Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
126696/17.0YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS E DE DÍVIDAS
MEIOS DE COMUNICAR A CESSÃO AO CESSIONÁRIO
INJUNÇÃO
PROCESSO ESPECIAL DE CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS EMERGENTES DE CONTRATO DE VALOR NÃO SUPERIOR A 15 MIL EUROS
Data do Acordão: 04/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 577º, Nº 1, E 583º, Nº 1 DO C. CIVIL; DEC. LEI Nº 269/98, DE 01/09.
Sumário: I – Resulta do disposto nos artºs 577º, nº 1, e 583º, nº 1, ambos do C. Civil, sobre a transmissão de créditos e de dívidas, que admissibilidade da cessão não depende do consentimento do devedor e que a dita produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente.

II - Na cessão de créditos, a notificação do devedor não é facto constitutivo do direito do cessionário nem condição necessária para assegurar a sua legitimidade ativa, sendo mera condição de eficácia.

III - A eficácia da cessão pode ser conseguida através da citação do devedor para a ação declarativa ou executiva, assim cessando a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor.

IV - Nada impede que uma dada cessão de créditos possa ser levada ao conhecimento do devedor através da sua interpelação ou notificação em processo especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, como é o caso presente.

V - Resulta do artº 1º do Dec.-Lei nº 269/98, de 01/09, na sua redação dada pelo artº 6º do Dec.-Lei nº 303/2007, de 24/08, que com esse diploma é aprovado o chamado regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00.

VI - Esse tipo de procedimento está hoje publicado em anexo ao Dec. Lei nº 107/2005, de 01/07, que também alterou o Dec.–Lei nº 269/98, embora tendo já sofrido de posteriores alterações, designadamente pela Lei nº 14/2006, de 26/04, pelo Dec.-Lei nº 226/2008, de 20/11, e pelo Dec.-Lei nº 34/2008, de 26/12, e do qual resulta que na petição dessa ação declarativa, o autor exporá sucintamente a sua pretensão e os respetivos fundamentos – artº 1º.

VII - O réu é citado para contestar e se o fizer a ação prossegue, sendo as provas oferecidas na audiência – artºs 3º e 4º

VIII - Estas normas são aplicáveis aos requerimentos de injunções – artºs 7º, 10º, 16º e 17º.

IX - Mas nestes casos sempre cabe ao juiz poder convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais – artº 17º, nº 3.

Decisão Texto Integral:


            Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I

            No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Local Cível de Leiria - Juiz 1, corre termos a presente ação declarativa, com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, que a sociedade ‘A... Limited’, com sede em ..., Reino Unido, instaurou, através de requerimento inicial de injunção, contra  J..., residente na Rua ..., peticionando a condenação do mesmo a pagar-lhe a quantia global de €9.206,36.

            Alega, em síntese, que celebrou com a sociedade “C...” um contrato de cessão de créditos, na sequência do qual a “C...” cedeu o seu crédito sobre o Réu à autora; que a presente ação constitui o meio idóneo para dar conhecimento ao Réu da mencionada cessão de créditos; que por documento particular foi celebrado entre a C... e o ora Réu, em 10/01/2006, um contrato de abertura de crédito, ao qual foi atribuído o n.º ..., comprometendo-se o Réu a pagar prestações, mensais e sucessivas; que desde pelo menos 08.06.2007 o réu deixou de efectuar o pagamento daquelas prestações mensais, tendo ficado em dívida o montante de €4.073,61, acrescendo a essa quantia os juros de mora à taxa legal, contados desde 08.06.2007 até à data da propositura da presente ação, que somam €1.710,92; reclama ainda a quantia de €3.421,83, a título de cláusula penal, correspondente a 8% sobre a totalidade do saldo em dívida.

            Que o montante global em dívida ascende a €9.206,36, cujo pagamento reclama do Réu, com o acréscimo de juros vincendos até efetivo pagamento.


II

            O Réu deduziu oposição, invocando, além do mais, o desconhecimento do sobredito contrato de abertura crédito, e a prescrição da dívida reclamada, nos termos do artº 310º, als. d) e e) do C. Civil.

            Pede a sua absolvição do pedido.


III

            Na sequência de despacho proferido no Tribunal as partes foram notificadas para se pronunciarem sobre a verificação de um eventual erro na forma do processo, tendo tomado posição o réu, no sentido afirmativo, e a autora, em sentido negativo.

IV

            De seguida foi proferido despacho nos seguintes termos:

‘Cumpre apreciar e decidir.

A referência a este contrato de crédito no qual a autora, na qualidade de cessionária, não foi parte, demonstra que os créditos de que esta se arroga titular não emergem directamente do contrato por si invocado, celebrado com a cedente.

Pelo contrário, estamos perante obrigações pecuniárias decorrentes, não directamente do contrato celebrado entre a autora, na qualidade de cessionária, e a C..., na qualidade de cedente, mas da articulação desse contrato com o sobredito “contrato de crédito”, havido entre a cedente e o ora réu (devedor cedido). Quer dizer: o direito de crédito invocado pela autora emerge, não do contrato que originariamente o fez nascer (o contrato de crédito), mas de um segundo contrato, subsequente, surgindo agora como devedor – quanto ao crédito cedido - uma pessoa que é alheia a este segundo contrato, de cessão de créditos, operada entre a cedente (C...) e a cessionária (a ora autora).

Aliás, refira-se, ainda, que a própria cessão de créditos invocada pela autora não se mostra, por ora, apta a produzir efeitos, não sendo, por isso, geradora de obrigações para o réu.

Nos termos da lei, “a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite” – cf. CC, art.º 583º.

Verifica-se que a autora não só não fez prova da notificação da cessão de créditos ao réu, nem a presente acção constitui meio idóneo para dar conhecimento ao devedor da cessão de créditos em termos idênticos à notificação prevista no art.º 583º do Código Civil, uma vez que esta notificação, a que alude esta norma, constitui uma declaração receptícia, subordinando-se o início da produção dos efeitos do negócio jurídico ajuizado ao conhecimento efectivo do mesmo pelo devedor. Tal conduz à cisão entre dois momentos: um primeiro, em que se opera a notificação da cessão de créditos ao devedor; e um segundo, que se lhe seguirá, de reclamação dos mesmos pelo cessionário, o que apenas lhe é permitido quando a cessão se mostra válida e eficaz, porque é apenas nesse momento que nasce, na sua esfera jurídica, o direito de que vem arrogar-se titular e que pretende exercitar por via litigiosa, razão por que é de concluir que o próprio contrato de cessão de créditos invocado pela autora para fundamentar a sua pretensão ainda não se encontra a produzir efeitos que se imponham ao aqui réu – cf. CC, art.º 224.º-1; esta é, aliás, a doutrina defendida por Luís Menezes Leitão, Cessão de Créditos, Almedina, 2005, p. 361, quando sustenta que “(…) não se poderá, no entanto, considerar ocorrer a notificação da cessão de créditos, caso o cessionário se limite a instaurar contra o devedor acção de cobrança de crédito”; na jurisprudência, no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 09.11.2000, rel. Quirino Soares, CJ-STJ 8 (2000), 3, p. 121.

Por outro lado, o procedimento de injunção, enquanto meio processual idóneo à prossecução de determinados fins, os quais se mostram normativamente pré-determinados, não constitui o meio processual adequado para proceder a uma notificação da cessão de créditos, como aventado pela autora. De facto, este processo, que assume uma feição especial, aplica-se em (apenas) duas situações: (i) as referidas no artigo 1.º do diploma preambular ao DL n.º 269/98, de 01-09, isto é, o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00; (ii) as emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo DL n.º 62/2013, de 10-05.

O procedimento de injunção não visa, pois, alcançar outros efeitos jurídicos contratuais – como seja o do caso dos autos, de comunicação da cessão de créditos ao devedor –, além do cumprimento de obrigações pecuniárias e, entre estas, apenas as que sejam directamente emergentes de contratos, como supra se referiu.

Conclui-se, assim, que encontrando-se a notificação de cessão de créditos fora do âmbito de aplicação do regime previsto no DL n.º 269/98, de 01-09, não se mostra possível recorrer a este procedimento especial para esse efeito, devendo proceder-se à aludida notificação, ou extrajudicialmente, ou, seguindo-se a via judicial, por notificação judicial avulsa (cf. CPC, art.º 256.º) ou por via do processo declarativo comum.

Por outro lado, ainda, também a quantia peticionada pela autora a título de cláusula penal, perfazendo o montante de €3.421,83, resultante da percentagem de “8% sobre a totalidade do saldo em dívida”, não pode ser peticionada no âmbito dos presentes autos. Isto é, no âmbito da presente acção especial não podem, por identidade de razões, exercitar-se pretensões que derivem de indemnizações eventualmente devidas a título de cláusula penal, por incumprimento contratual – como, aliás, também se prevê a exclusão, no âmbito do processo injuntivo, de pagamento de indemnizações derivadas da responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, no âmbito do DL n.º 62/2013, de 10-05, art.º 2º-2-c); vd. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 158 a 173; e Ac. da RL de 08.10.2015 (rel. Catarina Manso), www.dgsi.pt/jtrl; no mesmo sentido, debruçando-se sobre a cláusula penal a título de indemnização pela cessação do contrato durante o período de fidelização, o Ac. da RL de 08.06.2017 (Maria Teresa Pardal), www.dgsi.pt/jtrl; sobre a natureza da cláusula penal, moratória ou sancionatória, exigindo sempre o apuramento da culpa do contraente no incumprimento ou retardamento da prestação contratual, vd. Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, pp. 683-4.

Atento o exposto, conclui-se que a autora fez uma utilização inadequada do procedimento de injunção, porquanto, por um lado, as obrigações pecuniárias que pretende fazer valer não emergem directamente do contrato de cessão de créditos, reclamando a apreciação concatenada de um outro contrato, o tal contrato de crédito, no qual a autora não figura como parte, e, além disso, considerando que a própria cessão de créditos não havia, à data da propositura da injunção, produzido os seus efeitos legais ou, pelo menos, tal não se mostra demonstrado nos autos, sendo certo que o presente processo se mostra igualmente desadequado para exigir quantias a título de cláusula penal ou indemnizatórias.


*

Nos casos em que o autor, na qualidade de requerente num procedimento de injunção, depois transmutado para acção declarativa especial, faz um uso inadequado do requerimento de injunção, verifica-se um erro na forma do processo, por utilização de processo indevido, que impõe a absolvição do réu da instância, o qual afecta o conhecimento e o prosseguimento da acção declarativa especial em que se transmutou o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização, é dizer, as condições de natureza substantiva que a lei impõe para que seja decretada a injunção, caso em que nem sequer é permitido, por inviável, qualquer adequação formal ou convite ao aperfeiçoamento, isto é, não sendo admissível o aproveitamento dos actos até então praticados – cf. DL n.º 269/98, de 01-09, art.º 1º; cf. CPC, art.ºs 193.º, 196.º, 278.º-1-e), 576.º-1-2 e 577.º-b); vd. também o Ac. da RC de 20.05.2014, rel. Fonte Ramos, Proc. n.º 30092/13.6YIPRT.C1, www.dgsi.pt/jtrc.

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A presente acção tem o valor de €9.206,36 – cf. DL n.º 269/98, de 01-09, art.º 18º.

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As custas do incidente devem ser suportadas pela autora, com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal – cf. CPC, art.º 527.º-1-2; e RCP, art.º 7.º-4 e Tabela II a ele anexa.

Atento o exposto e em consequência, decide-se:

I - Absolver o réu J... da instância, por verificação de erro na forma do processo.

II – Custas do incidente a cargo da autora, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.

III – Valor da acção: €9.206,36.’.


V

            Deste despacho interpôs recurso a Autora, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:

...


VI

            Não foram apresentadas contra-alegações, tendo o recurso interposto sido admitido em 1ª instância, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, tendo como tal sido aceite nesta Relação, nada obstando ao conhecimento do seu objeto.

            Esse objeto traduz-se na reapreciação do despacho recorrido, supra transcrito, pelo qual foi decidido que ocorre vício de erro de processo na tramitação seguida na presente ação, designadamente por violação do disposto no artº 583º do C. Civil e bem assim do Dec.Lei nº 269/98, de 01/09.

            Apreciando, defende-se no despacho recorrido que ‘... o procedimento de injunção, enquanto meio processual idóneo à prossecução de determinados fins, os quais se mostram normativamente pré-determinados, não constitui o meio processual adequado para proceder a uma notificação da cessão de créditos, como aventado pela autora. De facto, este processo, que assume uma feição especial, aplica-se em (apenas) duas situações: (i) as referidas no artigo 1.º do diploma preambular ao DL n.º 269/98, de 01-09, isto é, o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00; (ii) as emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo DL n.º 62/2013, de 10-05.’.

‘...

Conclui-se, assim, que encontrando-se a notificação de cessão de créditos fora do âmbito de aplicação do regime previsto no DL n.º 269/98, de 01-09, não se mostra possível recorrer a este procedimento especial para esse efeito, devendo proceder-se à aludida notificação, ou extrajudicialmente, ou, seguindo-se a via judicial, por notificação judicial avulsa (cf. CPC, art.º 256.º) ou por via do processo declarativo comum.’.

            Esta tese é defendida por alguma jurisprudência, como se refere no despacho recorrido, mas afigura-se-nos que tal posição é claramente minoritária, predominando o entendimento contrário, entendimento este que resulta do disposto nos artºs 577º, nº 1, e 583º, nº 1, ambos do C. Civil, sobre a transmissão de créditos e de dívidas, de onde resulta que admissibilidade da cessão não depende do consentimento do devedor e que a dita produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente.

            Apenas a título de exemplos passamos a citar parte da jurisprudência que tem este entendimento e que também seguimos, que se pode consultar em www.dgsi.pt/jt...:      

- Ac. Rel. de Coimbra de 6/07/2016, Proc.º nº 467/11.1TBCNT-A.C1, de cujo sumário consta:

i) Na cessão de créditos, a notificação do devedor não é facto constitutivo do direito do cessionário nem condição necessária para assegurar a sua legitimidade activa, sendo mera condição de eficácia;

ii) A eficácia da cessão pode ser conseguida através da citação do devedor para a acção declarativa ou executiva, assim cessando a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor.

- Ac. da Relação de Coimbra de 13/11/2018, Proc.º nº 1703/18.9T8CBR.C1, de que se transcrevem as seguintes passagens:

               ‘Seguimos a jurisprudência já subscrita antes e a do STJ de 10.3.2016, proc. 703/11, também naquele sítio digital, acórdão retirado em revista excecional, por oposição de julgados: passamos a citar:

“Na cessão de créditos o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou parte do seu crédito, nos termos do art. 577º do C. Civil.

“Como se refere no Ac. deste Supremo de 25.05.1999, acessível via www.dgsi.pt, o crédito transferido fica inalterado: apenas se verifica a substituição do credor originário para um novo credor. Cedente e cessionário têm intervenção activa e a terceira pessoa - o devedor - passiva, isto porque não se exige o seu consentimento.”

“A cessão opera entre as partes (cedente e cessionário), independentemente da sua notificação ao devedor.

“No entanto, em relação ao devedor é necessário que a cessão lhe seja notificada, nos termos preceituados do nº1 do art. 583º do C. Civil.

“A razão de ser da exigência do conhecimento da cessão reside como bem nota o Ac. deste Supremo de 6.11.2012, acessível via www.dgsi.pt, “na necessidade da protecção do interesse do devedor pois, que, em princípio, não admite a lei eficácia liberatória da prestação feita ao credor aparente, havendo, enfim, que proteger a boa fé do devedor que confia na aparência de estabilidade subjectiva do contrato, frustrada pela omissão de informação do primitivo credor cedente” .

“Como aí se diz também “o desiderato da lei fundamentalmente que o devedor como terceiro relativamente ao contrato de cessão não seja confrontado como uma situação alterada no sentido do agravamento, por via da transferência do direito de crédito.”

“Também no Ac. deste Supremo de 3.06.2004 acessível via www.dgsi.pt: A lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido.

“O que torna a cessão eficaz relativamente ao devedor é o facto de este a conhecer, podendo esse conhecimento revelar-se de várias formas, entre quais a notificação efectuada por um dos contraentes da cessão.

“Mas tal não significa que o conhecimento não possa chegar ao devedor por outra via, nomeadamente a citação para acção / execução.

“Se a eficácia da cessão está ligada ao conhecimento, não se pode dizer que com a citação para a acção / execução o devedor não passe a conhecer que o crédito foi cedido.

“Como bem nota o Acórdão de 6.11.2012, citando Assunção Cristas em anotação ao Acórdão de 3 de Junho de 2004, in Cadernos de Direito Privado, nº 14, pag. 63 “ mesmo que se conclua que a citação não é o mesmo que a notificação, ainda será necessário sustentar que ela não produz o conhecimento da transmissão por parte do devedor.“

“Também como bem nota o Acórdão que estamos a seguir de perto, se o conhecimento do devedor da cessão é o elemento constitutivo da eficácia da cessão, relativamente a ele (devedor), é indiferente do ponto do vista do efeito jurídico, classificar a citação como notificação ou simples modo de conhecimento” sendo certo como aí se diz que não se vislumbra “como a citação não possa ser considerado um meio idóneo de transmissão ao devedor do pertinente e adequado “ conhecimento”.

“Com o “conhecimento” da transmissão, que se concretiza através da citação para a execução – ficando o cedido ciente da existência da cessão e da impossibilidade de invocar o seu desconhecimento ( art. 583 nº2 ) o direito do cessionário , que até então era inoponível ao devedor cedido, protegido pela ineficácia, passa a gozar da exigibilidade que antes daquele acto a ineficácia relativa condicionava.”

“No que concerne ao argumento do Acórdão fundamento no sentido de que a notificação da cessão de créditos ou a sua aceitação por parte do devedor como um dos elementos essenciais e integrantes da causa de pedir, deve fazer parte do elenco dos factos articulados antes da citação, não colhe porque como bem observa o citado Acórdão: “ Admitir que o cessionário não poderá propor a acção contra o devedor sem o ter notificado previamente gera uma situação algo curiosa, pois também o antigo credor (cedente), no rigor técnico, o não poderá fazer, porquanto já não é credor, a este careceria legitimidade e àquele faltaria um elemento essencial da causa de pedir.“ (Fim da citação.)

Deixamos ainda uns apontamentos finais, tendo por referência os argumentos da posição oposta à nossa:

A legitimação ativa na execução pode decorrer da simples sucessão no direito, conforme o art.54º, nº 1, do Código de Processo Civil (doravante CPC).

Ora, a eficácia da cessão depende apenas do conhecimento do devedor, que pode ser retirado com aquela legitimação no requerimento executivo.

Se a lei prevê (arts.714º e seguintes do CPC) a produção de prova e diligências complementares para tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título, ela também admitirá que a eficácia da cessão se complete com a citação, para se conseguir a certeza necessária de que o credor que se apresenta a propor a execução tem o direito de exigir aquela obrigação ao devedor.

O invocado problema da agressão prévia do património do executado é um risco do processo sumário de execução (e não desta questão) e também se coloca noutros casos em que a oposição, apenas posterior porque a citação também é posterior, vem a revelar a final um vício relevante da execução. ‘.

- Ac. Rel. de Coimbra de 22/11/2016, Proc.º nº 3956/16.8T8CBR.C1, de cujo sumário consta o seguinte:

I – Nos termos do artigo 577º, n.º 1 do CC o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor.

II - Dispõe, ainda, o artigo 582º do CC, no seu n.º1, que “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”.

III - A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite - artigo 583º, n.º 1 do CC.

IV - Por outro lado, e na medida em que a cessão representa uma simples transferência da relação obrigacional pelo lado activo, o devedor cedido pode valer-se, em face do cessionário (novo credor), dos meios direitos de defesa que lhe era lícito opor ao cedente (antigo credor), excepto os que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (cfr. art. 585º do C. Civil).

V – A figura da cessão de créditos que emerge dos art.ºs. 577.º e segs. do Código Civil permite concluir, com absoluta segurança, que a cessão e a correspondente modificação subjectiva operada na relação creditícia se consumam com a outorga do acordo causal (contrato atípico, compra e venda de créditos, factoring, doação, trespasse, etc.), sendo a sua notificação ou a aceitação mera condição de eficácia externa em relação ao devedor.

VI - A partir da notificação da cessão (assim como a partir da sua aceitação ou do conhecimento da sua existência), a titularidade do crédito passa para a esfera do cessionário, pelo que o devedor apenas se desobriga se efectuar a este a prestação.

VII - A legitimidade activa para a ação executiva satisfaz-se com a alegação e prova da existência do acordo de cessão de crédito, independentemente da sua notificação ao devedor.

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- Ac. STJ de 10/03/2016, Proc.º nº 703/11.4TBVRS-A.E1.S1, do qual se transcrevem as seguintes passagens:

‘Na cessão de créditos o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou parte do seu crédito, nos termos do art. 577º do C. Civil.

Como se refere no Ac. deste Supremo de 25.05.1999 acessível via www.dgsi.pt” o crédito transferido fica inalterado: apenas se verifica a substituição do credor originário para um novo credor. Cedente e cessionário têm intervenção activa e a terceira pessoa - o devedor - passiva, isto, porque não se exige o seu consentimento”

A cessão opera entre as partes (cedente e cessionário), independentemente da sua notificação ao devedor.

No entanto, em relação ao devedor é necessário que a cessão lhe seja notificada, nos termos preceituados do nº1 do art. 583º do C. Civil

A razão de ser da exigência do conhecimento da cessão reside como bem nota o Ac. deste Supremo de 6.11.2012, acessível via www.dgsi.pt, “na necessidade da protecção do interesse do devedor pois, que, em princípio, não admite a lei eficácia liberatória da prestação feita ao credor aparente, havendo, enfim que proteger a boa fé do devedor que confia na aparência de estabilidade subjectiva do contrato, frustrada pela omissão de informação do primitivo credor cedente” .

Como aí se diz também “o desiderato da lei fundamentalmente que o devedor como terceiro relativamente ao contrato de cessão, não seja confrontado como uma situação alterada no sentido do agravamento , por via da transferência do direito de crédito”

Também no Ac. deste Supremo de de 3.06.2004 acessível via www.dgsi.pt : A lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido.

O que torna a cessão eficaz relativamente ao devedor é o facto de este a conhecer podendo esse conhecimento revelar-se de várias formas, entre quais a notificação efectuada por um dos contraentes da cessão.

Mas tal não significa que o conhecimento não possa chegar ao devedor por outra via , nomeadamente a citação para acção / execução .

Se a eficácia da cessão está ligada ao conhecimento, não se pode dizer que com a citação para a acção / execução o devedor não passe a conhecer que o crédito foi cedido .

Como bem nota o Acórdão de 6.11. 2012 citando Assunção Cristas em anotação ao Acórdão de 3 de Junho de 2004 in Cadernos de Direito Privado nº 14 pag. 63 “ mesmo que se conclua que a citação não é o mesmo que a notificação , ainda será necessário sustentar que ela não produz o conhecimento da transmissão por parte do devedor “

Também como bem nota o Acórdão que estamos a seguir de perto, se o conhecimento do devedor da cessão é o elemento constitutivo da eficácia da cessão relativamente a ele (devedor), é indiferente do ponto do vista do efeito jurídico, classificar a citação como notificação ou simples modo de conhecimento” sendo certo como aí se diz que não se vislumbra “como a citação não possa ser considerado um meio idóneo de transmissão ao devedor do pertinente e adequado “ conhecimento”.

“Com o “conhecimento” da transmissão, que se concretiza através da citação para a execução – ficando o cedido ciente da existência da cessão e da impossibilidade de invocar o seu desconhecimento ( art. 583 nº2 ) o direito do cessionário , que até então era inoponível ao devedor cedido, protegido pela ineficácia, passa a gozar da exigibilidade que antes daquela acto a ineficácia relativa condicionava”

               O que nos leva a concluir que nada impede que uma dada cessão de créditos possa ser levada ao conhecimento do devedor através da sua interpelação ou notificação em processo especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, como é o caso, pelo que constando do requerimento inicial desta ação que houve um contrato de cessão de créditos entre a C... e a Requerente nos autos em relação ao contrato de abertura de crédito celebrado com o Requerido e devidamente identificado nesse requerimento, e que o Requerido não enjeita, nada permite considerar que não se pode considerar este meio processual como idóneo para se lograr tal comunicação de  cessão de créditos, apenas podendo haver lugar a produção de prova de tal contrato de cessão de créditos, se assim se tornar necessário, face à oposição deduzida.

            O que se nos afigura é que tal argumento não pode ser usado para com ele se configurar um erro processual quanto a essa dita comunicação, nos termos da jurisprudência citada e que seguimos.

            Logo, cumpre afastar, pois, o referido entendimento.


***

            Prosseguindo, resulta do artº 1º do Dec.-Lei nº 269/98, de 01/09, na sua redação dada pelo artº 6º do Dec.-Lei nº 303/2007, de 24/08, que com esse diploma é aprovado o chamado regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00.

            Esse tipo de procedimento está hoje publicado em anexo ao Dec. Lei nº 107/2005, de 01/07,  que também alterou o Dec.–Lei nº 269/98, embora tendo já sofrido de posteriores alterações, designadamente pela Lei nº 14/2006, de 26/04, pelo Dec.-Lei nº 226/2008, de 20/11, e pelo Dec.-Lei nº 34/2008, de 26/12, e do qual resulta que na petição dessa ação declarativa, o autor exporá sucintamente a sua pretensão e os respetivos fundamentos – artº 1º.

O réu é citado para contestar e se o fizer a ação prossegue, sendo as provas oferecidas na audiência – artºs 3º e 4º

            Estas normas são aplicáveis aos requerimentos de injunções – artºs 7º, 10º, 16º e 17º.

            Mas nestes casos sempre cabe ao juiz poder convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais – artº 17º, nº 3.

            Ora, uma vez que a presente causa teve origem em requerimento de injunção, afigura-se que poderá e deverá sempre ter lugar ao citado convite, desde que tal tenha justificação, o que se afigura até ser o caso, para que a Requerente possa claramente identificar a sua causa de pedir, designadamente mencionando as prestações ditas vencidas e não pagas e que segundo alega ascenderão a €4.073,61, com indicação das datas dos seus vencimentos; a clara exposição do montante de juros ditos vencidos; e a explicação cabal para pedir o montante de €3.421,83 a título de cláusula penal, pois se afigura haver aqui um manifesto erro ou lapso, uma vez que 8% de 4.073,61 não são €3.421,83, mas sim €325,89, pelo que não se entende o referido montante reclamado a título de cláusula penal.

            E, com o devido respeito, não se nos afigura que esta ação seja inadequada a ser pedido este tipo de indemnização, desde que resulte espressamente do contrato em causa.

            O que nos leva a concluir pela necessidade de haver um convite à Requerente no sentido de clarificar o seu requerimento, designadamente quanto aos sobreditos pontos, mas não que ocorra erro na forma de processo seguida, pelo que somos levados a concluir pela revogação do despacho recorrido.


VII

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, devendo a ação prosseguir os seus regulares termos, designadamente, se assim também se entender, com o convite à Requerente mencionado supra.

            Custas conforme for decidido a final.

                                               Tribunal da Relação de Coimbra, em 02/04/2019

Relator: Des. Jaime Carlos Ferreira
Adjuntos: Des. Jorge Arcanjo
Des. Isaías Pádua