Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA BEM JURÍDICO PROTEGIDO ESTRUTURA JURÍDICA PERSEGUIÇÃO CONCURSO APARENTE DE CRIMES | ||
Data do Acordão: | 05/18/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 30.º, 152.º E 154.º-A DO CP | ||
Sumário: | I - Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão o tipo legal de crime de violência doméstica se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem um quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
II - O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc - é aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. III - Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela. IV - Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa. V - Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo. VI - O legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica. VII - Da tutela reflexa de tal bem jurídico resultaria, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma. VIII - A solução punitiva diferenciada do crime base e do crime de violência doméstica resultará do diferente juízo de danosidade social de uma ofensa à integridade física praticada entre dois estranhos (violência interpessoal entre dois estranhos) e a praticada no seio de relações familiares, parafamiliares, emocionais ou de coabitação. IX - O crime de violência doméstica pode entrar em concurso aparente com diversos crimes base, atenta a multiplicidade de bens jurídicos susceptíveis de ser afectados como instrumento da afectação do bem jurídico tutelado (a saúde no contexto relacional pressuposto). X - Em situações em que se encontre afastada a cláusula de subsidiariedade expressa (porque a punição do crime convocado se revela inferior ao da violência doméstica) ou em que entre o crime de violência doméstica e o crime convocado intercede uma relação de especialidade), prevalece a punição do crime de violência doméstica. | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 924/19.1PBLRA.C1 PROCESSO COMUM SINGULAR Impugnação da matéria de facto Não cumprimento do ónus de especificação do artigo 412º do CPP Errada qualificação jurídica dos factos Crime de violência doméstica Crime de perseguição Concurso de crimes Internamento de inimputável por anomalia psíquica – seus pressupostos e sua medida JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – Juiz 1 Tribunal Judicial da Comarca de Leiria
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I - RELATÓRIO
1. Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Leiria, Juiz 1, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, tendo, por sentença datada de 18/11/2021, sido o mesmo CONDENADO nos seguintes termos (transcrição): «A. Considerar o arguido AA inimputável, em razão de anomalia psíquica, e absolvê-lo da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica p.p. pelos arts. 14.º n.º 1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal, de que vinha acusado, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal; B. Considerar o arguido AA autor de factos ilícitos-típicos correspondentes a um crime de violência doméstica p.p. pelos arts. 14.º n.º1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal e, em consequência, aplicar-lhe a medida de segurança de internamento, pelo período máximo de 5 (cinco) anos, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de o arguido se submeter às seguintes regras de conduta: a. Submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar a consulta com a periodicidade que lhe for exigida e seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados; e b. Aceitar a vigilância tutelar e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for solicitado. C. Consignar que a medida de segurança acima aplicada será objecto de revisão no prazo de 2 (dois) anos sobre o trânsito em julgado da presente sentença».
2. Desta sentença recorreu o arguido, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição): - Considerar o arguido AA inimputável, em razão de anomalia psíquica, e absolvê-lo da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica p.p. pelos arts. 14.º n.º1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal, de que vinha acusado, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal; - Considerar o arguido AA autor de factos ilícitos-típicos correspondentes a um crime de violência doméstica p.p. pelos arts. 14.º n.º1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal e, em consequência, aplicar-lhe a medida de segurança de internamento, pelo período máximo de 5 (cinco) anos, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de o arguido se submeter às seguintes regras de conduta: a. Submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar a consulta com a periodicidade que lhe for exigida e seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados; e b. Aceitar a vigilância tutelar e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for solicitado. - Consignar que a medida de segurança acima aplicada será objecto de revisão no prazo de 2 (dois) anos sobre o trânsito em julgado da presente sentença.
Termos em que se requer que seja concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que absolva o arguido da prática do crime por que vinha acusado, ou caso assim não se entenda, que seja revogada a decisão recorrida no que respeita à medida de segurança imposta (…)». 3. Respondeu o Ministério Público a este recurso, defendendo a sua improcedência.
4. O Exmº Procurador da República neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.
II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113]. Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a questão a decidir consiste em saber se: 1º- houve ou não uma incorrecta apreciação da prova produzida em julgamento; 2º- houve uma errada qualificação jurídica dos factos apurados; 3º- se a medida de segurança aplicada foi desproporcional e excessiva.
2. DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA NO ACÓRDÃO RECORRIDO (em transcrição) 2.1. A matéria de facto PROVADA é a seguinte:
Mais se provou:
2.2. A matéria de facto NÃO PROVADA é a seguinte: «Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados os demais factos
2.3. Motivou-se assim esta decisão de FACTO (transcrição): «O Tribunal, para formar a sua convicção e considerar provada a factualidade atrás O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e - nas declarações do arguido, prestadas em primeiro interrogatório de arguido detido, no - nas declarações da ofendida BB (assistente), - no depoimento das testemunhas indicadas pelo Ministério Público: FF, solteira, com 43 anos de idade, amiga da ofendida, GG, solteira, com 33 anos de idade, amiga da ofendida, DD, divorciado, com 47 anos de idade, actual namorado da ofendida, II, casada, com 65 anos de idade, mãe da ofendida, e JJ, casado, com 69 anos de idade, pai da - na prova documental constante dos autos, mormente, os assentos de nascimento de fls. credibilidade às declarações da ofendida; e o relatório social elaborado pela DGRS a - na prova pericial extraída do relatório médico-legal de perícia psicológica de fls. 483- Concluindo e reiterando o acima já enunciado, o depoimento prestado pela vítima, ora Com reporte aos factos julgados não provados, a respectiva resposta negativa decorre Por seu turno, no que concerne à factualidade subjectiva, a resposta dada aos factos O Tribunal tomou em consideração o CRC do arguido junto aos autos a fls. 532, Por fim, no que concerne à situação pessoal e sócio-económica do arguido, o Tribunal 3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1. SOBRE OS FACTOS
3.1.1. Debrucemo-nos, então, sobre a sentença preferida pelo tribunal ..., vislumbrando se existe algum erro notório na apreciação da prova ou qualquer outro vício oficioso descrito no artigo 410º, n.º 2 do CPP, assente que houve, a este nível, impugnação da matéria de facto.
3.1.2. É sabido que o Tribunal da Relação pode conhecer da questão de facto por duas formas: - pela impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada (O QUE NÃO É O NOSSO CASO, mercê do facto de o recorrente não ter dado cumprimento mínimo, na motivação do recurso – nem nas suas conclusões[1] -, ao disposto e comando no artigo 412º, n.º 3, alínea b) e n.º 4 do CPP) – cfr. artigo 431º do CPP; - pela análise dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação e da Relação de Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www.dgsi.pt)». E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder à tríplice especificação prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP. A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação. Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova. E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo. Sabemos que o ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto só se satisfaz com a indicação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, ou seja, do conteúdo específico do meio de prova em que se pretendeu basear a impugnação, bem como com o estabelecimento da necessária correlação entre o concreto meio de prova e o concreto ponto de facto que se almejou contrariar, não havendo lugar ao convite ao aperfeiçoamento quando estejam em causa omissões que afectem a motivação do recurso e não apenas as conclusões. No nosso caso, o recurso, quer na motivação, quer nas conclusões, é completamente omisso quanto a isso (dizer apenas que «na realidade, as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento apenas alegaram assistir aos factos constantes dos pontos 14, 19, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37 e 41» é manifestamente insuficiente para satisfazer tal ónus). Assim sendo, não é este erro de julgamento que está em apreciação, restando sindicar a decisão recorrida com base nos vícios oficiosos do artigo 410º, n.º 2 do CPP.
3.1.3. Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente o recurso intentado, explorando, de forma mais demorada, cada um dos vícios oficiosos ínsitos no n.º 2 do artigo 410º do CPP. Na realidade, estabelece o artigo 410º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: 1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; 2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; 3. Erro notório na apreciação da prova. Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – n.º 2 do artigo 410.º do CPP. Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa. Este último, numa tese inicialmente defendida, permitiria uma maior amplitude do recurso, pela também possibilidade de análise da prova registada, mas uma tal solução poria em causa o princípio da imediação com que havia sido apreciada a prova na primeira instância, princípio cujo cumprimento seria de muito difícil alcance pelo tribunal de recurso. Daí a solução intermédia, chamada de revista alargada. Tal sindicância não deixa de ser, em bom rigor, uma actividade puramente jurídica, pois basear-se-á apenas no texto da decisão recorrida e não em qualquer prova que exista fora dele, seja ela documental ou outra.
3.1.4. Quais os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP? A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[2]. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[3]. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício. Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97). O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[4]. Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si. O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando: a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado; b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP; c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
3.1.5. O recurso não alude a qualquer um destes vícios. Para se analisar a decisão recorrida nestes termos há que analisar o seu texto literal e a sua concordância lógica entre o acervo probatório dado como provado e não provado e a respectiva motivação. E é nessa motivação que reside o cerne de todo o problema e a verdadeira arte de julgar num verdadeiro Estado de Direito onde os tribunais aplicam as leis de forma fundamentada e credível. Cada autoridade só tem direito ao respeito que conquista – e um juiz, todos os dias, conquista esse respeito sentenciando de forma justa e motivada com base em provas válidas, num juízo de convicção que, depois de ser criado, tem de ser devida e suficientemente explicado ao mundo. Neste ponto, e aqui chegados, foquemo-nos na questão da prova e da sua leitura em sede de julgamento para a criação de uma convicção (e aí o juiz convencido tem de se transformar, de forma sábia e suficiente, em juiz convincente)[5]. Lemos e relemos a decisão recorrida, elaborada na sequência de um julgamento vivido por uma Juíza de Direito, atenta à prova testemunhal, documental e pericial. E o juízo que aí foi criado foi aquele que resulta da coerente prova dada como provada. Houve algum erro notório na apreciação da prova, assente a inexistência dos outros dois vícios do artigo 410º, n.º 2? Ou seja: § O tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados? § Estamos perante um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido? § Extraiu-se de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum? § Deu-se como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo? § A prova foi erroneamente apreciada? § O tribunal afastou-se infundadamente de um eventual juízo dos peritos? § Deu-se como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica? § Na motivação da decisão de facto invoca-se facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso? § Declara-se ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido? § No âmbito da apreciação da prova indirecta, o tribunal infere de um facto um outro facto, sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão? § Houve uma má aplicação do princípio in dubio pro reo? A todas as perguntas, respondemos NÃO. Aqui chegados, e não se descortinando da decisão recorrida a existência de qualquer vício probatório, desde logo porque ela é minuciosa no exercício da análise factual e permitiu ao tribunal julgador concluir pela existência de prova quanto aos factos provados e não provados, a impugnação da matéria factual feita no recurso só pode improceder, mantendo-se o acervo probatório tal qual foi ficado pelo tribunal. O artigo 127.º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional. Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP. Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido. Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios: – os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas); – A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável; – Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais; – A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso; – Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto. A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt). Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt). Ora, no nosso caso, o tribunal de LEIRIA, usando métodos lícitos de valoração da prova produzida, criou uma convicção. E explicou-se em aresto, não havendo, assim, qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova, inexistindo qualquer fundamento bastante para que este tribunal de recurso, sem imediação, infirme esse juízo e decida, a final e afinal, pela não prova dos factos aqui apurados (e está no seu direito de acreditar mais na palavra da assistente, credível e convincente, do que na negação simplista do arguido, explicando-se devida e suficientemente na sua motivação de facto[6]).
3.1.8. Se assim é, os factos permanecem intactos, tal como foram gizados pelo tribunal ....
3.2.1.1. Quanto ao crime de VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, diremos: — O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio (cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima) — No seu tipo objectivo, incluimos as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma - o actual crime de violência doméstica afigura-se complexo, abarcando uma multiplicidade de situações de facto, quer no que toca ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer no que toca aos específicos agentes que o podem cometer (agente ou sujeito activo), quer quanto aos específicos sujeitos que podem dele padecer (vítima ou sujeito passivo), quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias) — Este elenco de Maus-tratos – previsto no artigo 152º do CP - é exemplificativo (crime de execução não vinculada) — Tendo em conta a diversidade de condutas que estão previstas no típico crime de violência doméstica, tendemos aqui a concordar com Catarina Fernandes[7], quando afirma que a violência doméstica pode consubstanciar, tanto um crime de resultado (estando em causa, v.g., maus tratos físicos); como um crime de mera actividade (estando em causa, v.g., provocações e ameaças); como um crime de dano (estando em causa, v.g., privações de liberdade) ou como um crime de perigo (estando em causa, v.g., ameaças e humilhações); — Os maus-tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado («por regra não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime») — Pese embora a supressão da distinção entre maus tratos reiterados e intensos, entende-se que um único acto ofensivo, sem reiteração, para poder ser considerado «Maus Tratos» e assim preencher o tipo do 152º, continua, hoje, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana (TUDO DEPENDENDO DO CASO CONCRETO)[8] — Exige o tipo um estado de agressão tendencialmente permanente (exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante) — Bastará então a fixação de balizas temporais que permitem assegurar ao agente o seu direito ao contraditório e ao processo equitativo (daí não se exigir a especificação das datas exactas de todas as agressões). No nosso caso, o tribunal entendeu que a factualidade apurada consumava o crime de violência doméstica. Partiu do seguinte pressuposto, que apoiamos veementemente: Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano. O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. Por via do quadro legal, estas acções ilícitas mantêm-se mas perdem autonomia, e daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica (mais à frente desenvolveremos esta questão). Mas uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela. Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa (acórdão da Relação de Lisboa de 5/7/2016, Processo n.º 662/13.9GDMFR). Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo. E MAIS À FRENTE do sentenciado explana o seguinte, explicando a razão de ser da subsunção jurídica que faz: «De facto, o comportamento do arguido para com a vítima evidencia uma obsessão exacerbada que ultrapassa todos os limites do razoável, deixando-a desprotegida e sujeita aos seus exageros inaceitáveis: o arguido perseguia de forma persistente a ofendida BB, “impondo” constantemente a sua presença em todas as suas rotinas diárias, demonstrando claramente a sua insistência numa relação que já havia terminado, o lembrar e relembrar à ofendida sentimentos passados, o seu paternalismo em relação à ofendida e a sua ascendência sobre a mesma, pressionando-a, de forma insistente, a reatar a relação. Conhecedor das rotinas de BB, o arguido quis persegui-la e abordá-la na via pública, e em estabelecimentos comerciais. Ao telefonar sistematicamente conseguiu o arguido perturbar a paz, a tranquilidade e sossego daquela. Ou seja, no caso sub judice, o arguido praticou os factos descritos e dados como provados de forma reiterada durante o período temporal identificado na factualidade provada, os quais foram adequados e determinantes a colocar a ofendida numa situação de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade. De facto, a ilicitude e a danosidade de cada actuação, consideradas conjuntamente, tendo em atenção a diversidade dos bens jurídicos protegidos atingidos, eleva a ilicitude do seu conjunto atingindo não apenas os diversos bens jurídicos protegidos pela incriminação de cada conduta individual, mas também a dignidade da vítima enquanto pessoa, subsumindo-se, em consequência, ao crime de violência doméstica em análise. Conclui-se, assim, pela adequação do comportamento do arguido, face à sua reiteração, diversidade e gravidade crescente, em ofender a dignidade pessoal da vítima. Assim, tal comportamento, porque reiterado e gravoso, preenche os elementos objectivos do tipo penal previsto no art. 152.º n.º1 alínea b) do Cód. Penal».
Concordamos em absoluto. De facto, a delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a acção apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos. Há “maus tratos” quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima. Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele. Como diz e bem o acórdão do STJ de 20/4/2017 (proc. nº 263/15.8JAPRT.P1.S1): “A violência doméstica pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc. Serão estes os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido”. No caso vertente, concordamos com o tribunal recorrido ao subsumir estes factos ao crime de violência doméstica, tal a persistência e a reiteração de comportamentos ilícitos e assustadores imputados ao arguido e que colocaram a sua ex-namorada – e o namoro[9], entendido como uma relação amorosa estável e com actos de intimidade, desenvolvendo um ambiente idêntico ao de uma família, aqui identificado face aos factos 1, 2, 3 e 5 - está agora expressamente incluído na letra do tipo - em estado de constante aflição.
3.2.1.2. Quanto ao crime de perseguição[10], agora previsto no artigo 154º-A do CP[11] (e expressamente invocado no recurso) diremos que é um crime de perigo concreto – não sendo necessária a efectiva lesão do bem jurídico, mas a adequação da conduta a provocar aquela lesão (sendo idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo) –, de mera actividade e de execução livre – a conduta punida pode ser levada a cabo por qualquer meio, directa ou indirectamente, embora seja necessária a reiteração da conduta, uma vez que a respectiva ratio reside na protecção da liberdade de autodeterminação individual, sem prejuízo de reflexamente tutelar outros bens jurídicos como a salvaguarda da privacidade/intimidade – e doloso, do ponto de vista subjectivo, o que significa que o agente tem que ter vontade e consciência de estar a praticar o facto tido como ilícito e punido penalmente. Algumas das condutas idóneas a integrar o tipo objectivo do crime de perseguição – a acção reiterada do agente consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, directo ou indirecto, adequada a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação – pela persistência com que são praticadas, podem tornar-se intimidatórias e perturbadoras, causando um enorme desconforto na vítima e atentando contra a reserva da vida privada e a liberdade de determinação pessoal desta, ainda que, se isoladamente consideradas, não ferissem qualquer bem jurídico. No nosso caso, temos muito mais que uma mera perseguição – após uma ruptura unilateral, o arguido, nunca conformado com ela, injuria (facto 5), ofende corporalmente (facto 8) e constantemente persegue e incomoda a sua ex-namorada (inúmeros factos seguintes). E isto desde Dezembro de 2018 até meados de 2020. Existem pois actos passíveis de serem subsumíveis ao tipo do artigo 152º, n.º 1, alínea b) do CP (assente que o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152º-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação) e não a um qualquer outro mais específico.
3.2.1.3. Diga-se ainda que: O crime de Violência Doméstica pode, desde logo, entrar em concurso aparente com diversos crimes base, atenta a multiplicidade de bens jurídicos susceptíveis de ser afectados como instrumento da afectação do bem jurídico tutelado (a saúde no contexto relacional Recorde-se, a propósito, que o crime em causa reconduz-se a um crime de execução livre susceptível de abarcar condutas dirigidas, prima facie, a bens tão diversos como a integridade física, a liberdade, a autodeterminação sexual, a honra, a reserva da vida privada. Em situações em que se encontre afastada a cláusula de subsidiariedade expressa (porque a punição do crime convocado se revela inferior ao da violência doméstica) ou em que entre o crime de violência doméstica e o crime convocado intercede uma relação de especialidade), prevalece a punição do crime de violência doméstica. São estes os casos dos crimes de:
Ora, a relação que se estabelece entre o crime de violência doméstica e estes outros tipos de crime menos graves redunda numa situação de concurso aparente com a prevalência da norma do artigo 152.º do CP, seja mercê de uma relação de consunção (realização de um juízo valorativo material que conclua pela maior abrangência do conteúdo de ilicitude do tipo do artigo 152.º), seja por via de uma relação de especialidade (realização de juízo lógico-formal Quer se classifique essa relação entre normas como de consunção ou de especialidade, importa, antes de tudo, determinar se as normas abstractamente aplicáveis se não encontram numa relação lógico-jurídica tal (numa relação, poderia dizer-se de “lógica hierárquica”) que, em boa verdade, apenas uma delas ou algumas delas são aplicáveis, excluindo a aplicação desta ou destas normas (prevalecentes) a aplicação da ou das restantes normas (preteridas); pela razão Veja-se até um aresto relatado pelo Presidente desta Secção, Alberto Mira (Pº 512/09.0PBAVR.C1), que dispõe que, de acordo com a razão de ser da estrutura normativa do crime do artigo 152.º, do CP [versão do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, com as alterações que sucessivamente foram introduzidas pelas Leis 65/98, de 2 de Setembro, 7/2000, de 27 de Maio, e 59/2007, de 4 de Setembro], as condutas que integram os respectivos tipos-norma não são autonomamente consideradas enquanto, eventualmente, integradoras de um ou diversos tipos de crime; são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de maus tratos (lei antiga) ou violência doméstica (lei nova). Adianta depois que, neste contexto, entre o crime do artigo 152.º e os crimes que atomisticamente correspondem à realização repetida de actos parciais, estabelece-se uma relação de concurso aparente, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os comportamentos que integram a prática do crime de maus tratos/violência doméstica. Falando do crime de perseguição, a pena a si correspondente cederá perante a pena mais grave que à conduta do agente lhe couber, por força de outra disposição legal. Se se verificar que a mesma conduta preenche, de forma igual, os elementos típicos dos dois crimes, será então punido o agente pela pena que couber a este último crime (cfr. artigo 154º-A, n.º 1 parte final – afastamento da cláusula de subsidiariedade expressa). Esta é uma opção do legislador que consubstancia um concurso aparente de normas e que culmina na aplicação final da pena do crime mais gravemente punido, tornando este no tipo legal principal, em que foi materializado o crime de perseguição, não havendo lugar a qualquer tipo de agravação. Prevalece, pois, o crime mais global, tendo e bem optado o tribunal pela subsunção dos factos à letra do artigo 152º do CP. 3.2.2.1. Do elenco dos factos provados só pode concluir-se como se concluiu e bem, pela douta sentença recorrida, que os mesmos integram a prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelos aludidos preceitos legais. Todavia, foi demonstrado nos autos, e como resulta do relatório de perícia psiquiátrica, que no momento da prática dos factos, o arguido estava incapaz de avaliar os mesmos e de se determinar de acordo com a sua correta avaliação do que não é ilícito. Deste modo, concluiu-se e bem, pela douta sentença proferida, que o arguido deverá ser declarado inimputável, uma vez que, devido à sua anomalia psíquica, não é susceptível de um juízo de censura, na medida em que não pode comprovar-se que agiu de forma livre, deliberada e consciente, tendo capacidade para avaliar a ilicitude dos factos que praticou. Em consequência, apesar de se ter considerado o arguido, autor dos factos, correspondentes ao tipo legal de violência doméstica p. e p. pelo artigo, 152.º, nº.1, alínea b), do Código Penal, foi o mesmo declarado inimputável, por anomalia psíquica, sendo absolvido da prática desse crime, nos termos do artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal. E foi-lhe aplicada uma medida de segurança. Excessiva nos seus termos?
3.2.2.2. Recorde-se o DISPOSITIVO da sentença recorrida: «A. Considerar o arguido AA inimputável, em razão de anomalia psíquica, e absolvê-lo da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica p.p. pelos arts. 14.º n.º 1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal, de que vinha acusado, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal; B. Considerar o arguido AA autor de factos ilícitos-típicos correspondentes a um crime de violência doméstica p.p. pelos arts. 14.º n.º1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal e, em consequência, aplicar-lhe a medida de segurança de internamento, pelo período máximo de 5 (cinco) anos, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de o arguido se submeter às seguintes regras de conduta: a. Submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar a consulta com a periodicidade que lhe for exigida e seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados; e b. Aceitar a vigilância tutelar e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for solicitado. C. Consignar que a medida de segurança acima aplicada será objecto de revisão no prazo de 2 (dois) anos sobre o trânsito em julgado da presente sentença».
Ora, o arguido vem alegar, de forma, aliás, muito parca e infundamentada, que a medida de internamento que lhe foi aplicada é excessiva, não sendo proporcional à gravidade do facto e à perigosidade do agente. Na realidade, não fundamenta, minimamente tal alegação. O internamento de inimputáveis em razão de anomalia psíquica corresponde à medida de Presentemente, o regime jurídico da medida de segurança de internamento[12] encontra-se O artigo 91.º, do CP, dispõe que: “1 - Quem tiver praticado um facto ilícito típico e se for considerado inimputável, nos termos do artigo 20º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude de anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”. Nos termos do art. 91.º, n.º 1, do CP, são pressupostos da aplicação de uma medida de segurança: a prática de um ou mais factos penalmente relevantes (factos “ilícitos, típicos”), a declaração de inimputabilidade do agente e um juízo afirmativo sobre a sua perigosidade criminal (fundado receio que este venha a cometer, no futuro, outros factos típicos graves, isto é, a perigosidade futura). Nos termos do artigo 40.º, n.º 3 do CP, a medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente. No que tange aos respectivos limites, a medida de internamento apenas tem um limite mínimo explícito quando o agente tenha cometido crime contra as pessoas ou de perigo comum punível com pena de prisão superior a 5 anos, nos termos do disposto no artigo, 91.º, n.º 2, do CP. Por outro lado, o limite máximo é determinado pelo limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável, de acordo com o disposto no artigo, 92.º, n.º 2, do CP, referindo-se à moldura penal abstracta (no caso, 5 anos). Tendo em conta a prova produzida, inclusive, a prova pericial, verifica-se que «o arguido apresenta fatores de risco moderados para reincidir futuramente em comportamentos violentos mas também, por seu turno, défice moderado ao nível dos factores protectores para violência futura». Como bem consta da sentença proferida, tendo em conta o historial de violência – psicológica – prévia, a instabilidade afectiva, a sua inactividade e desemprego, a doença mental e o grave fracasso em medidas de supervisão anteriores, a ausência de autocontrolo, o estilo de coping desadequado, indiciam que este quadro do arguido é pouco passível de alteração no sentido da sua eliminação ou atenuação. «(…) Ao passo que os factores risco dinâmicos e ausência de factores ambientais e sociais positivos que lhe confiram protecção [i.e., insight limitado, presença de sintomas activos de doença mental, de impulsividade e ausência de resposta a tratamentos, planos com pouca viabilidade, exposição a factores desestabilizantes, não adesão a tratamentos ou a medidas remediativas e stress, ausência de um vínculo laboral, de actividades de lazer, de capacidades de gestão financeira, de motivação para o tratamento e de objectivos de vida realista] são susceptíveis de não variação perante a sua situação clínica presente e futura. Ou seja, conforme já referenciado na motivação de facto, em virtude dos factores acima descritos e da natureza dos factos praticados, existe uma séria probabilidade de o arguido praticar outros factos ilícitos típicos da mesma espécie dos descritos, nomeadamente, na sequência de surtos agudos, sendo que estes últimos diminuem com o garantir do adequado tratamento em consultas da especialidade e manutenção de medicação psicofarmacológica antipsicótica (…)». Nestes termos, atento o teor do relatório de avaliação médico-psiquiátrica do arguido, foi considerado que a sua saúde mental revela perigosidade e que representa uma ameaça relevante para bens jurídicos, legitimando e justificando a aplicação ao mesmo, de uma medida de segurança, tendo sido fixado o período máximo de cinco anos, nos termos dos artigos 91.º, n.º 2, e 92.º, n.º 2, ambos do CP. No caso, e com a finalidade de protecção comunitária, e tendo em conta o relatório pericial e o relatório social, constantes dos autos, a suspensão da execução do internamento foi considerada suficiente, condicionada à imposição de deveres, o que só se pode validar. Em consequência, e por proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente, entendemos como adequada, tal como foi decidido pela sentença, a aplicação ao arguido, da medida de internamento, pelo período máximo de cinco anos, suspensa na sua execução por idêntico período, nos termos dos artigos, 91.º, n.º 2, e 92.º, n.º 2, e 98.º, n.º 1, do CP, com a submissão do mesmo, às regras de conduta impostas pela mesma sentença, ou seja, «submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar a consulta com a periodicidade que lhe for exigida e seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados, e aceitar a vigilância tutelar e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for solicitado». Valida-se também a cláusula C do dispositivo por resultar expressamente da lei (artigo 93º/2 do CP).
3.3. Face ao exposto, só pode improceder todo o recurso, não estando violados nesta sentença os artigos 14º, n.º 1, 26º, 152º, n.º 1, al. b) e n.ºs 4 e 5 e 40º, n.º 3 do Código Penal, ao contrário do que se defende em sede de recurso.
3.4. Em sumário:
III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, e, em consequência, manter a douta decisão de 1ª instância.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs [artigos 515º, nº 1, alínea b) do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].
* Atenta a panóplia de emails enviados pelo arguido e juntos profusamente aos autos, e dado o seu teor, deverá o tribunal de 1ª instância indagar se pende a favor do arguido algum processo, administrativo ou judicial, ao abrigo da Lei n.º 36/98, de 24 de Julho, devendo, em caso negativo, determinar o que entender por conveniente quanto a essa matéria.
Coimbra, 18 de Maio de 2022
Paulo Guerra (Relator)
Alcina da Costa Ribeiro (Adjunta)
Alberto Mira (Presidente da Secção)
[1] Não desconhecemos o teor do recente aresto do Tribunal Constitucional n.º 685/2020, de 26/11/2020 que julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, segundo a qual a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no referido n.º 4, tem como efeito o não conhecimento da impugnação daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência. Contudo, essa situação em nada se parece com a presente em que nem sequer no corpo da motivação foi dado mínimo cumprimento ao estatuído nesse artigo 412º. E se assim é caímos no terreno de outros acórdãos do Tribunal Constitucional que decidiram pela não inconstitucionalidade, como se deixa escrito no 685/2020: «Acresce que, no caso sub iudicio, não se verifica o específico circunstancialismo que motivou os juízos de não inconstitucionalidade constantes dos Acórdãos n.ºs 259/2002 e 140/2004 e, mais recentemente, do Acórdão n.º 660/2014, em que se decidiu «não julgar inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do [CPP], interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências». [2] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa. Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339.º, n.º 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa. Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340.º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [3] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual. Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [4] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica. Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso. Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido. Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l. Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (n.º 1 do artigo 163.º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494. No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666. Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930». [6] Deixando-se escrito que «neste sentido, realçamos, desde já, que as declarações da ofendida, revelaram assertividade e contenção, e mereceram credibilidade». |