Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1194/11.5T2AVR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
PREJUÍZO
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 238º, Nº 1, D) DO CIRE
Sumário: I – O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo pressupõe a efectiva verificação de alguma das situações a que alude o art. 238º, nº 1, do CIRE o que, no caso da alínea d), supõe a efectiva constatação e demonstração de que o devedor não se apresentou à insolvência dentro dos prazos que aí são mencionados, que esse facto determinou prejuízo para os credores e que o devedor sabia ou não podia ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

II – O prejuízo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo – e que, não podendo ser presumido, tem que decorrer dos factos demonstrados ou evidenciados nos autos – não é o prejuízo que advém para os credores da situação de incumprimento e da insolvência do devedor, mas sim o prejuízo emergente do atraso na apresentação à insolvência, ou seja, o prejuízo sofrido pelos credores que teria sido evitado caso o devedor se tivesse apresentado à insolvência em tempo oportuno.

III – A afirmação de tal prejuízo pressupõe a verificação de factos ou circunstâncias que permitam concluir que, no caso concreto, o atraso na apresentação à insolvência determinou uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou da diminuição do activo (em virtude de o devedor ter praticado actos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ela se vem apresentar).

IV - O mero vencimento de juros moratórios é insuficiente para integrar o conceito de prejuízo a que alude a norma em questão.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de insolvência em que é Insolvente A..., com domicílio na Rua ... Fermentelos, veio a mesma – na petição inicial, onde também requer a declaração da sua insolvência – requerer a exoneração do passivo restante, alegando não auferir, nesse momento, qualquer remuneração e alegando preencher todos os demais requisitos para o efeito exigidos.

Tendo sido declarada a insolvência – por sentença proferida em 15/07/2011 – foi realizada a assembleia de credores para apreciação do relatório, onde os credores, E...., Sl, D... e Banco C...se pronunciaram pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo, alegando, para o efeito, que o incumprimento perdura há mais de seis meses, originando prejuízos para os credores com o avolumar dos juros e com o dispêndio de custos com advogados para a tentativa de cobrança, além de que a Insolvente não aufere qualquer rendimento e pretende emigrar para o Canadá, o que irá inviabilizar a cessão do rendimento disponível.

A Administradora da Insolvência declarou nada ter a opor ao deferimento do pedido e o Ministério Público pronunciou-se no sentido da sua admissão liminar.

Por decisão proferida em 01/02/2012, foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento no disposto no art. 238º, nº 1, alínea d) do CIRE.

Inconformada com essa decisão, a Insolvente veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1. Nenhum credor alegou, nem provou, como se impunha por força da distribuição do ónus da prova que o facto de entre a data do incumprimento e a data da apresentação à insolvência por parte da ora recorrente terem decorrido mais de seis meses lhes causou prejuízos.

2. Tal alegação também não foi efectuada pela administradora de insolvência pelo que o indeferimento se baseou em facto não alegado e não provado.

3. A decisão de que se recorre considera erradamente que a devedora (a aqui recorrente) é titular de uma empresa e que se presume de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos três meses sobre o incumprimento generalizado das obrigações tributárias ou de contribuições devidas à Segurança Social – artigo 18.º n.º 3 do CIRE.

4. A requerente/recorrente não é titular de nenhuma empresa mas antes sócia e gerente de uma sociedade que detém uma empresa não sendo, ela própria, individualmente titular dessa empresa.

5. Não se lhe poderá aplicar a presunção contida no n.º 3 do artigo 18.º do CIRE, até porque só muito mais tarde o pagamento de tais dívidas, por força da reversão, lhe foi exigido.

6. Não poderia o Mmo Juiz presumir que a recorrente conhecia e se encontrava em situação de insolvência desde Março de 2007, tanto mais que nessa data, não tinha ainda ocorrido a reversão.

7. Não tinha a recorrente obrigação de conhecer a situação de insolvência, muito menos desde 2007, data em que não estava insolvente. É que, apenas quando ocorreu a reversão das dívidas fiscais teve a recorrente consciência de que não conseguiria continuar a cumprir as suas obrigações embora o cumprimento pudesse nem sempre ter sido pontual.

8. Ao arrepio do previsto legalmente, a decisão recorrida presumiu o prejuízo dos credores, não obstante nem tais credores nem a administradora terem alegado e provado a existência de prejuízos.

9. Refere tal decisão que o prejuízo dos credores é de presumir, «desde logo pelo aumento do valor da divida decorrente da acumulação de juros» o que é um contrassenso se pensarmos que no actual regime da insolvência se continuam a vencer juros mesmo após a declaração de insolvência pelo que em nada são os credores prejudicados, «pelo provável diminuição do património» quando nenhum acto de dissipação de património ocorreu ou foi alegado, «e pelos custos associados (provisões legais) ao incumprimento junto do Banco de Portugal» quando nenhum credor alegou ter sofrido ou suportado semelhantes despesas.

10. Nenhuma daquelas situações foi alegada e demonstrada a respectiva verificação pelo que não poderia o Mmo Juiz ter-se socorrido de uma semelhante presunção, tanto mais que, quem se quer valer de uma presunção tem, ao menos, que alegar e provar os factos de que a mesma depende, o que, no caso sub judice claramente não sucedeu.

11. A recorrente não entrou em situação de insolvência em 2007, mas apenas em Julho de 2011. Nenhum facto foi alegado e provado que permita concluir que a situação de insolvência se arrasta desde 2007.

12. Nenhum facto foi alegado e provado que permita concluir que, ainda que tivesse ocorrido atraso na apresentação à insolvência, desse atraso haviam resultado prejuízos para os credores.

13. Tem sido entendimento pacífico da jurisprudência que compete aos credores alegar os concretos prejuízos que o atraso na apresentação à insolvência lhes possa ter causado e provar tais alegações, o que no caso sub Júdice não ocorreu.

14. Os credores não alegaram nem provaram que ocorreu atraso e que tal atraso lhes causou ( e quais) prejuízos pelo que deveria o Mmo Juiz ter admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

15. Também nenhum facto foi alegado ou provado no sentido de permitir ao MMo Juiz a conclusão de que a situação económica da requerente não poderá melhorar.

16. Nem os credores nem a administradora de insolvência fizeram prova de quaisquer prejuízos decorrentes da, eventual (pois que também nada permite concluir que um semelhante atraso teve lugar), apresentação tardia à insolvência (como se lhes impunha por força das regras de distribuição do ónus da prova) e sendo os requisitos da alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º cumulativos, a falta de qualquer um deles – designadamente do prejuízo –é bastante para afastar o indeferimento liminar.

17. Ao decidiu como decidiu o Mmo Juiz a quo fez uma errada interpretação das disposições contidas no n.º 3 do artigo 18.º e na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º ambos do CIRE.

Conclui pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que admita liminarmente o pedido de exoneração do passivo.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar.

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se está ou não verificada a situação enunciada no art. 238º, nº 1, alínea d) do CIRE e se, em função disso, deverá ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo.


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III.

Na decisão recorrida, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

1) O processo de insolvência resultou de apresentação da própria insolvente, mediante petição enviada a juízo a 22/6/2011.

2) Nessa data, a requerente tinha pendente uma execução instaurada contra si em 2010, pelo valor de €375.244,77.

3) A requerente é sócia gerente da empresa “B..., Ldª”.

4) A referida empresa tem dívidas em execução perante a Segurança Social no valor global de €278.990,11, referentes a contribuições devidas desde Dezembro de 2003, tendo a requerente sido notificada para pagamento, por efeito de reversão, em 25/3/2010.

5) A mesma empresa tem dívidas perante as Finanças no montante total de €53.220,33, por impostos vencidos desde Janeiro de 2007, tendo a requerente sido notificada para pagamento, por efeito de reversão, em Julho de 2011.

6) A requerente está em incumprimento perante o D...., SA, sendo a dívida de valor superior a €18.000,00, desde Novembro de 2006.

7) O total das dívidas da requerente, sem contabilizar a indicada em 4), é superior a €420.000,00.

8) Não dispõe actualmente de qualquer rendimento.

9) Não tem condenações criminais.


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IV.

Apreciemos, pois, a questão que constitui o objecto do presente recurso.

Segundo o disposto no art. 235º do CIRE[1]se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.

Conforme se refere no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, o legislador – ao conferir aquela possibilidade ao insolvente – pretendeu conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas dívidas com vista à sua reabilitação económica.

É certo, todavia, que a concessão desse benefício pressupõe, da parte do devedor insolvente, uma conduta recta, cumpridora e de boa fé, quer no período anterior à insolvência (cuja inexistência conduzirá ao indeferimento liminar do pedido por verificação de qualquer uma das situações a que alude o art. 238º), quer no período posterior e, designadamente, nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (por força das obrigações impostas pelo art. 239º e cujo incumprimento conduzirá à recusa da exoneração, nos termos do art. 243º).

Pressupondo o legislador – como se disse – que a exoneração do passivo restante apenas se justificaria relativamente aos devedores que, no período anterior à insolvência, tivessem adoptado uma conduta recta, cumpridora e de boa fé, estabeleceu – no art. 238º – que a verificação de qualquer uma das situações aí mencionadas determinaria o indeferimento liminar do pedido por corresponderem a situações que, na sua perspectiva, evidenciam uma conduta contrária àquela que justificaria esse benefício.

E a questão que se coloca no presente recurso prende-se, precisamente, com a verificação (ou não) de fundamento legal para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo.

Considerou a decisão recorrida que, no caso sub júdice, se verificava a situação a que alude a alínea d) do nº 1 do citado art. 238º, e, com este fundamento, indeferiu liminarmente do pedido.

Resta-nos, pois, saber – e é esse o objecto do presente recurso – se se verifica ou não essa situação.

Dispõe-se na citada alínea d) que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

Como resulta da letra da lei e como tem sido entendido, de modo praticamente uniforme, pela nossa jurisprudência[2], os requisitos ali enunciados são cumulativos, razão pela qual apenas será de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo, ao abrigo da citada norma, se, cumulativamente:

a) o devedor não cumpriu o dever de apresentação à insolvência ou se, não estando obrigado a tal apresentação, não o tiver feito nos seis meses seguintes à verificação da situação insolvência;

b) o atraso na apresentação à insolvência redundou em prejuízo para os credores;

c) o devedor sabia ou não podia ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Resta saber se, no caso sub judice, estão ou não verificados esses requisitos.

No que respeita à apresentação à insolvência, considerou-se na decisão recorrida que a Insolvente (eventualmente pelo facto de ser sócia gerente de uma sociedade comercial), estava vinculada ao dever de se apresentar à insolvência, dentro do prazo de sessenta dias a contar da data do conhecimento da situação da insolvência e que, presumindo-se esse conhecimento – por aplicação do disposto no nº 3 da norma citada – em Março de 2007, deveria ter-se apresentado à insolvência até Maio de 2007.

A Apelante discorda desse entendimento e, ao que nos parece, com razão.

De facto, a decisão recorrida parece ter tratado como idênticas realidades que, na nossa perspectiva, são diferentes, ao considerar, por um lado, que a qualidade de sócio gerente de uma sociedade comercial equivale à titularidade de uma empresa e ao confundir a insolvência do sócio gerente de uma sociedade com a insolvência da própria sociedade.

Com efeito, e ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, a Insolvente não era titular de qualquer empresa (pelo menos tal não resulta dos autos) sendo certo que a qualidade de sócio, gerente ou administrador de uma sociedade comercial não equivale à titularidade de qualquer empresa[3] (pois que o titular da empresa não é o sócio, gerente ou administrador da sociedade, mas sim a própria sociedade, que é pessoa jurídica diversa dos respectivos sócios, gerentes e administradores) e, portanto, não estava sujeita ao dever de apresentação à insolvência, como decorre do disposto no art. 18º, nº 2.

Por outro lado, a decisão recorrida presumiu – por aplicação do disposto no art. 18º, nº 3 – que a Insolvente havia tido conhecimento da sua situação de insolvência pelo menos em Março de 2007, retirando essa conclusão dos factos apurados em 4) e 5). Ora, estes factos reportam-se a dívidas da sociedade da qual a Insolvente era sócia gerente e o incumprimento generalizado dessas obrigações apenas relevaria para efeitos de presumir o conhecimento da situação da insolvência da própria sociedade e não da respectiva sócia gerente, já que são pessoas jurídicas distintas, não podendo ser confundido o passivo e a insolvência da sociedade com o passivo e a insolvência da sócia gerente. A verdade é que, como decorre daquela matéria de facto, tais dívidas eram da sociedade e não da aqui Insolvente, sendo que esta apenas foi notificada para o respectivo pagamento, por efeito de reversão, em 25/03/2010 e Julho de 2011 e, portanto, tais factos nunca permitiriam concluir que a aqui Insolvente teve conhecimento da sua própria insolvência em Março de 2007. 

De qualquer forma e como se referiu, a Insolvente não estava sujeita ao dever de apresentação à insolvência e, não estando obrigada a tal apresentação, resta saber se se apresentou à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, já que, não existindo dever de apresentação à insolvência, é este o prazo que releva para efeitos de verificação da situação enunciada pela alínea d) do nº 1 do citado art. 238 e eventual indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo (desde que se verifiquem também os demais requisitos aí mencionados).

E teremos que concluir que não se apresentou dentro desse prazo.

Como decorre da matéria de facto, a Apelante apresentou-se à insolvência em 22/06/2011, mas, além do incumprimento perante o D... (que se verificava desde Novembro de 2006), a Apelante já tinha pendente contra si um processo de execução referente ao valor de 375.244,77€ e esse processo foi instaurado em 2010 (sendo que, como decorre dos autos, a sua citação para esse processo terá ocorrido em Abril desse ano). Por outro lado, em 25/03/2010, foi notificada para pagar, por efeito de reversão, uma dívida da sociedade à Segurança Social, no valor global de 278.999,11€.

Parece não haver dúvidas – como, aliás, decorre da petição inicial – que foram essas situações que despoletaram a situação de insolvência em que se encontra e, portanto, teremos que concluir que, pelo menos nas datas em que os mesmos ocorreram (Março e Abril de 2010), a Apelante já se encontrava em insolvência.

Impõe-se, assim, concluir que, quando a Apelante se veio apresentar à insolvência (em Junho de 2011), já havia decorrido o prazo de seis meses desde a verificação da insolvência, mostrando-se, assim, preenchido o primeiro requisito que integra a causa de indeferimento liminar a que alude a alínea d) do nº 1 do art. 238º.

Além do requisito, cuja verificação acabamos de demonstrar, a possibilidade de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo pressupõe ainda que o atraso na apresentação à insolvência tenha determinado prejuízo para os credores.

Embora admitindo que “…este prejuízo não se confunde com a simples falta de obtenção de pagamento pontual e o vencimento de juros…”, considerou-se na decisão recorrida que “…o referido prejuízo deve ser presumido, em conjugação com as demais circunstâncias do caso, com a demora excessiva na apresentação à insolvência, desde logo pelo aumento do valor da dívida decorrente da acumulação de juros, pelo provável diminuição do património que daquela decorre e pelos custos associados (provisões legais) ao incumprimento junto do Banco de Portugal, quando estejam em causa instituições bancárias…”.

Mas, salvo o devido respeito, nada autoriza tal presunção.

O que se dispõe na norma em questão (claramente, na nossa perspectiva) é que o pedido apenas será liminarmente indeferido se estiverem verificadas as situações que aí são mencionadas, o que, no caso da alínea d), supõe a efectiva constatação e demonstração de que o devedor não se apresentou à insolvência dentro dos prazos que aí são mencionados, que esse facto determinou prejuízo para os credores e que o devedor sabia ou não podia ignorar sem culpa grave que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

A questão de saber se o mero vencimento de juros moratórios é suficiente para integrar o conceito de prejuízo a que alude a norma em questão não tem sido pacífica na jurisprudência, onde podemos encontrar decisões em ambos os sentidos.

A título de exemplo, citamos o Acórdão da Relação do Porto de 20/04/2010, com o nº convencional JTRP00043876[4], onde se escreve que “Estando em causa dívidas já vencidas que acarretam, «ipso facto», o imediato vencimento de juros (de mora), o atraso do devedor em apresentar-se à insolvência causa, necessariamente, prejuízo aos credores (aos titulares desses créditos), em virtude do avolumar do passivo daí decorrente, independentemente do valor desses juros ser mais ou menor elevado, já que o aludido preceito não exige que o «prejuízo» seja considerável ou relevante (basta-se com o «prejuizo» dos credores, de todos ou de alguns deles)”, podendo ver-se no mesmo sentido o Ac. da mesma Relação de 15/07/2010, com o nº convencional JTRP00042817 e o Ac. da Relação de Guimarães de 30/04/2009, processo 2598/08.6TBGMR-G.G1[5].

Não concordamos, porém, com esse entendimento, tal como se mencionou no Acórdão da Relação do Porto de 10/02/2011, proferido no processo nº 1241/10.8TBOAZ-B.P1[6] (relatado pela aqui relatora e que seguiremos de perto, por estar em causa a mesma a questão).

Com efeito, e tal como se mencionou no citado acórdão, a entender-se desse modo, seria praticamente inútil a exigência legal desse prejuízo para efeitos de verificação da situação que, nos termos da citada alínea d), determina o indeferimento liminar, já que esse prejuízo decorreria sempre da mera circunstância de o devedor não se ter apresentado oportunamente à insolvência e – afigura-se-nos – se fosse essa a intenção do legislador, não teria sentido a necessidade de autonomizar esse prejuízo como requisito autónomo do indeferimento liminar, bastando-lhe exigir o primeiro dos requisitos ali enunciados: o atraso na apresentação à insolvência (do qual decorreria, de forma automática, o referido prejuízo para os credores).

Afigura-se-nos, pois, que, ao exigir que o atraso na apresentação à insolvência tenha causado prejuízo aos credores, o legislador terá pretendido reportar-se a prejuízo que não decorra sempre e de forma quase automática daquele atraso e, portanto, terá pretendido reportar-se a prejuízo diverso daquele que corresponde ao mero vencimento de juros de mora[7].

Parece-nos, pois, que esse prejuízo deverá corresponder a um prejuízo que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido, efectivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso na apresentação à insolvência e que não teria sido produzido se o devedor se tivesse apresentado à insolvência no momento oportuno, devendo, por isso, corresponder a uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou da diminuição do activo (em virtude de o devedor ter praticado actos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ela se vem apresentar).

Só nesses casos se poderá afirmar que, se a insolvência tivesse sido declarado em momento oportuno, os credores teriam mais e melhores hipóteses de obter a satisfação dos seus créditos, porquanto, com um passivo inferior (que não teria sido contraído se a insolvência tivesse sido declarada em momento anterior) e com um património mais vasto (que não teria sido dissipado ou delapidado), os credores então existentes teriam, seguramente, melhores condições para obter a satisfação dos seus direitos, pelo que, nesses casos, o atraso na apresentação à insolvência redundará, em princípio, num prejuízo concreto e efectivo que os credores não sofreriam se a insolvência tivesse sido declarada no momento oportuno.

No caso sub júdice, não existem nos autos quaisquer elementos que nos permitam concluir pela existência do apontado prejuízo.

De facto, o mero vencimento dos juros não é suficiente, como vimos, para concluir pela existência desse prejuízo e nada consta da matéria de facto que permita concluir pela existência de qualquer prejuízo concreto e efectivo emergente do atraso na apresentação à insolvência; não está demonstrado que, entre o momento em que se verificou a situação de insolvência e o momento em que a Insolvente se veio apresentar, tenha ocorrido qualquer desvalorização acentuada dos bens que compunham o seu activo; não existem nos autos quaisquer indícios de que a devedora, depois de ter incorrido em situação de insolvência, tenha contraído novos débitos e não existem quaisquer indícios de que, entretanto, tenha alienado ou dissipado qualquer património que, porventura, tivesse.

E também não colhe o argumento invocado na decisão recorrida, quando afirma que “os prejuízos estão efectivamente verificados, visto que, com as reversões fiscais e da Segurança Social, os demais credores ficaram em situação de acentuada dificuldade na cobrança dos seus créditos, face ao que sucederia se a insolvência tivesse sido requerida tempestivamente, atentos os privilégios de que beneficiam os referidos créditos”, na medida em que, não existindo sequer a certeza de que a Insolvente já estivesse em situação de insolvência antes dessa reversão, a verdade é que ainda que se tivesse apresentado à insolvência dentro do prazo acima assinalado, não evitaria essa reversão (que teve origem em factos anteriores) e, portanto, não evitaria que esses créditos viessem a ser reclamados no processo de insolvência.

E importa notar que os credores que pugnaram pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo nem sequer alegaram ou invocaram a existência de qualquer prejuízo concreto emergente do atraso na apresentação à insolvência.

O credor, E..., Sl, alegou apenas que o incumprimento do seu crédito perdura há mais de seis meses, tendo instaurado execução contra a insolvente em 19 de Abril de 2010. Mas a verdade é que esse prejuízo não decorre da tardia apresentação à insolvência, pois que, de igual modo se verificaria se a Insolvente se tivesse apresentado à insolvência dentro do prazo acima assinalado.

O credor D... apenas invoca o avolumar de juros (que já vimos não corresponder ao prejuízo que é relevante para os efeitos que estamos a analisar) e o dispêndio de custos com advogados para a tentativa de cobrança, sendo certo, porém, que estes prejuízos decorrem do incumprimento e da situação de insolvência e não do atraso na respectiva apresentação.

E o credor Banco C.....apenas alega que a Insolvente não aufere qualquer remuneração e pretende emigrar para o Canadá, factos que também não assumem qualquer relevância para afirmar a existência de um prejuízo decorrente do atraso na apresentação à insolvência.

De facto, o prejuízo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, não é o prejuízo que advém para os credores da situação de incumprimento e da insolvência do devedor; o prejuízo que releva, para esse efeito, é apenas o prejuízo emergente do atraso na apresentação à insolvência, ou seja, os prejuízos sofridos pelos credores que teriam sido evitados caso o devedor se tivesse apresentado à insolvência em tempo oportuno.

Tal prejuízo não se presume e, portanto, a afirmação da sua existência tem que decorrer de factos – demonstrados ou evidenciados nos autos – que permitam concluir que o atraso na apresentação à insolvência determinou para um ou mais credores um concreto prejuízo ou desvantagem que acresce àquele que já decorria do incumprimento e da insolvência e que não teria ocorrido se o devedor se tivesse apresentado à insolvência oportunamente.

E a verdade é que, além de os autos não fornecerem quaisquer elementos que permitam concluir que os credores tenham sofrido qualquer prejuízo acrescido pelo facto de a devedora se ter apresentado à insolvência fora do prazo a que alude a alínea d) do nº 1 do citado art. 238º, os credores nem sequer alegaram quaisquer factos que pudessem consubstanciar um prejuízo de tal natureza.

Assim, e porque, como vimos, o indeferimento liminar do pedido apenas é possível caso se verifiquem, cumulativamente, todos os requisitos enunciados na citada norma, a impossibilidade de concluir pela efectiva verificação do aludido prejuízo para os credores é suficiente para que não possa ser liminarmente indeferido o pedido, porquanto sem a existência desse prejuízo não se configura a situação prevista na citada alínea d).

Daí que se imponha a procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo pressupõe a efectiva verificação de alguma das situações a que alude o art. 238º, nº 1, do CIRE o que, no caso da alínea d), supõe a efectiva constatação e demonstração de que o devedor não se apresentou à insolvência dentro dos prazos que aí são mencionados, que esse facto determinou prejuízo para os credores e que o devedor sabia ou não podia ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

II – O prejuízo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo – e que, não podendo ser presumido, tem que decorrer dos factos demonstrados ou evidenciados nos autos – não é o prejuízo que advém para os credores da situação de incumprimento e da insolvência do devedor, mas sim o prejuízo emergente do atraso na apresentação à insolvência, ou seja, o prejuízo sofrido pelos credores que teria sido evitado caso o devedor se tivesse apresentado à insolvência em tempo oportuno.

III – A afirmação de tal prejuízo pressupõe a verificação de factos ou circunstâncias que permitam concluir que, no caso concreto, o atraso na apresentação à insolvência determinou uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou da diminuição do activo (em virtude de o devedor ter praticado actos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ela se vem apresentar).

IV - O mero vencimento de juros moratórios é insuficiente para integrar o conceito de prejuízo a que alude a norma em questão.


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V.

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, revogando-se a decisão recorrida, determina-se o prosseguimento do procedimento para exoneração do passivo, devendo, para o efeito, ser proferido o despacho a que alude o art. 239º do CIRE.

Custas a cargo da massa insolvente.

Notifique.

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Adjuntos: Dr.ª Maria Domingas Simões

                   Dr. Nunes Ribeiro


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr., entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 25/03/2010, 06/10/2009, 01/10/2009 e 20/11/2008, com os nºs convencionais JTRP00043744, JTRP00043002, JTRP00042985 e JTRP00041972, respectivamente, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 24/11/2009, processo nº 44/09.7TBPNI-C.L1.1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, os Acórdãos da Relação do Porto de 20/04/2010 e 06/10/2009, com os nºs convencionais JTRP00043876 e JTRP00043002, em http://www.dgsi.pt.
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Também disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[6] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 19/05/2010 e 11/01/2010, com os nºs convencionais JTRP00043920 e JTRP00043328, respectivamente, bem como os Acórdãos da Relação de Coimbra de 11/07/2012 e 20/06/2012, proferidos nos processos nºs 1058/11.2TBCNT-C.C1 e 1933/11.4TBACB-D.C1, respectivamente, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.