Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
140/04.7TAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
PROVA DOCUMENTAL
Data do Acordão: 05/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 410º,125º,127º,164º DO CPP
Sumário: 1. Verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º do CPP), quando o tribunal recorrido, podendo (e devendo) fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que a matéria de facto dada como provada não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.

2.Dando-se como provado que o agente procedeu aos descontos das contribuições devidas à Segurança Social nas remunerações pagas aos trabalhadores, o tribunal deve fazer todas as diligências, plausíveis de fazer, no sentido de se apurar quais os períodos a que essas verbas dizem respeito e os respectivos montantes.

3. Se da indagação referida no número anterior não resultar aquele apuramento, deve ser claro na motivação da matéria de facto que o tribunal fez as diligências que podia e devia fazer, no caso.

4. A prova documental particular não carece necessariamente de ser corroborada

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferida sentença que julgou improcedente a acusação deduzida pelo Mº Pº contra os arguidos:
1-R , casado, gerente comercial, nascido a …./1955, filho de G e de M, natural de …, Figueira da Foz, residente .., Figueira da Foz;
2-J, divorciado, industrial, nascido a ---1957, filho de G e de M, natural… Figueira da Foz, residente …
3- “T… do Centro, Lda.”, contribuinte da Segurança Social n.º 110…., NIPC 5…, com sede …, Figueira da Foz,
Sendo decidido: Apenas existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que tal matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz" (sublinhado nosso).
In casu, temos que a razão assiste ao recorrente, verificando-se lacuna no apuramento de matéria de facto necessária para a decisão.
Dando-se como provado o ponto 4 dos provados, de que os arguidos procederam aos descontos das contribuições devidas à Segurança Social nas remunerações pagas aos trabalhadores, deveriam ser investigados os períodos a que essas verbas respeitavam e quais os montantes.
Ou deveria ser devidamente justificado que se diligenciou no sentido desse apuramento para que fosse afastado que os descontos se reportam a “períodos e montantes não concretamente apurados” ou entender-se que era impossível apurar.
Certamente que se não fosse por outra via, pela intervenção da demandante Segurança Social (ela indicaria prova, testemunhal e ou documental) se saberia qual o período temporal e qual o montante, pois que o indicou no ped
Absolver os arguidos R , J, e a sociedade arguida “ do Centro, Lda.”, do crime que lhes era imputado.
Julgar o pedido cível improcedente por não provado e, em consequência, absolver os arguidos R, J e a sociedade arguida “T.. do Centro, Ldª do pedido de indemnização contra os mesmos deduzido.
***
Inconformados interpuseram recursos, o demandante cível Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de Coimbra e o Magistrado do Mº Pº.
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso do demandante cível Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de Coimbra, e que delimitam o objecto do mesmo:
1- Sobe o presente recurso da, aliás douta sentença proferida quanto ao pedido de indemnização cível, na parte em que se absolve os arguidos R e J, e a sociedade arguida "T… do Centro, Ldª” do pedido de indemnização civil contra os mesmos deduzido, por não se ter provado o dolo.
2- Não podia a juiz a quo ter dado como não provado:
-que os arguidos R e J, agiram no seu próprio interesse, de forma deliberada, livre e consciente, procurando, e conseguindo, obter um enriquecimento indevido à custa da segurança social e que agiram livre, voluntária e conscientemente, em nome e no interesse da arguida "T.., Ldª" bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
-que os arguidos prosseguiram sempre a sua conduta com base numa suposta situação de impunidade, por falta de fiscalização atempada da omissão das suas obrigações com a segurança social e no quadro de uma única solicitação externa - as suas dificuldades económicas.
-que os arguidos sabiam que com as suas condutas incorriam em responsabilidade criminal.
-que como consequência directa e necessária dos factos descritos na acusação deduzida, advieram para a Segurança social prejuízos.
3- Os arguidos actuaram dolosamente, tendo causado prejuízo à Segurança Social.
4 - De facto, os arguidos retiveram as cotizações para a Segurança Social, mas não entregaram tal dinheiro à segurança social, sua legal e legítima proprietária. Houve, pois, apropriação consciente, voluntária, ilícita e dolosa.
5- Existe dolo necessário, pois o agente sabe que está obrigado a deduzir e reter as cotizações e a entregá-las à Segurança Social no prazo legal e não o fazendo está a praticar uma infracção penal mas, apesar disso, realiza a respectiva conduta _ Cfr. Artigo 14.°, nº2 do Código Penal
6- São elementos objectivos do tipo do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, a dedução pela entidade empregadora nas remunerações pagas aos trabalhadores do "valor das contribuições por estes legalmente devidas" e a sua não entrega tempestiva, total ou parcial, às instituições de segurança social, por quem estava obrigado a deduzi-las e entregá-las.
7- Trata-se de um crime específico próprio em que o circulo de autores é constituído, não pelo contribuinte originário mas pelo substituto, que é investido na qualidade de depositário da prestação devida à segurança social e colocado temporariamente na detenção desta, com vista à sua entrega ao Estado.
8- O tipo subjectivo basta-se com o dolo do tipo, ou seja, com o conhecimento do dever de entregar a prestação tributária e a vontade de não o fazer.
9- O crime de abuso de confiança contra a segurança social é um crime omissivo puro que, atento o preceituado no nº 2 do artigo 5.° do RGIT, se consuma com a não entrega dolosa da prestação tributária devida pelo agente.
10- O crime tem como pressuposto a existência duma cotização deduzida, que o agente está legalmente obrigado a entregar, caindo fora da esfera incriminadora as situações em que a não entrega da cotização para a Segurança Social se deve à sua não dedução, não liquidação ou não recebimento por parte do agente. (vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no processo 206/02.8TMCB.C1 de 26 -5.2009, em www.dgsi.pt)
11- No RGIFNA, na redacção dada pelo DL 394/93, de 24 de Novembro, exigia-se para a configuração do crime de abuso de confiança fiscal a apropriação indevida por inversão do título de posse, com animus rem sibi habendi.
12- Com a entrada em vigor do RGIT, o novo tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal deixou de conter na sua formulação literal a exigência da apropriação.
13- No sentido de que a apropriação continua a fazer parte do tipo objectivo, pronunciou-se o STJ, no acórdão de 23.04.2003, Proc. 03P620, em www.dgsi.pt.
14- Embora na lei actual se não faça referência expressa à apropriação, ela está contida no espírito do texto, pois se o agente não entrega à administração as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei.
15 - A ideia fulcral do crime de abuso de confiança, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado.
16- Na realidade, a não entrega total ou parcial das cotizações para a Segurança Social, traduz-se num apropriar-se, num fazer sua coisa alheia. Inicialmente o agente recebe validamente a coisa, passando a possuí-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção passando a dispor da coisa ut dominium. Deixa então de possuir em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património ou dispõe dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligado, ou sabendo que não mais o poderia fazer.
17- Para que exista o abuso de confiança do Código Penal - artigo 205.° é necessário que o agente ilegitimamente se aproprie de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade.
18- No caso do empresário que não entrega à Segurança social as cotizações retidas nas remunerações pagas aos seus trabalhadores, este não se apropria de nada que lhe tenha sido entregue pela Segurança Social, pois os valores em causa ficaram na disponibilidade do mesmo, desde sempre, ab initio, numa relação muito próxima da do fiel depositário - não há uma entrega, há é uma imposição legal de entrega de tais montantes à Segurança Social.
19- O que interessa verdadeiramente é a não entrega de tais valores à Segurança Social, independentemente da finalidade que se venha a dar a tal dinheiro, pois que estamos em matéria de interesse público geral, não se podendo aqui verificar a sobreposição de interesses particulares.
20- A lei apenas exige a apropriação, para que se verifique o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, independentemente da finalidade que lhe venha a ser dada.
21- Para que exista crime de abuso de confiança não é necessário que o agente retire um proveito directo das quantias retidas. A circunstância de os arguidos terem utilizado as quantias devidas à Segurança Social para manter a laboração da empresa e pagar salários dos trabalhadores não constitui causa de exclusão da ilicitude (vide os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 03.10.2001, Proc. 0140535 30.06.2004, Proc. 0413348, de 12.03.2003, Proc. 0210289, e de 26.06.2002, Proc.021 038, todos em www.dgsi.pt).
22- De realçar que as dificuldades financeiras e económicas dos agentes não justificam a conduta daqueles que não respeitam a obrigação legal de entregar as contribuições à segurança Social, uma vez que este dever é superior ao dever funcional de manter a empresa a funcionar e de pagar os salários aos trabalhadores e as dívidas aos fornecedores (vide os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.07.2006, Proc. 3372/2006-9 e de 22.09.2004, Proc.4855/2004-3, e do Tribunal da Relação do Porto de 07.05.2003, Proc. 0110911, e de 25.09.2002, Proc.0240435, todos em www.dgsi.pt, onde se defende a prevalência do interesse da segurança social, de natureza pública, sobre os interesses particulares da empresa ou dos seus trabalhadores).
23 - Isto é assim, uma vez que as contribuições para a Segurança Social são indispensáveis ao financiamento do seu sistema previdencial, actualmente previsto no artigo 50 da Lei nº 4/2007 de 16 de Janeiro (lei de bases da Segurança social, para satisfação das previstas no artigo 52 e que são: a doença; a Maternidade, paternidade e adopção; o Desemprego; os Acidentes de trabalho e doenças profissionais; a Invalidez; Velhice e Morte.
24- As cotizações para a Segurança Social são indispensáveis ao financiamento do sistema previdencial, uma vez que este sistema é auto- financiado, tendo por base uma relação sinalagmática directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações (artigo 54 da Lei de bases da Segurança social), não existindo transferências de verbas do Orçamento de Estado ou de receitas dos jogos sociais para financiar este sistema.
25- Face ao supra exposto, contrariamente ao afirmado na douta sentença, não poderia ter sido dado como não provados os factos referidos em 2 destas conclusões.
26 - Pois, sabendo que, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Distrital de Coimbra do ISS/IP, continua a ter o seu fundamento na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social,
27- que a imposição aos arguidos da obrigação de reparar os danos sofridos por terceiro (in casu a segurança social) depende da verificação dos seguintes pressupostos: a) - o facto; b) - a ilicitude; c) - a imputação do facto ao lesante - culpa; d) - o dano; e) - nexo de causalidade entre o facto e o dano.
28- Então, pode imediatamente concluir-se que os mesmos se encontram integralmente verificados no caso destes autos, a saber, o facto (falta de entrega de valores retidos nos salários dos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários, a título de contribuições para a segurança social), ilícito (aliás criminalmente punível) porque violador do património da demandante, bem civil e penalmente protegido, culposo (sob a forma dolosa), causador de danos (empobrecimento da demandante em consequência da falta de arrecadação, em devido tempo, das quantias que lhe eram devidas após pagamento dos remunerações aos trabalhadores dos arguidos) que se repercutiram directamente no património da demandante.
29- A douta sentença, violou assim o preceituado nos artigos 6, 7 e 27-B, por referência ao artigo 24, nº 1 e 5, do Regime Jurídico das infracções Fiscais não Aduaneiras (Decreto-lei nº 20-Al90, de 14 de Junho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 394/93, de 24 de Novembro, e pelo Decreto-lei nº 140/95, de 14 de Junho); e, actualmente, pelos artigos 6, 7 e 107, Do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), com referência ao artigo 105, nº 1, 4, 5, 6 e 7, deste último diploma.
30- Com o devido e merecido respeito afirma-se, que assim foram violados ou incorrectamente aplicadas as normas do n.º 1 do art. 483, 562 e 566, todos do Código Civil.
Nestes termos, deve dar-se provimento ao presente recurso interposto pela ofendida e parte cível, revogando a decisão recorrida condenando-se os arguidos no pedido de indemnização civil formulado pelo demandante.
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso do Magistrado do Mº Pº, e que delimitam o objecto do mesmo:
1- A sentença ora recorrida, padece do vício da insuficiência da matéria de facto previsto no artigo 410 n.º 2 aI. a) do C.P.P.
2- Já que deu como provado que "na qualidade de sócios gerentes da sociedade arguida, os arguidos R e J procederam ao desconto das contribuições devidas à segurança social nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores, gerentes e pensionistas por velhice da empresa, em períodos e montantes não concretamente apurados, relativamente ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem e ao sub-regime de pensionistas por velhice."
3- Contudo, era seu dever em nome da descoberta da verdade material realizar todas as diligências e inquirir todas as testemunhas que se impunham para concretizar quais os montantes que não tinham sido entregues e a que períodos respeitavam e não simplesmente absolver os arguidos, bem como valorar na parte criminal todos os depoimentos prestados.
4- Esqueceu assim a M.ª Juíza a quo que o princípio da descoberta da verdade material também a vincula e obriga a valorar todos os depoimentos prestados e considerados relevantes.
5- As declarações da testemunha C, consideradas relevantes no pedido cível pela M.ª Juiz a quo, porque conhecedor dos factos (soube balizar temporalmente os factos e concretizar os montantes que os arguidos não tinham entregue à segurança social), deveriam ter sido assim tomadas em consideração para a decisão no que à parte criminal respeita, não sendo possível "separar as águas" como a M.ª Juíza a quo fez entre o cível e o crime.
6- Ainda que entendesse não a poder valorar por ser uma testemunha relativa ao pedido cível, entendimento que não se perfilha, sempre teria ao abrigo do princípio da descoberta da verdade que a ouvir sobre a matéria crime, ainda mais quando considerasse essencial tal depoimento (ao ponto de o seu depoimento ser suficiente para sustentar por si a matéria de facto dada como provada no que respeita ao pedido cível).
7- A sentença, ora recorrida, padece igualmente do vício do artigo 410.°, n.2, alínea b), do Código de Processo Penal, por manifesta contradição insanável da fundamentação, pois analisando-se a matéria de facto dada como provada e não provada chega-se a conclusões contraditórias.
8- O Tribunal a quo deu como provado e não provado o desconto efectuado nas remunerações dos trabalhadores no período de Julho de 2001 a Maio 2006 relativo aos montantes de € 48.033,91 e de € 1.021,68.
9- Não foi valorada a prova documental constante dos autos, que sustentava a condenação dos arguidos pelo crime de abuso de confiança em relação à segurança social, nomeadamente recibos de vencimento (folhas 16 a 59) extractos da conta corrente da sociedade (folhas 60 a 133), mapas de valores deduzidos e não entregues (folhas 157 a 159) declarações e folhas de remuneração (folhas 124 a 193 e 410 a 438) não sendo necessário que os mesmos sejam mencionados em audiência, como erradamente entendeu o Tribunal a quo.
10- Apesar de referir o testemunho de A na sua fundamentação o Tribunal a quo não o teve em consideração para a matéria dada como provada, sendo certo que o mesmo se pronunciou sobre parcela do objecto do litígio.
11- Assim, o tribunal não procedeu a um exame crítico da prova documental e testemunhal, baseado em critérios de razoabilidade e de plausibilidade como se lhe impunha ao abrigo do art. 374° n.º 2 do C.P.P.
12- Não foi respeitado o dever de fundamentação a que o tribunal estava constitucionalmente vinculado.
13- Na motivação de facto o Tribunal a quo refere que a testemunha M. limitou-se a dizer que o desconto das contribuições à segurança social nas remunerações efectuadas, foi feito e que não foram pagos à segurança social.
Ficamos sem saber quais foram esses descontos nem porque não se conseguiram concretizar.
14- Ao ler-se a sentença fica-se sem saber como se formou a convicção do Tribunal no que respeita ao facto de os arguidos não saberem que as quantias não lhes pertenciam nem à empresa que geriam, sendo certo os arguidos nem sequer foram ouvidos e que tal conclusão contraria as regras de experiência comum.
15- Para além disso, os arguidos foram absolvidos ao abrigo do princípio in dubio pro reo, mas não se consegue descortinar qual a dúvida séria e razoável que se colocou ao Tribunal.
16- Foram violadas as normas do artigo 205 da C.R.P. e dos artigos 127, 374 n.º 2, 379 n.º 1 aI. a), 410 n.º 2 aI. a) e b), todos do C.P.P.
17- A ora sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que condene os arguidos pelo crime de abuso de confiança em relação à Segurança Sócial, na forma continuada, considerando que a prova produzida, nomeadamente os documentos supra referidos conjugados com o depoimento da testemunha C, impunha que se considerasse como provados os seguintes factos:
Os arguidos nos períodos de Julho de 2001 a Maio de 2006, na qualidade de sócios -gerentes da sociedade arguida procederam ao desconto das contribuições devidas à segurança social nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores e pensionistas por velhice da empresa:
a) no período compreendido entre Julho de 2001 a Maio de 2006, num montante total de € 48.033,91 relativamente ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem;
b) no período compreendido entre Setembro de 2004 a Abril de 2006, num montante de € 1 021,68 relativamente ao sub-regime de pensionistas por velhice;
- que os arguidos não entregaram as contribuições referidas em a) e b), no valor total de € 49 055,59, nos 90 dias posteriores ao termo do prazo supra referido.
- que os arguidos apropriaram-se das referidas quantias, que pertencem à Segurança Social, em proveito da sociedade arguida "T. Lda";
- que os arguidos R e J, nos períodos referidos a) e b) agiram no seu próprio interesse, de forma deliberada, livre e consciente procurando, e conseguindo, obter um enriquecimento indevido à custa da segurança social e que agiram livre, voluntária e conscientemente, em nome e no interesse da arguida "T Lda" bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
- que os arguidos prosseguiram sempre a sua conduta com base numa suposta situação de impunidade, por falta de fiscalização atempada da omissão das suas obrigações com a segurança social e no quadro de uma única solicitação externa - as suas dificuldades económicas;
- que os arguidos sabiam que com as suas condutas incorriam em responsabilidade criminal;
- que como consequência directa e necessária dos factos descritos na acusação deduzida, advieram para a segurança social prejuízos.
Caso assim se não entenda,
18- A sentença deve ser considerada nula nos termos do artigos 374 n.º 2 e 379 n.º 1 aI. a) do C.P.P. por falta de fundamentação e de exame crítico da prova documental e testemunhal.
Foi apresentada resposta, pelo arguido J, que conclui:
1-Alega o Recorrente que "a sentença ora recorrida padece do vício da insuficiência da matéria de facto previsto no artigo 410, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal" (sic). Salvo melhor entendimento, com tal consideração não pode o Recorrido conformar-se.
2-Sob a alçada do princípio da investigação ou da verdade material, o Tribunal tem o poder-dever de proceder oficiosamente (ou a requerimento) à produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cfr. artigos 340, n.º 1 e 323, al. a) e b) do CPP), com o limite do objecto do processo.

3-Ora, no caso em apreço, o Tribunal a quo lançou mão de meios de prova documental e testemunhal, tendo baseado a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, como se lhe impunha.
4-Não obstante, e pese embora a tentativa do Recorrente em afirmar o contrário, na sentença posta em crise, a Meritíssima Juiz a quo tomou em devida consideração toda a prova produzida, inclusive e em especial, as declarações prestadas a juízo pela testemunha arrolada pelo Demandante Cível, C, que considerou, mesmo, "conhecedor dos factos, por ter elaborado a certidão de dívida anexa à formulação de tal pedido [o pedido de indemnização civil]" (sic). Todavia, e ainda que aquelas declarações tenham sido tomadas na devida consideração, como efectivamente foram, não foram entendidas pelo Tribunal a quo como cabais e suficientes.
5-Efectivamente, se bem analisamos as alegações produzidas pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público, é este também o entendimento do Recorrente. Ao entender o Digníssimo Magistrado do Ministério Público que o depoimento da testemunha C. era suficiente para a alteração da matéria de facto dada como provada, não pode o mesmo, concomitantemente, alegar a insuficiência da matéria de facto e, muito menos, que o Tribunal a quo não lançou mão de todos os meios que estavam ao seu poder para alcançar a verdade histórica, sendo certo que não enumera um único meio de prova que não tivesse sido utilizado em audiência e estaria ao alcance do Tribunal.
6-O Tribunal a quo lançou mão de toda a prova produzida em audiência de julgamento. No entanto, ponderada a mesma, chegou a conclusão diversa da pretendida pelo Recorrente. Aquele vício invocado não pode, assim, ser assacado à sentença posta em crise.
7-Alega ainda o Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como provados um conjunto de factos que não lograram obter prova. Com tal ordem de ideias não pode o Recorrido conformar-se, pois, desenvolvendo o raciocínio baseado no (mesmo) depoimento do Recorrente (vide registo digital da acta da audiência de julgamento de 15 de Setembro de 2009, a fls 750 a 754), em momento algum, a testemunha C arrolada pelo Demandante Cível, se referiu à totalidade dos factos ali vertida.
8-Ora, e salvo melhor entendimento, nunca o depoimento acima referido poderia ter o efeito pretendido pelo Recorrente, ou mesmo poderia redundar na consideração de que "não restam dúvidas de quais os montantes em concreto que não foram entregues pelos arguidos, nem dos períodos e regimes a que respeitam" (sic).
9-De facto, do que resulta do depoimento e do próprio teor da sentença, a testemunha em causa (C) era conhecedora dos factos por ter procedido, apenas, à elaboração e à consulta da certidão de dívida.
10-Ora, da conjugação com os restantes depoimentos, nomeadamente com o do Inspector-Adjunto Especialista (A), actualmente na reforma, dúvidas residem e não se considera sequer provado que todo o montante constante da certidão de dívida seja devido à Segurança Social.
11-Tal como resulta daquele depoimento, e não ficou provado em sede de julgamento, a testemunha não balizou os períodos a que a certidão e, por conseguinte, a que a acusação pública se reportava; não definiu os montantes das cotizações em dívida; e, bem assim, não definiu os regimes a que a dívida se referiria. Para além do mais, não ficou provado que a rubrica inscrita nos recibos de vencimento dos trabalhadores, designada de "quilómetros", estaria sujeita a retenção e, portanto, não deveria ter sido alvo de englobamento no montante a apurar.
12-A convicção do Tribunal a quo resulta da conjugação de todos os elementos de prova proferidos e produzidos em julgamento. Ora, é notório que os depoimentos não se encontram em correlação, quer com os demais, quer ainda com os factos vertidos no libelo acusatório, nomeadamente no que diz respeito à demarcação dos períodos em referência e à demarcação dos regimes de cotizações em dívida.
13-Alega o Recorrente que a sentença posta em crise enferma o vício do artigo 410, n.º 2, alínea b) do CPP, por "manifesta contradição insanável da fundamentação, pois analisando-se a matéria de facto dada como provada e não provada chega-se a conclusões contraditórias" e que o Tribunal a quo "deveria ter tido em consideração os documentos juntos aos autos, cuja validade não foi posta em causa, para alicerçar a sua convicção [ ... ]" (sic, pp.l2-13). Considerações que aqui se têm, salvo melhor entendimento, por erróneas.
14-Efectivamente, e como se considerou já, o teor da prova documental junta aos autos foi posta em causa, nomeadamente pelas declarações das testemunhas A e C
15-Efectivamente, não se encontra qualquer paralelismo entre os depoimentos proferidos e os documentos examinados relativamente aos períodos de dívida, balizados na acusação pública e, logo, na certidão de dívida emitida pela Segurança Social e definidos pelas testemunhas; nem aos regimes objecto de retenção.
16-Põem-se, assim, em causa as certidões de dívida emitidas pela Segurança Social e os valores nelas inscritos. Verdadeiramente, e face ao teor do depoimento da testemunha A, questiona-se se as quantias inscritas, e devidas, a título de cotizações, se referem expressa e unicamente, a contribuições retidas da remuneração dos trabalhadores ou se, porventura, dizem respeito a rubricas que não deveriam sequer ser alvo de tributação, por ela não ser legalmente devida.
17-E nem se obtempere na cogitação de que o Tribunal a quo não teve na devida consideração os documentos juntos aos autos, como o parece pretender fazer o Recorrente, "ignorando os documentos em causa" (sic, p. 13). Da prova documental existente nos autos constam a certidão do registo comercial; a alteração do contrato social; vários documentos contabilísticos (extractos de conta corrente da sociedade arguida, balancete) e os recibos de vencimento recolhidos por amostragem, "em muitos casos não respeitantes aos períodos em causa nos autos", como resulta da douta sentença proferida.
18-Por um lado, nunca os documentos invocados pelo Recorrente poderiam fazer prova plena dos factos imputados pela acusação pública aos Arguidos, já que, como o próprio Digníssimo Magistrado do Ministério Público alega, os mesmos não estão completos, não havendo prova documental suficiente que permita suportar, pelo menos, a totalidade da acusação. Por outro, como já acima se alegou, a própria certidão de dívida da Segurança Social que serviu de base à acusação pública encontra-se enfermada de erro, segundo o depoimento da testemunha C
19-Do que se retira do teor da sentença, que aqui sufragamos, é que "nenhuma das testemunhas da acusação pública inquiridas sobre esta matéria, lhes fez [aos documentos] uma qualquer alusão, ainda que genérica, que permitisse balizar, no tempo e nos seus montantes, o tipo de quotizações com referência ao seu regime e reportadas aos documentos que as suportam". Pelo contrário, aduzimos, as testemunhas inquiridas aludiram, amiudadas vezes, a períodos e a regimes que não permitem dar como provados os factos constantes nos documentos.
20-Assim, bem andou o Tribunal a quo ao valorar a prova documental, não se vislumbrando qualquer vício.
21-Alega o Recorrente que "A decisão judicial ora posta em crise não obedece ao determinado no artigo 374, n.º 2 do C.P.P., sendo por isso nula por força do estatuído no artigo 379, n.º 1, alínea a), do C.P.P." (sic, p. 16). Também neste ponto não assiste razão ao Recorrente.
22-A Juiz a quo não se limita a classificar a matéria de facto como provada e como não provada. Efectivamente, percorrendo o texto ínsito nas páginas 4 a 7 da douta sentença, percebe-se que aquele vício não se lhe pode atribuir. A Meritíssima Juiz a quo não se limitou a enumerar o conjunto dos factos provados e dos não provados, nem a enumerar os meios de prova que contribuíram para a formação da convicção de absolvição daquele Tribunal.
23-Do teor da sentença resulta, pois, a motivação da matéria de facto, ou seja, os elementos que, em razão da experiência e de critérios lógicos, serviram de base à sustentação da decisão proferida.
24-Temos, assim, que a douta sentença não padece de qualquer vício e que, portanto, não padece de nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do número 1 do artigo 379, do Código de Processo Penal.
***
Não obstante e sem prescindir no atrás alegado,
25-Mesmo que assistisse razão ao Recorrente, o que não se concede e apenas por mero dever de patrocínio se alega, sempre se diria ser necessário verificar se as condutas imputadas ao Arguido, no libelo acusatório, têm relevância criminal ou se, em virtude das modificações legislativas operadas, perderam o significado criminal, caso em que do procedimento criminal não deve resultar a responsabilização criminal do Recorrido, nem tão-pouco aquele seria admissível.
26-Efectivamente, não pode desconsiderar-se, no âmbito do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ex vi o número 1 do artigo 107 do Regime Geral das Infracções Tributárias, a alteração introduzida ao número 1 do artigo 105 do RGIT, pelo artigo 113 da Lei n." 64-Al2008, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2009).
27-Do supra mencionado preceito legal, e para o epigrafado crime de abuso de confiança, pode extrair-se um novo elemento objectivo do tipo, definindo-se um limiar de relevância criminal: o valor de 7.500,00 Euros. Face a esta nova redacção, é hoje doutrinal e jurisprudencialmente aceite que o crime de abuso de confiança fiscal apenas se preenche se cada uma das prestações tributárias não entregues for de valor superior a 7.500,00 Euros, não se considerando, apenas e tão-só, a globalidade do montante devido.
28-Resta, porém, aferir da possibilidade de aplicar aquele limite de relevância penal ou condição de punibilidade ao crime de abuso de confiança contra a segurança social. Possibilidade que, cremos, deve sempre equacionar-se e ter-se como efectiva, face à hermenêutica jurídica e ao já assente em doutos arestos das Relações. Efectivamente, a falta de remissão expressa para aquele limite deve-se a uma qualquer omissão legislativa não intencional. São, pois, de ponderar in casu as decisões dos Acórdãos do TRL de 28-10-2009, (processo 77/08.0); de 17¬11-2009, (processo 2676/02.5); de 03-12-2009, (processo 7133/07.0) e de 15-12-2009, (processo 732/04) e os Acórdãos do TRG de 23-03-2009, (processo 2378/08-2) e de 23-11¬2009, (processo 214/03.1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. Ainda em abono da aplicabilidade do limiar de relevância penal de 7.500,00 Euros ao abuso de confiança contra a Segurança Social transcrevem-se as razões ínsitas no Acórdão do TRL, de 03-12-2009, perfeitamente transponíveis para o caso presente.
29-De especial relevância ao tema vertido nos presentes autos atende-se, ainda, ao decidido no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-02-2010 (processo 106/01.9IDPRT.S1, 3.a Secção).
30-É notória, pois, a identidade e o paralelismo existentes entre os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social, identidade essa que exorbita, necessariamente, a questão das penas e que deve considerar-se, analogamente, àquele nível do elemento objectivo de punibilidade, do valor de 7.500,00 Euros. Assim, e sendo certo que o crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social foi desenhado à imagem do crime de abuso de confiança, deve ter-se em consideração que a "exigência de "particular gravidade" (nas palavras de Germano Marques da Silva) ou de "um certo limiar de gravidade objectiva" (nas palavras de Jorge Figueiredo Dias) é que vai justificar a diferente censura (fundamentar a natureza material da infracção criminal) e, igualmente, conferir legitimidade substantiva à necessidade de censura penal (à "decisão criminalizadora")" (vide Acórdão do TRP, de 27-05¬2009 (processo 343/05.TA VNF.P1). Caso assim não se entendesse, a discrepância na aplicação deste novo regime ao crime de abuso de confiança fiscal, conducente à sua descriminalização, e ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social redundaria em violação dos princípios da proporcionalidade e da legalidade, na medida em que situações semelhantes seriam tratadas, em termos sancionatórios, de forma desigual, e ainda em excesso de punição deste último.
31-Assim, e tendo em conta as razões expendidas, deverá considerar-se que, no quadro legal em vigor, é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social (artigo 107 do RGIT) o limiar de 7.500,00 Euros, previsto para o abuso de confiança fiscal (artigo 105 do RGIT), operando-se, assim, a descriminalização das não entregas de cotizações descontadas e retidas nas remunerações dos trabalhadores, por, individualmente consideradas, não excederem o valor de 7.500,00 Euros.
32-Este é, em virtude da entrada em vigor do diploma que veio alterar o RGIT, o regime legal mais favorável e, nessa medida, retroactivamente aplicável ao caso sub judice (cfr. números 2 e 4 do artigo 2, do Código Penal). Em conformidade, e uma vez reconhecida a irrelevância penal dos factos imputados ao Arguido e ora Recorrido, deve determinar-se a extinção do procedimento criminal.
Não obstante e sem prescindir no atrás alegado,
33-Por remissão do número 2 do artigo 107 do RGIT, é aplicável o número 4 do artigo 105 do mesmo diploma legal, alterado em virtude da Lei n.º 53-Al2006, de 29 de Dezembro. Neste seguimento, dispõe tal normativo que "Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.".
34-No seguimento de tal alteração legislativa, o crime de abuso de confiança fiscal e, bem assim, o crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social passa a ser punível se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e se, após a notificação do contribuinte para proceder à regularização da situação, pagando a prestação acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, este a não entregar no prazo de 30 dias, contados da data da notificação. A inferência que resulta de tais considerações é a de que a criminalização da infracção passa a depender também da realização dessa notificação.
35-O arguido R não foi objecto de tal notificação, por, segundo a acusação, se encontrar "actualmente em morada desconhecida o que inviabilizou a sua notificação pessoal para o efeito do disposto no artigo 105, n.º 4, al, b) do RGIT, na redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29.12". Não obstante, sempre terá de atentar-se na invalidade, in casu, do fundamento invocado ("a morada desconhecida") para justificar a não notificação pessoal do Arguido R.
36-Senão vejamos: o Arguido R mandatou advogado, que o representa nos autos e que, por tal facto, se encontra instituído no poder legal de representar o arguido quanto a notificações. Efectivamente, em processo penal, as regras gerais sobre as notificações estão estabelecidas no artigo 113 do Código de Processo Penal. A redacção do preceito tem vindo a ser sujeita a diversas alterações (a última das quais ao abrigo do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro), nomeadamente no ponto aqui relevante, no número 9. Refere o número 9 do artigo 113 que as "notificações do arguido [ ... ] podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado".
37- Deveria, assim, a Segurança Social, ou o Ministério Público, ou mesmo a Meritíssima Juiz a quo (no sentido de que é competente a entidade titular do procedimento ou do processo, vide, de entre outros, o Acórdão do TRP, de 11-03-2009, processo 0847944), nos termos da alínea b) do número 4 do artigo 105 do RGIT (ex vi n.º 2 do artigo 107 do mesmo diploma), ter notificado, em nome pessoal, o Arguido R., na pessoa do Ilustre Mandatário constituído, e já não optado pela via da não notificação.
38-Ora, essa possibilidade não foi atribuída ao Arguido R, uma vez que não foi notificado para proceder, por si, ao pagamento no prazo de 30 dias, por nenhuma das entidades acima referenciadas, quando titulares do procedimento ou do processo. Ao não ter sido efectuada a notificação pessoal do Arguido R, ainda que na pessoa interposta do seu Ilustre Mandatário, omitiu-se a prática de um acto que é, simultaneamente, condição de punibilidade do ilícito criminal invocado.
39-Tal facto deve, por conseguinte, aproveitar ao Arguido e ora Recorrido J, uma vez que o pagamento voluntário, realizado pelo também Arguido R, no prazo de 30 dias após a notificação pessoal prevista na alínea b) do número 4 do artigo 113 do RGIT, exoneraria a responsabilidade criminal do mesmo.
40-Assim, sempre se diria, na improcedência de tudo o até ora alegado, o que não se concede e apenas por mero dever de patrocínio se alega, deverá o Tribunal ad quem ordenar a notificação do Arguido em causa, fazendo baixar os presentes autos para realização de novo julgamento.
***
41-Nas suas conclusões, que haverão de delimitar o objecto do seu recurso, o Demandante Cível limita-se a afirmar que "não podia a juiz a quo ter dado como não provado" um conjunto de factos. Esquece-se de dizer porquê, com que fundamento, que meios de prova indicam o contrário. Continua as conclusões com um conjunto de afirmações vagas, sem qualquer conexão com os presentes autos e sem fazer a menor articulação com a matéria de facto dada como provada.
42-Fica, assim, o Recorrido na dúvida sobre qual o objecto do recurso interposto pelo Demandante Cível: se pretende atacar a matéria de facto dada como provada e não provada (e, neste caso, por um lado, carece de legitimidade processual quanto à matéria da acusação, e, por outro, não indica os meios de prova concretos que permitiriam alcançar solução diferente), se pretende atacar uma deficiente subsunção jurídica da matéria factual.
43-Pelo que, muito singelamente, o Recorrido limitar-se-á a dar aqui reproduzido o alegado em resposta às alegações do Digníssimo Magistrado do Ministério Público e a reiterar que o dolo, como elemento do tipo que é, não pode ser presumido, necessitando de base probatória. Em audiência de discussão e julgamento não se registou um único depoimento no qual se tenha corroborado tal hipótese.
44-Nos termos e para os efeitos do artigo 129 do Código Penal, a "indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil". Assim, e nos termos do número 1 do artigo 483 do Código Civil, "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
45-Da análise de tal preceito legal e para que se possa falar de responsabilidade civil por factos ilícitos, resulta necessária a verificação cumulativa de cinco pressupostos. A saber: a) existência de um facto voluntário, significando tal conceito um facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade; b) que o facto realizado seja ilícito, podendo tal ilicitude, nos termos do disposto no artigo 483 do Código Civil, assumir uma de entre duas variantes (violação de um direito de outrem ou violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios); c) verificação de um nexo de imputação do facto ao lesante, ou seja, é necessária a verificação de culpa; d) verificação de danos; e, por fim, e) verificação de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
46-Em sede de audiência de discussão e julgamento, nenhuma prova foi produzida no sentido de formar a convicção do Tribunal a quo quanto à existência de dolo do Arguido e ora Recorrido. Logo, nos termos do número 1 do artigo 355 do Código de Processo Penal, "não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou exaradas em audiência". Sintetizando, face à matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, que se tem por assente e aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais, é inquestionável que, no caso dos autos, não se mostram presentes todos os pressupostos enunciados.
47-Impõe-se, assim, concluir pela inexistência do elemento subjectivo essencial - o dolo - para que o tipo legal de crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social se verifique e, subsequentemente, pela improcedência do pedido de indemnização civil, deduzido pelo Recorrente.
Termos em que, deve negar-se provimento aos recursos interpostos, confirmando-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto, sustenta a procedência do recurso do Mº Pº.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Foi apresentada resposta pelo recorrido JGuilherme Varino, na qual reitera a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
***
Mostra-se apurada, a seguinte matéria de facto e fundamentação da mesma:
III- Fundamentação
a) Factos provados
1- A “T--- Lda” é uma sociedade por quotas, contribuinte da Segurança Social 110---, NIPC 50… com sede… Figueira da Foz, que se dedicava à exploração da indústria de transportes públicos ocasionais de mercadorias por via terrestre (camionagem).
2- A gerência da referida sociedade era exercida conjuntamente pelos sócios R e J entre Julho de 2001 e Junho de 2006.
3- A “T--, Lda”, como entidade patronal, obrigava-se a reter e a entregar mensalmente – até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam as contribuições – os valores das contribuições devidas à segurança social previamente descontados no acto de pagamento das remunerações.
4- Na qualidade de sócios gerentes da sociedade arguida, os arguidos R e J procederam ao desconto das contribuições devidas à segurança social nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores, gerentes e pensionistas por velhice da empresa, em períodos e montantes não concretamente apurados, relativamente ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem e ao sub-regime de pensionistas por velhice;
5- O arguido J foi pessoalmente notificado, em 24-03-2007, “para proceder ao pagamento, no prazo de 30 dias, do valor de 49.055,59 € relativo a quotizações retidas e não entregues e respectivos juros de mora que se vencem até integral pagamento, referentes aos meses objecto do processo de inquérito nº C-76/2003, a correr termos nos Serviços de Coimbra do Gabinete de Investigação Criminal dos serviços de Fiscalização do Centro do ISS-IP, em que é investigada a sociedade “T.., Lda” com o NISS 11---.(…)”, para proceder ao seu pagamento voluntário;
6- O arguido J não procedeu ao pagamento da quantia indicada em 5-, nem nesse prazo, nem até esta data;
Mais se provou:
7- A “T.. Lda” foi declarada em estado de insolvência por sentença de 22-…2006, transitada em julgada em 12-01-2007, proferida no âmbito do proc nº …/06.7TBFIG que corre termos no 3º Juízo deste Tribunal, não tendo ainda havido lugar ao registo do encerramento da liquidação;
8- enquanto correu o processo de recuperação de empresas da sociedade “T-- Lda”, os salários eram pagos de 6 em 6 meses, até os arguidos deixarem de ter dinheiro para pagar aos trabalhadores;
9- os arguidos são primários.
Do pedido de indemnização civil:
10- A sociedade “T.. Lda” procedeu ao pagamento da remuneração dos seus trabalhadores com retenção das contribuições descontadas aos mesmos;
11- os 1º e 2º arguidos, na qualidade de representantes desta sociedade sempre efectuaram sobre as remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores e sub-regime dos trabalhadores pensionistas de velhice daquela sociedade, os descontos mensais legalmente estipulados;
12- encontram-se em dívida, as quotizações referentes ao período de Julho de 2001 a Maio de 2006, relativas ao regime geral de trabalhadores por conta de outrem e de Setembro de 2004 a Abril de 2006 no sub-regime dos trabalhadores pensionistas de velhice, no valor total de € 49.055,59 (correspondente a € 48.033,91 e a € 1.021,68 respectivamente);
13- Os arguidos, nem dentro dos prazos legalmente estipulados, nem até ao momento, fizeram qualquer pagamento à Segurança Social das contribuições retidas acima referidas.
*
b) Factos não provados:
Da acusação pública:
-que, os dois primeiros arguidos, na qualidade de sócio-gerentes da sociedade arguida, tenham procedido ao desconto das contribuições devidas à segurança social nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores, gerentes e pensionistas por velhice da empresa:
a) no período compreendido entre Julho de 2001 a Maio de 2006, num montante total de € 48.033,91, relativamente ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem;
b) no período compreendido entre Setembro de 2004 a Abril de 2006, num montante total de € 1.021,68, relativamente ao sub-regime dos órgãos estatutários e equiparados; e
c) nos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2003, num montante total de 174,06 euros, relativamente ao sub-regime de pensionistas por velhice;
-que os montantes discriminados de a) a c), supra referidos, das contribuições deveriam ter sido entregues nos Cofres da Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte a que se reportam;
- que os arguidos R e J, na qualidade de sócios gerentes da sociedade arguida, não entregaram as contribuições referidas de a) a c), no valor total de € 67.699,55 (48.033,91 + 1.021,68 + 174,06), nos 90 dias posteriores ao termo do prazo supra referido, tendo-se apropriado das mesmas, que pertencem à Segurança Social, em proveito da sociedade arguida “T.--- Lda”.
- que os arguidos R --- e J-- nos períodos acima referidos de a) a c) agiram no seu próprio interesse, de forma deliberada, livre e consciente, procurando, e conseguindo, obter um enriquecimento indevido à custa da segurança social e que agiram livre, voluntária e conscientemente, em nome e no interesse da arguida “T…., Lda” bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
- que os arguidos prosseguiram sempre a sua conduta com base numa suposta situação de impunidade, por falta de fiscalização atempada da omissão das suas obrigações com a segurança social e no quadro de uma única solicitação externa – as suas dificuldades económicas.
- que os arguidos sabiam que com as suas condutas incorriam em responsabilidade criminal.
- que como consequência directa e necessária dos factos descritos na acusação deduzida, advieram para a Segurança Social prejuízos.
*
c) Motivação da matéria de facto
O Tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova produzida, designadamente:
- na análise da prova documental existente nos autos, designadamente na certidão de registo comercial da sociedade arguida de fls 240 a 245, 2º Vol) e da alteração do contrato social; na análise com especial incidência nos recibos de vencimento de fls 16-AP a fls 59-AP (1º vol do processo Apenso nº C-76/2003 da Seg Social), em muitos casos não respeitantes aos períodos em causa nos autos; nos extractos de conta-corrente da empresa de (fls 60- AP a fls 90- AP; nas folhas de remunerações de fls 160-AP a fls 211-AP).
Da análise de tais documentos, resultou uma primeira constatação: nenhuma das testemunhas da acusação pública inquiridas sobre esta matéria, lhes fez uma qualquer alusão, ainda que genérica, que permitisse balizar, no tempo e nos seus montantes, o tipo de quotizações com referência ao seu regime e reportadas aos documentos que as suportam.
Se não vejamos, a primeira testemunha M técnica superior do Instituto da Segurança Social da 2ª secção de processos de Coimbra, logo frisou que interveio na análise contabilística da sociedade, no âmbito dos processos de execução fiscal a correr contra a sociedade, sendo esse conhecimento que tinha dos factos: limitou-se a dizer que o desconto das contribuições à segurança social nas remunerações efectuadas, foi feito e que não foram pagos à segurança social.
A segunda testemunha A, na qualidade de Inspector- Adjunto Especialista, actualmente na reforma, interveio no período inicial (Abril de 1999 a 2003) e procedeu a uma acção de fiscalização na sequência de uma ordem superior recebida. Mais precisamente, referiu ter analisado as declarações de remunerações para verificar as verbas que nelas constavam, mas que não tinha sido objecto de reembolso para a Segurança Social.
Inquirido a instâncias do tribunal sobre os períodos, montantes e espécies de regime a que respeitava essa sua investigação, a testemunha respondeu que estava tudo de acordo com os mapas que tinha elaborado.
Confrontado, então, com o teor da prova documental existente nos autos, mais precisamente com a informação de fls 147- AP (1º vol do processo Apenso nº C-76/2003 da Seg Social), datada de 24/10/2003 e por si assinada, constatou-se que de facto, como bem referiu, a sua intervenção se cingiu à fase inicial, de 1999 a 2003 e que tomou por base a análise dos “recibos mensais de vencimento dos trabalhadores”, “os mapas de ajudas de custo e Km no mês” e “os contratos a termo certo”.
Mais referiu que observaram o seguinte: os recibos de vencimento continham uma descrição de “Quilómetros” valor que faz parte do total pago ao trabalhador e sem descontos para a Segurança Social.
E, concluíram que, as importâncias pagas aos trabalhadores com a designação de “Quilómetros” por, não existir documento de prévia autorização; por não se saber qual a matrícula do carro utilizado; por não se comprovar se essa utilização foi no manifesto interesse da empresa e por os pagamentos tomaram por base, os cálculos das médias quilómetricas, da residência do trabalhador para o seu local de trabalho, nem sempre iguais e por vezes com diferenças não explicáveis, deveriam ser tidos, na sua óptica, como valores passíveis de contribuições para a Segurança Social.
Ora, ao atentar no seu depoimento, em audiência de julgamento, numa primeira análise, e cingindo-se o seu depoimento a esta matéria, chegou a pensar-se que, o acabado de relatar pelo Sr Inspector- Adjunto constituiria apenas uma parcela do objecto do litígio e que o demais estaria para provar.
Em vão, exauridas todas as perguntas por parte de todos os presentes, o seu depoimento cingiu-se aos Boletins Itinerários e à questão dos Quilómetros sem suporte documental contabilístico, concluindo-se que era de facto o único conhecimento que detinha sobre a matéria, por a tanto se ter cingido o objecto da sua investigação que deixou retratada na dita informação com a qual foi confrontado em audiência e descreveu com todo o rigor.
Prosseguiu-se o julgamento com a última testemunha inquirida Carlos Manuel Abrantes, esta arrolada pelo ISS-IP, no pedido cível deduzido.
Este sim, conhecedor dos factos, por ter elaborado a certidão de dívida anexa à formulação de tal pedido, logo tratou de balizar o período temporal (como sendo o de Julho de 2001 a Maio de 2006), além de que, por ele, se ficou a saber que os descontos relativamente ao sub-regime dos órgãos estatutários e equiparados não estavam aqui em causa e que o do sub-regime de pensionistas por velhice não correspondia ao montante indicado na acusação, o que explicou através das cifras utilizadas normalmente nos documentos.
Esclareceu que, antes de se deslocar para este Tribunal, consultou a conta corrente e verificou que não tinha dado entrada nenhum pagamento, até essa data.
Por este depoimento alcançou-se alguns dos factos provados do pedido cível.
Do depoimento de J empregada de escritório da sociedade “G, Lda” durante 38 anos, actualmente aposentada, extraíram-se outros factos dados como provados, relativamente à proveniência do dinheiro para pagamento dos salários, ao percurso da empresa até à ausência total de dinheiro para pagar aos trabalhadores, referindo que “os sócios viviam na aflição de chegar ao fim e de não ter dinheiro para pagar aos trabalhadores” até ao culminar da falência da sociedade arguida.
Viveu muito aquela situação até à sua saída da empresa em 2006.
O seu depoimento, pese embora a emotividade latente e a tentativa, fundada ou não, de imputar à sociedade “Mãe” G, Lda” a responsabilidade pelos pagamentos em falta, sempre foi valorado na parte em que tais factos nos mereceram credibilidade, sendo esses os que foram elevados à categoria de provados.
Da ausência de prova relativamente a toda a restante matéria da acusação e do pedido cível, resultaram os factos dados como não provados.
Na matéria de facto alcançada, diga-se, não se nos afigura existir contradição, entre os factos provados e não provados, na medida em que, ainda que provados alguns factos do pedido cível, por eles, não se poderia ter chegado aos da acusação pública, por provar, desde logo, dada a diferença de pressupostos em que assentam os dois tipos de responsabilidade.
Além disso, o ponto 5- dos factos provados da acusação pública, corresponde à reprodução da teor da notificação do arguido J, (a qual, para quem defenda tratar-se de uma mera condição objectiva de punibilidade, terá que, como tal, constar da materialidade da acusação) e que neste caso, passou para os factos dados como provados, por ter sido referido o seu cumprimento, em audiência, e constar dos autos.
De resto, atento o principio da imediação, ainda que provados alguns dos factos relativos ao pedido cível, já o mesmo não se alcançou com os restantes factos, porquanto a prova documental, desacompanhada da prova testemunhal relativa à mesma, é insuficiente como meio de prova, sendo apenas admissível como prova adicional, quando chamada à colação pelos depoimentos prestados em audiência, o que não se verificou, no presente caso, nem o simples facto de se encontrar junta aos autos, permite pensar-se de outro modo.
Finalmente dos CRCs de fls 620 e 621 consta a ausência de antecedentes criminais.
***
Conhecendo:
No recurso do demandante Instituto da Segurança Social, o recorrente questiona:
- Que os arguidos actuaram dolosamente (facto que deveria ser julgado como provado);
- Relevante na prática do crime é a não entrega dos valores, independentemente da finalidade que lhe venha a ser dada;
- Que se verificam os pressupostos para a procedência do pedido cível.
No recurso do Magistrado do Mº Pº, o recorrente questiona:
-Suscita os vícios das als. a) e b) do nº 2 do art. 410 do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão);
- Matéria de facto incorrectamente julgada (ponto 4 dos provados e não provados onde se especificam quantias e datas);
- Elemento subjectivo;
- Não valoração da prova documental;
- Falta de fundamentação (análise crítica).
Na resposta do arguido J suscita:
- Descriminalização do tipo de abuso contra a segurança Social (de valor igual ou inferior a 7.500,00€);
- Não notificação a que se reporta o art. 105 nº 4 al. b) do RGIT em relação ao arguido R.
***
Questões suscitadas na resposta do recorrido J:
Entendemos dever tomar conhecimento destas questões dado que os arguidos foram absolvidos e não tinham legitimidade nem interesse para as suscitar em recurso.
E, a procedência das mesmas prejudica o conhecimento dos recursos.
1-Descriminalização do tipo de abuso contra a segurança Social (de valor igual ou inferior a 7.500,00€);
A questão vem sendo decidida nos Tribunais, sem consenso, havendo argumentos válidos, quer no sentido da despenalização, quer no sentido da não despenalização.
Ambas as posições têm fundamento, bastando atentar nos Acs. do STJ, de 17-12-2009, Proc. 331/01.2TAVCD.S1 que sustenta a não aplicação aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social e de 04-02-2010, Proc. 106/01.9IDPRT.S1, que sustenta a outra versão, ambos em www.dgsi.pt.
O nosso entendimento, que aliás vem de encontro ao seguido nesta Relação, é no sentido da não aplicação aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social.
Como não é questão suscitada no recurso e porque entendemos manter-se a penalização, não há necessidade de expandir mais argumentos.
Vejam-se os Acs. desta Relação proferidos nos processos nº 386/07.6TAMGL.C1, nº 148/98.0IDCBR.C2 e nº 105/04.9TANLS.C1 (este em que fomos relator.
2- Não notificação a que se reporta o art. 105 nº 4 al. b) do RGIT em relação ao arguido Rui Varino.
O arguido J não tem legitimidade para questionar as notificações do arguido R e até poderia responder apenas ele sem o co-arguido. O Mº Pº chegou a requerer separação de processos.
E, sendo condição de punibilidade será em relação ao agente sobre o qual se omitiu a diligência, não resultando daí qualquer aproveitamento a outros arguidos devidamente notificados.
Relevantes nos autos são os pontos 5 e 6 dos provados donde consta a notificação ao arguido J para proceder ao pagamento voluntário em 30 dias, sem que tivesse pago até ao julgamento.
Assim, que se julgam improcedentes as questões suscitadas pelo arguido J
Recurso do Magistrado do Mº Pº:
Alegação dos vícios do art. 410 nº 2, als. a) e b), do CPP:
Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando há lacuna no apuramento da matéria de facto, necessária para a decisão de direito;
- Lacuna ao não se apurar o que é evidente que se podia apurar;
- O tribunal não investiga a totalidade da matéria de facto (tal como a configura a acusação ou a defesa), podendo fazê­-lo;
- Por haver lacunas no apuramento da matéria de facto necessária e possível para a decisão. Se não há essas lacunas, há uma errada subsunção dos factos ao direito - erro de julgamento - (Germano Marques da Silva).
Esta insuficiência manifesta-se, pelo menos tendo em conta as regras da experiência, a levar em conta na formação da convicção.
Como se refere no Ac. do STJ in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6º, Fasc. 4, pág. 557, "se se verificar que o Tribunal investigou o que devia investigar e fixou -dentro dessas possibilidades de investigação- matéria de facto suficiente para a decisão de direito, tal vício não existirá". "Apenas existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que tal matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz" (sublinhado nosso).
In casu, temos que a razão assiste ao recorrente, verificando-se lacuna no apuramento de matéria de facto necessária para a decisão.
Dando-se como provado o ponto 4 dos provados, de que os arguidos procederam aos descontos das contribuições devidas à Segurança Social nas remunerações pagas aos trabalhadores, deveriam ser investigados os períodos a que essas verbas respeitavam e quais os montantes.
Ou deveria ser devidamente justificado que se diligenciou no sentido desse apuramento para que fosse afastado que os descontos se reportam a “períodos e montantes não concretamente apurados” ou entender-se que era impossível apurar.
Certamente que se não fosse por outra via, pela intervenção da demandante Segurança Social (ela indicaria prova, testemunhal e ou documental) se saberia qual o período temporal e qual o montante, pois que o indicou no pedido cível.
A testemunha C. refere-se a período temporal específico.
Assim, se outros períodos não se conseguissem apurar teríamos, pelo menos, apurados os períodos temporais e montantes referidos no ponto 12 dos provados.
E, nos termos em que foi descrita a matéria factual acaba por haver contradição entre aqueles pontos 4 e 12 dos provados.
E, havendo prova nos autos, de qualquer espécie, deve ser valorada ou afastada e, dela ser feita referência na motivação indicando o porquê do afastamento. Assim deve ser, também, com a prova documental.
Se “Da análise de tais documentos, resultou uma primeira constatação: nenhuma das testemunhas da acusação pública inquiridas sobre esta matéria, lhes fez uma qualquer alusão, ainda que genérica, que permitisse balizar, no tempo e nos seus montantes, o tipo de quotizações com referência ao seu regime e reportadas aos documentos que as suportam”, com vista ao apuramento da verdade material cfr. art. 340 do CPP, deveria o julgador provocar essa “alusão”, no caso de a entender como necessária em audiência de julgamento.
É que a regra é a apresentação da prova documental no decurso do inquérito ou da instrução e só excepcionalmente em julgamento –art. 165 do CPP, e os documentos juntos ao processo, na altura própria, não têm de ser examinados em audiência. Os intervenientes/sujeitos processuais deles têm conhecimento e o exame dos mesmos será feito quando o tribunal tiver de decidir/deliberar. Neste sentido, Ac. do STJ de 10-11-1993 Col. Jurisp. (S) tomo III, 233, e Ac. desta Relação de 19-09-2001, Recurso 1587/2001 que refere, “ o art. 355 nº 1 do CPP não exige que os documentos constantes do processo tenham de ser lidos ou expressamente examinados em audiência. A sua existência no processo, livremente apreciáveis, pelas partes, satisfaz aquela exigência legal”.
Assim que se tenha como incorrecta a justificação referida na motivação, “De resto, atento o principio da imediação, ainda que provados alguns dos factos relativos ao pedido cível, já o mesmo não se alcançou com os restantes factos, porquanto a prova documental, desacompanhada da prova testemunhal relativa à mesma, é insuficiente como meio de prova, sendo apenas admissível como prova adicional, quando chamada à colação pelos depoimentos prestados em audiência, o que não se verificou, no presente caso, nem o simples facto de se encontrar junta aos autos, permite pensar-se de outro modo”.
Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei –art. 125 do CPP, as quais são apreciadas segundo as regras da experiência e livre convicção da entidade competente –art. 127 do mesmo Código.
A prova documental, desde que credível e convincente basta-se, e não sendo apenas mera “prova adicional”.
Assim que se verifica o vício da insuficiência da al. a) do nº 2 do art. 410 do CPP.
Contradição insanável na fundamentação:
Este vício há-de manifestar-se por uma incoerência, oposição incompatibilidade manifesta entre a fundamentação ou entre esta e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir - cfr., entre outros vários, Acs. STJ de 22/5/96 in Proc. 306/96 de 12/127)9 in Proc. 1046/98 in Sumários nº 36.
Verifica-se quando sobre o mesmo facto ou sobre a mesma questão constam, do texto da decisão recorrida, posições antagónicas e inconciliáveis, haja oposição entre factos que mutuamente se excluam por impossibilidade lógica ou de outra ordem por versarem a mesma realidade.
E tanto pode respeitar à fundamentação da matéria de facto como à contradição na própria matéria de facto.
No caso, essa contradição, como já aflorado, verifica-se.
Temos como contraditórios os pontos 4 e 12 dos provados, ao referir-se naquele “períodos e montantes não concretamente apurados” e neste “período de Julho de 2001 a Maio de 2006” e “Setembro de 2004 a Abril de 2006” e “no valor total de €49.055,59 (correspondente a €48.033,91 e a €1.021,68 respectivamente)”.
E temos como contraditórios os pontos 3, 11 e 12 dos provados com os seguintes factos não provados (transcreve-se por não estarem numerados). “-que, os dois primeiros arguidos, na qualidade de sócio-gerentes da sociedade arguida, tenham procedido ao desconto das contribuições devidas à segurança social nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores, gerentes e pensionistas por velhice da empresa:
a) no período compreendido entre Julho de 2001 a Maio de 2006, num montante total de € 48.033,91, relativamente ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem;
b) no período compreendido entre Setembro de 2004 a Abril de 2006, num montante total de € 1.021,68, relativamente ao sub-regime dos órgãos estatutários e equiparados; e
-que os montantes discriminados de a) a c), supra referidos, das contribuições deveriam ter sido entregues nos Cofres da Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte a que se reportam”.
Nem se pode considerar que existem factos da acusação e factos do pedido cível e que só entre cada um destes segmentos é que não pode haver contradição. Assim que temos como incorrecta a justificação na motivação, ao ser referido que, “Na matéria de facto alcançada, diga-se, não se nos afigura existir contradição, entre os factos provados e não provados, na medida em que, ainda que provados alguns factos do pedido cível, por eles, não se poderia ter chegado aos da acusação pública, por provar, desde logo, dada a diferença de pressupostos em que assentam os dois tipos de responsabilidade”.
Assim que se verifica o vício da insuficiência da al. b) do nº 2 do art. 410 do CPP.
Elemento subjectivo do tipo:
Como salienta o Ac. do STJ de 8-04-1999, in Col. Acs. do STJ, tomo II, pág. 171, “a intencionalidade perseguida pelo agente de um crime é do domínio da matéria de facto e manifesta-se através da realidade factual que lhe está subjacente e que ficou provada, sendo apreciada segundo a livre convicção do julgador e as regras de experiência, como permite que o art. 127 do CPP, que para o efeito as aponta de modo objectivo na sua fundamentação” (sublinhado nosso).
Perante os factos objectivos provados, referidos, em:
- 3, “obrigava-se a reter e a entregar mensalmente … os valores das contribuições devidas à segurança social previamente descontados no acto do pagamento das remunerações”;
- 4, “na qualidade de sócios gerentes da sociedade arguida…. Procederam ao desconto das contribuições devidas à segurança social nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores”;
- 6, “não procedeu ao pagamento”
- 10, “pagamentos que a sociedade fez aos trabalhadores” e retenções;
- 11, “os 1º e 2º arguidos… sempre efectuaram sobre as remunerações efectivamente pagas…os descontos mensais legalmente estipulados”;
- 12, montantes em dívida;
- 13, os arguidos não pagaram à segurança social “as contribuições retidas acima referidas”.
Temos que perante tais factos não poderiam ser dados como não provados que: “- que os arguidos R e J, nos períodos acima referidos de a) a c) agiram no seu próprio interesse, de forma deliberada, livre e consciente, procurando, e conseguindo, obter um enriquecimento indevido à custa da segurança social e que agiram livre, voluntária e conscientemente, em nome e no interesse da arguida “T, Lda” bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
- que os arguidos prosseguiram sempre a sua conduta com base numa suposta situação de impunidade, por falta de fiscalização atempada da omissão das suas obrigações com a segurança social e no quadro de uma única solicitação externa – as suas dificuldades económicas.
- que os arguidos sabiam que com as suas condutas incorriam em responsabilidade criminal.
- que como consequência directa e necessária dos factos descritos na acusação deduzida, advieram para a Segurança Social prejuízos”.
Mas, perante a verificação dos vícios referidos supra e, consequências dessa verificação, a constatação destes factos, elemento subjectivo, não pode ser, desde já, decidida, mas apenas após a decisão que resultar do reenvio.
Mas, também não é dada justificação na motivação para o entendimento que ficou expresso nos factos provados e não provados, no que respeita ao elemento subjectivo.
Assim, que tem razão o recorrente ao alegar a insuficiência da motivação e análise crítica.
Face à motivação entendemos que nesta é suficiente a justificação, pelo que inexiste falta/insuficiência de exame crítico das provas, em violação do disposto no art. 374 nº 2 do CPP “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, convicção positiva ou negativa.
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo –Ac. do STJ de 12-04-2000.
Como refere o Ac. do STJ de 30-01-2002, proc. 3063/01- 3ª, SASTJ, nº 57, 69, “A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (sublinhado nosso). Tal desiderato não se consegue alcançar em face da motivação da decisão de facto.
Assim, se julga procedente o recurso do Mº Pº.
A situação apontada consubstancia, como se verificou, os vícios do art. 410 nº 2 als. a) e b) do CPP. Trata-se de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a para da contradição.
Estes vícios outra solução não deixam que não seja a do reenvio dos autos para, em novo julgamento serem colmatados.
O reenvio para novo julgamento, respeita à totalidade do processo –art. 426 nº 1 do CPP.
E, esta decisão de reenvio, que implica com a decisão da matéria de facto, prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas.
A procedência do recurso do Mº Pº com a verificação dos vícios da insuficiência e da contradição, prejudica o conhecimento do recurso da demandante Segurança Social, na parte não aflorada, elemento subjectivo, apenas se referindo á latere que o art. 483 do CC não exige a verificação do dolo, bastando-se com a mera culpa.
*
Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em, julgar procedente o recurso do Magistrado do Mº Pº, anular o julgamento determinando-se o reenvio do processo para novo julgamento respeitante à totalidade do objecto do processo, nos termos do art. 426 do CPP.
E julgar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas e não analisadas, nomeadamente o recurso do demandante cível Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de Coimbra.
Sem custas.
Coimbra,
_____________________

_____________________