Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
784/03.4TBTMR-AQ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INSOLVÊNCIA
DESTITUIÇÃO
LIQUIDATÁRIO
Data do Acordão: 10/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTº 137º DO CPEREF.
Sumário: 1. A destituição do liquidatário judicial, que pode ser feita oficiosamente, pressupõe a existência de “justa causa” ou seja, a violação dos deveres funcionais inerentes ao estatuto do liquidatário.

2. A destituição do liquidatário judicial, ao abrigo do art. 137º do CPEREF, exige a sua prévia audição, como garantia do contraditório.

3. A falta de audição prévia constitui nulidade processual.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- Na Comarca de Tomar, por sentença de 31/1/2006, transitada em julgado, foi declarada a falência da sociedade F…, SA, e nomeada liquidatária judicial a senhora dra M…

            1.2. – Por decisão de 8/2/2014 foi destituída a senhora liquidatária, através de despacho, que se reproduz:

 “ Face ao teor dos nossos últimos despachos proferidos nos autos, nomeadamente aquele de fls. 1101 a 1102, verifica-se que a Sra. LJ, neste apenso de liquidação do activo desta falência e atendendo a tudo o que nestes 5 volumes se dá conta, não cumpriu com as suas obrigações funcionais, encontrando-se esta liquidação e para venda do prédio denominado de “quinta da …”, sito em …, composto por vários complexos fabris e terrenos adjacentes, por vender há mais de sete (7) anos, ainda existindo outro património imobiliário para venda mas que só recentemente foi decidida da sua inclusão em definitivo para esta massa falimentar, e por isso nessa parte ainda está em tempo, o que tem prejudicado em muito os interesses dos credores nesta falência, para além da deterioração a que este imóvel (como outros) vai sendo sujeito e da falta de alternativas na sua venda ou pelo menos da sua busca para tal!

Mais, como se referiu naquele nosso despacho constante de fls. 879 a 883, pontos 2) e 3), tendo-se gorado a venda por propostas em carta fechada deveria a Sra. Liquidatária prosseguir para a venda por leilão, tudo com ampla divulgação, sendo que na data lhe foram dados mais 120 dias.

Passado um ano sobre tais dias, o imóvel continua por vender, sem que a Sra. LJ, fizesse mais o que quer que fosse no sentido de promover tal venda!

Por conseguinte, por falta de condições para continuar à frente deste processo, decido destituir de imediato a Sra. Liquidatária Dra. …, nos termos do artigo 137º do CPEREF.

Notifique.

Face ao comportamento evidenciado, extraia-se certidão deste despacho bem como das peças fundamentais deste apenso nomeadamente do seu início e das diligências realizadas pela Sra. LJ, dos nossos despachos mais determinantes, e remeta-se tudo para a Comissão com competência de fiscalização e disciplinar sobre os Liquidatários judiciais/Administradores de Insolvência para os fins tidos por convenientes, nomeadamente, os disciplinares.

Notifique.

Atenta a urgência e a demora dos autos, desde já nomeio como Substituto e Liquidatário Judicial para assumir de imediato tais funções neste processo de falência e apenso de liquidação do activo, o Sr. Dr. J…, conforme lista dos administradores da insolvência do distrito de Coimbra, por ser profissional idóneo, diligente, empenhado e com quem já trabalhamos em outros processos de insolvência, para o que se nomeia nos termos do artigo 132º do CPEREF.

Notifique.

Aceitando o novo LJ as suas funções, deve aquele de imediato tomar posse dos documentos e conhecimento dos bens apreendidos e diligenciar pela prossecução da venda dos imóveis aqui apreendidos e sobretudo o imóvel sito na Venda Nova, aqui já referido o qual leva já sete anos para ser vendido.

Notifique.

Deve o Sr. LJ tomar nota do nosso despacho de fls. 879 a 883, pontos 2) e 3), devendo seguir o plano aí indicado ou se tiver outras alternativas de venda que repute como mais proveitosas, deve indicar-nos quais mas em qualquer caso, deve-se prosseguir para a venda de tal imóvel (para além dos demais …).

Notifique.

Desde já se adverte a Sra. LJ agora destituída para remeter e facultar ao novo LJ, todos os elementos documentais e contabilísticos que possui em seu poder, e fornecendo-lhe o apoio necessário para que o mesmo se inteire do processo.

Notifique.

Notifique a comissão de credores.

Deve também o Sr. LJ, ser notificado dos despachos acabados de dar, quer no processo principal, quer nos processos apensos, a fim do aí determinado ser cumprido.

Notifique. “

            1.3. – Inconformada, a senhora liquidatária M… recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

            Não houve contra-alegações.

II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – O objecto do recurso

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes:

            Nulidade processual, por violação do contraditório;

            Nulidade do despacho, por falta de fundamentação;

            Os fundamentos da destituição.

2.2.- A violação do contraditório

Uma vez que o processo de falência estava pendente à data da entrada em vigor do CIRE (aprovado pelo DL nº 53/04 de 18/3), tem aplicação o CPEREF (aprovado pelo DL nº132/93, de 23/04, com as alterações introduzidas pelo DL 315/98).

O liquidatário judicial é nomeado pelo juiz, nos termos do art. 132 nº 1 do CPEREF, assumindo de imediato as suas funções (art. 135), entre elas se destacando a de preparação do pagamento das dívidas do falido, cobrando, se necessário, os créditos do falido sobre terceiros (arts. 134 e 146); o exercício da administração ordinária em relação à massa falida (art.143); liquidação do activo (art. 180); apresentação de relatórios semestrais sobre o seu estado (art. 219); confirmação dos negócios do falido posteriores à declaração de falência, quando nisso haja interesse para a massa (art. 155 nº2), e cessa as funções em causa com o trânsito em julgado da decisão que aprova as contas da liquidação da massa falida (art. 138).

Por conseguinte, a lei confere ao liquidatário judicial uma pluralidade de funções e competências (cf. arts. 132 e segs CPEREF), sobressaindo a de preparar o pagamento das dívidas da falida à custa da liquidação do respectivo património, ou seja, um conjunto de poderes funcionais colimados à satisfação dos credores. Para o efeito, dispõe de amplas faculdades, cujo exercício, em determinadas situações, depende do parecer da comissão de credores, que é um órgão obrigatório no processo de falência (arts. 134, nº 1 e 180 nº 1). Estes poderes visam a satisfação de interesses que não lhe são próprios, assumindo a natureza de verdadeiros poderes funcionais, devendo desempenhar com a natural diligência de um gestor prudente, criterioso e ordenado.

O art. 137 do CPEREF estatui que “ o juiz pode, a todo o tempo, ouvida a comissão de credores, destituir justificadamente o liquidatário judicial e substituí-lo por outro”.

A destituição, que pode ser feita oficiosamente, exige “justa causa” ou seja, a violação dos deveres funcionais inerentes ao estatuto do liquidatário, sendo este o significado do termo “justificadamente”, isto é, fundamentadamente.

No caso dos autos, a destituição foi decidida por despacho de 8/2/2014, invocando-se a violação dos deveres funcionais por, decorridos sete anos, não ter procedido ainda à venda do prédio denominado “ Quinta das … “ (composto por complexos fabris e terrenos adjacentes).

A apelante objecta, desde logo, com a nulidade processual por violação do contraditório, alegando não ter sido previamente ouvida, nem a comissão de credores e o Ministério Público.

Depois de várias vicissitudes sobre o procedimento da venda do prédio, tanto a comissão de credores, em 4/12/2012, como o Ministério Público, em 6/12/2012, emitiram parecer negativo sobre a destituição da liquidatária.

            Por despacho de 13/12/2012 decidiu-se manter em funções a senhora liquidatária pelo tempo de mais 120 dias improrrogáveis, e sobre a venda impôs diversas condições a observar, designadamente a venda por proposta em carta fechada e a respectiva publicitação.

Por despacho de 7/3/2012 o tribunal decidiu que o valor base do imóvel a anunciar é de € 642.000,00, ordenando a notificação da liquidatária para a marcação de nova data de abertura de propostas, com anúncio do novo valor.

Em 20/3/2013 reuniu-se a comissão de credores e foi agendada a data de 25/7/2013 para a venda do imóvel, na referida modalidade.

Por despacho de 18/4/2013 determinou-se que os autos aguardarão o dia da abertura de propostas para a venda do imóvel.

Por despacho de 25/1/2014, considerando ter decorrido 12 meses sobre os 120 dias improrrogáveis e por não ter condições profissionais e deontológicas para a senhora liquidatária continuar, determinou-se a audição do MP quanto à destituição da liquidatária, considerando já ouvida a comissão de credores.

O Ministério Público emitiu parecer em 5/2/2014, alegando deixar à consideração do tribunal a decisão a proferir.

Dos elementos constantes do processo (mesmo em face das diligências complementares, ordenadas na Relação) não consta a audição prévia da apelante.

Note-se que, por despacho do relator requisitou-se à 1ª instância informação se a recorrente foi previamente notificada para se pronunciar sobre a destituição e, em caso afirmativo, cópia certificada do despacho de notificação e da mesma.

A 1ª instância limitou-se a remeter cópia dos despachos, mas deles não consta, para efeitos da decisão recorrida, a prévia determinação da audição prévia da apelante.

A primeira questão que se coloca é a de saber se a destituição da liquidatária judicial, ao abrigo do art. 137 do CPEREF, exige ou não a garantia do contraditório.

O Tribunal Constitucional tem defendido que o princípio do contraditório se integra no direito de acesso aos tribunais, consagrado no art.20 da CRP. Tal como se sublinhou no Acórdão nº 358/98 (Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no Acórdão nº 249/97 (Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997), “ o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20 nº1, da Constituição".

A norma do nº 3 do art. 3º do CPC, introduzida pela Reforma de 1995/96, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialéctica ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo, pelo que o objectivo primordial “deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo (cf., Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto", 1996, pág. 96).

Muito embora o liquidatário não seja parte no processo de falência, a tal deve ser equiparado no incidente de destituição, dada a natureza e implicações. Basta, por exemplo, atentar na circunstância de a destituição implicar suspensão ou cancelamento da sua inscrição, por fata de idoneidade para o exercício das funções, por imperativo do art. 9º do DL 254/93 de 15/7.

Por outro lado, o CIRE (que revogou o CPEREF) consagrou expressamente o princípio do contraditório e da audição prévia do administrador de insolvência no incidente da destituição (art. 56 nº1).

Sendo assim, sob pena de inconstitucionalidade material do art. 137 do CPEREF, a destituição do liquidatário judicial exige a audição prévia, como garantia do contraditório.

Acresce que, para efeitos da presente destituição, também não foi previamente ouvida a comissão de credores.

O que se comprova é que a comissão de credores emitiu parecer (negativo) em 4/12/2012, mas obviamente esta audição não pode relevar para a destituição presente (atentando-se, além do mais, nos respectivos fundamentos).

Aliás, o que ressalta é que na sequência dessa audição, o tribunal decidiu manter no cargo a senhora liquidatária por mais 120 dias improrrogáveis, conforme despacho de 13/12/2012.

Sucede até que tendo, por despacho de 7/3/2013, o tribunal ordenado que a liquidatária diligenciasse pela marcação de nova data para a abertura de propostas pelos valores fixados, precisamente quando terminava tal prazo (“improrrogável”), significa, por força do princípio da confiança e da boa fé processual, haver reiterado ou confirmado no cargo a liquidatária. Logo, também por aqui se vê que a audição da comissão de credores em 4/12/2012, jamais poderá relevar para a actual destituição.

Conclui-se, assim, ter havido violação do contraditório, por falta de audição prévia a liquidatária destituída e da comissão de credores, que configura nulidade processual, a apreciar nos termos gerais do art.201 do CPC (actual art. 195 do nCPC) por ser susceptível de influir no exame e decisão da causa (cf., por ex., Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol.1º, pág.9, Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág.48 ).

            A Apelante arguiu a nulidade, não por reclamação dirigida ao tribunal recorrido, mas em sede de recurso, interposto em 4/3/2014. A arguição da nulidade processual no tribunal superior só é admissível quando o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo previsto no art.205 nº1 do CPC, começando então a correr desde a distribuição (nº3) (art.199 nº3 nCPC), embora pareça reportar-se às nulidades processuais cometidas durante a fase de interposição e expedição do recurso, visando conciliar os interesses da parte e da celeridade processual.

            Como quer que seja, no caso concreto, uma vez que o despacho recorrido sancionou a omissão, já que decidiu sem observância do contraditório, o meio próprio para arguir a nulidade passou a ser o recurso, dentro da máxima “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se” (cf. Alberto dos Reis, Comentários, vol. II, pág.507, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág.393; Ac STJ de 24/3/1992, BMJ 415, pág.552, de 9/3/1993, BMJ 425, pág.448).

            Na verdade, o despacho está a sancionar a omissão através de pronúncia implícita, no sentido de inexistir irregularidade processual, que assim passou a estar coberta pelo próprio despacho.

            Em resumo, impõe-se declarar a nulidade processual por violação do princípio do contraditório, o que implica a nulidade do despacho recorrido, ficando prejudicadas as demais questões.

2.3. – Síntese conclusiva

1.A destituição do liquidatário judicial, que pode ser feita oficiosamente, pressupõe a existência de “justa causa” ou seja, a violação dos deveres funcionais inerentes ao estatuto do liquidatário.

2.A destituição do liquidatário judicial, ao abrigo do art. 137 do CPEREF, exige a sua prévia audição, como garantia do contraditório.

3. A falta de audição prévia constitui nulidade processual.

III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar procedente a apelação e declarar a nulidade da decisão recorrida, por omissão da prévia audição da liquidatária/recorrente e da Comissão de Credores

2)

            Custas pela massa falida.

            Coimbra, 14 de Outubro de 2014.

(Jorge Arcanjo - Relator)

(Teles Pereira)

(Manuel Capelo)