entendido como um processo justo, logo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais de justiça nos vários momentos processuais (art.º 20.º. n.º 4, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Simplesmente, o princípio da equitatividade, não impede uma conformação do processo que autorize o proferimento de uma decisão de mérito, em momento processual anterior ao da sentença final, logo que se se mostrem reunidos os pressupostos de facto e de direito que permitam uma decisão conscienciosa sobre esse mesmo mérito. Inversamente, só a admissibilidade desse conhecimento antecipado é harmonizável com uma outra dimensão do processo equitativo: o direito à obtenção de uma decisão, conforme com o Direito, em prazo razoável, i.e., a uma decisão judicial sem dilações indevidas (art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).

Para que há-de prosseguir o processo, se não há factos sobre os quais possa incidir a prova ou se há já factos que devam considerar-se assentes que excluem, de harmonia com a lei substantiva aplicável, uma decisão de procedência ou que a impõem?

Não é razoável que, em nome do direito à prova, i.e., à apresentação de provas destinadas a provar os factos alegados em juízo, como dimensão ineliminável do direito ao processo justo ou equitativo, se prossiga num processo para demonstrar factos que, mesmo a provarem-se, não garantem à parte a procedência do direito que pela acção pretende fazer valer e declarar ou de uma qualquer excepção oposta pelo demandado a esse direito. Mas isto só é assim, evidentemente, no caso de a apreciação do mérito da acção não demandar a produção de mais provas e, portanto, poder, com inteira justificação, ser antecipada para o despacho saneador.

Na espécie vertente, o despacho saneador, por entender que o processo continha já todos os elementos indispensáveis ao conhecimento do objecto da acção e, designadamente da excepção do contrato não cumprido, logo julgou improcedente esta excepção e condenou a recorrente no pedido.

Esta atitude do despacho saneador é inteiramente correcta.

3.4. Exceptio do contrato não cumprido.

De harmonia com a matéria de facto julgada provada pelo tribunal de que provém o recurso – a que não é assacada qualquer error in iudicando – a recorrida, na prossecução do seu objecto social de venda de produtos farmacêuticos, ortopédicos e afins, forneceu à recorrente, a pedido desta, por um preço em dinheiro, coisas daquela espécie. Estes factos subsumem-se, sem dificuldade, a um - ou mais - típicos contratos de compra e venda – e a típicos contratos de compra e venda comercial, dado que lhes subjaz um intuito de lucro (art.ºs 874.º e 875.º do Código Civil, 463.º e 464.º do Código Comercial).

Do contrato de compra e venda emergem no Direito Português, três efeitos primordiais: o efeito translativo do direito; a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço (art.ºs 408.º, nº 1, e 879.º do Código Civil). Não oferece dúvida, a qualificação deste contrato como bivinculante, sinalagmático e oneroso: do contrato derivam obrigações para ambas as partes, como contrapartida umas das outras e ambas suportam um esforço económico.

A distinção mais importante entre as modalidades do contrato de compra e venda é que cinde a compra e venda de coisa, quer dizer, do direito de propriedade sobre a coisa – da compra e venda de direito. No caso, estamos nitidamente perante a primeira modalidade.

Do contrato de compra e venda emerge tipicamente para o comprador a obrigação de pagar o preço (artºs 875.º e 879.º, c) do Código Civil).

Os contratos devem ser pontualmente cumpridos (art.º 405.º, nº 1, do Código Civil).

Se o comprador se constituir, no tocante ao cumprimento da obrigação de pagamento do preço, em mora, fica adstrito a uma outra obrigação: a de reparar os danos causados ao vendedor com o retardamento do cumprimento (art.ºs 804.º, n.ºs 1 e 2, e 805.º, n.º 1, do Código Civil).

A indemnização moratória consiste, dada a natureza pecuniária da obrigação, aos juros contados desde a constituição do comprador em mora (art.º 806.º, nº 1, Código Civil). Esses juros são os legais, salvo se antes da mora for devido juro mais elevado ou se se houver estipulado um juro moratório diferente do legal (art.º 806.º, nº 2 do Código Civil).

No tocante aos juros legais das obrigações comerciais, o respectivo regime é aplicável sempre que haja lugar à contagem de juros por força da lei – designadamente no caso de juros moratórios – e as partes contratantes nada tenham expressamente convencionado (art.º 102.º, corpo, do Código Comercial, na sua redacção actual). De harmonia com aquela disposição do Código Comercial, no silêncio das partes, haverá lugar à contagem de juros em dois casos: sempre que for de direito vencerem-se; nos demais casos especiais fixados neste Código.  O primeiro caso parece reportar-se aos casos em que a própria lei geral ou comum comina uma obrigação de juros; assim haverá lugar à contagem de juros sempre que uma relação jurídico-mercantil seja subsumível a uma situação prevista na lei civil relativamente à qual haja lugar à contagem de juros, tais como, nas obrigações pecuniárias (art.º 806.º do Código Civil).

Os juros moratórios legais comerciais, relativamente aos créditos de que sejam titulares pessoas empresas comerciais, singulares e colectivas, são fixados em Portaria conjunta do Ministro das Finanças e da Justiça (art.º 102.º, § 3º, do Código Comercial, na sua redacção actual). Por empresas comerciais singulares e colectivas, deve entender-se quaisquer pessoas físicas ou colectivas, titulares de uma empresa, no exercício da sua actividade empresarial, pelo que aquele regime é aplicável aos contratos celebrados por quaisquer empresários singulares ou colectivos – maxime sociedades comerciais – desde que tais contratos possuam uma concreta conexão com o exercício da respectiva actividade empresarial, conexão que, de resto, se presume (artºs 2 .º e 15.º do Código Comercial).

Essa taxa de juro não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu (BCE) à sua mais recente operação principal de refinanciamento efectuada antes do 1º dia de Janeiro ou Julho, consoante se esteja, respectiva, no 1º ou no 2º semestre do ano civil, acrescida de 7 pontos percentuais (art.º 102.º, § 4.º, do Código Comercial, na sua redacção actual). No caso de transacções comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, a taxa de juro referida no parágrafo terceiro, não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo BCE à sua mais recente operação principal de refinanciamento efectuada antes do 1.º dia de Janeiro ou Julho, consoante se esteja, respectivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de oito ponto percentuais (art.º 102.º, § 5.º do Código Comercial, na sua redacção actual).

As obrigações de entrega da coisa, a cargo do vendedor, e de pagamento do preço, a cargo do comprador, são obrigações simples. Mas sendo obrigações simples, elas surgem sempre acompanhadas de deveres acessórios[3]. Entre os deveres acessórios específicos da compra e venda e que derivam de lei expressa, contam-se, naturalmente, os deveres legais atinentes á responsabilidade por vícios ou defeitos da coisa.

O vendedor, adstrito ao dever de entregar a coisa objecto mediato do contrato, pode violar esse seu dever de prestar por uma de duas formas: ou pelo puro e simples incumprimento ou impossibilitando a prestação (artºs 798.º e 801.º, nº 1, do Código Civil). Existe, no entanto, uma terceira possibilidade, que, relativamente ao contrato de compra e venda, é objecto de previsão específica: a de ter havido um cumprimento defeituoso ou inexacto (art.º 913.º e ss. do Código Civil). O vendedor não está só adstrito à obrigação de entregar certa coisa; ele encontra-se ainda vinculado a entregar uma coisa isenta de vícios e conforme com o convencionado, quer dizer, sem defeitos (art.º 913.º do Código Civil).

Coisa defeituosa é, portanto, aquela que tiver um vício ou se mostrar desconforme com aquilo que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal de coisas daquele tipo; a desconformidade representa uma discordância com respeito a fim acordado[4].

Quando não houver acordo das partes acerca do fim a que a coisa se destina, atende-se à função normal de coisas da mesma categoria (art.º 913.º, nº 2, do Código Civil). Há, portanto, um padrão normal relativamente à função de cada coisa: é com base nesse padrão que se aprecia a existência de vício. Por exemplo, pressupõe-se que no prédio vendido não haja humidade nem fissuras nas paredes, etc.

Apesar de apenas a propósito do contrato de empreitada a lei se referir aos defeitos ocultos e aos defeitos aparentes ou reconhecíveis, esta distinção deve valer também para a compra e venda, desde que se admita, como se deve – sob pena de se premiar a negligência do comprador - o dever deste de proceder, no momento da entrega da coisa, á verificação do defeito (art.º 1218.º do Código Civil)[5].

No contexto da compra e venda, defeito oculto é, portanto, aquele que, sendo desconhecido do comprador pode ser legitimamente ignorado, pois não era detectável através de um exame diligente, i.e. não era reconhecível pelo bonus pater familias[6]; defeito aparente é aquele que é detectável mediante um exame diligente, de que o comprador se poderia ter apercebido usando de normal diligência[7].

Maneira que o defeito da coisa prestada só faculta ao comprador os meios jurídicos enunciados na lei se o desconhecer sem culpa. Por outras palavras: a responsabilidade emergente da prestação de coisas defeituosas só existe em caso de defeito oculto.

Aos vícios supervenientes, i.e., sobrevindos após a celebração do contrato de compra e venda e antes da entrega da coisa, como de resto, à venda de coisa futura ou de coisa genérica, manda a lei aplicar as regras relativas ao não cumprimento das obrigações (art.º 918.º do Código Civil). Esta estatuição mostra que lei reporta a garantia edilícia apenas aos vícios preexistentes ou contemporâneos da conclusão do contrato e tem directamente em vista a venda de coisa específica, certa e determinada[8].

A lei assinala à prestação de coisa defeituosa, várias consequências jurídicas que assentam num plano comum: a culpa, ainda que meramente presumida do vendedor: a responsabilidade deste pelo cumprimento defeituoso é necessariamente subjectiva (art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil). Presume-se, porém, que o mau cumprimento ou cumprimento inexacto procede de culpa do vendedor (art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil).

Nos contratos sinalagmáticos, a lei autoriza a qualquer dos contraentes a recusar a realização da sua prestação enquanto não ocorrer a prévia realização da prestação da contraparte, ou a oferta do seu cumprimento em simultâneo (art.º 428.º, nº 1, do Código Civil). Em tal caso, a recusa do cumprimento é lícita, o que obstacula à aplicação do regime da mora e naturalmente do não cumprimento definitivo (artºs 804.º e 808.º do Código Civil).

A exceptio requer: um contrato bivinculante e sinalagmático; em que ambas as prestações devem ser efectuadas em simultâneo; uma delas o não seja (art.º 428.º, n.º 1, do Código Civil). A excepção visa salvaguardar até ao fim um sinalagma funcional. Não tem, pois, um carácter sancionatório, antes é ordenada para assegurar o equilíbrio em que assenta o contrato bivinculante sinalagmático, não pressupondo sequer a culpa do devedor da contraprestação a que é oposta. Para além de corresponder a uma concretização do princípio da boa fé e de assegurar, em geral, o direito à prestação das partes, a exceptio garante que prestação e contraprestação tenham lugar em simultâneo[9].

Decerto que a lei apenas prevê o caso de não haver prazos diferentes para o cumprimento das prestações. Mas apesar disso, entende-se que a exceptio, pelo que encerra de justiça e equidade, pode ser invocada, ainda que haja vencimentos diferentes, por aquele dos contraentes que deva realizar a sua prestação antes do outro; só não poderá opô-la o contraente que devia cumprir primeiro[10].

A admissibilidade da oposição da exceptio à prestação defeituosa também não deve, pois, merecer dúvida relevante. Se o credor pode recusar uma prestação parcial ou viciada, pode, por maioria de razão, não oferecer a sua opondo a exceptio (artºs 763.º, nº 1, 798.º e 799.º do Código Civil)[11]. O esquema da excepção do contrato não cumprido é geral. Os remédios particulares postos pela lei ao serviço, por exemplo, do comprador, não excluem o funcionamento da exceptio: esta mantém-se perante as pretensões que a lei confere àquela parte do contrato de compra e venda.

A exceptio é uma concretização do princípio da boa fé e, portanto, deve ser actuada sob o seu signo estrito. Daí que o seu exercício esteja submetido a um princípio de adequação e de proporcionalidade, não devendo admitir-se o seu exercício, designadamente quando o defeito da prestação, atendendo ao interesse do credor, for pouco significante ou tiver escassa importância (art.º 762.º, n.º 2, do Código Civil)[12].

Assim, por aplicação do princípio da boa fé, o devedor apenas poderá recusar, com fundamento na exceptio, a sua prestação na parte proporcional ao incumprimento do outro contraente. Perante um cumprimento defeituoso ou inexacto apenas deve julgar-se admissível, em princípio, uma recusa de prestar, assente na exceptio, também ela meramente parcial. Tratando-se de uma execução parcial, ao demandado não será lícito recusar o cumprimento da contraprestação na parte em que ela retribua proporcionalmente a prestação executada pelo demandante, apenas o podendo fazer na parte remanescente. A mesma regra valerá para o caso de cumprimento defeituoso de prestações divisíveis, como sucede no caso de prestação de uma multiplicidade de coisas diferenciadas, se apenas no tocante a alguma ou algumas dessas coisas é assacado defeito. Nesta hipótese, uma prestação defeituosa não deve servir de pretexto para o que devedor recuse a totalidade da sua prestação, portanto, mesmo no tocante às contraprestações que foram pontualmente executadas. Valerá, pois, aqui um princípio de proporcionalidade da inexecução das prestações: a recusa do excipiente deve ser equivalente ou, ao menos, proporcionada à inexecução da contraparte que reclama o cumprimento, de modo que se a falta desta for de leve importância, pode mesmo, em última extremidade, importar até a ilegitimidade ou a ilicitude do recurso à excepção.

Por aplicação desta regra de proporcionalidade, ínsita na boa fé, poderá, pois, haver lugar não apenas à redução - mas mesmo à negação do direito de invocar este meio de defesa, o que sucederá sempre que se verifique um desequilíbrio patente ou ostensivo entre as prestações não executadas ou cumpridas com defeito e a contraprestação.

A exceptio radica numa ideia de equidade ou num imperativo de justiça: ou ambos os contraentes cumprem o contrato ou, então nenhum deles pode ser compelido a cumpri-lo sem que também o outro o cumpra. Sendo este o seu fundamento, então segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que a excepção só pode ser oposta pelo devedor no tocante à concreta obrigação cujo cumprimento lhe é exigido pelo credor. Maneira que, no caso de obrigações divisíveis, o devedor não pode opor a excepção, com fundamento num cumprimento defeituoso, se a contraparte não reclamar o cumprimento da contraprestação – v.g. o preço - relativamente à prestação defeituosa.

Em sentido material, a excepção é a situação jurídica pela qual a pessoa adstrita a um dever pode, licitamente, recusar a efectivação da prestação correspondente[13]. Exemplo acabado de excepção material dilatória modificativa – dado que só detém a pretensão por certo lapso de tempo – é a excepção do contrato não cumprido – embora, seja uma excepção peremptória, na acepção do art.º 576.º, n.º 3, do CP Civil, visto que ao contrário do que o autor pediu o réu não é simplesmente condenado a cumprir a obrigação.

Porque a exceptio do contrato não cumprido – ou só defeituosamente cumprido - se resolve numa excepção dilatória material – dado que o seu efeito é apenas o de a acção não poder ser desde logo procedente ou fazer depender a condenação do demandado na realização da sua prestação contra o cumprimento simultâneo da contraprestação[14] – não tem se ser oposta por via de reconvenção nem mesmo judicialmente, bem podendo ser actuada extrajudicialmente. Quando a exceptio tenha sido actuada extrajudicialmente, antes da contestação da acção que tenha por objecto a prestação que visam deter, a única coisa que deve exigir-se é, naturalmente, a prova da sua actuação e da sua licitude.

No caso do recurso, a apelante invocou o mau cumprimento ou o cumprimento defeituoso no tocante a uma concreta prestação de coisa -  máscaras faciais 3Ply Tipo II, modelo M3PII que, na sequência da circular informativa emitida pelo Infarmed a 27 de Agosto de 2021, foram retiradas do mercado nacional devido a “marcação CE indevida - realizada pela apelada e, com base nisso, opôs-lhe aquela excepção.

Simplesmente, o cumprimento defeituoso invocado, respeita a coisa diversa daquelas que, por força dos apontados contratos de compra e venda, a recorrida prestou à recorrente e relativamente às quais é pedida a condenação da última no pagamento do preço convencionado. Dito doutro modo: relativamente as coisas prestadas no tocante às quais a apelada invoca a mora no pagamento do respectivo preço, não é imputado qualquer defeito: o cumprimento defeituoso reporta-se a prestação de coisa diversa. Deste modo, à apelante não é facultada a oposição da exceptio, que só o seria se se referisse às coisas objeto mediato dos apontados contratos a que se refere o preço pedido, visto que é na prestação dessas coisas, e só dessas, que a recorrida fundamenta a constituição da apelante na fundamental obrigação de pagamento desse preço. Se, e no momento que a apelada eventualmente exigir o preço das coisas que, segundo a apelante, são defeituosas é que lhe será lícito opor a excepção fundada no mau cumprimento, recusando o preço correspondente até que a apelada preste aquelas coisas sem defeito.

De resto – e a titulo de obiter dicta – sempre seria de observar que o valor das coisas relativamente às quais se alega o cumprimento defeituoso assume, na economia das relações contatuais estabelecidas entre as partes, um valor manifestamente irrisório ou insignificante: o preço cujo pagamento é pedido ascende a € 210 941,50, ao passo que o custo que a apelante afirma que suportou com as coisas defeituosas que, segundo alega, lhe foram prestadas com defeito pela apelada é, de harmonia com a sua alegação, de apenas € 1 147,63. Convocando para aqui o princípio da proporcionalidade que decorre da boa fé – que alimenta materialmente a exceptio – sempre seria de deter a sua actuação. Seria, realmente, de todo, contrário à boa fé que a apelada recusasse por inteiro a sua prestação de pagamento do preço no valor de € 210 941,50, só porque a apelada lhe teria prestado coisa defeituosa que lhe acarretou um custo de € 1 147,63. Uma tal falta, dado o seu carácter mínimo ou a insuficiência do seu relevo no contexto da relações contratuais travadas pelas partes, sempre importaria, pela sua contrariedade à boa fé, enquanto norma objetiva de comportamento, na vertente da proporcionalidade, a recusa da oponibilidade da exceptio, tanto mais, quanto é certo, que o incumprimento defeituoso sempre se referiria a uma coisa singular, atomística, que não afecta a conformidade das demais coisas prestadas pela apelada, cujo valor agregado é infinitamente superior.

Vistas as coisas a esta luz, é meramente consequencial a conclusão de que o despacho saneador podia, com perfeita segurança, i.e., com acerto e justiça, conhecer do objeto da acção – para a julgar procedente - e logo também do objeto da exceptio do contrato não cumprido – para a julgar improcedente – dado que estava na posse de todos os elementos necessários, para proferir, quanto a ambos os objetos, uma decisão conscienciosa, ponderada e justa. A apreciação da exceptio invocada pela recorrente não reclamava – nem reclama – efectivamente uma discussão, desde logo no plano fáctico, mais larga e reflectida, um estudo mais atento e demorado, que tornasse indicado que se reservasse o julgamento do mérito para a sentença final. O estado do processo habilitava, pois, o juiz da 1.ª instância a julgar o mérito da causa logo no despacho saneador, sendo aliás, no caso, seu dever não relegar a questão para a sentença.

O recurso não dispõe, pois, de bom fundamento e, portanto, só admite uma decisão: a de improcedência.

A retórica argumentativa do acórdão de que decorre o naufrágio do recurso, pode resumir-se nestas proposições:

- O conhecimento do mérito da causa logo no despacho saneador não constitui uma decisão-surpresa se, na audiência prévia, as partes foram prevenidas sobre a intenção desse conhecimento pelo juiz e lhes foi facultada a discussão ou debate sobre a matéria de facto e de direito pertinente à causa, dado  que a audição prévia das partes sobre a possibilidade de conhecimento do mérito da causa destinou-se, precisamente, a evitar decisões-surpresa, a obviar que as partes, ambas, fossem surpreendidas, contra a sua expectativa, infundada ou não, com o imediato conhecimento do objeto da causa no despacho saneador.

- Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, o mérito da causa deve ser arrumado logo no saneador, desde que a questão possa, com segurança, ser decidida nesse momento, i.e., se o processo o permitir, sem necessidade de mais provas.            

- Quando isso ocorre, não há necessidade que o processo atravesse a fase complicada, morosa, pesada e dispendiosa da instrução e da audiência discussão e julgamento e aquele conhecimento, logo naquele despacho, não é desconforme nem com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva nem com o direito ao processo equitativo.

- É admissível a oposição da exceptio à prestação defeituosa uma vez que se o credor pode recusar uma prestação parcial ou viciada, pode, por maioria de razão, não oferecer a sua, opondo a exceptio.

- Num contrato de compra e venda que tenha por objeto várias prestações de coisas, deve recursar-se a atuação da exceptio com fundamento na prestação de coisa defeituosa, se o cumprimento defeituoso se refere a uma coisa relativamente à qual não é pedido o pagamento do preço ou, em qualquer caso, por violação da proporcionalidade, enquanto dimensão da boa fé, se o mau cumprimento, considerada a globalidade do valor económico das prestações, maxime do preço, assumir um relevo mínimo ou uma importância escassa.

A recorrente deverá suportar, porque sucumbe no recurso, as custas dele (art.º 527.º. nºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.          

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela apelante.

                                                                                                                                                    2022.06.14





[1] João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, págs.97 e 98.
[2] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 26 e 27, Miguel Teixeira de Sousa, https://blogspot.com/search?q=Decisão+surpresa e João de Castro Mendes, Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, cit., pág. 102.
[3] Cfr., relativamente aos deveres acessórios de protecção, e no sentido da sua descontratualização, cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, 1994, págs. 55 a 92.
[4] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, Coimbra, 1994, pág. 185. É portanto, à luz do fim da coisa prestada pelas partes – concepção subjectivo-concreta de defeito – ou, na sua falta, à luz do uso corrente, habitual – noção objectiva do defeito – que se aprecia a existência do vício. Cfr. João Calvão da Silva, Estudos Jurídicos (Pareceres), Almedina, Coimbra, 2001, págs. 335 e 336.
[5] Pedro Romano Martinez, Compra e Venda e Empreitada, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III, Coimbra Editora, págs. 246 e 247 e Contratos em Especial, UCP, Lisboa, 1996, pág. 128 e João Calvão da Silva, cit. pág. 336;
[6] Ac. da RL de 21.02.91, CJ, XVI, I, pág. 161
[7] Ac. da RP de 17.11.92, CJ, XVIII, V, pág. 224.
[8] Neste sentido, João Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança. Almedina, Coimbra, 2001, págs. 82 a 84. Mas o ponto é duvidoso. Cfr., no sentido da aplicação, no tocante às situações de defeito superveniente, as regras específicas da venda de coisas defeituosas – e, portanto, propondo uma interpretação restritiva do preceito no sentido de que se pretendeu unicamente esclarecer, que no caso previsto, têm aplicação as regras gerais relativas à transferência da propriedade e do risco - Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, cit., págs. 214 e 215 e 224 a 227.
[9] José João Abrantes, A Excepção do Não Cumprimento do Contrato, 1986, págs. 39 e ss., e Ac. STJ de 11.12.84, BMJ nº 342, pág. 357.
[10] Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 7ª edição, Almedina, Coimbra, págs. 311 e 312 e RLJ, Ano 119, pág. 143, Vaz Serra, RLJ, Ano 105, pág. 283 e Ano 108, pág. 155, José João Abrantes, A Excepção, cit., pág. 70, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, págs. 348 e 349 e Acs. RC de 6.3.07, www.dgsi.pt, 6.7.82, CJ, 82, IV., pág. 35, RL de 17.10.95, CJ, 95, IV, pág. 116 e STJ de 13.05.03, www.dgsi.pt.
[11] António Menezes Cordeiro, Violação Positiva do Contrato, Estudos de Direito Civil, vol. I, págs. 139 a 141.

[12] Assim, v.g. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 256, Almeida e Costa – RLJ, Ano 119.º, pág. 144, e Ac. STJ 06.09.2016 (6514/12.2TCLRS.L1. S1), É à parte que exerce a exceptio que compete demonstrar que o defeito torna inadequada a prestação, em termos de tornar lícita a invocação da excepção.
[13] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Tomo I, 2º ed., 2000, pág. 182.
[14] De harmonia com o entendimento que se tem por preferível, a procedência da exceptio dá lugar a uma condenação quid pro quo – uma coisa pela outra – ou a uma condenação num cumprimento simultâneo, não dando, pois, lugar á absolvição do excipiente do pedido, mas à condenação deste, contra a simultânea eliminação da prestação defeituosa. Assim, Antunes Varela/J. M. Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1985, pág. 683, Vaz Serra, A Excepção do Contrato Não Cumprido, BMJ n.º 67, pág. 31 e ss., José João Abrantes, A Excepção, cit., pág. 154, Nuno Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, pág. 802, Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1987, pág. 335 e, na jurisprudência, Acs. da RC de 13.09.2011 (458/07. /BTND.C1) e de 10.01.2013 (147498/11.4YPRT.C1). Diferentemente, defendendo a improcedência temporária da acção, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Coimbra, 1950, pág. 81, e M. Mesquita, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 95.