Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
262/12.0T2AVR-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: LISTA DE CREDORES
ERRO MANIFESTO
IMPUGNAÇÃO
FACTOS
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 07/16/2014
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 21º DO CÓDIGO DE VALORES MOBILIÁRIOS; 48º E 130º DO CIRE.
Sumário: I – O conceito de erro manifesto que, apesar da ausência de impugnações da lista de credores reconhecidos elaborado pela Administrador da Insolvência, obstacula ao imediato proferimento da sentença de verificação de graduação de créditos, deve ser objecto de uma interpretação latitudinária, de modo a vincular o juiz ao dever de aferir da conformidade, substancial e formal, dos títulos dos créditos arrolados naquela lista.

II - A abstenção definitiva de impugnação da lista de créditos reconhecidos, não preclude a possibilidade de qualquer credor invocar factos de conhecimento oficioso, o que se justifica pela circunstância de que, se o tribunal pode, em qualquer momento, conhecer desses factos, então também o credor os pode alegar em qualquer fase da causa.

III - O processo de insolvência é dominado por um princípio do inquisitório forte dado que permite a investigação de factos essenciais não invocados pelas partes, de que decorre a liberdade vinculada do juiz de investigar e esclarecer os factos relevantes designadamente para decidir a homologação do plano – ou a sua recusa.

IV - A relação intersocietária de domínio ou de grupo, nos termos do artº 21 do Código dos Valores Mobiliários, dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, constitui uma presunção iuris et de iure, da existência de uma relação especial com o devedor.

V - Esta causa de subordinação dos créditos exige, para essa qualificação dois pressupostos de verificação cumulativa: a detenção do crédito por pessoa especialmente relacionada com o devedor ou por pessoa a quem tenham sido transmitidos; a sua aquisição nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 48 a) do CIRE).

VI - Se o juiz detectar, ainda que no contexto do processo de insolvência, na lista de créditos apresentada pelo Administrador da Insolvência, um erro de natureza substancial, deve sobrestar na decisão de homologação do plano de insolvência ou de recusa dessa homologação, ordenar a organização de nova lista e facultar às partes as impugnações que tiverem por direito.

Decisão Texto Integral: I. Forma de julgamento dos recursos.

Considerando, de um aspecto, que apesar da prolixidade das alegações, a questão objectos dos recursos – que não obtiveram resposta – não é complexa, e de, outro, a urgência do processo e a inviabilidade do julgamento ordinário dos recursos no decurso das férias judiciais, declaro que serão julgados liminar, sumaria e singularmente (artºs 652 nº 1 e 656 do CPC e 9 nº 1 do CIRE).

II. Julgamento dos recursos.

1. Relatório.

Por sentença proferida, no dia 26 de Abril de 2012 – transitada em julgado no dia 8 de Junho do mesmo - pelo Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga, declarou-se, a pedido C... – deduzido através de articulado apresentado por via electrónica no dia 31 de Janeiro de 2012 - a insolvência de L..., SA.

P..., SA reclamou, por requerimento dirigido ao Administrador da Insolvência, o reconhecimento e a graduação, como garantido, do crédito no valor, em 13 de Maio de 2012, de € 84 095 221,69, sem prejuízo dos juros vencidos e vincendos.

Fundamentou a reclamação no facto de o Banco P..., SA – que, por escritura de cessão de créditos, outorgada em 30 de Dezembro de 2011 lhe cedeu, designadamente os créditos reclamados – ter celebrado com a insolvente, um contrato de depósito à ordem, que, por virtude dos movimentos a débito efectuados pela insolvente, apresentava, em 30 de Novembro de 2010, um saldo devedor de € 28 376 628,82, que não liquidou, em 19 de Julho de 2005 e 13 de Dezembro de 2007, dois contratos de mútuo, pelo valor de € 2 154 000,00 e € 6 200 000,00, assistindo-lhe o direito de reclamar o capital em dívida de € 1 481 285,39 e de € 4 067 011,36, respectivamente, juros de mora vencidos e vincendos e imposto de selo, por escrito particular de 27 de Fevereiro de 2002, aditado em 17 de Fevereiro de 2002, 14 de Janeiro, 15 de Maio, 20 de Outubro e 26 de Dezembro de 2003, e 11 de Fevereiro de 2004, um contrato de abertura de crédito em conta corrente, até ao montante de € 7 000 000,00, subsistindo, em 13 de Maio de 2012, a dívida de capital de € 7 000 000,00, acrescido de juros de mora, imposto de selo e despesas, num total de € 8 495 968,20, por escrito particular de 26 de Julho de 2005, aditado em 18 de Dezembro de 2007, um contrato de abertura de crédito em conta corrente, até ao montante de € 13 000 000,00, subsistindo, em 13 de Maio de 2012 a dívida de capital de € 13 000 000,00, acrescido de juros de mora, imposto de selo e despesas, num total de € 15 624 167,06 e, por escrito particular de 31 de Dezembro de 2009, um contrato de abertura de crédito em conta corrente, até ao montante de € 18 500 000,00, subsistindo, em 13 de Maio de 2012 a dívida de capital de € 13 130 000,00, acrescido de juros de mora, imposto de selo e despesas, num total de € 21 800 382,59, e de para segurança e garantia do capital mediante descoberto autorizado naquela conta de depósitos à ordem, a insolvente ter constituído, por escritura pública, outorgada no dia 31 de Outubro de 2008, hipoteca voluntária sobre o prédio urbano e sobre os prédios rústicos matricialmente inscritos sob os artigos ... da freguesia de ..., encontrando-se ainda os créditos alegados garantidos por hipoteca voluntária genérica constituída pela insolvente, por escritura pública outorgada em 19 de Julho de 2005, sobre aqueles prédios rústicos.

Por sua vez, B... – Instituição Financeira de Crédito SA, reclamou, por requerimento dirigido ao Administrador da Insolvência, a verificação e a graduação, como comum, de um crédito no valor de € 30 401 256,52.

Fundamentou a reclamação no facto de, no exercício da sua actividade, ter celebrado, nos dias 17 de Janeiro de 2006, 9 de Outubro e 18 de Dezembro de 2006, 23 de Janeiro, 1 de Fevereiro, 5 de Setembro, 17 de Maio e 10 de Julho de 2007, doze contratos de locação financeira mobiliária, de, a insolvente ter deixado de pagar as rendas, ascendendo as rendas em dívida, em 20 de Agosto de 2010, a € 2 911 248,92, pelo que, por cartas registadas com aviso de recepção, enviadas em 20 de Agosto de 2010, que a insolvente recebeu, resolveu os contratos, ascendendo o seu crédito, emergente daqueles contratos, a € 3 849 861,29, sendo ainda dela credora da quantia de € 26 044 688,66 correspondente à penalidade por cada dia de atraso na entrega dos bens locados, e de, em 8 de Julho de 2009 e 8 de Novembro de 2011, ter celebrado, por documento particular, dois contratos denominados confissão de dívida e acordo de pagamento, por força dos quais a insolvente se confessou devedora das quantias de € 221 996,17 e de € 386 526,22 – correspondentes ao valor que se encontrava em dívida emergentes de dois contratos de factoring, um celebrado com a insolvente em 29 de Junho de 2006, e outro celebrado, em 8 de Novembro de 2004, com A.., SA, relativo a créditos que esta detinha sobre a insolvente, respectivamente - estando em dívida, € 172 798,53, desde 8 de Outubro de 2009, e € 333 927,04, respectivamente,

Por nenhuma destas reclamações ter sido objecto de impugnação, o Administrador da Insolvência, na relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos que apresentou na secretaria judicial no dia 30 de Novembro de 2012, relacionou os créditos correspondentes, ambos como reconhecidos, o primeiro como garantido – por hipoteca – e o segundo como comum.

Por requerimento apresentado por via electrónica no dia 1 de Março de 2013, a requerente da insolvência, C..., Lda., opôs-se à aprovação da proposta de plano de insolvência apresentado pela insolvente e requereu que fosse tomada em devida consideração, designadamente, para efeitos das maiorias necessárias para a aprovação do plano de insolvência e de verificação e de graduação de créditos, o relacionamento especial existente entre a sociedade insolvente e os credores Banco P..., SA, P..., SA, B... – Instituição Financeira de Crédito, SA, Fundo de Capital de Risco B..., Fundo de Investimento Imobiliário Aberto B... e Fundo de Investimento Imobiliário Fechado B..l.

Alegou, para tanto, que a devedora não concretiza, de forma inequívoca, no plano de insolvência, qual a contrapartida devida pela transmissão do estabelecimento, ignorando-se o preço que a nova sociedade pagará, sendo que no plano não se relacionam os bens, direitos e participações que integram o estabelecimento, nem o impacto expectável das alterações propostas, por comparação com a situação que se verificaria na ausência de plano, o que, por si só, determinam a inviabilidade da proposta, que, mesmo sem aquela concretização, a sua situação, ao abrigo do plano, é previsivelmente menos favorável do que a interviria na sua ausência, que decorre, desde logo, de na proposta de plano se prever o pagamento de créditos subordinados, dado que o Banco P..., SA detinha, na insolvente, a participação efectiva de 60,1%, em 2008 a 2010, e de 83,9% em 2011, no Fundo de Capital de Risco B..., a participação de 100%, em 2006, 899,8%, em 2007, 94,1% em 2008 e 2009, 94,09%, em 2010, e de 94,01% em 2011, no B – Instituição Financeira de Crédito SA, a participação efectiva de 100% em 2006, 99,8% em 2007, 100% em 2008 a 2011, e na P..., SA, a participação efectiva de 100% em 2010 e 2011, que esta última adquiriu o crédito do Banco P..., SA, por cessão de créditos outorgada em 30 de Dezembro de 2011, que o crédito reclamando pelo B... – Instituição Financeira de Crédito SA tem origem em contratos de locação financeira outorgados entre 2006 e 2007 e em duas confissões de dívida outorgadas, pela insolvente, em 8 de Julho e 8 de Novembro de 2009, e que o Banco P..., SA, a P..., SA e o B... Crédito Instituição Financeira SA se encontravam em relação de domínio e de grupo com a sociedade insolvente, devendo ser havidas como especialmente relacionadas pela última e, em consequência, qualificar-se os respectivos créditos como subordinados.

P..., SA declarou, por requerimento electrónico de 1 de Março de 2013 que o seu único accionista é o Estado Português e que não detém participações sociais na insolvente e nos demais credores, e por requerimento electrónico de 8 de Março de 2008 – declarando que tomou conhecimento do requerimento da credora C..., Lda. - pediu o indeferimento dos dois pedidos formulados esta e se ordenasse o desentranhamento dos documentos que a mesma protestava juntar.

Alegou, para tanto, que C..., Lda. não logrou demonstrar que da aprovação do plano resultaria para si uma situação previsivelmente menos favorável de que a que teria na ausência da aprovação do plano apresentado, pelo que este deve ser homologado, e que aquela, a pretexto de manifestar a sua oposição à homologação do plano de insolvência, vem procurar impugnar a relação de créditos reconhecida, estando há muito ultrapassado o prazo de 10 dias estabelecido para essa impugnação.

Pela Sra. Juíza de Direito, foi, então, no dia 18 de Abril de 2013, proferido este despacho:

Submetido a votação, o plano de insolvência foi votado:

- favoravelmente pelos credores ...

- desfavoravelmente pelos credores ...

Nos termos do art. 212º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se (…) recolher mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.

Conforme consta da lista apresentada nos termos do art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o sr. administrador da insolvência qualificou como comum o crédito do credor B... Crédito e como crédito hipotecário o crédito do credor P..., montantes e qualificações que no apenso de verificação e graduação de créditos não foram objeto de impugnação.

Porém, dos termos das reclamações de créditos por aqueles credores apresentadas, resulta que aqueles créditos se enquadram na categoria dos créditos subordinados, nos termos que resultam da conjugação dos arts. 48º, nº 1, al. a) e 49º, nº 2, al. b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, esta ultima a remeter para o art. 21º do Código de Valores Mobiliários e, por sua vez, o nº 3 desta, a remeter para as normas que no Código das Sociedades Comerciais definem sociedades em relação de domínio ou de grupo.

Ora, considerando o número de votos que representam, a natureza que àqueles créditos seja conferida ditará o resultado da votação, questão que, para o efeito, pela importância e consequências da mesma, desde já e instrumentalmente se impõe conhecer neste âmbito - aquilatar do resultado da votação do plano de insolvência em conformidade com os termos previstos pelo art. 212º - porquanto a lista do art. 129º ainda não foi objeto de apreciação/decisão, apreciação/decisão que, por outro lado, não está absolutamente vinculada ao que consta da lista do sr. administrador da insolvência na precisa medida em que, no exercício da sua função jurisdicional, ao juiz se impõe o poder-dever funcional de proceder a correções em caso de erro manifesto (cfr. art. 130º nº 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Ora, conforme resulta dos documentos juntos a fls. 1076 e ss., e que pelo presente e para o efeito em apreço se admitem nos autos, de 2008 a 2010 o Banco P... deteve 60,1% do capital social da insolvente, e no ano de 2011 passou a deter 83,9%. Nos anos de 2010 e 2011 o capital social do credor P... (que no plano é contemplado com o pagamento de € 3.205.560,00 em 120 meses e votou pela aprovação do plano apesar de considerar que o mesmo contém incongruências e que não será suficiente para devolver a saúde financeira à insolvente e, dessa forma, manter os postos de trabalho, cfr. arts. 4º e 9º do seu req. de 18.01) era detido a 100% pelo Banco P..., SA; nos anos de 2006 a 2011, este deteve também 100% do capital social do credor Banco P..., com exceção do ano de 2007 em que essa participação foi de 99,8%.

Nos termos do art. 48º, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, são subordinados Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor desde que a relação especial já existisse aquando da respetiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência. Na definição das pessoas especialmente relacionadas com o devedor, prevê o art. 49º, nº 2, al. b) As pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do art. 21º do Código de Valores Mobiliários, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Ora, conforme resulta das reclamações de créditos apresentadas nos termos do art. 128º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o crédito reconhecido a P... foi adquirido ao Banco P... mediante cessão de crédito outorgada em 30.12.2011; o crédito reconhecido ao credor B... Crédito decorre de contratos de locação financeira celebrados com a insolvente em 2006 e 2007 e declarações de dívida da insolvente subscritas em 2009. Em qualquer um dos referidos períodos temporais o Banco N... era acionista maioritário da insolvente e único acionista dos credores P... e B... Crédito (ressalva feita para o ano de 2007 em que a participação neste ultimo foi de 99,8%).

O art. 21º do CVM define relações de domínio e de grupo entre sociedades quando uma delas possa exercer sobre a outra, direta ou indiretamente, uma influência dominante através, vg. da maioria dos direitos de voto, ou da possibilidade de nomear ou destituir a maioria dos titulares dos órgãos de administração ou de fiscalização. Mais considera em relação de grupo as sociedades como tal qualificadas pelo Código das Sociedades Comerciais (independentemente de as respetivas sedes se situarem em Portugal ou no estrangeiro).

O Código das Sociedades Comerciais prevê grupos de sociedades constituídos por domínio total, em que o domínio que a sociedade, dita dominante, exerce na totalidade pode ser inicial (art. 488º) ou superveniente (art. 489º), mantendo-se, como tal, desde que esta não deixe de ter, direta ou indiretamente, 90% das sociedades dependentes.

As sociedades em relação de grupo apresentam uma estrutura tipológica tripartida, sendo em relação a estas que o legislador utiliza a expressão grupos de sociedades (cfr. José Engrácia Antunes, em Grupos de Sociedades -Estrutura e Organização Jurídica da Empresa Plurissocietária, Coimbra, Almedina, pág. 24 e segs.), no contexto dos quais existe uma relação de domínio de uma sociedade para com outras que, sem implicar substituição de órgãos diretivos, nem decisões conjuntas (pois mantém a sua personalidade), ficam submetidas a uma "direção unitária".

No confronto do exposto resulta uma relação de domínio entre o Banco P..., SA e a insolvente porquanto aquele detinha a maioria do capital desta. Mais resulta que, à data da aquisição dos respetivos créditos sobre a insolvente e nos dois anos anteriores ao início do presente processo de insolvência, os credores P... e B... Crédito integravam-se num grupo de sociedades dominado pelo Banco P..., SA, titular da mais de 90% do capital de cada uma daquelas sociedades, constituindo-se assim, e através da sociedade dominante comum à insolvente e aos credores em questão, a supra referida estrutura tipológica tripartida submetida a uma direção unitária. Com efeito, se o capital das sociedades credoras da insolvente era maioritariamente detido pelo acionista maioritário da insolvente, aquelas, através deste (Banco N...), estavam numa relação de grupo e de domínio sobre a insolvente (cfr. art. 489º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais: A sociedade que, directamente ou por outras sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.º, n.º 2, domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios, forma um grupo com esta última, por força da lei.).

Do exposto se conclui que a relação existente entre a insolvente e os credores à data da aquisição dos respetivos créditos e nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência se enquadra na previsão legal dos arts. 48º, al. a) e 49º, nº 2, al. b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a impor a respetiva qualificação como créditos subordinados.

O que, por sua vez, conduz à não aprovação do plano de insolvência porquanto, dos 114.639.882 votos favoráveis, apenas 143.346 correspondem a votos de créditos não subordinados.

Em conformidade, consigno a não aprovação do plano de insolvência submetido a votação nestes autos.

Nos termos do art. 228º, nº 1, al. e) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, declaro cessada a administração da massa insolvente pela devedora.

É, justamente a decisão contida neste despacho que é impugnada, por via do recurso ordinário de apelação, pela insolvente e pelos credores reclamantes, P..., SA e B... Crédito – Instituição Financeira de Créditos SA.

A insolvente – que pede, no seu recurso, a revogação daquele despacho e a sua substituição por outro que vá de encontro às suas pretensões – rematou a sua alegação com esta constelação de conclusões:

...

Por sua vez, o credor reclamante, B... Crédito – Instituição Financeira de Crédito, SA – que pede, no seu recurso, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que considere os seus créditos como comuns, tal como foram reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência e declare aprovado o plano de insolvência – encerrou a sua alegação com esta miríade de conclusões:

...

Por seu lado, o credor reclamante, P..., SA – que pede, no seu recurso, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por uma outra através da qual se reconheça que o crédito da Recorrente não tem natureza subordinada e, em consequência, a aprovação do plano de insolvência apresentado, ou, caso assim não se entenda, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por uma outra que determine a elaboração de nova lista de credores pelo Administrador de Insolvência, prosseguindo de seguida o processo os seus termos, designadamente para que a Recorrente e demais Credores tenham a possibilidade de proceder, querendo, à impugnação da lista alterada, efectuando-se uma nova assembleia de credores para nova votação do plano de insolvência – concluiu, com larga prodigalidade, o seguinte:

...

Não foi oferecida resposta.

Os recursos foram admitidos por despacho de 15 de Julho de 2013, mas somente foram expedidos electronicamente para esta Relação – por razões que o caderno dos recursos não documenta - em 1 Julho de 2014.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto dos recursos.

Os factos relevantes para o conhecimento do objecto dos recursos – e que se devem julgar assentes em face do imenso mole da prova documental produzida – relativos à causa e ao momento de aquisição dos créditos dos credores recorrentes, à data do início do processo de insolvência, à dinâmica processual e ao conteúdo da decisão impugnada são os que o relatório, em síntese apertada, individualiza.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito dos recursos.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito objectivo do recurso pode ser limitado, pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição ou, expressa ou tacitamente, nas conclusões da alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

A decisão impugnada nos três recursos foi proferida na sequência do requerimento de um credor da insolvência – C..., Lda. – que, no contexto do processo de insolvência, pediu à Sra. Juíza de Direito que recusasse a homologação do plano de insolvência aprovado. A solicitação, daquele credor, de não homologação daquele plano assentava em duas ordens de motivos: de um aspecto, a circunstância de a situação da requerente, a abrigo do plano, ser previsivelmente menos favorável do que a se verificaria na ausência de qualquer plano; de outro, no facto de o plano proposto prever o pagamento de créditos subordinados em detrimento de créditos comuns.

A decisão objecto do recurso, com fundamento na qualificação dos créditos reclamados pelos recorrentes – P..., SA e B.. – Instituição Financeira de Crédito SA – como subordinados, recusou a aprovação do plano de insolvência proposto, por dos 114 639 882 votos favoráveis, apenas 143 346 corresponderem a créditos não subordinados.

Quer dizer: a decisão recorrida apenas se pronunciou sobre um dos fundamentos da solicitação da não homologação do plano alegados por aquele credor – a circunstância de o plano não ter obtido, dos votos emitidos, mais de dois terços de votos correspondentes a créditos não subordinados – não se tendo pronunciado sobre o outro fundamento de recusa da homologação - o agravamento da situação daquele credor, por comparação com a que resultaria da ausência de qualquer plano, circunstância que se explica, por, ao menos implicitamente, esta apreciação ter ficado prejudicada pela resposta encontrada para o problema de um dos quóruns deliberativos exigidos para a aprovação do plano.

Caso se deva revogar a decisão que prejudicou o conhecimento desta última questão, a esta Relação é lícito conhecer dela, desde que – observado o dever de prévia consulta das partes - para tal disponha dos elementos necessários (artº 665 nºs 2 e 3 do CPC). Não é, porém, o caso, dado que o processo do recurso, apesar da multiplicidade de documentos com que se mostra instruído, não contém, sequer, o plano proposto.

Maneira que, ainda que os recursos devam prover-se, esta Relação, não deve proceder, logo, à substituição da decisão impugnada, por outra que homologue o plano, devendo, antes, limitar-se a revogar a decisão impugnada e a reenviar o processo para o Tribunal de que provêm os recursos, de modo a que nele se conheça do fundamento de recusa dele alegado pelo credor, cuja apreciação ficou prejudicada, e homologue ou recuse a homologação do plano proposto, conforme o juízo que faça sobre a exactidão daquele fundamento.

O objecto do recurso é, nos termos gerais, constituído por um pedido e por um fundamento: o pedido consiste na solicitação da revogação da decisão impugnada; o fundamento na invocação de um vício de procedimento – error in procedendo – ou no julgamento – error in iudicando.

A leitura das – extensíssimas - alegações dos vários recorrentes inculca uma fundamental homotropia dos fundamentos da impugnação – de uma e de outra das espécies apontadas - que, em síntese estreita, podem condensar-se nestas proposições:

- O carácter não manifesto do erro – da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos - da qualificação dos créditos dos credores recorrentes, P..., SA e B... – Instituição Financeira de Crédito SA, como garantidos e comuns, respectivamente;

- O erro na qualificação dos credores recorrentes como pessoas especialmente relacionadas com o devedor insolvente – erro que, se resolve num error in iudicando da questão de facto, por equívoco na avaliação ou aferição das provas documentais produzidas;

- O carácter ilidível da presunção da natureza subordinada dos créditos dos credores recorrentes assente na especial vinculação destes com o devedor insolvente;

- A ausência do requisito temporal de qualificação dos créditos titulados pelos credores reclamantes como créditos subordinados.

- A nulidade resultante da omissão da elaboração de nova lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos;

- A nulidade decorrente violação do princípio do contraditório, resultante da não submissão da nova lista à impugnação dos credores reclamantes afectados;

A devedora insolvente invoca ainda a nulidade da omissão de pronúncia do Tribunal recorrido relativamente aos requerimentos do credor C..., Lda. e dos credores recorrentes, que, por ter influído no exame e na decisão proferida, expressamente invoca, nos termos do artº 201 do CPC.

Todos os recorrentes solicitam, à uma, a revogação da decisão impugnada – e a sua substituição por outra que logo homologue o plano de insolvência proposto – mas um deles – a recorrente P..., SA, formula, a par desse pedido principal, um pedido subsidiário, assente no error in procedendo representado pela ofensa do princípio estruturante do contraditório resultante da não elaboração de nova lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos e da consequente frustração da sua impugnação: o de revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra ordene o prosseguimento do processo, a elaboração daquela nova lista e a sua submissão à impugnação dos credores.

Nestas condições – i.e., dada a feição subsidiária que este credor imprimiu ao pedido de organização de nova lista de créditos, reconhecidos e não reconhecidos – apenas haverá que conhecer dele - e do respectivo fundamento – caso se deva concluir pela não revogação da decisão impugnada por qualquer dos fundamentos apresentados como principais, designadamente por se ter por exacta a ratio decidendi de recusa da homologação do plano – o carácter subordinado do crédito dos credores apelantes (artº 554 nº 1 do CPC).

Maneira que, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações dos diversos recorrentes, a questão concreta controversa que importa resolver é a de saber se a decisão impugnada deve ser anulada ou revogada e substituída por outra que homologue o plano de insolvência ou, subsidiariamente, se deve ser anulada e substituída por outra que ordene a organização de nova lista de créditos, reconhecidos e não reconhecidos e a sua submissão à impugnação dos interessados.

A resolução deste problema vincula ao exame, ainda que leve, do regime das nulidades do processo – e da sentença – do procedimento de reclamação de créditos, dos pressupostos de qualificação dos créditos como subordinados, da natureza, absoluta ou relativa, da presunção da subordinação do crédito baseada no relacionamento especial do credor com o devedor insolvente

3.2. Nulidade da decisão impugnada por omissão de pronúncia.

A devedora insolvente invoca, entre outras, a nulidade da omissão de pronúncia que, no seu ver, decorre do facto de a decisão impugnada se não ter pronunciado sobre os requerimentos do credor C.., Lda. e sobre os requerimentos de resposta oferecidos pelos credores reclamantes.

Verifica-se uma nulidade processual sempre que seja praticado um acto que não é permitido ou seja omitido um acto imposto ou uma formalidade essencial (artº 201 nº 1 do CPC de 1961, aplicável por força do princípio tempus regit actum – artº 142 nº 1 do mesmo Código).

As nulidades processuais implicam apenas, caso sejam relevantes, como regra, a anulabilidade do acto praticado e dos demais actos dependentes do acto realizado ou omitido (artº 201 nº 1 do CPC). As nulidades processuais podem ser nominadas – ou primárias - ou inominadas – ou secundárias: as últimas correspondem a qualquer prática de um acto não permitido ou omissão de um acto imposto ou de uma formalidade essencial e só são apreciadas mediante reclamação da parte interessada na repetição ou eliminação do acto (artºs 201 nº 1, 202, 2ª parte, e 203 nº 1 do CPC de 1961). Assim, por exemplo, a violação do contraditório inclui-se, simplesmente, na cláusula geral sobre as nulidades do processo; o mesmo sucede, aliás – entendendo-se, evidentemente, que se trata de um acto imposto - com a omissão de elaboração de uma nova lista de créditos, reconhecidos e não reconhecidos, no caso de se detectar, na lista apresentada, um erro manifesto (artº 201 nº 1 do CPC de 1961).

As nulidades processuais orientam-se, designadamente pelos princípios da essencialidade – a nulidade não se verifica se a prática ou omissão do acto não influiu no exame e decisão da causa -  e da não renovação do acto nulo – segundo o qual, esse acto só pode ser renovado se ainda não tiver decorrido o prazo da sua prática ou se, tendo já expirado esse prazo, a renovação do acto aproveitar à parte que não é responsável pela sua nulidade (artºs 201, nº 1, in fine, e 208 do CPC de 1961).

A nulidade da decisão – despacho, sentença ou acórdão – apresenta algumas especialidades bem salientes. As situações de nulidade – sujeitas a um numerus clausus[1] – não se submetem ao regime das nulidades processuais[2] e só relevam, em princípio, mediante arguição das partes, não sendo, por isso, de conhecimento oficioso (artº 668 nº 3 do CPC)[3].

Entre as causas de nulidade – substancial - da decisão conta-se a omissão de pronúncia que resulta da abstenção, infundamentada, de conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou de pedidos por elas formulados (artº 668 nº 1, 1ª parte, do CPC).

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artºs 137 e 660 nº 2 do CPC)[4].

O tribunal deve examinar toda a matéria de facto disponível e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou dos pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. A nulidade que se examina resulta da infracção desse dever. Note-se, porém, que o tribunal não tem que se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes – desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa.

O primeiro ponto que fere à atenção no tocante à arguição de nulidade da devedora insolvente consiste no facto de, segundo a sua alegação, a omissão de pronúncia não constituir causa de nulidade da decisão impugnada – antes dar lugar a uma simples nulidade inominada ou secundária.

Mas tanto num caso como noutro a arguição deve ter-se por improcedente.

Em primeiro lugar deve notar-se que, sendo certo que o processo dos recursos não me mostra disponibilizado em suporte electrónico, o processo físico não documenta que o credor B... – Instituição Financeira de Crédito SA tenha deduzido qualquer requerimento de resposta ao requerimento do credor C..., Lda.: o único requerimento, com essa finalidade, que o processo documenta foi o produzido pelo recorrente P..., SA.

Depois, a legitimidade para reclamar pela nulidade apontada – seja ela uma nulidade processual inominada ou uma nulidade da sentença – radica naqueles credores. Isto é patente, no troço em que a arguição se funda na omissão de pronúncia sobre o requerimento do credor C..., Lda.: aquela falta apenas seria susceptível de prejudicar aquele credor, mas não qualquer dos recorrentes, e, por conseguinte, só aquele deve ser reconhecida a qualidade de interessado na sua arguição.

Em qualquer caso, de omissão de pronúncia é coisa de que, em boa verdade, no caso, se não deve falar.

O problema que o credor C..., Lda. colocou à atenção da decisão impugnada foi este: a recusa de homologação do plano de insolvência proposto, assente, num duplo fundamento – o desfavorecimento da sua posição por comparação com a que se verificaria na ausência de qualquer plano; a previsão, no plano proposto do pagamento de créditos subordinados em detrimento de créditos comuns. E uma tal questão – a não homologação do plano – foi inteiramente decidida pela decisão recorrida, seja qual for a correcção ou bondade intrínseca dessa decisão.

É exacto que a decisão de recusa assentou apenas num dos fundamentos alegados pelo apontado credor – o carácter subordinado dos créditos dos credores recorrentes e a consequente inexistência de uma maioria de votos de créditos não subordinados indispensável para a aprovação do plano. Simplesmente deve entender-se – como já se notou – que a decisão daquela questão – o carácter subordinado daqueles créditos – prejudicou o conhecimento do outro fundamento de recusa de homologação do plano alegado: realmente desde que se verificava aquele fundamento de não homologação do plano, a apreciação do outro dos fundamentos alegados deveria ter-se por inútil.

A reclamação por esta nulidade deve, pois, ter-se por improcedente.
3.3. Procedimento da reclamação de créditos.

De forma deliberadamente simplificada, pode dizer-se que reclamação, verificação e graduação de créditos obedece, no processo de insolvência, aos seguintes trâmites: o credor da insolvência reclamante deve apresentar um requerimento dirigido ao administrador judicial em que invoca o seu crédito e alega, designadamente, a sua natureza como comum, subordinado, privilegiado ou garantido (artº 128 nºs 1 e 2 a) e c) do CIRE). Com o requerimento devem ser juntos os documentos comprovativos dos factos alegados pelo credor reclamante (artº 128 nº 1, in fine, do CIRE).

Decorre deste regime que o juiz não tem, assim, em princípio, acesso aos requerimentos de reclamação, nem aos documentos juntos pelo credor reclamante, já que o administrador não é obrigado a juntá-lo aos autos nem a apresentá-los ao juiz, o que – convenha-se – não facilita muito a sua compreensão dos litígios eventualmente subjacentes à reclamação.

Esgotado o prazo da reclamação, o administrador deve, nos 15 dias subsequentes, apresentar, na secretaria judicial, a relação dos créditos reconhecidos – com indicação, designadamente da identidade de cada credor, da natureza e valor, capital e juros, do crédito, e das garantias, pessoais ou reais, ou dos privilégios - e não reconhecidos (artº 129 nºs 1 e 2 do CIRE).

Esta lista está sujeita a impugnação que deve ser deduzida, por qualquer interessado, por requerimento dirigido ao juiz, no prazo de 10 dias seguintes do termo do prazo da sua apresentação, contestação que pode fundamentar-se na indevida inclusão ou exclusão dos créditos, ou na incorrecção do seu valor ou da sua qualificação (artº 130 nº 1 do CIRE). Por qualquer interessado entende-se naturalmente também qualquer credor: qualquer credor pode contestar qualquer crédito que possa concorrer com o crédito que ele reclama. E como o concurso se baseia na oponibilidade recíproca das várias causas de preferência dos credores reclamantes, antes da respectiva graduação, nenhuma dessas causas pode ser considerada indiscutível. Deste modo, qualquer credor reclamante pode impugnar as garantias invocadas por qualquer outro credor.

Na falta de impugnações, o juiz deve, imediatamente, proferir sentença de verificação e graduação dos créditos sentença que, salvo o caso de erro manifesto, se deve limitar a homologar a lista de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência e a proceder á sua graduação de harmonia com o que consta dessa mesma lista (artº 130 nº 3 do CIRE). Deste regime decorre que a falta de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência produz um efeito cominatório pleno[1], pois que eles ficam imediatamente reconhecidos, limitando-se o juiz a homologar a lista correspondente. E se os créditos devem ser reconhecidos por falta de impugnação, nada mais importa averiguar, pelo que o tribunal deve proferir sentença homologatória que conheça da sua existência e os gradue pela ordem que lhes competir.

A cominação não opera, portanto, apenas relativamente aos factos – mas quanto aos factos e ao direito: na falta de impugnação de crédito reconhecido pelo administrador, o crédito considera-se definitivamente reconhecido.

Se, realmente, o administrador reconheceu o crédito reclamado e nenhum credor, tendo sido colocado em condições de o fazer, compareceu a exercer o seu direito de contradição ou impugnação, a ordem jurídica interpreta, legitimamente a atitude do credor como sinal inequívoco de que nada tem a opor à pretensão do credor reclamante e ao reconhecimento, pelo administrador do respectivo crédito.

Esta regra – o reconhecimento definitivo, por falta de impugnação, do crédito – sofre apenas um desvio: o de erro manifesto.

Um tal erro pode referir-se a qualquer aspecto relevante tanto para a existência do crédito como para o seu valor ou a sua qualificação – v.g., a classificação do crédito como subordinado ou como garantido ou como comum ou privilegiado. Mas há-de ser, por exigência terminante da lei – um erro manifesto. Deve, pois, tratar-se de um erro ostensivo, patente, crasso, evidente.

Todavia, face à comum exponencialidade do volume dos créditos reclamados, à complexidade das reclamações, ao mole de documentos com que são instruídas e à exiguidade dos prazos assinados na lei, quer para a organização da lista quer para a sua impugnação, a doutrina e a jurisprudência têm-se, porém orientado para uma interpretação latitudinária do conceito de erro manifesto, impondo ao juiz – com o fito último de evitar a violação da lei substantiva - o dever de aferir da conformidade, substancial e formal, dos títulos dos créditos arrolados na lista apresentada pelo Administrador sujeita à sua homologação, para o que pode, designadamente, solicitar ao administrador os elementos indispensáveis àquela aferição[2].

Nos termos gerais, a impugnação dos créditos reconhecidos – em sentido material – está submetida a uma regra de concentração: todos os fundamentos da impugnação devem ser deduzidos no respectivo requerimento, ou melhor, no prazo da sua apresentação, pelo que fica precludida quer a invocação dos factos que, devendo ter sido alegados nesse momento, o não foram, quer a impugnação, num momento posterior, dos factos invocados pelo credor reclamante (artº 489 nº 1 do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE). Se estes factos forem invocados fora do prazo determinado para a impugnação, o tribunal não pode considera-los na decisão da causa; se o fizer incorre em excesso de pronúncia o que determina a nulidade daquela decisão. Exceptua-se, nos termos gerais, o caso da impugnação diferida, i.e., aquela que pode ser apresentada depois do prazo da impugnação, admissível em três situações: quando o impugnante pretenda alegar factos supervenientes, i.e., factos ocorridos posteriormente ao termo do prazo fixado para a impugnação, ou facto anteriores de que o impugnante só teve conhecimento depois de findar esse prazo; quando a lei permita expressamente a apresentação posterior da impugnação; finalmente, quando o impugnante pretenda invocar factos de conhecimento oficioso, o que se justifica pela circunstância de que, se o tribunal pode, em qualquer momento, conhecer desses factos, então também o impugnante os pode alegar em qualquer fase da causa (artº 660 nº 2, 2ª parte do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

 E a este propósito não é, decerto, demais acentuar que o processo de insolvência – sede processual na qual foi proferida a decisão impugnada nos recursos - é dominado por um princípio do inquisitório, de que decorre a liberdade vinculada do juiz de investigar e esclarecer os factos relevantes designadamente para decidir a homologação do plano – ou a sua recusa (artº 11 do CIRE). Trata-se, de resto, de uma inquisitoriedade forte, dado que permite a investigação de factos essenciais não invocados pelas partes – e não de uma inquisitoriedade fraca que só permitiria ao tribunal tomar iniciativas probatórias quanto aos factos essenciais invocados pelas partes (artº 265 nº 3 do CPC de 1961, ex-vi artº 17 do CIRE).

Maneira que, se se conjugar o âmbito da preclusão decorrente da ausência de impugnação dos créditos com o fundamento que autoriza o juiz a excluir o funcionamento do efeito cominatório pleno dela decorrente - o erro manifesto, entendido com a amplitude mencionada – obtemos este resultado: a qualquer credor, apesar de não ter impugnado o crédito de qualquer outro, é lícita a arguição de quaisquer factos que tornem manifesto o apontado erro, ao menos com a finalidade de obter do juiz a recusa de homologação do plano de insolvência proposto.

Se ao juiz é lícito o conhecimento oficioso de qualquer facto que se resolva num erro manifesto da lista de credores reconhecidos, então também o impugnante o pode alegar em qualquer fase da causa da insolvência. Recorde-se que a questão da qualificação dos créditos dos credores recorrentes – e o erro correspondente - foi levantada no contexto do processo de insolvência e este é, indubitavelmente, dominado por uma inquisitoriedade forte. Do mesmo modo, se ao juiz é lícito ordenar a produção das provas que tiver por necessárias ou convenientes para aferir da correcção do erro, formal ou substancial, da lista dos créditos, à parte há-de ser reconhecido o direito de, com a alegação desse erro, produzir ou propor-se produzir as provas ordenadas para o convencimento da sua existência.

E, por erro manifesto, deve ter-se, seguramente, o erro na qualificação dos créditos, tornado patente a partir, designadamente, das provas produzidas pelo credor com o requerimento no qual inculca o equívoco.

Sendo isto exacto, segue-se, em boa lógica, que ao credor C..., Lda. era lícita, apesar da omissão definitiva de impugnação dos créditos, a alegação de qualquer facto, ainda que relativo à qualificação dos créditos reconhecidos, que inculcasse o erro nessa qualificação, e, bem assim, a junção da prova destinada a demonstrá-lo.

Na sua versão originária, o CIRE exigia, como conditio sine qua non da realização da assembleia de credores convocada para deliberar sobre a proposta de plano de insolvência, o prévio proferimento da sentença de verificação e graduação dos créditos reclamados e a extinção do prazo da sua impugnação por meio de recurso ordinário (artº 209 nº 2, na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo artº 1 do Decreto-Lei nº 200/2004, de 18 de Agosto).          

Em face da desrazoabilidade da solução[3], o legislador deixou de exigir, como condição de realização da assembleia de credores, convocada para aquela finalidade, o prévio proferimento da sentença de verificação e graduação dos créditos reclamados (artº 209 nº 2 do CIRE, na redacção que lhe foi impressa pelo artº do Decreto-Lei nº 200/2004).

É, portanto, perfeitamente admissível realizar a assembleia de credores para se deliberar sobre a aprovação do plano de insolvência – e, evidentemente, aprovar o plano e homologá-lo – ou recusar essa homologação - antes do proferimento da sentença de verificação dos créditos. Simplesmente, esta solução traz implicada esta consequência: a de permitir – ou mesmo exigir – o conhecimento no processo de insolvência – com aplicação dos princípios que o norteiam, como, v.g., o do inquisitório - de questões que, por regra, no rigor das coisas, deveriam ser decididas na acção declarativa de carácter incidental da reclamação, verificação e graduação de créditos (artºs 138 e 142 do CIRE). Nem é outro o caso dos recursos: por não ter sido proferida a sentença de verificação e graduação dos créditos, houve que decidir – com a finalidade última de homologar ou recusar a homologação do plano uma questão – a natureza dos créditos dos credores recorrentes - cuja sede natural de resolução é aquela acção declarativa de carácter incidental.

A esta luz, a decisão impugnada ao concluir pela sua vinculação ao dever de proceder à correcção do erro manifesto da lista de créditos apresentada – com a finalidade de decidir o problema da recusa de homologação do plano suscitada pelo credor indicado, deve ter-se por exacta.

Maneira que – e é esse o problema que constitui o ponto vivo do objecto do recurso – tudo está em saber se o fundamento último da recusa de homologação do plano em que assentou a decisão impugnada – o carácter subordinado dos créditos dos credores recorrentes – é ou não exacto.

3.4. Pressupostos da subordinação dos créditos.

O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal (artº 1 nº 1 do CIRE).

Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda. Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do CIRE).

Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).

Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC de 1961).

No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.

O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.

Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns.

Abstraindo de soluções intermédias, a posição relativa recíproca dos credores em processos concursais, pode organizar-se de harmonia com dois sistemas: um deles fundamenta-se no princípio da prioridade e expressa-se na máxima prior tempore, prior iure, dado que atribui ao credor que primeiro obteve a penhora ou acto equivalente de bens do devedor uma preferência em relação aos demais credores que não sejam titulares de quaisquer garantias reais sobre esses mesmos bens; outro sistema possível é o da igualdade ou da par conditio (omnium) creditorum, que não concede ao exequente qualquer preferência resultante da penhora em relação aos demais credores comuns do executado[4].

Todavia, a diferença entre o sistema da par conditio creditorum e o sistema da prioridade não corresponde, verdadeiramente, a qualquer contraposição entre igualdade e a desigualdade dos credores. Qualquer dos sistemas baseia-se num pressuposto de igualdade entre os credores: o que é diferente è a igualdade que está subjacente a qualquer dos sistemas. No sistema da par conditio, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor impedir a satisfação integral dos créditos dos outros credores; no sistema da prioridade, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor conseguir a satisfação integral do seu crédito. Um sistema prejudica, de forma igual, todos os credores; o outro pode beneficiar, também de forma igual, qualquer credor[5].

Seja como for, à igualdade dos credores na admissão ao concurso não o corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e, designadamente, dos titulares de direitos preferenciais de pagamento.

Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados – que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; e os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual (artº 47 nºs 1, 2 e 4 a) a c) do CIRE).

A esta tríade de créditos sobre a insolvência corresponde, naturalmente, uma homótropa tríade de credores sobre a insolvência.

Os créditos subordinados – categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE – recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de, independentemente da sua fonte serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artº 48, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE).

Outro ponto é que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artº 77 nº 3 do CIRE). A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe (artº 197 b) do CIRE).

É a esta luz que deve ser lido o princípio da igualdade dos credores que o plano de insolvência deve acatar, princípio que a norma que proclama, de resto, logo admite a sua restrição, desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE). Os credores da insolvência são tratados de forma igual – mas segundo a qualidade dos seus créditos.

Nestas condições, em vez de par conditio creditorium talvez de devesse falar, com maior propriedade, de par aut conditio creditorum.

Uma das finalidades do processo de insolvência – até bem recentemente a única e a última - é a satisfação dos interesses dos credores (artº 1 nº 1 do CIRE). Este objectivo pode, todavia, ser prosseguido por dos modos diferenciados: através da liquidação universal do património do devedor e a partilha ou a repartição do respectivo produto pelos credores, de acordo com o esquema supletivo disposto na lei; através da satisfação dos credores pela forma regulada num plano de insolvência aprovado pelos credores, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (artºs 1 e 192 nº 1 do CIRE).

O plano de insolvência constitui, por isso, na lógica do CIRE um meio alternativo à liquidação universal dos bens do devedor, que decorre segundo o modelo supletivo traçado na lei. Com o plano de insolvência procura-se dar ao problema da insolvência do devedor uma resposta diferente da pura e simples liquidação, universal e colectiva, do seu património, segundo o modelo supletivo desenhado no CIRE.

Como o nome logo inculca, a assembleia de credores é órgão deliberativo – de, resto, prevalente – da insolvência, no qual se forma e se expressa a vontade do universo dos credores (artº 72 nº 1 e 80 do CIRE).

Todavia, de um aspecto, na assembleia podem participar outras pessoas que não os credores – como, por exemplo, os condevedores solidários do insolvente ou o seus garantes, até três representantes da comissão de trabalhadores ou, se esta não existir, até representantes dos trabalhadores, e o Ministério Público – e, de outro, nem todos os credores nela participam necessariamente (artºs 72 nº 1, 5 e 6 e 95 nº 2 do CIRE).

No tocante à sua composição, rege o princípio da universalidade e, portanto, a regra é a de que têm assento na assembleia todos os credores da insolvência, embora o juiz possa limitar a participação nela de alguns deles, tendo em conta o valor do seu crédito (artº 72 nº 1 do CIRE).

O direito de participar na assembleia importa para o credor, quatro faculdades principais: assistir, discutir, propor e votar[6].

A letra da lei permite, sem esforço, identificar quatro modalidades de plano de insolvência: o plano de liquidação da massa insolvente; o plano de recuperação; o plano de transmissão da empresa; o plano misto (artº 195 nº 2 b) do CIRE)[7].

Todavia, seja qual for a modalidade de plano considerada, na fixação do seu conteúdo, rege o princípio da liberdade e da autonomia dos credores, por força do qual estes gozam de liberdade latitudinária, mas não ilimitada, na conformação jurídica dos seus interesses (artº 195 nº 2, in fine, e 196 nº 1 do CIRE)[8]. Limite relevante dessa liberdade e autonomia é, como já se fez notar, o representado pelo princípio da igualdade dos credores (artº 194 nºs 1 e 2 do CIRE).

Relativamente aos créditos que atribuem o direito a voto, a regra no tocante à determinação do número de votos obtêm-se pela conversão dos euros em votos: um voto por cada euro ou fracção (artº 73 nº 1 do CIRE).

A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se na assembleia, convocada com essa finalidade, estiverem presentes credores cujos créditos constituam, ao menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, e obtiver mais de dois terços dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções (artº 212 nº 1 do CIRE).

Exigem-se, portanto, para a aprovação do plano de insolvência três quóruns: um quórum constitutivo – a presença ou a representação de credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito a voto; e dois quóruns deliberativos, de verificação simultânea: em primeiro lugar impõe-se que a proposta do plano recolha o voto favorável de mais de dois terços dos votos emitidos; em segundo lugar, exige-se que aquela proposta recolha o voto favorável de mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados. Esta última exigência foi introduzida no Código pelo Decreto-Lei nº 200/2004, de 18 de Agosto, que explica, no preâmbulo, que tal requisito foi introduzido por forma a evitar que os credores subordinados possam, sem o acordo dos restantes credores, fazer aprovar um plano de insolvência. O objectivo é, nitidamente, o de garantir que ainda que o direito de voto assista aos credores subordinados, estes não possam, sozinhos, fazer aprovar um plano de insolvência que, decerto, os beneficia face ao regime supletivo do CIRE, afectando os demais credores[9].

Este regime inculca que o plano de insolvência é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transacção[10] e, portanto, um verdadeiro contrato, nada impedindo, portanto, que inclua um ou mais terceiros – como no caso em que um terceiro assume uma obrigação perante uma das partes - ou que os credores concluam através dele um contrato a favor de terceiro (artº 443 nº 1 do Código Civil). A única especialidade, deveras notável, deste negócio processual conformador da decisão da causa consiste em não exigir, para que se tenha por validamente concluído, o consentimento de todos os intervenientes, sendo suficiente, o consentimento de um simples maioria deles: não é, realmente, necessário para que o plano seja aprovado, a unanimidade de votos dos credores, incluindo, por exemplo, os afectados pela supressão ou alteração do valor dos seus créditos, ou das suas garantias no caso dos credores privilegiados[11] – basta, por um lado, que obtenha o voto favorável de mais de dois terços de todos os votos emitidos, trate-se de credores comuns, garantidos ou privilegiados e, por outro, que mais de metade dos votos correspondam a créditos não subordinados.

Todavia, para que produza os efeitos jurídicos para que se mostra ordenado, o plano deve ser objecto de homologação judicial: embora a sentença homologatória limite o seu controlo à legalidade do plano - e não, note-se, ao seu mérito - aquele acto decisório do tribunal constitui, porém, uma verdadeira condição de eficácia do plano[12] (artº 217 nº 1 do CIRE).

O juiz da insolvência está, portanto, vinculado ao dever de controlar a legalidade do plano de insolvência, devendo recusar, ex-offício, a sua homologação, designadamente, caso o seu exame o leve a concluir que se verificou uma violação, não negligenciável, de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo (artº 215 do CIRE). Note-se que, quer se trate de normas de procedimento quer de normas de conteúdo, em causa estão sempre normas processuais, i.e., normas que definem uma consequência processual, ou, mais concretamente, aquelas cuja previsão desencadeia um efeito processual.

À vista do plano aprovado, com a finalidade última de o homologar ou de recusar a sua homologação, o juiz deve, portanto, proceder a um duplo exame: exame do acto sob o ponto de vista do procedimento; exame sob o ponto de vista do seu conteúdo. No primeiro caso, o exame terá por objecto as normas de tramitação, i.e., de normas que regulam a sequência de actos que constituem o processo relativo à apresentação e aprovação do plano; no segundo, esse objecto é constituído pela normas de conteúdo, i.e., pelas normas processuais que permitem determinar o conteúdo desse mesmo plano. No exame do ponto de vista do procedimento, o magistrado procurará averiguar se o plano acatou as normais processuais integrantes do iter, marcado na lei, conducente à sua aprovação; no exame do conteúdo, o juiz indagará se o plano observou as normas que conformam a respectiva substância, designadamente, as que definem um conteúdo vinculado desse mesmo plano.

Numa palavra: o juiz deve examinar se se verifica, quer no plano do procedimento relativo à aprovação do plano de insolvência, quer no plano atinente ao seu conteúdo, uma qualquer nulidade processual, i.e. se se praticou um acto que não é permitido ou foi omitido um acto imposto ou uma formalidade essencial (artº 201 do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

Todavia, para recusar, oficiosamente, a homologação do plano não é suficiente a constatação de que houve violação tanto de normas de tramitação como de normas relativas ao conteúdo do plano. A ofensa de normas de qualquer destas espécies só autoriza a recusa da homologação se for não negligenciável, exigência que vincula, evidentemente, à distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes e que traz, naturalmente, implicada a concessão ao juiz de um largo poder de apreciação. Essa apreciação deve nortear-se pelos princípios orientadores, em geral, da nulidade processual, entre os quais se conta o da essencialidade, de harmonia com o qual a nulidade não se verifica se a prática ou a omissão do acto ou da formalidade não influir no exame e na decisão da causa (artº 201 nº 1, in fine, do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE).

Numa palavra: só releva a violação que seja susceptível de influir no exame e na decisão da causa[13], que comprometa, irremediavelmente, o fim que a lei se propunha atingir; quando a ofensa da lei não tenha este efeito patológico, a violação é negligenciável ou desprezível, e o juiz fica autorizado a declarar irrelevante a nulidade correspondente.

Neste contexto, porém, a aprovação do plano sem o indispensável quórum deliberativo relativo aos votos correspondentes a créditos não subordinados é, seguramente, uma violação não negligenciável, com a consequente recusa de homologação do plano.

Consideram-se subordinados, entre, outros, os créditos detidos por pessoas especialmente relacionados com o devedor, desde que essa relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos, nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 48 a) do CIRE).

Como pessoas especialmente relacionadas com o devedor pessoa colectiva são havidas, designadamente, as pessoas que tenham estado com a insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do artº 21 do Código dos Valores Mobiliários, dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 49 nº 2 b) do CIRE). Em termos deliberadamente simplificadores, pode dizer-se que são dois os elementos definidores do grupo de sociedades: a independência jurídica das sociedades agregadas; a dependência económica de todas – as sociedades-filhas – em relação a uma delas – a sociedade-mãe. Por grupos de sociedades entende-se, assim, o conjunto mais ou menos vasto de sociedade comerciais que, apesar de conservarem as respectivas personalidades jurídicas, próprias e distintas, se encontram subordinadas a uma direcção comum; considera-se que duas sociedades estão em relação de domínio, quando uma delas – a dominante – pode exercer directa ou indirectamente, ou por sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artº 483 nº 2 do Código das Sociedade Comerciais, sobre outra – a dependente – uma influência dominante, domínio intersocietário de que são instrumentos, por exemplo, a participação totalitária ou simplesmente maioritária, tanto de capital como de votos – e o contrato de subordinação (artºs 482, 483, 485, 486 nºs 1 e 2, 488, 489 e 493 daquele Código). A influência pode, naturalmente, ser exercida indirectamente pela sociedade dominante através da interposição de uma terceira sociedade – domínio múltiplo vertical – ou conjuntamente, por aquela sociedade dominante e outra sociedade dependente – domínio múltiplo horizontal.

A categoria dos créditos subordinados abrange, pois, em particular, os créditos de que sejam titulares pessoas especialmente relacionadas com o devedor – seja ele pessoa singular ou colectiva. A solução é justificada – pelo legislador, ele mesmo – por não se afigurar desproporcionada, situando-nos na perspectiva de tais pessoas a sujeição dos seus créditos ao regime da subordinação, face à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, face aos credores, e pelo combate a uma fonte de frustração da finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo (…) para praticar actos prejudiciais aos credores (ponto 25 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 16 de Março, que aprovou o CIRE).

O pensamento fundamental subjacente a esta solução constitui o dado da experiência, segundo o qual à ligação estreita entre um credor e o devedor está geralmente associado, não apenas o conhecimento da situação patrimonial e financeira do último, mas sobretudo o risco exponencial de que o devedor, por força da influência dominante daquele credor, resultante de instrumentos de domínio, adopte, na condução dos seus negócios, condutas lesivas para os credores com quem não tenha um vínculo daquela espécie.

Sendo indiscutível que se trata de uma presunção legal, o que se pergunta é se trata de uma presunção iuris et de iure ou antes, simplesmente – como todos as apelantes sustentam em uníssono - de uma presunção iuris tantum.

As presunções são ilações que a lei ou o julgador tiram de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artº 349 do Código Civil). As presunções podem ser legais, se estabelecidas pela lei, ou judiciais. As presunções legais são de dois tipos: relativas, ilidíveis, ou iuris tantum, quando se limitam a inverter o ónus da prova, podendo, por isso, ser afastadas mediante prova em contrário (artº 350 nº 2, 1ª parte); absolutas, inilidíveis ou iuris et de iure, quando imponham um regime – i.e., quando não admitam prova em contrário, fixando simplesmente um determinado regime imperativo (artº 350 nº 2, in fine, do Código Civil)

As meras presunções iuris tantum desempenham uma função essencialmente processual de inversão do ónus probatório. As presunções deste tipo constituem, na dogmática jurídica, uma simples técnica através da qual o legislador – atentas das dificuldades de prova do facto constitutivo de que depende o exercício de certo direito ou o preenchimento legal da hipótese de determinada norma – vem em socorro de uma das partes envolvidas na relação material em causa, estabelecendo em seu favor uma presunção legal da existência desse mesmo facto constitutivo. Na ausência de semelhante presunção, os interessados em fazer valer o direito que para si deriva da norma cujo preenchimento depende da averiguação de tal facto constitutivo, ver-se-iam obrigados a fazer a prova da existência desse facto (artº 344 nº 1 do Código Civil): o significado da presunção está, por conseguinte, em libertá-los desse encargo através da inversão do ónus da prova.

A espinhosa questão da qualificação da presunção como absoluta ou meramente relativa resolve-se através da interpretação da norma que a contém; se o resultado da interpretação não inculcar o carácter absoluto da presunção, esta deve considerar-se, por defeito, como relativa[14].

As razões qualificadas que levaram o legislador a estabelecer a presunção – a superioridade informativa do credor no tocante à situação do devedor e, sobretudo, o propósito de obstar a condutas desonestas, assentes no aproveitamento da relação de domínio ou de grupo societário, do devedor, lesivas dos credores – seriam afinal frustradas – e constituiriam mais uma outra fonte de complexidade do processo de insolvência - se se admitisse o credor a demonstrar que, apesar da apertada vinculação com o devedor, no período relevante, actuou com lisura ou com boa fé. Aquele objectivo só se obtém, impondo, inelutavelmente, um regime, uma qualificação. Nestas condições: aquela presunção não cumpre uma mera função processual de inversão do ónus probatório, antes possui um sentido material, tendente à delimitação do facto constitutivo a ela subjacente: a existência de uma relação especial com o devedor. Trata-se, por conseguinte, de uma presunção absoluta[15].

Em qualquer caso, mesmo que se tratasse de uma presunção meramente iuris tantum, todas as apelantes hão-de convir que o recurso não é, decerto, o local processualmente adequado para proceder à sua ilisão, dado que essa ilisão exige a alegação e a demonstração de de todo um conjunto de factos para as quais a única prova produzida na instância do recurso - a prova documental - não é, de todo, suficiente.

Independentemente da exactidão desta conclusão, a leitura conjugada dos preceitos reguladores desta causa de subordinação dos créditos, mostra que os pressupostos dessa qualificação são os seguintes: a detenção do crédito por pessoa especialmente relacionada com o devedor ou por pessoa a quem tenham sido transmitidos; a sua aquisição nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 48 a) do CIRE)

Desde que só releva, para a qualificação, o relacionamento especial entre o credor e o devedor nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, então os créditos devem ter sido adquiridos ou transmitidos no arco temporal a que a lei associa – segundo se crê, por presunção absoluta – a suspeita de que o crédito foi adquirido com o uso da superioridade informativa e com o propósito de lesar outros credores.

Mal vale a perder uma palavra para acentuar que estes dois requisitos não são de verificação alternativa, sendo antes, patentemente, cumulativos: o crédito dever ter sido adquirido por pessoa especialmente relacionada com o devedor, no contexto dessa vinculação especial, nos dois anos anteriores ao da proposição da acção de insolvência.

No caso, a decisão impugnada – para concluir pela subordinação dos créditos dos credores recorrentes – foi terminante na afirmação de que o capital das sociedades credoras era maioritariamente detido pelo accionista maioritário da insolvente, aquelas, através deste (Banco N...), estavam numa relação de grupo e de domínio sobre a insolvente (artº 489 nº 1 do Código das Sociedades Comerciais).

Admita-se ad argumentum que esta proposição de facto é exacta – o que, em face da prova documental disponibilizada pelo caderno do recurso, não é, de todo líquido, dado que aquela prova aponta no sentido de que parte - maioritária - do capital da insolvente era detido por um fundo de investimento mobiliário, portanto, por um património autónomo[16] – actualmente designado por Fundo de Capital de Risco B... Gestão de Activos - o que vinculava à demonstração, deveras complexa, da imputação dos direitos de voto à sociedade que domine a entidade gestora do fundo (artºs 20 nº 3 e 20-A do Código dos Valores Mobiliários)[17].

Pergunta-se: os créditos reclamados pelos credores recorrentes foram adquiridos nos dois anos anteriores ao do início do processo de insolvência – 31 de Janeiro de 2012, data em que foi apresentada a petição inicial do processo correspondente – portanto, entre 31 de Janeiro de 2010 e 31 de Janeiro de 2012?

Como se notou, os créditos titulados pelos credores apelantes não foram objecto de qualquer impugnação, designadamente no que toca à causa ou competência da sua aquisição ou constituição nem ao momento dessa aquisição.

E da respectiva reclamação decorre o seguinte: no tocante aos créditos transmitidos, por cessão, à recorrente, P..., SA, esses créditos foram adquiridos, pelo cedente – o Banco P..., SA – através de contratos de depósito bancário, de mútuo e de abertura de crédito em conta corrente, concluídos nos dias 19 de Julho de 2005, 13 de Dezembro de 2007, e 27 de Fevereiro de 2002, 26 de Julho de 2006 e 31 de Dezembro de 2009, respectivamente, tendo as garantias reais alegadas – duas hipotecas voluntárias - sido constituídas, por escrituras públicas outorgadas nos dias 19 de Julho de 2005 e 31 de Outubro de 2005; relativamente ao recorrente B... – Instituição Financeira de Crédito SA os respectivos créditos emergem de uma pluralidade de contratos de locação financeira mobiliária, concluídos nos de 2006 e 2007 e de duas declarações de dívida e acordo de pagamento, subscritas nos dias 8 de Julho de 2009 e 8 de Novembro de 2011, relativos a créditos emergentes de contratos de factoring, concluídos em 2006 e 2009.

De todos estes créditos – e abstraindo da exacta qualificação dos negócios jurídicos dos quais emergem que não releva para a economia do recurso - a dúvida sobre se foram adquiridos no período suspeito relevante apenas se põe no tocante ao alegado pelo B... – Instituição Financeira de Crédito SA, emergente da confissão de divida e acordo de pagamento concluído no dia 8 de Novembro de 2011 – e não como se lê na decisão impugnada em 2009 - embora, em boa verdade, a causa remota dos créditos que tem por objecto radique em dois contratos de factoring, concluídos em 2006 e 2009, sendo estes negócios jurídicos, em última extremidade, a causa constitutiva ou aquisitiva última daqueles créditos. Em qualquer caso, mesmo que o crédito emergente desse negócio jurídico se devesse ter por adquirido somente em Novembro de 2011 e, portanto, se devesse ter por subordinado – ainda assim, a votação do plano de insolvência proposto teria respeitado o quórum deliberativo, relativo à maioria dos votos correspondentes a créditos não subordinados.

Maneira que os créditos reclamados pelos credores recorrentes se devem ter por adquiridos pelo respectivo credor – ou pelo credor cedente - em data anterior a 31 de Janeiro de 2010 ou, na hipótese menos benigna, apenas um deles se deve considerar adquirido em momento posterior, aquisição que, apesar de se situar no arco temporal relevante para a sua subordinação, é de todo asséptica para o problema último que constitui o universo das nossas preocupações – visto que, mesmo no caso de dever qualificar-se como subordinado, não obsta à formação da maioria relevante de votos correspondentes a créditos não subordinados indispensável para que o plano de insolvência se tenha por aprovado.

Sendo isto exacto, então a conclusão a tirar – como sustentam una voce todos os recorrentes – é de a que não verifica um dos requisitos da qualificação como subordinados dos créditos reclamantes: a aquisição do crédito nos danos anteriores à da proposição da acção de insolvência. E, como esse requisito é de verificação cumulativa, é de todo inútil, na espécie sujeita, proceder à deveras complexa averiguação, do outro dos requisitos dessa qualificação – a relação intersocietária de grupo ou de domínio entre os credores recorrentes e a insolvente.

O fundamento de recusa adiantado pela decisão impugnada não é, pois, exacto. A revogação daquela decisão é, assim, meramente consequencial.

De resto – e obiter dicta – essa revogação sempre se imporia, embora por uma razão e com um efeito diferenciados.

Como se notou, a decisão impugnada, para se desvincular da qualificação dos créditos dos credores recorrentes, resultante do seu reconhecimento pelo Administrador da Insolvência e da abstenção de impugnação, como garantidos, num caso, e comuns, no outro, fundamentou-se no seu dever funcionar de corrigir os lapsos manifestos da lista apresentada.

Já se mostrou a correcção deste entendimento. Simplesmente, a doutrina e a jurisprudência são acordes no sentido de que, se o erro detectado for de natureza substancial, o juiz deve sobrestar na decisão da decisão de verificação e de graduação dos créditos, devendo antes ordenar a organização de nova lista e facultar às partes as impugnações que tiverem por direito[18].

É verdade que esta orientação surge referida à sentença de verificação e graduação de créditos. Simplesmente, ela é inteiramente transponível - por proceder, numa hipótese e noutra, a mesma razão material, para os casos - como o dos recursos – em que, em contexto processual diferente, se decida uma questão que se prenda, designadamente, com a qualificação dos créditos reclamados. Deve notar-se, aliás, que, caso passasse em julgado, formar-se-ia sobre a decisão impugnada caso julgado formal, tornando indiscutível, no processo de verificação e graduação de créditos, a qualificação, como subordinados, dos créditos dos credores recorrentes.

A decisão impugnada não ordenou a reconformação da lista dos créditos reconhecidos, em harmonia com a qualificação que atribuiu aos créditos dos credores recorrentes, tendo logo no mesmo acto em que procedeu a essa qualificação, recusado a homologação do plano. Neste sentido, é exacta a alegação dos recorrentes que, do mesmo passo, se omitiu um acto imposto e se frustrou, designadamente aos credores recorrentes, actuação do seu ineliminável direito ao contraditório, omissão e frustração que, por interferirem decisivamente com o exame e a decisão da causa, produziu nulidade.

Nesta hipótese, haveria que declarar essa nulidade e, bem assim, por virtude da sua dependência, a da decisão impugnada e ordenar a repetição do acto omitido. 

Como se observou, porém, a decisão impugnada deve ser revogada por não ser exacto o pressuposto que constitui a sua ratio decidendi: o carácter subordinado dos créditos dos credores reclamantes ou, ou menos, o carácter subordinado, em toda a sua extensão, daqueles créditos.

Simplesmente, essa revogação não importa, logo, a substituição da decisão impugnada por outra que de imediato homologue o plano de insolvência. É que – como se salientou – a decisão impugnada, por a considerar prejudicada pela decisão que achou para o problema da qualificação dos créditos dos credores reclamantes, não se pronunciou sobre o outro fundamento de recusa de homologação do plano, alegada pelo credor C..., Lda.: o agravamento da sua situação por comparação com a que resultaria da ausência de qualquer plano. E como o processo dos recursos não contém os elementos necessários para apreciar tal questão, importa a reenviar o processo para o Tribunal de que provêm os recursos, de modo a que nele se conheça do fundamento de recusa dele alegado pelo credor, cuja apreciação ficou prejudicada, e o decida conforme for de direito.

Síntese conclusiva:

a) O conceito de erro manifesto que, apesar da ausência de impugnações da lista de credores reconhecidos elaborado pela Administrador da Insolvência, obstacula ao imediato proferimento da sentença de verificação de graduação de créditos, deve ser objecto de uma interpretação latitudinária, de modo a vincular o juiz ao dever de aferir da conformidade, substancial e formal, dos títulos dos créditos arrolados naquela lista;

b) A abstenção definitiva de impugnação da lista de créditos reconhecidos, não preclude a possibilidade de qualquer credor invocar factos de conhecimento oficioso, o que se justifica pela circunstância de que, se o tribunal pode, em qualquer momento, conhecer desses factos, então também o credor os pode alegar em qualquer fase da causa;

c) O processo de insolvência é dominado por um princípio do inquisitório forte dado que permite a investigação de factos essenciais não invocados pelas partes, de que decorre a liberdade vinculada do juiz de investigar e esclarecer os factos relevantes designadamente para decidir a homologação do plano – ou a sua recusa.

d) A relação intersocietária de domínio ou de grupo, nos termos do artº 21 do Código dos Valores Mobiliários, dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, constitui uma presunção iuris et de iure, da existência de uma relação especial com o devedor;

e) Esta causa de subordinação dos créditos exige, para essa qualificação dois pressupostos de verificação cumulativa: a detenção do crédito por pessoa especialmente relacionada com o devedor ou por pessoa a quem tenham sido transmitidos; a sua aquisição nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 48 a) do CIRE);

f) Se o juiz detectar, ainda que no contexto do processo de insolvência, na lista de créditos apresentada pelo Administrador da Insolvência, um erro de natureza substancial, deve sobrestar na decisão de homologação do plano de insolvência ou de recusa dessa homologação, ordenar a organização de nova lista e facultar às partes as impugnações que tiverem por direito.

As custas dos recursos serão satisfeitas pela massa insolvente (artº 304 do CIRE).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, revogo a decisão impugnada e determino a sua substituição por outra que, se outra razão não obstar, homologue o plano de insolvência aprovado.

Custas pela massa insolvente.

***

Henrique Antunes  (Relator)

[1] Acs. do STJ de 31.01.91 e de 09.04.92, BMJ nºs 403, pág. 382 e 416, pág. 558, respectivamente.
[2] Ac. do STJ de 09.04.92, cit.
[3] Ac. do STJ de 11.02.93, CJ, STJ, I, pág. 191.
[4] Acs. da RL de 23.3.95, CJ, 95, II, pág. 95 e STJ de 26.9.95 e 16.1.96, CJ, 95, III, pág. 22 e 96, I, pág. 43.
[5] Ac. do STJ de 20.05.10, www.dgsi.pt.
[6] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Volume I, cit., pág. 460, Salvador da Costa, O Concurso de Credores, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 338, e os Ac. do STJ de 25.11.08 – aliás, citado à uma, por todos os impugnantes – e da RG de 29.11.13, www.dgsi.pt.
[7] João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, alguns aspectos mais controversos” e Fátima Reis Silva, “Algumas questões processuais no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, in Conhecer o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, 2004, págs. 23 a 25 e 54 e 55, respectivamente.
[8] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 150 e ss.
[9] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, págs. 40 e 41.
[10] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume I, Quid Iuris, Lisboa, 2006, pág. 72.
[11] António Menezes Cordeiro, “Introdução ao Direito da Insolvência”, O Direito, 137/III, (2005), pág. 503, e Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 99.
[12] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas Notas”, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 587.
[13] Notar-se-á, todavia, que a articulação entre os dois quóruns deliberativos, por referência ao quórum constitutivo, suscita algumas dificuldades interpretativas. Uma proposta de solução consiste em determinar qual o número de votos emitidos, favoráveis e desfavoráveis, que correspondem a créditos não subordinados e, depois, confirmar se, desse número total, mais de metade correspondem a votos favoráveis. Realmente interessa que a maioria que aprova o plano respeite não só a vontade maioria dos votos emitidos na assembleia de credores - mas também a vontade da maioria dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, ou, ao contrário, que a vontade agravada da maioria – créditos subordinados e não subordinados – não prevaleça face à vontade dos credores titulares de metade dos créditos não subordinados que merecem especial tutela.
[14] Gisela Teixeira Jorge Fonseca, “A natureza jurídica do plano de insolvência”, in Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 122.
[15] Ac. da RL de 06.07.09, www.dgsi.pt.
[16] Eduardo Santos Júnior, “O plano de insolvência: Algumas notas”, cit. pág. 590.
[17] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, Quid Iuris, 2006 pág. 119.
[18] Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ nº 110, págs. 187 e 188, e Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunções, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 88.
[19] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume I, Quid Iuris, Lisboa, 2006, pág. 234, Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2011, pág. 112, e Maria do Rosário Epifânio, Manuel do Direito da Insolvência, 3ª edição, 2011, pág. 211; contra Luís M. Martins, A. Raposo Subtil, et al, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Vida Económica, Lisboa, 2006, pág. 138. Admite-se, contudo, o perigo de fazer pagar o justo pelo pecador, como nota Gonçalo Andrade e Castro, “Efeitos da declaração de insolvência sobre os créditos, in Direito e Justiça, vol. XIX, II, 2005, pág. 271.

[20] Artº 4 nº 1 do Decreto-Lei nº 252/2003, de 12 de Outubro, entretanto alterado pelos Decretos-Lei nºs 52/2006, de 15 de Março, 357-A/2007, de 31 de Outubro, 211-A/2008, de 3 de Novembro e 71/2010, de 18 de Junho e, finalmente, revogado pelo artº 7 do Decreto-Lei nº 63-A/2013, de 10 de Maio, que aprovou o Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC).
[21] Sobre o problema, Paula Costa e Silva, “Organismos de investimento colectivo e imputação dos direitos de voto”, disponível em www.cmvm.pt/CMVM/Publicações/Cadernos/Documents.
[22] Acs. do STJ de 25.11.08, cit., da RP de 03.11.10 e de 05.11.12 e da RC de 11.12.12, www.dgsi.pt., Salvador da Costa, O Concurso de Credores, cit., pág. 338.