Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2933/12.2TBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO URBANO
DENÚNCIA PELO SENHORIO
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
ARTICULADO SUPERVENIENTE.
Data do Acordão: 04/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – CALDAS DA RAINHA – INT. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 264º E 265º NCPC; 28º, N.º 3, AL. B) DO NRAU.
Sumário: I - Pela via do articulado superveniente é permitido ao autor proceder à alteração ou ampliação da causa de pedir fora do condicionalismo dos artigos 264.º e 265.º CPC;

II - Um aumento do capital social que, por si só, determine a alteração da titularidade das posições sociais em mais de 50% integra a previsão da alínea b) do n.º 6 do art.º 26.º do NRAU (actual al. b) do n.º 3 do art.º 28 do mesmo diploma, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto), por interpretação extensiva da norma, podendo o senhorio denunciar o contrato mediante o cumprimento do pré-aviso ali previsto;

III - No caso de ocorrer transmissão inter vivos de posição ou posições sociais após aumento de capital, este não deverá ser considerado no apuramento da percentagem que as posições transmitidas representavam no capital social.

Decisão Texto Integral:


I. Relatório

A..., casado, residente na Rua ..., M..., solteira, maior, residente na Rua ..., e J..., casado, residente na Rua ..., instauraram contra R... & C.ª Lda., com sede na Rua ..., acção declarativa, pedindo a final:

- fosse reconhecia a cessação do contrato de arrendamento tendo por objecto o imóvel que identificaram, por denúncia dos senhorios efectuada nos termos da al. c) do art.º 1101.º do CC, aplicável ex vi do disposto no art.º 26.º do NRAU, na sua redacção original, e, consequentemente,

- fosse a ré condenada a despejar e a entregar aos Autores de imediato, livre e devoluto, o mesmo imóvel, e ainda a indemnizá-los à razão de €500,00 por cada mês de ocupação indevida desde o dia 1 de Novembro de 2012 e até à entrega do imóvel, sendo devida a este título a quantia já liquidada de €1 000,00.

Em fundamento alegaram, em síntese, que são os donos do prédio urbano sito na Rua ..., o qual foi objecto de contrato de arrendamento para comércio celebrado verbalmente entre os antepassados dos autores e a ré cerca dos anos de 1964/1965.

Ocorre, porém, que a ré, por deliberação de 17 de Abril de 2007, veio a aumentar o seu capital social em €15.000,00, aumento integralmente subscrito por um novo sócio, no caso a sociedade “M..., Lda” que, em consequência de tal subscrição, passou a ser a sócia maioritária, tendo o seu gerente sido igualmente nomeado gerente da locatária. A descrita situação, apesar de não assumir a forma de uma transmissão de quotas, implicou contudo uma radical alteração da estrutura societária, dominada pela nova sócio, constituindo fundamento de denúncia do contrato de arrendamento à luz do disposto na al. b) do n.º 6 do art.º 26.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, direito potestativo que os AA. exerceram, observando os requisitos previstos na lei.

Não obstante a denúncia e subsequente confirmação efectuadas pelos AA., a Ré não procedeu à entrega do imóvel, ocupação ilícita que vem causando os prejuízos decorrentes da privação do locado, o qual produziria um rendimento não inferior a €500,00 mensais, por corresponder ao seu valor locativo.

Citada a ré, apresentou a contestação que consta de fls. 61 a 64 dos autos, peça na qual defendeu que a entrada de um novo sócio assentou na necessidade que se fazia sentir de se viabilizar financeiramente, tal como ficou a constar da acta da AG levada a cabo para o efeito, situação que não integra a previsão legal. E por assim entender, não aceitou a denúncia que lhe foi comunicada, tal como de imediato deu a conhecer aos AA mediante carta então enviada, de que é expressão o facto de ter continuado a pagar as rendas, o que ocorre até ao presente.

Reputando em todo o caso de excessivo o montante reclamado a título de indemnização, concluiu pela total improcedência da acção.

Os AA responderam, impugnando que após a data da cessação do contrato tenham recebido da ré qualquer quantia a título de pagamento de rendas, sendo certo que não a podem impedir de proceder ao envio de vales postais, conforme vem acontecendo.

Teve lugar a audiência prévia e nela, frustrada a tentativa de conciliação, foi determinado o prosseguimento dos autos com prolação de despacho saneador, fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, peças não reclamadas.

Realizou-se a audiência de julgamento, no âmbito da qual teve lugar a diligência de inspecção ao local, tendo-se a Mm.ª juíza feito acompanhar de um Sr. Eng.º Técnico Civil, que elaborou o relatório que consta de fls. 133 a 142.

Vieram entretanto os AA, em articulado superveniente, alegar ter tomado conhecimento na audiência que as quotas antes detidas pelos primitivos sócios haviam sido cedidas ao gerente da ré, J..., cessão de quotas consumada em 6 de Setembro de 2007, embora apenas levadas a registo por meio de depósito efectuado no ano de 2012, daqui resultando que à data em que os AA denunciaram o contrato, por força da transmissão das quotas já então existente mas só agora conhecida, a totalidade do capital social da locatária havia sido transmitido, o que constitui fundamento da denúncia do contrato, ainda que se considere a interpretação mais restritiva do preceito defendida pela Ré.

Mais sublinhou que com a sua descrita conduta o gerente da ré, que era simultaneamente o cessionário das quotas, ao não proceder ao registo da transmissão, impediu que ela fosse conhecida de terceiros, incluindo os AA., durante mais de cinco anos, ao que acresce o facto da ré, aquando da sua demanda para a acção, ter continuado a ocultar o facto, defendendo-se como se a composição do capital social fosse aquela que os AA., em erro, haviam indicado na petição.

Tal conduta da ré, por violadora dos deveres de colaboração e verdade que lhe são legalmente impostos, configura, no entender dos demandantes, litigância de má-fé, impondo-se a condenação daquela em multa e indemnização que cubra todas as despesas e encargos em que estes incorreram, incluindo os honorários ao mandatário que os representa, em montante a apurar.

Respondeu a ré, negando que a transmissão das quotas tenha ocorrido em Setembro de 2007, data em que os antigos sócios entenderam por bem ficar de posse de um contrato de cessão, destinado apenas a prevenir que, dada a sua posição minoritária, em qualquer altura poderiam transmitir as quotas sem que para tal fosse necessária a autorização da nova sócia sociedade. Tal contrato, todavia, veio a produzir os seus efeitos apenas em Outubro de 2012, donde não assistir razão aos AA., sendo inverdadeiros os factos alegados em sede de articulado superveniente, não se justificando, consequentemente, qualquer condenação por litigância de má-fé.

Encerrada a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida douta sentença que, na parcial procedência da acção:

“a) julgou válida e eficaz a denúncia do contrato de arrendamento do prédio urbano sito na Rua ... com efeitos a partir do dia 1 de Novembro de 2012 inclusive;

b) condenou a ré a despejar e a entregar aos Autores o arrendado livre de pessoas e bens;

c) condenou a Ré a pagar aos Autores a quantia de 410€ mensais desde o dia 1 de Novembro de 2012 até à efectiva entrega do locado”.

Inconformada, recorreu a ré e, tendo desenvolvido em sede das alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, reproduziu-as a final de forma escusada nas conclusões, de que se destacam as seguintes:

...

Com tais fundamentos, pretende a revogação da sentença apelada e sua substituição por acórdão que julgue a acção inteiramente improcedente absolvendo a apelante dos pedidos formulados.

Contra alegaram de forma esclarecida os apelados e, sustentando a manutenção do julgado, concluíram como segue:

...

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, temos como única questão sujeita à apreciação deste Tribunal determinar se os AA, tal como foi reconhecido, denunciaram validamente o contrato de arrendamento celerado com a ré.

II. Fundamentação

De facto

Não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, é a seguinte a factualidade a atender (aqui se tendo incluído outros factos tidos por pertinentes e que, por se encontrarem assentes nos autos, deverão ser considerados, como impõe o n.º 4 do art.º 607.º do CPC, “ex vi” do disposto no n.º 2 do art.º 663.º, sendo ambos os preceitos do CPC):

1. Os Autores são proprietários do prédio urbano sito na Rua...

2. Em data que não foi possível apurar, mas cerca dos anos de 1963-1964, foi o prédio supra identificado objecto de arrendamento para comércio celebrado entre os antepassados dos Autores na qualidade de Senhorios e a Ré na qualidade de arrendatária.

3. O contrato de arrendamento referido em 2. foi celebrado verbalmente.

4. À data da entrada em vigor da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (28/6/2006) a Ré detinha um capital social de 7.481,96€, distribuído por três quotas de que eram titulares:

a) A..., com uma quota no valor de 3.7440,98€;

b) R... com uma quota no valor de 1.870,49€

c) M... com uma quota no valor de 1.870,49€

5. Àquela data, eram gerentes da Ré os sócios A... e R...

6. Por deliberação de 17 de Abril de 2007, a Ré aumentou o seu capital social em 15.000,00€, passando, assim, o capital social da Ré para € 22.481,96.

7. O aumento foi inteiramente subscrito por um novo sócio, a sociedade “M..., Lda.”, que havia sido constituída no dia 12 de Abril de 2007.

8. Na mesma data do aumento do capital social da Ré os até então gerentes, A... e R... renunciaram a essa gerência, tendo sido nomeado gerente da Ré o gerente da nova sócia, o Sr. J...

9. Os Autores remeteram à Ré a carta datada de 15 de Outubro de 2007 cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 46, com o seguinte conteúdo:

“Exmos. Senhores

Na qualidade de Senhorios do prédio sito na Rua ..., de que essa sociedade é Inquilina, vimos pela presente comunicar a V. Exa. que denunciamos o contrato de arrendamento em vigor, celebrado antes da entrada em vigor do RAU e referente ao prédio acima identificado, denúncia que fazemos nos termos e ao abrigo do disposto na alínea c) do art.º 1101º do Código Civil.

A presente denúncia fundamenta-se na alteração da titularidade do capital social dessa sociedade em mais de 50%, face à situação existente aquando da entrada em vigor da Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro (27 de Junho de 2006), tudo de acordo com o disposto na alínea b) do nº 6 do art.º 26º da mencionada Lei.

Nestes termos, e porque a denúncia ora efectuada deve sê-lo com a antecedência mínima de 5 anos, mais comunicamos que a consideraremos efectiva no dia 31 de Outubro de 2012 (último dia de vigência do arrendamento em causa), data em que o arrendado deverá ser-nos entregue livre e devoluto de pessoas e bens.

Com os melhores cumprimentos, subscrevemo-nos, atentamente (…)”

10. A ré respondeu por carta cuja cópia consta de fls. 74 na qual, para além do mais que dela consta e se dá por reproduzido, informou que “(…) pese embora o conteúdo jurídico que a dita [carta dos AA] contém, somos de entender, salvo melhor opinião, que o mesmo enferma de premissas erradas e, como tal, não conduzirá ao desiderato que V.ªs Ex.ªs legitimamente pretendem.

Naturalmente não será nossa intenção nesta missiva abrir um debate jurídico que, de qualquer forma, conduziria a pouco, pois existem as instâncias próprias para o efeito, do que resulta claramente a nossa não aceitação quanto ao que V.ªs Ex.ªs propõem e, assim sendo, não iremos proceder à entrega do locado na data por V. Ex.ªs apontada”

11. Os Autores remeteram à Ré a carta datada de 16 de Agosto de 2011, recebida no dia 17 do mesmo mês, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 48, com o seguinte teor:

 “Exmos. Senhores

Na qualidade de Senhorios do prédio sito na Rua ..., de que essa sociedade é Inquilina, vimos pela presente confirmar ante V.Exas., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1104º do Código Civil, a denúncia do contrato de arrendamento em vigor, celebrado antes da entrada em vigor do RAU e referente ao prédio acima identificado, denúncia que foi comunicada a V. Exas. por meio da carta registada com aviso de recepção que vos foi enviada em 15 de Outubro de 2007 e por vós recebida – conforme AR assinado que os serviços postais nos devolveram – em 18 de Outubro de 2007 (em cópia como anexos I e II à presente).

Uma vez que a denúncia ora confirmada se tornará efectiva no dia 31 de Outubro de 2012 (último dia de vigência do arrendamento em causa), mais recordamos que a entrega do locado, livre e devoluto de pessoas e bens, deverá ser efectuada nessa mesma data, acto para o qual nos deslocaremos ao prédio, em hora que oportunamente acertaremos com V. Exas.

Caso por qualquer motivo pretendam fazer entrega do locado em data anterior à data-limite supra identificada, muito agradecemos que nos contactem pessoalmente para o efeito.

Com os melhores cumprimentos, subscrevemo-nos, atentamente,

12. A Ré tem remetido aos Autores por correio vales postais, cujo valor somado corresponde ao da renda mensal que era devida pelo arrendamento a qual, tendo por referência o mês de Outubro de 2012, se encontrava fixada no valor de €189,00 mensais.

13. A Ré até à data não procedeu à entrega do imóvel aos Autores.

14. O valor locatício do arrendado no seu estado actual de conservação é de 410€/mês.

15. Pelo Depósito nº ... / 2012-10-11 mostra-se registada a cessão duma quota do valor nominal de €3.740,98 pertencente a A... a favor de J...

16. Pelo Depósito nº ... / 2012-10-11 mostra-se registada a cessão duma quota do valor nominal de €1.870,49 pertencente a R... a favor de J...

17. Pelo Depósito nº ... / 2012-10-11 mostra-se registada a cessão duma quota do valor nominal de €1.870,49 pertencente a M... a favor de J...

18. Consta dos documentos anexos à certidão do registo comercial que as cessões de quotas foram celebradas em 6 de Setembro de 2007.

19. Os Autores solicitaram uma certidão de registo comercial da Ré em 25 de Setembro de 2012, a qual se encontra junta aos autos a fls. 36 a 41 e que se dá por integralmente reproduzida.

20. Os Autores solicitaram uma certidão de registo comercial da Ré em 27 de Maio de 2015 a qual se encontra junta aos autos a fls. 147 verso a 151 e que se dá por integralmente reproduzida.

Motivação

Considerou-se, no aditamento efectuado ao ponto 2. (data da celebração do contrato) que, apesar dos RR terem impugnado o alegado no art.º 2.º, do doc. de fls. 13 dos autos, não impugnado, resulta que em 1966 foi pelos anteriores donos do locado fiscalmente participado o recebimento das rendas; identicamente, na declaração fiscal que consta de fls. 25, doc. igualmente não impugnado, foi pelo senhorio participada a celebração de contrato verbal em 1 de Janeiro de 1963, aí se identificando como arrendatária a ora ré, donde poder dar-se como assente quanto nesse sentido foi alegado, designadamente que em 64/65 já se encontrava em vigor o contrato de arrendamento em causa nos presentes autos.

O valor da renda, tendo por referência o mês de Outubro de 2012, data em que, na tese dos AA, o contrato se extinguiu, veio a ser por estes posteriormente alegado e aceite sem oposição pela ré, assim se tendo fixado por acordo das partes (cf. acta de fls. 129 dos autos).

Factos não provados

- os Autores nunca aceitaram receber ou fazer suas as quantias referidas no ponto 12. dos factos provados;

- aquando da negociação para a entrada de um novo sócio que viesse colmatar as dificuldades financeiras que a Ré atravessava, os anteriores sócios, como medida de segurança no caso de as relações entre todos não virem a ser as melhores, entenderam ficar na posse de um contrato de cessão de quotas, o qual permitisse em qualquer momento transferir a propriedade das quotas, sem que para tal fosse necessário o consentimento da sociedade ou dar a preferência;

- o contrato de cessão de quotas serviu apenas como medida de segurança aos anteriores proprietários.

De Direito

Do direito de denúncia 

Conforme se deixou enunciado, cabe decidir, em face do acervo factual agora estabilizado, se aos AA assistia o direito de denúncia que exercitaram e por esta via pretendem ver confirmado.

Não está em causa que entre os AA e a Ré vigorava contrato de arrendamento para comércio, atenta a destinação do locado. Atendendo à data da sua celebração, no início da década de 60, o contrato em causa foi celebrado sob a égide da Lei n.º 2030, de 22/6/1948, assumindo natureza vinculística, sendo seu traço essencial a renovação automática, sem que o senhorio tivesse o direito de o denunciar, características que o CC 1966 manteve.

Só décadas mais tarde, primeiro o DL 321-B/90, de 15 de Outubro, dispondo para os arrendamentos habitacionais e, posteriormente, o DL 257/95, de 30 de Setembro, contendo o regime aplicável aos arrendamentos urbanos para o exercício de comércio, indústria profissões liberais e outros fins lícitos não habitacionais, vieram permitir a celebração de contratos de duração determinada, deixando contudo intocados os anteriormente celebrados, os quais mantiveram todas as características do vinculismo.

Rompendo com este estado de coisas, a Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), veio consagrar a faculdade do senhorio denunciar “ad nutum” o contrato de duração indeterminada, “mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação”. Deste modo, passou a ser permitido ao senhorio pôr termo ao contrato a todo o tempo e sem necessidade de invocação de qualquer motivo, cumprindo embora um prazo relativamente longo de pré-aviso.

Nos termos do art.º 59.º, n.º 1, o novo regime passou a aplicar-se imediatamente aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor e também às relações contratuais anteriormente constituídas que subsistissem àquela data, com ressalva porém das regras transitórias. E para o que aqui releva, logo o art.º 26.º, n.º 4 al. c) do NRAU, em conjugação com o art.º 28.º, tratava de subtrair ao novo regime da denúncia os contratos não habitacionais celebrados antes do DL 257/95, de 30 de Setembro, saindo assim incólume a principal característica do vinculismo. Tal regime veio a ser mantido no essencial pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, sendo certo que, tendo os AA exercitado o seu direito no domínio de vigência da versão originária do NRAU, é esta a aplicável.

Mantendo embora o arrendatário a salvo da denúncia imotivada agora concedida ao senhorio, não deixou a Lei n.º 6/2006 de consagrar algumas excepções, nomeadamente, e no que respeita aos arrendamentos para fins não habitacionais, as previstas nas al.s a) e b) do n.º 6 do art.º 26.º (a disposição surge hoje reproduzida no n.º 3 do art.º 28.º na sequência das alterações introduzidas pela referida Lei n.º 31/2012). Assim, ocorrendo trespasse ou locação do estabelecimento ou sendo o arrendatário uma sociedade, caso se verificasse transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determinassem alteração da titularidade em mais de 50%, poderia o senhorio denunciar o contrato, cumprindo embora um prazo de pré-aviso de 5 anos (cf. al.s a) e b) do referido n.º 6 do art.º 26.º, aplicável aos arrendamentos anteriores ao DL 257/95 por força da extensão operada pelo art.º 28.º).

Retornando ao caso dos autos, resultou apurado que os AA senhorios denunciaram o contrato mediante comunicação efectuada à Ré em Outubro de 2007, invocando a alteração da titularidade do capital social em mais de 50%, previsão normativa da citada al. b) do n.º 6 do art.º 26.º.

Todavia, o fundamento de facto da alegada alteração, conforme resulta claramente dos termos da petição inicial, foi o aumento de capital que, tendo sido inteiramente subscrito por um novo sócio, determinou que este passasse a ter o domínio da sociedade, com uma participação superior a 66%.

Nada foi dito, até porque o facto era então desconhecido, quanto a eventuais cedências das quotas dos primitivos sócios em favor de um terceiro (cfr. artigos 7.º a 14.º da petição inicial).

Por outras palavras, a causa de pedir invocada na presente acção como fundamento do direito de denúncia previsto na al. b) do n.º 6 do art.º 26.º do NRAU foi o referido aumento do capital e sua subscrição por terceiro nas apontadas circunstâncias.

Posteriormente, e por via da legítima apresentação do articulado superveniente, foram pelos AA. trazidos aos autos novos factos, traduzindo a cessão da totalidade das participações da sociedade ré a um terceiro - na circunstância, o seu sócio-gerente - os quais, tendo ficado documentalmente demonstrados, ingressaram na sentença, correspondendo aos pontos 15. a 18. da matéria de facto assente. E foi precisamente com fundamento nesta nova factualidade, que integrou na previsão da disposição legal em referência, que a Mm.ª juíza julgou validamente cessado por denúncia o contrato de arrendamento aqui ajuizado.

Parece oportuno referir, a propósito, que a causa de pedir, tal como resulta do preceituado no n.º 4 do art.º 581º do CPC, é o facto jurídico concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido. Assim, quando a lei faz recair sobre o autor o ónus da alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (art.ºs 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, al. d), este desincumbe-se de tal ónus fazendo a indicação do facto jurídico concreto em que baseia o seu direito, ou seja, por referência ainda à teoria da substanciação, e isto porque “o tribunal não conhece de puras abstracções, de meras categorias legais; conhece de factos reais, particulares e concretos e tais factos, quando sejam susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, é que constituem a causa de pedir. (…) a causa petendi não é norma de lei que a parte invoca em juízo; é o facto que se alega como capaz de converter em concreto a vontade abstracta da lei"[1][2].

Ora, in casu, ao alegar em sede de articulado superveniente que a Ré viu o pacto social alterado por força da transmissão das quotas por negócio “inter vivos” que representavam a totalidade do capital social, procederam os AA a relevante alteração da causa de pedir, a qual veio a ser fundante da decisão[3].

Cremos, porém, que sem infracção das regras processuais atinentes. Vejamos:

O art.º 588.º permite a alegação posterior “de factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito”. Trata-se de factos essenciais que a lei permite sejam tardiamente introduzidos em juízo, uma vez que ocorreram depois de terminados os prazos para apresentação dos articulados - superveniência objectiva - ou porque, tendo embora ocorrido em data anterior, só posteriormente foram conhecidos pela parte a quem aproveitam -superveniência subjectiva.

Parece não suscitar dúvida, à luz do que dispõe o n.º 2 do art.º 573.º, que factos supervenientes que integrem novas excepções peremptórias são, ainda aqui, admitidos, sem que tal colida com o princípio da concentração da defesa na contestação, uma vez que à data da apresentação deste articulado não era possível à parte deles fazer-se valer (ou porque não tinham ainda ocorrido, ou porque deles não tinha conhecimento).

Maiores dúvidas tem suscitado a questão de saber se ao autor é lícito, por esta via, proceder à alteração da causa de pedir, designadamente substituindo os factos inicialmente alegados por outros que formam outra causa de pedir, ou proceder à sua ampliação, acrescentando àqueles factos outros que, por si, são capazes de desencadear o efeito jurídico pretendido, hipótese em que se insere a situação dos autos.

Suscitada nestes termos, a questão não tem merecido resposta uniforme, afigurando-se todavia que será de reconhecer também ao autor tal possibilidade. Com efeito, e tal como conclui Nuno Pissarra[4], “Os termos do art. 506.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não são incompatíveis com tal possibilidade e a ressalva do art. 663.º, n.º 1, do mesmo Código, reportada às normas que determinam as condições em que pode ser alterada a causa de pedir, tanto abrange o art. 273.º como o art. 506.º. Reduzir a função dos factos constitutivos invocáveis em articulado superveniente ao preenchimento de causas de pedir incompletas, como fazia o Prof. Castro Mendes, parece ser excessivamente redutor. A razão do articulado superveniente reside na superveniência e não pode ser equiparada à do articulado para correcção de deficiências previsto no art. 508.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do Código de Processo Civil. Acresce que, sendo a alternativa da modificação da causa de pedir o início de uma nova instância, a economia processual aconselha à solução ora propugnada, sem que o dever de respeito por uma disciplina processual seja prejudicado, porque se está perante um facto sobre o qual, por virtude da superveniência, a disciplina não pode actuar. Enfim, dificilmente se compreenderia que a lei processual civil admitisse, como admite (no referido art. 489.º, n.º 2), a alegação, por articulado superveniente, de factos supervenientes integrantes de novas excepções e não fizesse o mesmo quanto aos factos constitutivos que alterassem ou ampliassem a causa de pedir. Em suma, fora dos casos do art. 273.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a causa de pedir pode ainda ser unilateralmente alterada ou ampliada mediante a articulação de factos supervenientes”.[5]

A situação em causa nestes autos evidencia, parece-nos, o acerto da posição vinda de expor, pois a desconsideração da nova causa de pedir emergente dos factos supervenientes, para mais reconduzível à mesma fattispecie normativa, obrigando à propositura de uma nova acção no caso de improcedência da causa de pedir inicialmente invocada, resultaria num injustificado desperdício de tempo e de meios.

Assente, pois, que os factos supervenientes trazidos a juízo, integrando embora uma nova causa de pedir, podem ser considerados, e por respeito pelas conclusões de recurso, vejamos se aos AA era lícito denunciar o contrato, quer à luz destes novos factos, quer da causa de pedir originária.

Está provado que, tendo a sociedade ré à data da entrada em vigor do NRAU um capital social de €7.500,00, dividido por 3 quotas, sendo uma no valor nominal de €3.744,98, titulada por A..., e as restantes, no valor cada uma de €1.870,49, tituladas, respectivamente, por R... e M..., sendo estes últimos os seus gerentes, por deliberação que teve lugar em 17 de Abril de 2007, viu aumentado o seu capital em €15.000,00, montante integralmente subscrito por uma nova sócia, a também sociedade “M..., Lda.”, cujo sócio gerente foi nomeado igualmente gerente da ré, nomeação acompanhada da renúncia dos anteriores gerentes.

A factualidade acabada de relembrar suscita a questão de saber se um aumento do capital social que “determine a alteração da titularidade em mais de 50%” integra a previsão legal da referida alínea b) do n.º 6 do art.º 26.º do NRAU para efeitos de fundamentar a denúncia do contrato pelo senhorio, a qual não tem merecido resposta concorde por banda da nossa doutrina[6].

É certo, dir-se-á, que pelo argumento da literalidade, uma vez que a al. b) apenas se refere à transmissão inter vivos de participações sociais, a situação pareceria excluída da precisão normativa. Todavia, e como se sabe, sendo a letra da lei o ponto de partida do intérprete, e não podendo ser por este considerado o pensamento legislativo que nela não tenha um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, o art.º 9.º do CC é terminante na afirmação de que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, antes devendo o intérprete reconstituir a partir do texto aquele que foi o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema e demais critérios ali fixados.

Olhando as excepções consagradas pelo legislador e aglutinadas nas referidas duas alíneas, não surgem evidentes as razões pelas quais considerou que a verificação de cada uma das aludidas situações deveria conduzir à passagem do contrato para o novo regime no aspecto nuclear de permitir a denúncia ad nutum. No entanto, como denominador comum a todas elas surge a transmissão, ainda que temporária, do estabelecimento (que não necessariamente da posição de arrendatário que, conforme é sabido, não acompanha a locação do estabelecimento), quando acompanhada do imóvel, ou seja, situações em que a gestão e controlo do estabelecimento instalado no locado passam a ser exercidos por pessoa diversa do arrendatário. Desta constatação poderá partir-se para a conclusão de que o legislador “não quis afectar o valor do uso do arrendamento -razão pela qual manteve o contrato parcialmente ao abrigo do regime antigo, enquanto não ocorrer o trespasse[7]-, mas apenas o seu valor de transmissão, pelo que projectou o novo regime sobre a transmissão do estabelecimento, obstando a que o alienante do estabelecimento receba um valor pelo regime favorável a que o arrendamento estava até então sujeito”[8]. Deste modo, e independentemente de em determinadas situações concretas tal poder não se verificar[9], o fundamento que o legislador teria entendido como justificante da sujeição dos contratos ao novo regime, conferindo ao senhorio o direito de os denunciar ad nutum, seria evitar que os transmitente obtivesse uma vantagem imerecida, mercê da integração do valor do locado no negócio e decorrente das condições (desfavoráveis para o senhorio) do contrato em vigor.

Debruçando-nos agora especificamente sobre a al. b), aqui se prevê o caso de ocorrer a transmissão da propriedade das participações sociais que supere a percentagem de 50%.

Reconhece-se que, em bom rigor, um aumento de capital, mesmo que vise a admissão de um novo sócio e que este passe a deter na sociedade uma posição maioritária, não configura uma situação de transmissão de participações sociais. Todavia, não poderá igualmente deixar de ser reconhecido que em situações como a dos autos ocorre indubitavelmente uma modificação do domínio sobre a sociedade e, passando um novo sócio a deter mais de 50% do capital, estamos perante uma situação em tudo similar à da transmissão de participações, a demandar um mesmo tratamento, e isto porque o interesse deste novo sócio não poderá dissociar-se do valor do estabelecimento e este será naturalmente influenciado pelos termos do contrato de arrendamento vigente. Trata-se, pois, de uma situação em que o estabelecimento, de alguma forma, “também muda de mãos”, sobre ele passando o novo sócio, ainda que indirectamente, a ter poder de disposição ou oneração, o que justificaria a opção do legislador e permitiria a aplicação da norma, por consentida interpretação extensiva (cf. art.º 11.º do CC).

Mas ainda que assim se não entendesse, a verdade é que, subsequente ao referido aumento de capital, e conforme resultou demonstrado, os sócios à entrada em vigor do NRAU cederam efectivamente a totalidade das quotas de que eram titulares a um terceiro (no caso, o sócio gerente da nova sócia e também gerente da sociedade arrendatária), totalizando as participações cedidas, tal como foi correctamente entendido, 100% do capital social. E isto porque, tal como resulta da lei - cf. art.ºs 26.º, n.º 6, b) e 56.º, al. c), esta última disposição válida para a actualização da renda - o capital social a atender é aquele que existia à data da entrada em vigor do novo regime, sob pena do aumento de capital ser facilmente instrumentalizado para contornar a lei. O caso dos autos é, a este respeito, particularmente ilustrativo, pois a considerar-se de modo diferente, porque as participações somadas dos sócios da ré, após o aumento, correspondiam a apenas 34% do capital social aquando da transmissão, ficaria esta a coberto da excepção consagrada. O que, como facilmente se intui, não pode admitir-se, sob pena de se frustrar a lei. Deste modo, mesmo quem defenda restritivamente que o aumento de capital nas descritas circunstâncias não pode ser equiparado a transmissão da participação social, não poderá deixar de entender que tal aumento “deve ter um efeito neutro sobre a aplicação do regime transitório: assim como não deve servir para a passagem do contrato para o novo regime, também não deve obstar à aplicação dos art.ºs 26.º, n.º 6, al. b) e 56.º, al. c) da lei n.º 6/2006”[10].

Decorre do que se deixou exposto que no caso dos autos, por força da ocorrência de transmissão de participações sociais da sociedade ré que determinou alteração da titularidade em mais de 50%, poderiam os AA senhorios, direito que exercitaram, proceder à denúncia do contrato mediante comunicação à contraparte, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 26.º, n.º 6, al. b) e 28.º do NRAU e 1101, al. c) do CC, na redacção então vigente, a qual produziu todos os seus efeitos decorrido o prazo de pré-aviso de 5 anos. Improcedem assim todas as conclusões recursivas, impondo-se manter, nos seus precisos termos, a sentença apelada.

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III Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.

Relatora:

Maria Domingas Simões

Adjuntos:

1º - Jaime Ferreira

2º - Jorge Arcanjo

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[1] Prof. Alberto dos Reis, CPC anotado, Vol. III, 3.ª edição, 1981, pág. 125.
[2] Na formulação de Paulo Ramos de Faria, Primeiras Notas ao Novo Código de processo Civil, “causa de pedir é o conjunto dos factos da relação material (ocorridos) subsumíveis às fatispécies das normas individualizadas que prevêem o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor”.

[3] Como advertia já o Prof. Alberto dos Reis[3] "Não basta que haja coincidência ou identidade entre o pedido e o julgado; é necessário, além disso, (...) que haja identidade entre a causa de pedir (causa petendi) e a causa de julgar (causa judicandi). Tal divergência, consubstanciada na invocação pelo juiz de uma causa de pedir ou facto jurídico diverso do alegado, traduziria um excesso de pronúncia, causa de nulidade prevista na parte final da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC que, todavia, tem de ser invocada.
[4] Nuno Andrade Pissarra, “O conhecimento de factos supervenientes relativos ao mérito da causa pelo Tribunal de Recurso em Processo Civil”, acessível em https://www.oa.pt/upl/%7B351b450a-50b9-4b7d-9f5e-94e815424f9f%7D.pdf, págs. 11-12. Pese embora o autor escrevesse no domínio do CPC cessante, o texto mantém perfeita actualidade, uma vez que as normas em referência foram reproduzidas nos artigos 588.º (termos em que são admitidos os articulados supervenientes); 573.º, n.º 2 (oportunidade de dedução da defesa); 265.º (alteração da causa e do pedido na falta de acordo) e 611.º (atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes) do CPC agora em vigor.
[5] No mesmo sentido, Prof. Lebre de Freitas, “A acção declarativa comum à luz do Código revisto”, 2.ª edição, págs. 138-139, para quem “O princípio da economia processual e a consideração de que o alcance do preceito (…) seria quase nulo se a sua previsão fosse reduzida, quanto ao autor, aos factos que complementem a causa de pedir já invocada, atendendo a que a alegabilidade desses factos já está prevista em outras disposições, leva a perfilhar a solução de não o limitar pelo disposto nos art.ºs 272.º e 273.º”.  
[6] Disso mesmo dão conta António Pinto Monteiro/Pedro Maia, “O Novo Regime do Arrendamento Urbano numa perspectiva jurídico-societária”, RLJ, ano 138, pág. 29.
[7] Podendo tal raciocínio ser facilmente transposto para a locação e outros modos de cedência do estabelecimento não expressamente previstos, mas que a doutrina é concorde em admitir que, por interpretação extensiva, se devem considerar incluídos, tais como o usufruto ou comodato do estabelecimento ou a sua transmissão definitiva por força da fusão ou da cisão de sociedades – Cf. Gravato de Morais, “Novo Regime do Arrendamento Comercial”, 2.ª edição, págs. 58 a 64.
[8] António Pinto Monteiro/Pedro Maia, “O Novo Regime do Arrendamento Urbano numa perspectiva jurídico-societária”, RLJ, ano 138, págs. 13-14. Invocando também “uma outra circunstância de cariz economicista” para justificar a consequência gravosa prevista na lei para o novo inquilino trespassário, a saber, o facto de serem os contraentes no trespasse quem retira mais vantagens do negócio que concluíram, Gravato de Morais, ob. cit., págs. 54-55.
[9] Cf. vários exemplos no “O Novo Regime…” citado na nota anterior.
[10] António Pinto Monteiro/Pedro Maia cit., pág. 30