Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
712/21.5PCAMD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VALORAÇÃO
RECUSA DE DEPOIMENTO EM AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 152.º DO CP; ARTS. 134.º, 340.º E 356.º, DO CPP; ART. 33.º DA LEI 112/2009, DE 16-09
Sumário: I – Só após a produção da prova em audiência de julgamento deve o tribunal ponderar a necessidade de ouvir quem antes prestou declarações para memória futura, porquanto estas constituem prova pré-constituída, visando, justamente, evitar que a vítima volte a ser inquirida.

II – Se a vítima comparece em audiência e se, legalmente, recusa a prestação de depoimento, fica vedada a valoração do que antes dissera em sede de declarações para memória futura.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                                      

I. Relatório:                                                                                    

            1. No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 712/21.5PCAMD que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha, em 9/6/2022, foi proferida Sentença, cujo DISPOSITIVO é o seguinte:

“III – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, decido:

3.1. absolver o arguido AA da prática, em autoria material e sob a forma consumada, um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º1, a) e n.º2, 4 e 5 do Código Penal, na pessoa da sua mulher BB; e

3.2. julgar extinto, por supervenientemente inútil, nos termos da alínea e) do art.º 277.º do Código de Processo Civil, o pedido de indemnização cível deduzido pelo C... EPE contra o Arguido.

*

Sem custas quer na parte criminal, quer na parte cível [nos termos do n.º1 do artigo 513.º do Código de Processo Penal].”
****

2. Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 11/7/2022, o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1 – Em inquérito a assistente BB prestou declarações para memória futura.

2 – Em sede de julgamento a assistente requereu ser ouvida e prestar declarações.

3 – Pese embora a oposição do Ministério Público, o Tribunal deferiu a pretensão da assistente.

4 – Confrontada nesse âmbito com a possibilidade de não prestar declarações nos termos da lei no que concerne aos factos alegadamente ocorridos, segundo a acusação pública, durante a coabitação, a mesma referiu não pretender prestar declarações.

5 – Na sentença recorrida o arguido AA foi absolvido da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), e n.ºs 2, 4 e 5, do Código Penal, pelo qual vinha acusado, porquanto não foram valoradas as declarações para memória futura anteriormente prestadas pela assistente.

6 – Esta sentença absolutória não pode, contudo, quanto a nós, merecer acolhimento porquanto resulta da apreciação da prova em violação dos artigos 271.º, 355.º, n.º 2, 356.º, n.º 2, al. a), e n.º 6, todos do CPP.

7 – As declarações para memória futura não são simples declarações prestadas em inquérito ou instrução, mas sim prestadas em audiência aberta antecipadamente para esse efeito, perante o juiz e com todas as garantias de defesa próprias do julgamento, designadamente com o exercício do contraditório, como se extrai do disposto no citado artigo 271.º, estando assim, perante a chamada prova antecipada, que deve ser avaliada pelo juiz do julgamento conjugadamente com a restante prova produzida, antecipadamente ou durante a audiência, para formação da sua convicção e decisão da causa.

8 –É certo que a prova antecipada implica uma limitação dos princípios da imediação, oralidade e publicidade que definem a audiência de julgamento, mas são as imperiosas razões de proteção da vítima, de administração da justiça e da verdade material que justificam e legitimam essa limitação.

9 – Com a tomada de declarações no mais curto espaço de tempo a seguir à denúncia, pretende-se obter uma prova mais credível e mais próxima da prova ideal por mais contemporânea com os factos.

10 – Por outro lado, com a prestação de declarações para memória futura procura evitar-se que o agressor exerça novamente o seu poder e ascendente sobre as vítimas, levando-as, designadamente, a não falar ou a relativizar os acontecimentos, assim obstruindo a realização da justiça.

11 – As vítimas de violência doméstica são vítimas especialmente vulneráveis – cfr. artigo 2.º, al. b), da Lei n.º 112/2009, de 16/09, e artigos 1.º, al. j) e 67.º A, n.º 3, ambos do CPP – sendo a prestação de declarações para memória futura um dos seus direitos (cfr. artigo 21.º, n.º 2, al. d), e artigo 24.º, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015, de 04/09).

12 – O artigo 356.º, do CPP, não contém qualquer referência ao artigo 24.º do Estatuto da Vítima, legislação Especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.

13 – Conforme defendido no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/04/2022 (proferido no processo n.º 37/21.6SXLSB.L1-3, disponível in www.dgsi.pt, a respeito da interpretação dessas duas normas, “(…) o n.º 6 do art.º 356.º do CPP integra esse normativo desde a data da sua aprovação, ou seja 1987, e o n.º 6 do art.º 24.º do Estatuto da Vítima data de 2015. (…). Significa assim que o art.º 24.º do Estatuto da vítima é mais recente que o art.º 356.º do CPP. (…) entre o art.º 24.º do Estatuto da Vítima e o art.º 356.º do CPP existe ainda uma relação de especialidade, pelo que não se pode considerar revogado o disposto no art.º 356.º do CPP, norma geral, atento o disposto no art.º 7.º, n.º 3 do CC. Igual relação de especialidade se verifica entre os artigos 271.º, n.º 8 do CPP e o 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, sendo esta a norma especial, porque apenas se aplica a testemunhas que tenham a qualidade de vítima. Ora, a norma do 24 n.º 6 do Estatuto da Vítima impõe como regra as declarações para memória futura e como exceção as declarações em audiência. Na verdade, determina o dito artigo: 6 - Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar. Ou seja, a tomada de declarações para memória futura nos termos deste último normativo, 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente. Significa que a prestação de declarações para memória futura só afastam o depoimento em audiência se o depoente o não puder fazer ou tal importe risco para a sua saúde. Ao contrário o art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, que regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art.º 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
Note-se que o art.º 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.
Acresce que se bem se analisar o art.º 356.º, o mesmo não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art.º 24.º do Estatuto da Vítima.”

14 – As vítimas da violência doméstica têm o direito de prestar declarações para memória futura e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar.

15 – As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento de forma antecipada, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.

16 – Sendo audiência antecipada, deve ser observado o disposto no artigo 134.º, do CPP, quando a vítima tenha com o agente alguma relação de entre as aí previstas, como sucedeu no caso em apreço.

17 – Assim, uma vez explicada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já fi exercido.

18 – Não existe, pois, razão para que as testemunhas vítimas possam transformar uma prova legalmente obtida antecipadamente através das declarações para memória futura em prova proibida, porquanto tal contraria a natureza pública do crime em causa, permitindo-se o mesmo efeito que uma desistência e poria de lado o bem jurídico que o crime público pretende proteger.

19 – Acresce que as vítimas de violência doméstica ficariam ainda mais vulneráveis face ao agente que não hesitará em convencê-las a não prestar depoimento em audiência, caindo assim por terra o seu direito de prestar declarações para memória futura e não serem mais inquiridas sobre os mesmos factos, atentos os efeitos de vitimização secundária daí decorrentes.

20 – O instituto das declarações para memória futura foi consagrado precisamente como forma de antecipar a audiência, através da produção de prova que se afigura de difícil obtenção no futuro, justificando-se uma tal antecipação pelo princípio da descoberta da verdade material.

21 – Assim, em situações como a dos autos, em que a única prova existente é aquela que resulta do depoimento da assistente, desvalorizar este tipo de declarações, obtidas com base em todas as garantias legais, implica desrespeitar o sentido e alcance do instituto, colocando em causa a verdade material e consequentemente a justiça.

22 – Com efeito, as declarações para memória futura, não tendo de ser reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento, devem ser livremente valoradas pelo Tribunal, nos termos que decorrem do princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigos 127.º e 355.º, n.º 2, do CPP).

23 – Não pode, assim, o Tribunal escudar-se no silêncio da assistente para evitar valorar as declarações anteriormente prestadas de modo válido, sob pena de serem colocados em causa a descoberta da verdade material, a conservação da prova, a proteção dos bens jurídicos decorrentes, aliás, do facto de se estar diante de um crime de natureza pública e a própria proteção da vítima visadas pelo instituto

24 – Diante do sucedido nos presentes autos ao Tribunal competia analisar o que foi dito pela assistente nas suas declarações para memória futura em conjugação com a restante prova produzida, valorando o que lhe merecesse maior credibilidade e conformidade com as regras da experiência, da lógica, do conhecimento e das regras da vida, e não abster-se simplesmente de as analisar e valorar, como erroneamente o fez (no sentido aui defendido veja-se o citado Acórdão da Relação de Lisboa, de 20/04/2022).

25 – Como tal, impunha-se que o Tribunal se pronunciasse sobre aquele meio de prova, valorando-o.

26 – Não o fazendo, ao não ouvir, não ler e dessa forma não se pronunciar sobre as declarações para memória futura, como podia e devia, incorreu na nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Nestes termos, deverá ser julgado procedente o recurso ora interposto e, consequentemente, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que valore as declarações para memória futura prestadas pela assistente, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

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3. O recurso, em 15/7/2022, foi admitido.

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            4. O arguido não respondeu ao recurso.

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            5. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 7/9/2022, emitiu douto parecer no qual defendeu a procedência do recurso.

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6. Foi cumprido, de seguida, o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta. 

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7. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência prevista na lei, cumprindo apreciar e decidir.

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II. Decisão Recorrida:

“(…)

            II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. DE FACTO

Da discussão da causa resultaram os seguintes factos provados:

1. A assistente BB e o arguido AA viveram como se de marido e de mulher se tratassem desde o ano de 2010 até à data do matrimónio contraído por ambos em 21.08.2020, mantendo sempre a coabitação.

2. Dessa relação nasceu uma filha, CC, em .../.../2016, a qual foi retirada aos pais no dia 15.03.20 21 e acha se acolhida na instituição Centro de Acolhimento ... em ..., ....

3. O Arguido foi julgado pela prática de factos integradores de crime de violência doméstica no âmbito do processo com o n.º115/13...., tendo sido absolvido da prática daquele ilícito e condenado pela prática de um crime de sequestro, na pena de 100 dias de multa, por factos ocorridos no ano 2013, visando a Assistente.

4. No dia 30.08.2021, a Assistente foi encaminhada para uma casa abrigo, onde permaneceu até 05.09.2021, data em que regressou à residência comum.

5. No dia 08.09.2021, a Assistente voltou novamente a ser acolhida numa instituição, onde permaneceu até ao dia 11.09.2021, data em que regressou, de novo, à residência comum.

6. No dia 20.09.2021, a Assistente foi acolhida na residencial ..., em ....

7. No dia seguinte, a Assistente foi assistida naquela residencial a fazer uma overdose, por ter consumido produtos estupefacientes.

8. Entre os dias 21.09 e 24.09.2021, a Assistente esteve internada no Centro Hospitalar ..., após o que regressou à residência comum.

9. A Assistente sofreu as seguintes lesões: contusão arroxeada na região dorsal direita, de eixo maior sensivelmente com 3 cm por 2,5 cm de largura média; equimose esverdeada na face anterior do ombro esquerdo, de eixo maior oblíquo para baixo e para a esquerda com 3 cm por 1 cm de largura média; e equimose esverdeada na face antero-lateral do terço médio do braço direito, de contornos irregulares e eixo maior oblíquo para baixo e para a esquerda com 7 cm por 4,5 cm de largura máxima, as quais resultaram de traumatismo de natureza contundente e determinaram quatro dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho.

10. A Assistente saiu, em definitivo, da residência comum, separando-se do Arguido no dia 19.12.2021.

11. Alguns dias depois do referido em 10., o Arguido contactou a Assistente por telemóvel, pedindo-lhe para regressar a casa.

Pedido de indemnização civil do Centro Hospitalar ...

12. O Centro Hospitalar ... prestou os seguintes serviços médicos à Assistente: internamento (entre 21 e 24 de Setembro de 2021), meios complementares de diagnóstico e terapêutica designadamente raio-x ao tórax, uma incidência, e grelha costal, uma incidência, e consulta de urgência, os quais ascenderam ao montante de dois mil quinhentos e cinquenta e três euros e quarenta e sete cêntimos.

Situação pessoal e profissional do Arguido

13. O Arguido afastou-se do local de residência por motivos laborais há cerca de 4 meses, encontrando-se a habitação cedida a dois indivíduos seus conhecidos.

14. O Arguido encontra-se trabalhar, com vínculo contratual celebrado com uma empresa de construção civil sedeada em ..., como indiferenciado com desempenhos na área do ..., a auferir o vencimento mensal líquido de €800,00 euros.

15. Por conveniência do empregador, o Arguido encontra-se a residir num espaço habitacional cedido por este, e inserido num stand de automóveis propriedade de um irmão do mesmo, com a responsabilidade de efetuar a vigilância noturna desse espaço.

16. O Arguido, para além de não ter despesas com a habitação, são-lhe igualmente asseguradas as despesas com a alimentação.

17. O Arguido apresenta um quotidiano assente na prossecução dos deveres laborais com permanecias na atual área de residência, salientado deslocar-se quinzenalmente à sua habitação em ... e a ... para visitar a filha, preservando os laços parentais.

18. O Arguido não identifica manter quaisquer hábitos de consumo de bebidas alcoólicas ou de substâncias estupefacientes, tendo no decurso da atual atividade laboral estabelecido relações de convivialidade com pares e colegas de trabalho.

19. O Arguido tem como despesas de maior relevo as relativas ao pagamento faseado da carta de condução cujo processo formativo se encontra a frequentar, no valor de 240,00 euros, e as dívidas com infraestruturas básicas de água no valor de €2.800,00 euros e de eletricidade de €260,00 euros, e dívidas relativas a dois créditos pessoais no valor de 1.000,00 euros.

20. O Arguido mostra-se particularmente agastado com a situação de institucionalização da filha, exteriorizando ter como primazia a recuperação da sua residência.

21. O Arguido apresenta-se resignado com a situação de separação marital e não mantém qualquer expetativa ou intenção de reconciliação, não sendo percetível, aparentemente, quaisquer sentimentos de vingança para com a Assistente.

22. O Arguido foi condenado:

22.1. pela prática, em 06.07.200, de um crime de ameaça, no processo n.º 141/02...., por sentença transitada em julgado em 11.07.2003, na pena de 80 dias de multa à razão diária de 5,50 euros, extinta pelo seu cumprimento em 15.05.2006;

22.2. pela prática, em 13.09.1999, de um crime de condução sem habilitação legal, no processo n.º168/99...., por sentença transitada em julgado em 02.12.2003, na pena de 90 dias de multa à razão diária de 4,00 euros, extinta pela prescrição;

22.3. pela prática, em 10.07.2002, de um crime de condução sem habilitação legal, no processo n.º187/02...., por sentença transitada em julgado em 24.06.2004, na pena de 80 dias de multa à razão diária de 4,00 euros;

22.4. pela prática, em 22.07.2013, de um crime de sequestro, no processo n.º115/13...., por sentença transitada em julgado em 14.10.2015, na pena de 100 dias de multa à razão diária de 5,50 euros, extinta pelo seu pagamento em 05.05.2016;

22.5. pela prática, em 22.02.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, no processo n.º57/13...., por sentença transitada em julgado em 14.09.2017, na pena de 100 dias de multa à razão diária de 7,00 euros, extinta pelo seu pagamento em 26.04.2018; e

22.6. pela prática, em 23.01.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, no processo n.º34/16...., por sentença transitada em julgado em 09.02.2017, na pena de 90 dias de multa à razão diária de 5,00 euros, extinta pelo seu pagamento em 26.04.2018.

Não se provou que:

(da Acusação Pública)

a) entre o ano 2013 e o mês de Agosto de 2020, todas as semanas, pelo menos uma ou duas vezes, na residência comum sita na Rua ..., ..., o arguido desferiu bofetadas e murros no corpo da vítima, o que lhe provocou dores e hematomas no corpo e, nessas ocasiões, apelidou-a de "puta, cabra, porca e vadia";

b) naquele período, o arguido disse ainda à vítima “não sabes cozinhar, só queres é estar deitada, só queres é estar agarrada ao telemóvel, não fazes nada”;

c) nos dias em que ocorriam discussões entre a vítima e o arguido, o mesmo retirava-lhe o telemóvel de modo a impedi-la de contactar as autoridades;

d) no dia 24/01/2020, cerca das 16 h. e 40 m., na residência comum, o arguido o desferiu um murro na cara da vítima, na região orbitária, e agarrou-a pelo pulso, o que lhe provocou dores, e, acto contínuo, disse-lhe “Eu mato-te, faço um buraco, meto-te lá dentro, tal como fiz com o outro”;

e) em meados do ano de 2020, em dia e mês concretamente não apurados, na residência em comum, o arguido muniu-se se de uma faca de cozinha e apontou-a na direção da vítima e, em simultâneo, disse-lhe "é hoje que te mato, não te mato de uma maneira, mato-te de outra";

f) ante a conduta do arguido, a vítima fugiu para a rua, tendo sido seguida por aquele, no entanto, o mesmo não conseguiu concretizar a ameaça;

g) passadas algumas horas daquele episódio, a vítima regressou a casa e o arguido já se achava mais calmo e, por aquele ter pedido desculpas à vítima, a mesma continuou a coabitar com o mesmo;

h) entre o dia 15/03/2021 - data em que a filha do casal foi retirada - e o mês de Agosto de 2021, todos os dias da semana, na residência comum, o arguido agarrou a vítima pelo pescoço e pelos cabelos e desferiu-lhe socos e pontapés no seu corpo, o que lhe provocou dores e hematomas no corpo;

i) no dia 28/07/2021, cerca das 23 horas, na residência em comum, o arguido desferiu socos e pontapés em diversas partes do corpo da vítima, provocando-lhe hematomas e dores, e, de seguida, colocou-a num buraco existente num quarto inacabado da casa e, de seguida, colocou objetos pesados a tapar aquele buraco de forma a impedir que a vítima dali saísse;

j) não obstante, passada cerca de uma hora e meia, a vítima conseguiu arredar uma tampa que estava a tapar o buraco e saiu daquele local;

k) no entanto, quando o arguido viu a vítima, o mesmo desferiu com uma pá de ferro na cabeça da mesma, provocando-lhe um corte na cabeça, todavia, a mesma não recebeu tratamento médico, por ter sido impedida, pelo arguido, de sair de casa;

l) no dia 10/08/2021, durante o dia, o arguido desferiu socos em diversas partes do corpo da vítima e, quando a vítima se achava junto da porta da residência, o arguido fechou-a, entalando a vítima e, nessa sequência, tal porta bateu-lhe na cabeça, causando-lhe uma ferida;

m) no dia 07/09/2021, pela manhã, antes de sair de casa, o arguido pregou tábuas do lado de fora das janelas da residência e fechou a porta à chave, deixando a vítima ali trancada durante todo o dia;

n) naquele dia, após o arguido ter regressado a casa, e verificando que o mesmo não retirava as tábuas das janelas, a vítima, receando que, no dia seguinte, o mesmo procedesse de igual forma, chamou a GNR ao local;

o) no dia 19/09/2021, cerca das 17 h. e 30 m., na residência comum, por achar que a vítima tinha subtraído € 100,00 da sua carteira, o arguido disse-lhe "és uma puta, és uma ladra, andas a prostituir-te, pega nas tuas coisas e sai de casa”;

p) no mesmo dia, a vítima dirigiu-se ao posto da GNR ... a dar conhecimento dos factos que tinham ocorrido naquele dia e, quando regressou a casa e o arguido tomou conhecimento dessa situação, o mesmo desferiu murros e pontapés no corpo da vítima, agarrou-a pelo pescoço e empurrou-a contra um banco de cimento, onde a vítima embateu com a cabeça, o que lhe provocou hematomas na parte de trás da cabeça, nas costas e no ombro e dores no corpo;

q) no mesmo dia, o arguido disse à vítima "és uma puta, uma cabra, andas a assaltar casas";

r) ainda naquele dia, na residência comum, o arguido desferiu com uma vassoura na nuca, nas costas e no ombro da vítima, o que lhe provocou dores e hematomas no corpo;

s) no dia 20/09/2021, durante o dia, quando o arguido foi trabalhar, o mesmo trancou as portas da residência e deixou a vítima na rua, ficando impedida de aceder ao interior da residência;

t) no dia 19/12/2021, pelas 10 h. e 15 m., a vítima retirou da carteira do arguido uma nota de € 20,00 para ir comprar pão, tendo, de seguida, colocado o troco no valor de € 18,30 na carteira do mesmo;

u) naquele dia, cerca das 18 h., o suspeito mexeu na sua carteira e deparou-se com a falta da nota de € 20,00;

v) de seguida, o arguido questionou a vítima acerca do destino que deu à nota acima referida e, acto contínuo, desferiu chapadas na cabeça da mesma, agarrou-a pelos cabelos e desferiu com a cabeça da vítima na porta da rua e no chão e, em simultâneo, apelidou-a de “puta, vaca, cabra e porca de merda";

w) naquela ocasião, a vítima conseguiu fugir da cozinha para o quarto, todavia, o arguido foi no seu encalço e apanhou-a, atirando-a para cima da cama;

x) de imediato, o arguido desferiu murros e pontapés no corpo da vítima, atingindo sobretudo a parte esquerda do corpo, junto ao peito e às costelas, provocando-lhe dificuldades respiratórias e dores;

y) em simultâneo, o arguido disse à vítima o disse à vítima "… sua puta, sua cabra, porca, vaca de merda, não vais telefonar mais à CC, senão nunca mais a vês… ela vai saber por mim a merda de mãe que és…vou abrir o poço e meto-te lá dentro, cubro-te com terra e nunca mais te com terra ninguém te vê…";

z) seguidamente, o arguido saiu do interior do quarto e deslocou-se ao exterior da casa, dirigindo-se ao poço que tem no quintal e tirou a tampa do mesmo;

aa) ao ver tal situação e com medo que o suspeito concretizasse as ameaças proferidas, a vítima fugiu de casa pela janela do quarto da filha para a localidade do ..., levando apenas o telemóvel consigo e não regressou à residência comum;

bb) em consequência dos factos perpetrados pelo arguido, no último dia acima referido, a vítima sofreu as lesões supra descritas em 9.;

cc) a vítima tem receio que o arguido atente contra a sua vida;

dd) a vítima dependia economicamente do arguido;

ee) ao escutar as expressões injuriosas e ameaçadoras supra referidas e proferidas pelo arguido, a vítima sentiu a sua honra e consideração pessoal afetadas, sentiu-se humilhada e ficou com receio que o mesmo concretizasse as ameaças que lhe vinha dirigindo;

ff) o arguido atuou sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de molestar o corpo da vítima, como fez, abusando da sua superioridade física em relação à mesma, assim como quis ofender a sua honra e consideração pessoal, humilhá-la, perturbá-la na sua tranquilidade e liberdade e privá-la da sua liberdade, atuando no interior da residência comum, longe do olhar de terceiros;

gg) mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal;

(Pedido de indemnização civil do Centro Hospitalar ...)

hh) em virtude das agressões perpetradas pelo Demandado, descritas na acusação, a Assistente necessitou de tratamento hospitalar.

A factualidade provada assim resultou porque suportada documental e pericialmente, nomeadamente, e inter alia que infra este Tribunal se referirá individual e explicitamente, nos assentos de nascimento juntos aos autos (da Assistente e da Filha comum da Assistente e do Arguido); no relatório de dano corporal datado de 22.12.2021, em que se enunciam as lesões e sequelas então observadas, por isso provadas; na fatura junta com o Pedido de Indemnização Civil, no relatório social  junto em 25.05.2022; e no certificado de registo criminal do Arguido, atualizado, datado de 19.05.20220; conjugada com a prova pessoal produzida em audiência de discussão e julgamento, concretizando as declarações prestadas pelo Arguido e pela Assistente.

A demais factualidade alegada não deveio provada por ausência de prova, documental, pericial e/ou  pessoal/testemunhal que a suportasse, sobretudo diante: do uso, pela Assistente, em audiência de julgamento, da sua faculdade de recusa a prestar declarações (inscrita no artigo 134.º, n.º1, b) do C.P.P.) quanto aos factos (alegadamente) ocorridos durante a coabitação com o Arguido – que englobam praticamente todo o objeto dos presentes autos tal como definido na Acusação Pública –, o que, por conseguinte, no entendimento deste Tribunal conforme infra explicitará, importa a proibição de valoração das declarações para memória futura prestadas em inquérito (atento o previsto no artigo 356.º, n.º6 do C.P.P.); e mais considerando a ausência de mais e/ou qualquer prova testemunhal que, eventualmente, permitisse, em conjugação com os elementos documentais e periciais juntos aos autos, aceder e apurar a verdade material, tal como vem alegada na Acusação Pública.

Este Tribunal percorreu todos e cada um dos elementos documentais e periciais juntos aos presentes autos, com vista ao apuramento do tipo de relação existente entre Assistente e Arguido e, neste âmbito, dos comportamentos deste para com aquela, tendo, sempre, presente, não só nesta sede (de elaboração da Sentença), como também em toda a fase de julgamento, as especificidades e particularidades do tipo de crime (violência doméstica), assim como e o tratamento diferenciado, legalmente plasmado, que deve ser dado às suas vítimas – disso mesmo é reflexo o Despacho proferido em 06.04.2022 (referido à convocação e da proteção/assistência da Assistente) e os Despachos proferidos na primeira sessão da audiência de julgamento, a respeito da sua tomada de declarações (à Assistente); sem olvidar, doutro passo, que atender àquelas especificidades e dar um tratamento adequado a este tipo de vítimas jamais poderá importar a desconsideração dos direitos do Arguido, num equilíbrio, particularmente difícil em processos como os dos presentes autos, entre, por um lado, a proteção dos (direitos) da vítima de violência doméstica – com vista, entre o mais, à prevenção

da sua vitimização secundária –, e, por outro lado, o respeito pelo princípio fundamental do processo penal de acordo com o qual o arguido se presume inocente até trânsito em julgado de uma decisão condenatória.

Neste quadro, o Tribunal analisou:

i. os autos de notícia de 05.12.2019, com que se iniciaram os autos sob o número 296/19...., e  de 24.01.2020, com que se iniciaram os autos de inquérito com o n.º 17/20...., junto por email de 27.01.2020 e, ainda, em 29.01.2020, que não contêm mais do que a descrição do que os Militares que ali se deslocaram ouviram dizer à Assistente e ao Arguido, e não a narração de qualquer perceção direta do que possa ter acontecido;

ii. o relatório pericial de 29.01.2020, referido ao exame, realizado na mesma data, solicitado no âmbito do inquérito 296/19...., onde se lê: (…).

iii. a documentação das tentativas de notificação da Assistente para as diligências em curso, as quais resultaram frustradas por esta não se encontrar na Casa de Abrigo para onde havia sido conduzida e/ou se desconhecer o seu atual paradeiro, de que são exemplo: a cota da P.S.P. junta aos autos por  email de 05.02.2020; o termo datado de 13.02.2020; as fichas de avaliação de risco juntas em  26.02.2020 (dando conta de um risco “baixo”); o ofício do INML dando conta da falta de comparência da Assistente junto em 31.03.2020 e o sequente termo de 03.04.2020 – seguindo-se o (Despacho de) arquivamento dos autos n.º296/19.... aos quais haviam sido apensados n.º17/20....;

iv. o auto de notícia com que se iniciaram os presentes, de 31.08.2021, dando conta da deslocação da Assistente àquela Esquadra, em 27.08, para fazer denúncia, ou seja, sem conter a descrição de factos diretamente percecionados pela Entidade Autuante; e o aditamento de 06.09.2021, de novo contendo o que foi narrado pela Assistente;

v. de novo, documentação referida à questão das mudanças pela Assistente de Casa Abrigo, e as suas causas, tal como vertidas em email dirigido aos autos em 15.9.2021, e que infra se reproduz:

“a) No dia 9 de Setembro, não obstante estar em isolamento até realização do teste COVID, por determinação da autoridade de saúde, a sra. BB ausentou-se da instituição sem o consentimento e conhecimento da equipa técnica para, segundo a mesma, frequentar um café. Ora, a CAE ... constitui-se como uma residência temporária, de acolhimento e apoio a vítimas de violência doméstica, de forma a garantir a segurança das mesmas, pelo que a sua ausência prolongada deverá ser sempre comunicada à equipa técnica, bem como o isolamento deverá ser cumprido tendo em conta que existem outras utentes na instituição.

b) Este comportamento foi reiterado durante a sua permanência na instituição, apesar das constantes chamadas de atenção por parte da equipa técnica e do reconhecimento do incumprimento por parte da utente.

c) No dia 11 de Setembro, após o jantar, a utente ausentou-se novamente da CAE I... por volta das 20h para fumar um cigarro à porta da instituição. Pelas 21h, uma vez que a sra. BB ainda se encontrava ausente e já não estava nas imediações da instituição, a equipa técnica contactou-a no sentido de a mesma regressar à CAE Intervir para se dar início ao processo de término do acolhimento tendo em conta o reiterado incumprimento. A utente apresentou-se na instituição acompanhada de um sujeito do sexo masculino (cuja identidade desconhecemos), referindo que se tratava do seu cunhado. Esta atitude da Sra. BB é extremamente gravosa uma vez que pôs em causa a localização da instituição, que requer absoluto sigilo, bem como a segurança das utentes acolhidas e das equipas de colaboradoras.

d) Tendo em conta os comportamentos da Sra. BB, determinamos pelo término do acolhimento nessa mesma noite, tendo sido acionada a patrulha da GNR ..., para acautelar a segurança de todas as pessoas envolvidas, assim como auxiliar a utente a encontrar uma resposta de acolhimento alternativa e adequada às suas necessidades. Após ser questionada pela GNR que apoio lhe poderia ser prestado, a mesma recusou-se a usufruir de qualquer auxílio, indo embora com o sujeito que a acompanhava para destino desconhecido.

e) Complementarmente, informamos que a sra. BB apresentou consumos ativos de estupefacientes durante a sua permanência na CAE Intervir, pelo que as constantes ausências teriam como objetivo o consumo. Não sendo o acolhimento de emergência a resposta mais indicada para uma situação de toxicodependência, acolhemos a sra. BB como vítima de violência doméstica, desconhecendo esta condição de dependência.

Não nos sendo possível encaminhar a utente para uma resposta mais adequada, procuramos de imediato, a integração da sra. BB em Casa de Abrigo, por se tratar de uma resposta de acolhimento mais permanente e onde poderia usufruir de acompanhamento médico adequado à sua condição.) Por fim, indicamos que a intervenção referida no número anterior é da responsabilidade da equipa técnica da entidade que solicitou o acolhimento de emergência em articulação com o/a responsável técnico/a da resposta de acolhimento de emergência (art. 27º, nº 3, do DR 2/2018 de 24 de janeiro), pelo que informamos de imediato sobre a cessação do acolhimento e motivos do mesmo ao NIAVE do ... e ao Comandante do Posto da GNR onde foi apresentada a denúncia, uma vez que a utente foi encaminhada pela LNES por solicitação desta força de segurança”;

vi. o sequente ofício da G.N.R., por email de 20.09.2021, onde se lê: “relativamente ao vosso pedido de diligência para inquirir a vitima BB, informa-se que a mesma já não se encontra na casa abrigo em ... desde 11 de Setembro de 2021, segundo informação da responsável pela casa a Sra. foi expulsa devido a comportamentos inadequados e ausências prolongadas da referida residência sem motivo ou necessidade, informou ainda que deu conhecimento destes factos à GNR ... bem como ao MP correspondente, pelo que se informa que de momento se desconhece o paradeiro da vitima”;

vii. o aditamento de 19.09.2021, contendo, à imagem dos autos e aditamentos supra referidos, a descrição pela Vítima de uma agressão que se teria passado no dia anterior, e não de factos diretamente percecionados pela Entidade Autuante, com reportagem fotográfica;

viii. a informação pelo NIAVE de ... junta aos autos em 22.09.2021: “no dia 21 de setembro do presente ano, tivemos conhecimento, que esta teria sofrido uma overdose na ZA desse Comando assim solicita-se cópia do expediente elaborado por esse Comando, para junção aos Autos em inquérito neste Núcleo”; na sequência do que;

ix. a PSP ... remeteu a participação por abertura de porta com socorro, elaborado por esta Polícia e em que é interveniente a vítima BB, junta aos autos por email de 22.09.2021;

x. a informação de nova falta de comparência no exame médico legal, informada por oficio de 29.09.2021;

xi. a documentação clínica junta pelo Centro Hospitalar ... por email de 30.09.2021, relativo a um episódio “(pouco) urgente”, de 21.09.2021, onde se lê, a título de observações da Sr.ª Médica: (…).

xii. a informação junta aos autos em 06.10.2021, pelo N.I.L.A.V.D., onde se lê: “informo que face ao vosso pedido de colaboração para transporte da vítima, tentei entrar em contacto com a mesma, mas os 2 números de contacto estão sempre desligados. Na impossibilidade de entrar em contacto com a vítima, saliento que o NILAVD continua sempre disponível para acolher esta vítima, assim que ela queira”;

xiii. o aditamento de 19.12.2021, contendo não a factos percecionados pela Entidade Autuante no quadro de alguma deslocação, mas a denúncia da Assistente que se deslocou àquele Posto, na sequência do que a Assistente foi, de novo, encaminhada para Casa Abrigo, providenciada pela teleassistência, bem como ao Hospital;

xiv. o ofício da GNR de 29.12.2021, dando conta da informação segundo a qual, que, de resto, foi  confirmada em audiência, em declarações por si prestadas: (…).

xv. a documentação referente à assistência prestada a BB no dia 21.12.2021 no Serviço de Urgência do ..., junta em 18.01.2022, referido a um episódio de “urgente (amarelo)”, onde se lê o narrado pela Assistente e se deu alta com analgesia;

xvi. a informação veiculada em 24.01.2022, provinda Santa Casa Misericórdia ... – Casa Abrigo onde estivera, até à presente data, BB, onde se lê: “A utente foi acolhida nesta Casa de Abrigo em 06/01/2022 por alegada situação de violência doméstica, nomeadamente violência psicológica, sexual e económica, perpetrada à mesma pelo seu marido AA.

A utente encontrava-se bastante motivada para iniciar um novo projeto de vida longe de toda a situação a que esteve sujeita, no entanto, passados alguns dias, a utente revelou vontade de sair da Casa de Abrigo, afirmando que ia para casa de um amigo no ....

A equipa trabalhou com a utente no sentido de fazê-la ponderar melhor a sua decisão e a mesma decidiu ficar e iniciar um novo projeto de vida.

A utente passa a maior parte do tempo ao telefone, ao que sabemos com este amigo, que a tem apoiado (segundo a própria) nomeadamente a nível financeiro (deposita dinheiro na conta da utente).

No dia 19/01/2022 a utente revelou novamente vontade de ir embora, pois este amigo teria conseguido emprego para ela num Lar e habitação para arrendar.

Assim, a utente assinou termo de saída da Casa de Abrigo em 21/01/2022, informando que iria residir para: R. ..., nº ..., ..., ... ....

Informou também que iria trabalhar, a partir do dia 01/02/2022 em – ..., R. ..., ..., ..., ... ....

De referir que a anterior morada da utente, onde residia com o agressor é: R. D. ..., ..., ... ... – .... A equipa técnica avaliou com a utente o risco de revitimização, que se revelou elevado, tentando consciencializa-la dos perigos a que poderia estar sujeita. A utente tem teleassistência. A utente afirmou que se encontrava mais consciente de toda a situação, que não iria voltar para junto do agressor e que a zona de risco seria apenas a aldeia da ....

A utente acabou por sair desta Instituição, por livre vontade, assinando um termo de saída em 21/01/2022.”

xvii. os escritos da Assistente juntos aos autos em 02.02.2022 e em 11.02.2022, seguindo-se o aditamento de 17.02.2022, onde se lê: (…)  cujo (eventual) valor e alcance probatório (entenda-se, dos ditos escritos) foram, pela Própria Assistente, contrariados em declarações por si prestadas em audiência de discussão e julgamento, ao negar, nesta sede, que o Arguido se lhe tenha dirigido, presencialmente e/ou por contacto telefónico ou outro similar, em momento ulterior aos telefonemas que lhe fez logo após a separação definitiva, em que, além do mais, apenas lhe terá pedido para voltar para casa;

xviii. tanto mais que, naquela sequência (isto é, daquele Aditamento) foi este o Despacho proferido em 24.02.2022: “Uma vez que se desconhece se os contactos referidos a fls. 635 pertencem ao arguido, considerando as medidas de coação que lhe foram aplicadas, entende-se que, por ora, não se acha adequado promover o agravamento do estatuto coactivo do arguido”;

xix. anotando, por último, quanto ao teor do aditamento datado de 30.03.2022, enviado aos autos já depois de deduzida a Acusação Pública e encontrando-se os autos em fase de julgamento, que, também foi contraditado em audiência de julgamento diante das declarações prestadas pela Assistente, as quais, ademais, permitiram compreender melhor:

xx. o teor do email da APAV remetido aos autos em 24.05.2022, onde se lê: “a Sr.ª D. BB encontra-se integrada em casa de abrigo para Mulheres Vítimas de Violência de Doméstica, ao abrigo da lei 112/2009, de 16 de Setembro, e cuja morada é confidencial. A integração nesta Casa de Abrigo concretizou-se em vaga de emergência no final do dia 20 de Maio de 2022 e decorreu do pedido explícito de apoio feito pela Sr.ª D. BB, alegando ser vítima de episódios de violência doméstica perpetrados pelo companheiro”.

Este Tribunal deveio, diante deste email último, “alarmado” não só para a possibilidade de a sua tomada de declarações à Assistente em audiência de julgamento poder prejudicar a sua saúde, nomeadamente a sua saúde psíquica – o que o (entenda-se, o Tribunal) levou a recuar, no início da primeira sessão da audiência de julgamento, na (decisão) de a ouvir nesta sede; como também para a (eventual) necessidade de determinar a extração de certidão para eventual instauração de novo procedimento criminal por mais/novos factos praticados pelo Arguido contra a Assistente.

Tal “alarme” acabou por não se confirmar diante das declarações que a Assistente veio a prestar na segunda sessão, e que, sublinhe-se, foi a Própria que requereu e quis prestar, insistindo, através da sua Ilustre Advogada, e encontrando-se acompanhada por Psicóloga, em ser ouvida e prestar declarações em audiência de discussão e julgamento.

Assim, na segunda sessão da audiência de julgamento, a Assistente, novamente acompanhada pela sua Advogada, bem como pela Psicóloga lhe nomeada, foi cabalmente esclarecida da sua faculdade de recusa a prestar declarações, que exerceu, não podendo, nem devendo, por conseguinte, ser questionada sobre os factos alegados na Acusação Pública (alegadamente) ocorridos durante a coabitação com o Arguido.

E, quanto ao sucedido desde então – isto é, desde a separação/saída em definitiva da residência comum, em ... –, foi clara e assertiva em dizer, e reiterar, conforme já se avançou supra, que o Arguido apenas a contactou dois, três dias depois, pedindo-lhe para voltar, mas não voltou a fazê-lo, acrescentando, com relevo, que: “nos primeiros meses, o Arguido fez a vida dele e eu fiz a minha, (…) no dia 11 deste mês, fomos ver a CC (filha comum), correu tudo, não houve qualquer tipo de conversa de ameaça, nada mesmo, almoçámos juntos e ele foi (…)”.

Ou seja, a ideia com que se poderia ficar, e com que este Tribunal ficou diante do sobredito email da APAV, de que a Assistente teria sido alvo de comportamentos recentes por parte do Arguido, encontrando-se (de novo) em situação especialmente vulnerável por conta de comportamentos do Arguido, o que inclusivamente a teria reconduzido para uma (nova) Casa de Abrigo, foi desmistificada: não só a Assistente esclareceu que não houve qualquer comportamento negativo do Arguido contra si desde aquela separação, como até, ainda no mês passado, foram juntos ver a Filha; como também esclareceu que as sucessivas mudanças de Casa de Abrigo, incluindo a última reportada aos autos, não tiveram que ver com comportamentos da parte do Arguido, antes por razões alheias, que, na verdade, o Tribunal não conseguiu verdadeiramente apurar, tanto mais que, conforme documentação supra analisada, foram várias as vezes que a Assistente entrou e saiu de Casas de Abrigo e nem sempre tal esteve associado a um regresso à residência comum (do hoje ex-Casal), nem, segundo essa mesma documentação/informação das próprias Instituições que a acolheram, a comportamentos (nomeadamente agressivos) do Arguido.

No quadro documental e pessoal supra analisado, outrossim considerando que o Arguido, prestando declarações, negou a prática dos factos de que vinha acusado, resultou inviável a este Tribunal apurar a veracidade da versão veiculada pela Acusação Pública.

Uma última, e muito importante, nota sobre a não valoração das declarações para memória futura prestadas pela Assistente em sede de inquérito.

O entendimento deste Tribunal, avançado na própria audiência, foi, e é, o de que, diante do uso da faculdade de recusa a depor/prestar declarações em audiência de discussão e julgamento, tais declarações não podem ser valoradas, sob pena de desrespeito pela proibição inscrita no artigo 356.º, n.º 6 do C.P.P..

Alias, e conforme deixou explicitado em Despacho proferido na primeira sessão da audiência de discussão e julgamento (então a respeito da tomada, ou não, de declarações à Assistente em audiência de julgamento), este Tribunal perfilha o entendimento segundo o qual:

«A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou propiciar que a vítima exerça o direito de se recusar a depor porque a vítima tem (como o arguido), esse direito a qualquer momento em que tenha de depor ou queira depor, ainda que, sendo apenas ofendida, seja ouvida como testemunha. É o que resulta do disposto no n.º 6 do artigo 356.º do CPP e do artº 134º nº 1 a) e b) CPP. O artº 356º não inibe a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas também não pode inibir o direito a recusar-se a depor acrescendo que a lei é rigorosa quando diz que é proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento nessas circunstâncias. Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura. Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está a impedir que essa prova seja valorada. Há um reforço de não leitura já expresso pelo legislador no artº 271º nº 8, no qual nos diz que a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento. E há um duplo travão a que tais declarações sejam valoradas como prova na situação dos autos, ou seja, quem as prestou recusa-se a depor em audiência dando lugar como que a uma inutilidade superveniente das mesmas declarações, que o próprio anula retirando-as do âmbito da apreciação da prova. Ou seja, apenas dos meios de prova permitidos e, as declarações para memória futura, após a recusa a depor em audiência, já não podem ser consideradas meios de prova» (vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.09.2021, processo: 20/21.1SXLSB.L1-3, relatado pela Sr.ª Juíza Desembargadora ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA).

Este Tribunal tem, porém, presente que esta temática (de valoração ou não das declarações para memória futura nestes casos) e outras (como a da convocação e inquirição da vítima de violência doméstica em audiência de julgamento quando prestou declarações para memória futura), se encontram a ser debatidas pelos nossos Tribunais, insertas no quadro das preocupações de todos em torno deste fenómeno que é a violência doméstica, das suas consequências nefastas e das inerentes necessidades da sua prevenção e de proteção das suas vítimas, vítimas estas que ocupam, sem dúvida – e conforme este Tribunal disse, e explicitou na primeira sessão da audiência de julgamento –, um lugar de destaque, atentos os normativos

legais pelos quais se lhes atribuiu um especial estatuto e, com este, especiais direitos.

Nesta ordem ideias, recentemente, o mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão proferido no processo n.º37/21.6SXSLB.L1 – 3.ª Secção, relatado pela Sr.ª Juíza Desembargadora Maria Gomes Bernardo Perquilhas, decidiu que as declarações para memória futura deveriam ser valoradas, apelando, justamente, ao especial estatuto das vítimas de violência doméstica, lendo-se, nomeadamente:

«Importa ter presente que as vítimas de violência doméstica são vítimas especialmente vulneráveis, como resulta da conjugação do disposto nos artigos 2.º, al. b), da Lei n.º 112/2009, de 16/09 Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência suas vítimas, art.º 1º, al. j) e 67.ºA, n.º 3 do CPP, e consequentemente prestar declarações para memória futura é um dos seus direitos, como de resto se mostra consagrado no art.º 21.º, n.º 2, al. d), do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/ 2015 de 04/09, como um dos direitos das vítimas especialmente vulneráveis, a prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.º. (…)

Aqui chegados importa desde já frisar que, como já disse, o n.º 6 do art.º 356.º do CPP integra esse normativo desde a data da sua aprovação, ou seja 1987, e o n.º 6 do art.º 24.º do Estatuto da Vítima data de 2015. Deste modo, a interpretação a fazer não pode ser a de esta norma, mais recente, ou seja, lei nova, aplicada a situações especificas e próprias, a vítimas e não qualquer outra testemunha, ceda perante a norma do CPP referida, que é muito anterior, pensada e elaborada numa altura em que não se procedia à gravação das declarações, mas à sua exaração completa em auto ou por súmula, e que se aplica genericamente. Significa assim que o art.º 24.º do Estatuto da vítima é mais recente que o art.º 356.º do CPP. Contudo, para além de uma norma ser mais recente que a outra, entre o art.º 24.º do Estatuto da Vítima e o art.º 356.º do CPP existe ainda uma relação de especialidade, pelo que não se pode considerar revogado o disposto no art.º 356.º do CPP, norma geral, atento o disposto no art.º 7.º, n.º 3 do CC. Igual relação de especialidade se verifica entre os artigos 271.º, n.º 8 do CPP e o 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, sendo esta a norma especial, porque apenas se aplica a testemunhas que tenham a qualidade de vítima. Ora, a norma do 24 n.º 6 do Estatuto da Vítima impõe como regra as declarações para memória futura e como exceção as declarações em audiência. (…)

Acresce que se bem se analisar o art.º 356.º, o mesmo não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art.º 24.º do Estatuto da Vítima.

(…)2–As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.

Sendo audiência antecipada, como é, aberta especialmente com observância de todas as regras que regulam a audiência de julgamento adequadas a este instituto particular, deve ser observado o disposto no art.º 134.º do CPP quando a vítima tenha com o agente alguma relação de entre as aí previstas.

(…)  Estas conclusões impõem, quanto a nós, a seguinte conclusão: uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido. Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.

(…)

Acresce que, a tese segundo a qual a vítima que tendo prestado declarações para memória futura, opte por não prestar depoimento quando chamada a audiência transformando as anteriores em prova proibida contraria a natureza pública do crime em causa, permitindo-se o mesmo efeito que uma desistência, com mais força até pois redunda as mais das vezes em decisão absolutória com efeitos de caso julgado, contrariando-se lei expressa, o espírito do legislador e os bens jurídicos que se pretendem proteger. Por outro lado, esta tese transmite uma maior vulnerabilidade às vítimas de violência doméstica perante os agentes de crimes que não hesitarão em iniciar mais um ciclo com a típica sedução para as impedir de manter a coragem de chamadas que continuam a ser para prestar depoimento em audiência, contra o seu direito a prestar declarações para memória futura e não serem mais inquiridas sobre os mesmos factos, atentos os efeitos de vitimização secundária daí decorrentes, contar os factos de que foram alvo.

Finalmente e acima de tudo, o art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6».

Este Tribunal não fica, nem poderia ficar, indiferente à argumentação expendida neste segundo Acórdão, por, justamente, e entre o mais, enfatizar as ditas especificidades deste tipo de crime e deste tipo de vítimas, assim como a necessidade de as proteger, assim prevenindo a sua revitimização e, de uma forma geral, a violência doméstica.

Mas, desde logo, suscitam-se as seguintes reflexões e dúvidas a este Tribunal sobre até onde deveremos ir, seja na interpretação e aplicação do direito constituído, seja para efeitos do direito a constituir, para prevenir a violência doméstica – o que é, e deve continuar uma preocupação de todos nós, incluído da sociedade civil; sobre qual a melhor forma, desde logo no âmbito do processo penal, com vista à proteção das suas vítimas; e, ainda, sobre como conjugar essa devida proteção das suas vítimas com os direitos (de defesa) do arguido, cuja qualidade de agressor deverá permanecer em discussão, e não ser assumida como facto certo e seguro logo em sede de inquérito, designadamente porque e diante de declarações para memoria futura prestadas pela (alegada) vítima.

O fenómeno da violência doméstica e a sua prevenção exige reforçadas e variadas cautelas, e este Tribunal não tem respostas para as suas reflexões e dúvidas, admitindo, até, que, em termos de direito constituendo, entendimentos como o recentemente vertido no segundo dos Acórdãos citados possam ser vertidos em lei, no quadro (maior) de medidas de prevenção da violência doméstica e proteção das suas vítimas.

No entanto, ao nível do direito constituído, e com muito respeito pela Opinião diversa, haverá de ter presente que o Estatuto da Vítima abrange muito mais vítimas, e não só as vítimas de violência doméstica, de modo que uma interpretação segundo a qual a regra contida no artigo 356.º, n.º6 do C.P.P. não é aplicável por ser regime geral e anterior ao regime previsto artigo 24.º do Estatuto da Vítima, que é lei especial, que, por isso, como que derroga a regra geral ali contida, pode (rá) importar a desconsideração da proibição contida no citado artigo 356.º, n.º6 do C.P.P. em muitos outros processos penais, envolvendo muitos outros tipos de crimes e, por conseguinte, muitas outras vítimas e muitos outros arguidos.

Pelo exposto, e sem prejuízo deste Tribunal permanecer, como é seu dever, atento às discussões jurisprudenciais que, por estes dias, emergem em torno desta (s) problemáticas – que poderão levar a uma sua nova reflexão –, neste momento, diante da leitura que faz da Lei Processual Penal vigente, conjugada com o Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e com o Estatuto da Vítima, mantem o seu entendimento de que, tendo a Assistente se recusado a prestar declarações em audiência de julgamento, as declarações por si prestadas para memória futura não podem, nem devem ser valoradas nesta sede.

Assim, e, ademais, na ausência de qualquer outra prova testemunhal, bem como na insuficiência, em si mesmos e entre si conjugados, dos ditos elementos documentais e periciais supra analisados, se justifica que este Tribunal não tenha logrado apurar a demais prova alegada na Acusação Pública, que, por isso, não deveio provada, o que, como se antevê, conduzirá à absolvição do Arguido do crime de que veio acusado.


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2.2. DE DIREITO

2.2.1. Do crime de violência doméstica

O Arguido veio acusado da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º1, alínea a) do Código Penal, onde se lê que «[q]uem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.


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2.2.1. Revertendo ao caso dos presentes autos, diante da factualidade provada no confronto com a não provada, não se verifica, sequer, a presença dos elementos objetivos do tipo de crime de violência doméstica pelo qual o Arguido veio acusado, o qual, por isso, e necessariamente, devirá absolvido.

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2.2.2.2. Do pedido de indemnização civil

A indemnização por perdas e danos emergentes de crime encontra-se regulada pela lei civil (artigo 129º do Código Penal).

De notar, por fim e com relevo para o caso dos autos, que, quando o pedido de indemnização civil assenta na prática de um crime, este constitui, precisamente, o facto ilícito gerador de responsabilidade (artigo 71.º do Código Processo Penal e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.06.1998, CJ, III, p. 56).

Uma vez que o presente pedido cível foi formulado com base na prática de um crime, e atenta a absolvição supra, a apreciação e decisão sobre este pedido deveio supervenientemente impossível e inútil, pelo que se extingue nos termos da alínea e) do art.º 277.º do Código de Processo Civil.”


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III. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

A questão a conhecer é a seguinte:

- Saber se o Tribunal a quo devia ter valorado as declarações para memória futura prestadas pela assistente em inquérito.


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            O recorrente defende que o Tribunal a quo, ao não se pronunciar sobre as declarações para memória futura, como podia e devia, incorreu na nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP.

            Vejamos.

Entendemos por bem deixar expressa a descrição cronológica de determinados atos processuais relativos à questão suscitada no presente recurso.

            Em primeiro lugar, BB, em 1/2/2022, prestou declarações para memória futura, conforme resulta do respetivo auto de fls. 571 e 572, do qual consta, além do mais, o seguinte:

            “Aos costumes disse ser casada com o arguido AA.

            Advertida nos termos e para os efeitos do disposto na al. a), do n.º 1, do artigo 134.º, do Código de Processo Penal, a mesma declarou pretender depor.

  Em segundo lugar, o Ministério Público, em 4/2/2022, deduziu acusação contra o arguido, tendo indicado como prova, além do mais, “as declarações prestadas pela vítima no dia 01/02/2022 – cf. auto de declarações a fls. 571 a 572 – e que se acham gravadas no sistema Medio Studio.”           

Em terceiro lugar, a Meritíssima Juiz proferiu, em 6/4/2022, o seguinte Despacho:

I - Da designação da audiência de julgamento    

(…) o dia 27 de maio de 2022, com início às 9:15, sendo nos seguintes moldes:

i. Às 9:15, as declarações do arguido (caso não exerça o seu direito ao silêncio, naturalmente);

ii. às 9:30, as declarações da (alegada) vítima, nos termos que infra se determina (e caso, naturalmente, não use da sua faculdade em recusar-se a depor); e

(…).

II – Da convocação e da proteção/assistência da Vítima

Atenta a natureza e objeto dos presentes autos, donde se reputa tratar-se de diligência indispensável à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa; por não constarem dos autos elementos que indiquem que tal diligência colocará efetivamente em causa  a sua saúde física ou psíquica – o que sempre se salvaguardará, diligenciando-se, designadamente, pelo afastamento do Arguido da sala de audiências durante as respetivas declarações; e nos termos previstos no artigo 271.º, n.º 8, do CPP, no artigo 33.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e artigo 24.º, n.º 6, da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro; outrossim tendo presente o estipulado no artigo 356.º, n.º 6, do CPP, determino que seja convocada a fim de ser inquirida em audiência de julgamento diante deste Tribunal BB.

(…).

Em quarto lugar, BB, em 12/4/2022, veio aos autos solicitar que fosse acompanhada, em audiência de julgamento, pela Sra. Dra. DD, psicóloga.

Em quinto lugar, a APAV, em 24/5/2022, veio informar que BB se encontrava integrada em casa de abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica e, ainda, que não estavam “garantidas as condições de segurança no acompanhamento da vítima nesta diligência, se presencialmente.”

Em sexto lugar, o Ministério Público, em 25/5/2022, veio aos autos promover o seguinte:

Do e-mail enviado a 24/95/2022 pela casa abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica onde se encontra acolhida a assistente, situada fora da comarca ..., resulta não estarem garantidas as condições de segurança no acompanhamento da mesma ao julgamento designado em termos presenciais e solicita-se a possibilidade de ser ouvida via webex.

(…).

Nesta conformidade, o Ministério Público promove que a mesma não seja ouvida nem presencialmente, nem através de webex, uma vez que já prestou depoimento antecipado através das declarações para memória futura que serão depois valoradas pelo Tribunal em sede de sentença, juntamente com os restantes meios de prova produzidos em julgamento e resultantes dos autos.

(…).

Assim, nesta sequência, promovo não se proceda à tomada de declarações à vítima em julgamento e se notifique a mesma de que não será necessário comparecer presencialmente em julgamento, nem haverá necessidade de ser ouvida via webex, uma vez que já prestou declarações para memória futura.

Em sétimo lugar, a Meritíssima Juiz, em 26/5/2022, proferiu o seguinte Despacho:

Diligencie pela inquirição da Vítima à distância, via webex, nos termos avançados pela APAV, informando que, mesmo à distância, a Vítima será ouvida por este Tribunal, encontrando-se o Arguido afastado da sala de audiências.

Notifique, incluindo a Sr. Psicóloga a fim de que possa fazer o acompanhamento da vítima, em coordenação com a APAV.

Em oitavo lugar, a fls. 732/734 verso, da Ata de audiência de Discussão e Julgamento (Sessão I), realizada em 27/5/2022, consta o seguinte:

“(…).

Após a audição da Psicóloga, a Mmª Juíza de Direito proferiu o seguinte despacho que por súmula se segue:

Assim sendo, com as informações veiculadas pela APAV e conjugadas com as informações que foram prestadas pela Sr.ª Psicóloga, parece-me, quer nos termos do artigo 24.º, n.º 6, da Lei do Estatuto da Vítima, quer no artigo 33.º, n.º 7, da Lei de Prevenção da Violência Doméstica, a tomada de declarações por parte da Assistente poderia por em causa a sua saúde física e psíquica e, como tal, parece-me que não é adequado com as informações veiculadas, que aliás a preocupação foi também transmitida pela Sr.ª advogada que representa a mesma que na sequência do e-mail da APAV veio dar-nos conta através de requerimento que se encontrava preocupada na sequência do e-mail.

Pelo que entendo que não deve ser tomado depoimento à vítima uma vez que está numa posição especialmente frágil neste momento, não só porque estaria a violar a 2ª parte dos artigos citados, mas também porque estaria a promover a vitimização secundária.

Logo, todos os presentes foram devidamente notificados, após o que, dada a intenção, por mais do que uma vez verbalizada e reiterada, por parte da Ilustre patrona da Assistente em esta ser ouvida nesta audiência, a Mm.ª Juíza de Direito interrompeu a audiência a fim da Ilustre Patrona da Assistente poder contactar telefonicamente aa mesma e, diante de todo o exposto, ponderar se (re) formularia requerimento no sentido da inquirição da Vítima nesta audiência.

Retomada a audiência de julgamento, a Ilustre patrona da Assistente requereu o seguinte:

A assistente BB pretende ser inquirida enquanto Assistente nos presentes autos, nomeadamente ao abrigo do artigo 340.º, do CPP, para melhor descoberta da verdade, na medida em que verifica que determinadas questões que referiu quando prestou declarações para memória futura não são exatamente corretas e também no que se refere ao e-mail enviado para a APAV o mesmo não é esclarecedor de toda a situação que ela vivencia no presente.

Por isso requer a sua inquirição e está disponível, via webex, para prestar o seu depoimento.

(…)

Após, a Mm.ª Juíza de Direito começou por explicitar os diversos motivos, fácticos-jurídicos subjacentes ao Despacho proferido em 06/04/2022, pelos quais convocou a Assistente para prestar declarações nesta audiência de julgamento, (…).

Sem prejuízo do explicitado, a Mm.ª Juíza avançou para a análise da questão que ora se suscita, por ter sido a própria Vítima, por si e através da sua Advogada/patrona, a requerer essa inquirição/tomada de declarações nesta audiência, porquanto, nesta hipótese, entende que poderá e deverá refletir sobre o juízo que fez supra sobre se e em que medida a inquirição/tomada de declarações à Vítima em audiência de julgamento afetará a sua saúde física e psíquica, bem como se a (re) vitimizará, atento o facto de ser a própria quem requereu ser ouvida, ademais não se reputando, atento o especial estatuto que lhe é reconhecido por lei e todos os direitos daí decorrentes (na qualidade de vítima especialmente vulnerável) tratar-se de um “qualquer” Interveniente Processual”, de uma “qualquer” testemunha, antes ocupando o lugar de um Sujeito Processual neste processo penal.

Assim, e uma vez que a sua tomada de declarações em audiência de julgamento foi requerida pela própria invocando ser indispensável à descoberta da verdade material (nos termos do artigo 340.º, n.º 1, do CPP), e não se verificando qualquer das situações previstas nos n.ºs 3 e/ou 4 daquele artigo legal que conduzissem ao seu indeferimento, a Mm.ª Juíza de Direito deferiu o requerido, acrescentando que, de todo o modo, sempre a Vítima teria de ser ouvida nesta sede de audiência de julgamento, em virtude de ter sido arrolada como testemunha no pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar.

(…).

Para continuação da audiência de julgamento, designo o próximo dia 07-06-2022, pelas 09 horas e 15 minutos.

Em nono lugar, reaberta a audiência em 7/6/2022, a fls. 736/737, da Ata de audiência de Discussão e Julgamento (Sessão II), consta o seguinte:

“(…).

                                                             Assistente

BB, (…).

Tendo a assistente declarado não ter conseguido dialogar em momento anterior à audiência de julgamento com a sua Ilustre Patrona, a Mm.ª  Juíza ordenou a saída da sala de audiência da Digna Magistrada do Ministério Público, do Ilustre Mandatário do Demandante e da Ilustre Defensora do arguido, pelo período de 10 minutos de modo a permitir diálogo entre a Ilustre Patrona da assistente conjuntamente com a Senhora Psicóloga, o que ocorreu.

Retomada a audiência, a assistente usou da sua faculdade de recusa a depor quanto aos factos alegadamente ocorridos durante a coabitação e até à sua separação com o arguido.

Prestou declarações, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, (…). Consignando-se que o seu início ocorreu pelas 09:40 horas e o seu termo pelas 10:22 horas.

(…).


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  Antes de apreciarmos a questão suscitada no presente recurso, abra-se um parêntesis para deixar aqui consignado que, de acordo com as informações de fls. 758 e 771, prestadas, respetivamente, pela GNR (Posto Territorial ...) e pela sua Ilustre Patrona, pese embora não se encontrar junta aos autos a respetiva certidão de óbito, a assistente faleceu em finais de .../.../2022, tendo o seu funeral ocorrido no dia 4 de julho de 2022.

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Comecemos por assinalar que, da descrição cronológica dos atos processuais que acaba de ser feita, resulta que a situação concreta destes autos apresenta contornos invulgares, senão mesmo originais.

Desde logo foi ordenada a comparência da assistente em audiência de julgamento, antes de esta se ter iniciado, com o fundamento que tal seria indispensável à descoberta da verdade material, ou seja, ainda antes de o Tribunal conhecer qual a prova que iria ser produzida ao longo daquela, decidiu solicitar a comparência da vítima para ser ouvida,  o que, salvo o devido respeito, demonstra um juízo apriorístico injustificado, pois, só após ouvir a prova em audiência, deve o julgador ponderar da necessidade de ouvir quem antes prestou declarações para memória futura, pois estas constituem prova pré-constituída, visando, justamente, evitar que a vítima volte a ser inquirida.

Depois, aberta a audiência de julgamento, o Tribunal entendeu, pelos fundamentos atrás referidos, que, afinal, a assistente não devia prestar novas declarações, o que suscitou oposição da Ilustre Mandatária da assistente.

Por fim, na sequência de requerimentos e diligências efetuadas, a assistente transmitiu ao Tribunal que pretendia prestar declarações para esclarecer os factos, mas, após isso ter sido atendido, e depois de se identificar, usou do seu direito de não prestar declarações quanto aos factos alegadamente ocorridos durante a coabitação e até à sua separação do arguido, limitando-se a prestar declarações quanto ao mais, conforme resulta da fundamentação de facto.

Tudo isto gerou um autêntico nó górdio que importa desfazer, impondo-se apreciar se as declarações para memória futura prestadas pela assistente, designadamente na parte relativa aos factos alegadamente ocorridos durante a coabitação, devem, ou não, ser valoradas.


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A questão suscitada no presente recurso pode ser apreciada segundo duas perspetivas que, aliás, estão expressas na sentença recorrida, as quais se encontram plasmadas em dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, a saber: 1) de 15/9/2021, processo n.º 20/21.1SXLSB.L1-3ª Secção, relatado pela Excelentíssima Desembargadora Adelina Barradas de Oliveira; 2) de 20/4/2022, processo n.º 37/21.6SXLSB.L1- 3ª Secção, relatado pela Exma. Desembargadora Maria Gomes Perquilhas – ambos em www.dgsi.pt.

Refira-se que, face à divergência existente, foi interposto Recurso para Fixação de Jurisprudência, no segundo dos referidos processos, o qual veio a ser rejeitado por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 22/9/2022, relatado pela Excelentíssima Juiz Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, in www.dgsi.pt.


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Entendemos, pela nossa parte, que o cerne da questão passa pela importância que deve ser dada ao artigo 134.º, do CPP, sendo claro que a lei processual penal aí estabelece, com relevo acentuado, um privilégio familiar no que tange à possibilidade de alguém se recusar a depor.

Não pode ser esquecido que, embora a descoberta da verdade material seja uma finalidade do processo penal, não pode ela ser admitida a todo o custo, antes havendo que exigir da decisão que ela tenha sido alcançada de modo processualmente válido e admissível.

Acontece que o privilégio familiar constitui uma derrogação ao dever de declarar.

É indubitável que a aceitação do direito de recusa em depor acaba por ser uma forte
limitação à obtenção da prova e, consequentemente, à administração da justiça.

Todavia, tal limitação tem razão de ser, na medida em que o legislador entende que o cidadão tem o direito de não ser constrangido a prestar declarações num processo dirigido contra um seu familiar próximo, qualquer que seja o crime que esteja em causa.

A possibilidade de alguém se recusar a depor assenta muito na própria proteção de quem tem de prestar depoimentos/declarações perante um conflito de consciência ou de interesses e, acima de tudo na proteção das relações familiares.

Saliente-se, ainda, que o direito de recusar o depoimento por razões familiares visa precisamente evitar o conflito entre o dever de responder a verdade eventualmente incriminadora para o seu familiar, e o sentimento familiar que pode levar a testemunha a ser punida por depor falsamente.

Por sua vez, não devemos esquecer que o instituto das declarações para memória futura tem como objetivo evitar a repetição da audição da vítima em julgamento, protegendo-a, assim, do perigo da vitimização secundária.

A tomada de declarações antecipada pretende, além disso, assegurar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, e, também, obstar a pressões ou manipulações prolongadas no tempo prejudiciais à liberdade de declaração da vítima.

Resulta indubitável do artigo 33.º, n.º 7, da Lei 112/2009 de 16 de setembro, que a presença da vítima em julgamento, de acordo com a letra da lei e com o seu espírito, deve ser assumida sempre como uma exceção.

A repetição deve ser motivada somente pelo facto de terem surgido novos factos ou circunstancialismos adicionais dos que foram objeto de declarações para memória futura, visto que o artigo 271.º, n.ºs 1 e 8, do CPP, estabelece que a repetição da prova deve ser considerada como necessária para a descoberta da verdade material e ser possível.

Ora, ponderando os interesses acautelados pelo privilégio familiar e pelas declarações para memória futura, entendemos que estas, independentemente da natureza do crime que estiver em causa, não devem fugir à regra da inutilização, no caso de recusa a depor em audiência de julgamento – ver, neste sentido, “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, António Gama/Luís Lemos Triunfante, pág. 137.


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Revertendo ao caso em apreço, é de salientar que, apesar de tudo o que foi acontecendo ao longo do processo relacionado com a sua presença na audiência de julgamento, foi a própria assistente que acabou por requerer ser ouvida, invocando tal ser indispensável à descoberta da verdade material (nos termos do artigo 340.º, n.º 1, do CPP). 

Por isso mesmo, julgamos que a sua presença na audiência cabe numa situação de exceção, pois estamos perante um caso em que é a própria vítima que se dispõe a comparecer na audiência de julgamento, a fim de deixar expressa a sua posição, mesmo após ter prestado declarações para memória futura, tendo em vista a descoberta da verdade.

Acontece que, admitida a prestar declarações, a assistente usou da sua faculdade de recusa a depor quanto aos factos constantes da acusação relacionados com o período em que coabitou com o arguido, e só isto interessa para decidir o objeto do recurso.

Aqui está o busílis da questão.

Liminarmente, consideramos ser um paradoxo a assistente ter afirmado que queria prestar declarações, tendo em vista a descoberta da verdade material, para, logo de seguida, exercer a faculdade de recusar as mesmas quanto ao essencial dos factos imputados ao arguido.

Mas foi isso que aconteceu e há que tomar posição sobre quais as consequências da sua conduta em audiência de julgamento no que tange às suas declarações para memória futura.

Avancemos.

O artigo 356.º. n.º 6, do CPP, determina que “é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.”, o que nos remete, de imediato, para o citado artigo 134.º, do CPP, isto é, se é certo que as declarações para memória futura podem ser valoradas, independentemente de serem ou não lidas em audiência de julgamento, não é menos verdade que, comparecendo a ofendida nesta, se disser que se recusa a depor quanto a certos factos, invocando apenas a sua ligação familiar, está a expressar uma vontade que nos transporta para a colisão que existe entre o interesse publico de uma eficaz investigação penal e o interesse da testemunha de não ser constrangida a prestar declarações num processo dirigido contra um seu familiar, ainda que estejamos perante um crime que não admite desistência.

A nosso ver, a partir do momento em que a vítima surge em audiência de julgamento e tem a possibilidade de se recusar a depor, tal só pode significar que lhe está a ser dada a possibilidade de colocar em causa o que antes disse, acautelando, até, a possibilidade de ter existido uma eventual denúncia caluniosa, podendo, assim, ainda em tempo se retratar.

E não se esqueça que este conceito se aplica mesmo quando a vítima assume a qualidade de assistente – neste sentido, ver o Acórdão do TRP, de 30/1/2013, Processo relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Maria do Carmo Dias, in www.dgsi.pt.

Se o legislador tivesse a intenção de afastar a possibilidade da testemunha/vítima de violência doméstica se recusar a depor, caso fosse chamada à audiência de julgamento, após prestar declarações para memória futura, tê-lo-ia feito nos diplomas legais a que se refere o recorrente, o que, manifestamente, não fez.

E não fez porque, em qualquer audiência de julgamento, mesmo que estejamos perante crimes públicos, o legislador entende que a testemunha só presta depoimento se, ela mesmo, no caso concreto, considerar o interesse da administração da justiça superior à salvaguarda das suas relações familiares.

Ora, o silêncio da vítima/assistente, nas circunstâncias descritas nos autos, salvo o devido respeito, deve significar que pretendeu apagar as anteriores declarações, pois, se não o quisesse fazer, teria, pura e simplesmente, dito, que as mantinha e que nada tinha a acrescentar, até porque, tal manifestação de vontade surgiu após ter dialogado com a sua Ilustre Patrona e com a Senhora Psicóloga, conforme decorre da respetiva ata, a fls. 736/737.

Em resumo, se a vítima comparece em audiência de julgamento e se recusa a depor, deve ficar vedada a valoração do que antes dissera, visto que o Tribunal passa a confrontar-se com um silêncio de quem tem a disponibilidade de contribuir, ou não, para a administração da justiça.

Concedemos que esta orientação acaba por colocar em causa uma prova pré-constituída na qual a acusação assenta grande parte daquilo que a sustenta, mas o privilégio familiar, se existe na lei, é para ser aplicado sempre, independentemente do crime em causa e até ao encerramento da audiência de julgamento.

Por isso mesmo, e sempre salvo o devido respeito pela posição do recorrente, entendemos que a sentença ora em cise não merece reparo, ao acompanhar a orientação que consta do Acórdão do TRL, de 15/9/2021, Processo n.º 20/21.1SXLSB.L1 -3, relatado pela Excelentíssima Juiz Desembargadora Adelina Barradas de Oliveira, no qual pode ser lido o seguinte:

“(…) A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou de propiciar que a vítima exerça o direito que o Código lhe atribui de se recusar a depor.

Ela tem esse direito em qualquer momento em que deva depor ou pretenda fazê-lo.

Na verdade, o artº 356º não inibe a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas também não pode inibir o direito a recusar-se a depor acrescendo que a lei é rigorosa quando diz que é proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento nessas circunstâncias.

Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura.

Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, e que sendo há que ficar a constar da ata a razão pelo que o foram, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está a permitir que essa prova não seja valorada, aliás, está a impedir que essa prova seja valorada.

Há um reforço de não leitura já expresso pelo legislador no artº 271º nº 8, no qual nos diz que a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar, ou seja, não é necessário lê-las, mas não impede que se leiam.

E há um duplo travão a que tais declarações sejam valoradas como prova na situação dos autos, ou seja, quem as prestou recusa-se a depor em audiência e, se as declarações para memória futura são para ser utilizadas em audiência, como prova (no caso de quem as prestou não poder comparecer ou não puder prestar declarações), estando o seu autor presente e recusando-se a depor, há como que uma inutilidade superveniente das mesmas que o próprio anula retirando-se as mesmas do âmbito da apreciação da prova.(…).”                                                                                     


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IV – DECISÃO:

Nestes termos, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Sem tributação.

           

(texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

Coimbra, 9 de Novembro de 2022

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (adjunta)

Isabel Valongo (adjunta)