Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1622/10.7TBACB-H.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
DENÚNCIA
FORMA
Data do Acordão: 11/08/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - INST. CENTRAL - 2ª SEC.COMÉRCIO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.108 CIRE, 220, 262, 1110 CC, LEI Nº 6/2006 DE 27/2
Sumário: 1.De acordo com o n.º 1 do art. 108.º do CIRE, apesar da declaração de insolvência, não se suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, embora o administrador daquela possa denunciá-lo.

2.A denúncia do contrato rege-se pela lei vigente ao tempo dela.

3.No caso, estava em vigor a Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano.

4.A denúncia devia ser realizada mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção (artigo 9.º do NRAU), o que não aconteceu no caso.

5.Sendo inválida a denúncia e porque a coisa locada só foi restituída em certa data, aceite pelo locador, as rendas são devidas até então.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A (…) e outros interpuseram ação contra a massa insolvente de P (..) Lda, por apenso ao processo n.º 1622/10.7TBACB, no qual, por sentença de 01.03.2011, foi declarada a insolvência daquela sociedade, pedindo o pagamento de € 30.000,00 e juros contados da citação, relativos a rendas não pagas.

Fizeram depois pedido subsidiário nos mesmos termos, agora a título de indemnização pelo atraso na entrega do locado, por referência à data desta entrega, no caso de se entender o contrato findo em data anterior.

Para tanto, os Autores alegam, em síntese:

O não pagamento de rendas vencidas, desde março de 2011 a fevereiro de 2012, suportadas no contrato de arrendamento estabelecido entre os Autores e a Insolvente e não denunciado antes;

Só em fevereiro de 2012 a Ré procedeu à entrega das chaves e deu a posse dos imóveis aos Autores livres de pessoas e bens.

Contestou a Ré, em síntese:

O contrato encontra-se resolvido desde Maio de 2011; o Sr. Administrador da Insolvência transmitiu aos Autores que o contrato não iria continuar, atenta a declaração de insolvência; sabiam os Autores que apenas seriam pagas as rendas de Abril e Maio de 2011;

Conforme a lista definitiva de créditos, foi reconhecido pelo Sr. Administrador da Insolvência aos Autores o crédito resultante das rendas vencidas de abril e maio de 2011; da qual os Autores nada reclamaram.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a condenar a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 30.000,00, acrescida dos respectivos juros legais de mora, desde a citação até efetivo e integral pagamento.


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Inconformada, a Ré recorreu e apresenta as seguintes conclusões (por nós sintetizadas):

É válida a resolução tácita do contrato, não estando ela sujeita a forma especial.

A resolução opera por simples declaração à outra parte.

Não existe qualquer falta de legitimidade do advogado dos Autores para receber

tal comunicação, uma vez que tem procuração junta aos autos principais do processo de insolvência, com poderes para representar os Autores.

Sempre se poderá considerar como tendo sido aceite tacitamente pelos Autores a gestão praticada pelo seu advogado, uma vez que nada referiram a esse propósito.

Os Autores conheciam a lista definitiva de créditos, do artigo 129º do CIRE, que não impugnaram e, por isso, aceitaram que a Ré lhes deve tão só os € 2.000,00 reconhecidos.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            As questões a decidir são as seguintes:

            A forma da denúncia do contrato; se existe denúncia válida;

            Os poderes do advogado dos Autores para receber a denúncia;

            A aceitação do valor do crédito reconhecido, expressão também do reconhecimento pelos Autores de que não têm outro crédito sobre a Ré.


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            Factos a considerar (não impugnados no recurso):

1. Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano composto por três barracões amplos para indústria, sitos em (....) , freguesia da (....) , concelho da Marinha Grande, inscritos na matriz predial urbana da freguesia da (....) sob os n.ºs 502 e 526, actualmente artigo 755.

2. No dia 1 de julho de 2005, os Autores deram e a sociedade “P (…)Lda.” tomou de arrendamento, mediante contrato escrito, dois dos quatro imóveis descritos.

3. O contrato de arrendamento foi celebrado pelo período de um ano, com início em 1 de julho de 2005, sendo automaticamente renovável por iguais períodos de tempo.

4. Pelo arrendamento foi convencionada uma renda anual de € 36.000,00, pagável em duodécimos de € 3.000,00 e na proporção de 1/3 para cada um dos primeiros outorgantes varões, até ao dia 8 do mês anterior àquele a que dissesse respeito.

5. Por sentença proferida a 1 de março de 2011, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de “P (…), Lda.”.

6. Após a declaração da insolvência os imóveis continuaram a estar ocupados com os bens que integravam a massa insolvente.

7. Em fevereiro de 2012 foram entregues aos Autores as chaves dos imóveis, que na ocasião se encontravam devolutos de pessoas e bens.

8. O Sr. Administrador da Insolvência, após a aceitação do processo e na sequência da realização da assembleia de credores de apreciação do relatório, transmitiu verbalmente, ao mandatário dos Autores, que o contrato de arrendamento não iria continuar a produzir efeitos, face à declaração da insolvência e subsequente encerramento da sociedade arrendatária.

9. Em 19.06.2012 o Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos a relação de créditos elaborada nos termos do disposto no artigo 129.º do CIRE.

10. Na referida lista, o Sr. Administrador da Insolvência faz referência à existência de uma dívida da massa insolvente, a favor dos AA., no valor de €2.000,00, referente a rendas vencidas em abril e maio de 2011.

11. A Ré, desde a declaração de insolvência, procedeu ao pagamento de duas rendas.


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As partes não questionam a existência do contrato de arrendamento, celebrado entre elas, em 1 de julho de 2005 e ainda em vigor à data da declaração de insolvência da arrendatária (março de 2011).

Não questionam que o arrendamento foi feito pelo prazo de 1 ano, renovável por iguais períodos de tempo, caso não fosse denunciado por nenhuma das partes e que o locado se destinou ao exercício da atividade comercial da arrendatária.

As partes também não discutem a aplicação do artigo 108.º, n.º1, do CIRE, que preceitua: “a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior”.

A Recorrente começa por discordar quanto à forma da denúncia, embora lhe chame resolução.

Sendo a resolução uma forma de extinção do contrato baseada em incumprimento da outra parte (art.1083º do Código Civil), não se trata aqui de resolução porque não há invocação de qualquer incumprimento.

Já a denúncia é uma declaração unilateral para pôr fim ao contrato, por razões diferentes do incumprimento e baseada na lei, como é o caso do referido art.108º do CIRE.

Em rigor, estamos perante uma denúncia.

O CIRE é omisso quanto à forma que deve revestir tal denúncia.

Esta reger-se-á pela lei vigente ao tempo em que é feita.

Em 2011 estava em vigor a Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano.

Conforme o seu artigo 59º (Aplicação no tempo), o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.

No caso, a relação contratual subsistia na data em que o NRAU entrou em vigor e, relativamente à forma da denúncia, não se vislumbra nesta lei qualquer norma transitória (arts. 26º e seguintes).

Aplicando-se o NRAU, como norma geral (Comunicações), encontramos o artigo 9.º (Forma da comunicação), que nos diz: “Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes, relativas à cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras, são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção”.

Devemos ainda considerar o artigo 1110º do Código Civil, ao estabelecer que as regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação.

No caso, não há cláusula contratual a este respeito e, como vimos, o CIRE nada estipula quanto à forma daquela denúncia.

Sendo assim, vale aquela norma geral do art.9º do NRAU.

                A declaração do Sr. Administrador foi apenas verbal.

“A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.” (Art. 220º do Código Civil.)

Sendo assim, aquela comunicação, assente sob o nº 5 dos factos provados, não pode valer como denúncia.

Além da inobservância da forma legal, a declaração padece de equivocidade quanto à data dos seus efeitos, considerando que os locados continuaram ocupados e, conforme a motivação dos factos na sentença, “a massa insolvente assumiria o pagamento da renda até à venda e entrega dos bens, o que no limite seria até 31 de Julho de 2011”.

E, de facto, esta condicionante não se verificou sequer (cfr. ainda a motivação dos factos na sentença recorrida).

            Por outro lado, a referida comunicação verbal foi feita ao advogado dos Autores e não aos próprios Autores.

Conforme a invocação da Ré, os Autores tinham junto procuração a favor de advogado no processo de insolvência.

A procuração é o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos (art.262º, nº1, do Código Civil).

Na falta de outra prova (e também de alegação), não podemos afirmar que a procuração em questão atribui poderes ao advogado para as questões do arrendamento e concretamente para receber a denúncia do mesmo.

Esta alegação e prova incumbia à Ré nos termos do disposto no artigo 342º, nº 2, do Código Civil.

O mesmo vale para a alegada (mas não demonstrada) ratificação pelos Autores da gestão feita pelo referido advogado.

A ratificação é um ato expresso e formal (art. 268º, nº 2, do Código Civil).

No caso, não encontramos tal ato.

Consideremos também, para além da invalidade da pretensa denúncia, a demonstração de que os locados continuaram ocupados com os bens que integravam a massa insolvente; apenas em fevereiro de 2012 eles foram entregues aos Autores.

Por força do disposto no artigo 1045º, nº 1, do Código Civil (“Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado”…), mesmo que tivesse havido denúncia, aquela ocupação legitimava a pretensão dos Autores ao valor das referidas rendas e que acautelaram a título de pedido subsidiário.

Aquela obrigação do locatário decorre da lei e da alegação do facto essencial na petição (a data da restituição da coisa locada). Não há alteração nos factos e o pedido subsidiário é mera decorrência do potencial entendimento sobre a denúncia.  Assim, o pedido subsidiário está legitimado e poderia sempre ser considerado.

Na falta da denúncia, conforme é nosso entendimento, aquela entrega e o correspondente recebimento dos locados devem ser entendidos como expressão de uma revogação real do arrendamento, nos termos do artigo 1082º do Código Civil (ver acórdãos do STJ e da RP, de 13.03.1997 e de 22.04.2013, nos proc. 97A858 e 4217/09, respetivamente, disponíveis em www.dgsi.pt).

Tudo considerando, o presente contrato de arrendamento só cessou efeitos em fevereiro de 2012, pelo que são devidas as rendas reclamadas.

Por fim, breves palavras sobre a invocada lista definitiva de créditos, do artigo 129º do CIRE, que os Autores não impugnaram.

Não nos parece que ela tenha relevo infirmatório da análise feita até aqui.

Em primeiro lugar, esta lista destina-se a incluir e/ou a excluir os créditos sobre a insolvência e não os créditos sobre a massa insolvente. As rendas aqui em discussão são uma dívida da massa insolvente.

Se virmos a sentença de verificação e graduação de créditos, nela apenas se diz que “eventuais dívidas da massa insolvente saem precípuas”…

Em segundo lugar, a não impugnação daquele crédito, naquela lista, não significa que se reconheça que não se tem direito às rendas posteriores.

Em terceiro lugar, considerou-se não provado que os Autores sabiam que apenas iriam ser pagas como dívidas da massa, as rendas de Abril e Maio de 2011.

Pelo exposto, não merece censura a decisão recorrida.


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Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.

Coimbra, 2016-11-08

Fernando Monteiro ( Relator )

António Carvalho Martins

Carlos Moreira