Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
221/13.6TXCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS
PRISÃO POR DIAS LIVRES
FALTA INJUSTIFICADA
Data do Acordão: 10/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 125.º DO CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE (CEPMPL)
Sumário: Na ausência de comprovação, pelo condenado, perante o tribunal da 1.ª instância, das invocadas - tão só em sede de recurso - insuficiências de natureza económica, determinantes de faltas de entrada no estabelecimento prisional visando a execução da prisão por dias livres, após cumprida a exigência normativa plasmada no n.º 4 do artigo 125.º, n.º 5, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), impõe-se seja observado o disposto na parte final da referida norma, ou seja, o cumprimento da prisão em regime contínuo.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do Processo Supletivo [Lei n.º 115/2009], que correu termos sob o n.º 221/13.6TXCBR-A.C1 no Tribunal de Execução das Penas de Coimbra, por despacho judicial de 03.04.2014, foi decidido [transcrição parcial do dispositivo]:

«Por todo o exposto, em conformidade com as disposições legais supra referidas, decide-se julgar injustificadas as não apresentações do condenado A... no Estabelecimento Prisional e, consequentemente, determina-se o cumprimento em regime contínuo da pena de 10 meses de prisão em que foi condenado».

 

2. Inconformado recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Determina o n.º 4 do art. 125º do CEPMPL que na execução da prisão por dias livres “As faltas de entrada no estabelecimento prisional de harmonia com a sentença são imediatamente comunicadas ao tribunal de execução das penas. Se este tribunal, depois de ouvir o condenado e de proceder às diligências necessárias, não considerar a falta justificada, passa a prisão a ser cumprida em regime contínuo pelo tempo que faltar, passando-se, para o efeito, mandados de captura.”;

2. Determina o n.º 2, do art. 13º da Constituição da República Portuguesa que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”;

3. O Recorrente não dispõe de transportes públicos, nem de condições económicas para se deslocar da residência até ao estabelecimento prisional;

4. As dificuldades económicas afastam a culpa pela falta de comparecimento, no estabelecimento prisional, de quem não tem dinheiro para o custear;

5. Quem não tem dinheiro para cumprir uma pena de prisão por dias livres não deve ser condenado a cumprir a pena em regime contínuo;

6. O cumprimento da pena em regime contínuo irá colocar em risco a sua condição laboral do Recorrente;

7. Foram violados, para além dos princípios gerais do Direito (e do Direito Penal, em particular), as normas do art.º 2º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do n.º 2, do art. 13º da Constituição da República Portuguesa e do nº 4, do art. 125º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

TERMOS EM QUE, ATENDENDO ÀS RAZÕES DE FACTO E DE DIREITO SUPRACITADAS:

Deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, consequentemente, deve proceder-se à revogação da Decisão recorrida declarando-se justificadas as faltas, com todas as legais consequências


ASSIM,

EM OBEDIÊNCIA À LEI,

SERÁ CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA.


3. Por despacho exarado a fls. 144 foi o recurso admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

4. Ao recurso respondeu o Ministério Público, conforme fls. 150/151 dos autos, concluindo no sentido de não merecer o mesmo provimento.

5. Na Relação, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto emitiu parecer do qual se extrai a seguinte passagem: «O arguido, alega falta de transportes públicos e falta de condições financeiras, para justificar a falta de comparência no EPR de Leiria, mas não apresentou qualquer prova dessa insuficiência económica nem da falta de transportes públicos de Miranda do Corvo para Leiria, pelo que, na ausência de prova produzida nesse sentido em audiência de julgamento, a insuficiência financeira não foi dada provada pela douta sentença, sendo certo, também, que não justifica como arranjou meios para se apresentar nalguns fins-de-semana e noutros não, quando cumpriu 39 dos 60 períodos de fim-de-semana fixados para apresentação (cfr. fls. 97 a 101)», pronunciando-se, assim, no sentido da improcedência do recurso.

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido não reagiu.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do STJ o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe oficiosamente conhecer mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em apreço a única questão colocada pelo recorrente traduz-se em saber se, ao considerar injustificadas as faltas de comparência do condenado no E.P., determinando, em consequência, o cumprimento em regime contínuo do remanescente da pena de 10 meses de prisão em que foi condenado, violou o despacho recorrido os artigos 125.º, n.º 4 do CEPMPL, 13.º, n.º 2 da CRP e 2.º da DUDH.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da decisão recorrida [transcrição parcial]:

«Foi instaurado o presente processo supletivo em virtude de não apresentação do condenado A..., já identificado nos autos, no EP no qual cumpria pena de prisão por dias livres.

Foram designadas duas datas para a audição do condenado, nos termos do art. 125.º/4 do CEPMPL, e este, apesar de pessoalmente notificado, não compareceu.

Finda a instrução, o MP pronunciou-se, promovendo que se considerem injustificadas as faltas e que se determine que o condenado passe a cumprir a prisão em regime de prisão contínua – cfr. fls. 06.

Foi dado o contraditório ao arguido, que nada disse.

(…)

II – Fundamentação:

2.1. De facto:

a) Factos provados:

1. Por sentença transitada em julgado a 2/10/2012, proferida nos autos de Processo Comum n.º 20/12.2GALSA, do T.J. da Lousã, foi o requerido condenado na pena de 10 meses de prisão, a cumprir em regime de dias livres, equivalentes a 60 períodos de fim-de-semana, com duração de 48 horas cada período e foi notificado da guia de apresentação no EP da Covilhã.

2. O arguido não compareceu no EPR de Leiria nos seguintes fins-de-semana:

- de 22/3/2013,

- de 10/5/2013

- de 24/5/2013

- de 6/6/2013

- de 28/6/2013

- de 19/7/2013

- de 30/8/2013

- de 1/11/2013

- de 15/11/2013

- durante todo o mês de Dezembro de 2013

- de 3/1/2014

- de 14/2/2014

- de 14/3/2014

- de 21/3/2014

b) Factos não provados:

a) que o arguido não compareceu no EP por razões financeiras.

c) Motivação:

Para dar como provados os factos que nessa qualidade se descreveram, o Tribunal valorou o teor dos documentos juntos aos autos.

Relativamente aos factos não provados, a verdade é que o condenado faltou às duas diligências que foram agendadas para a sua audição, não tendo justificado as faltas e que, pese embora tenha declarado a uma funcionária deste Tribunal que faltou por razões financeiras, não ofereceu qualquer prova de tal facto. Daí que se tenha dado como não provada tal factualidade.

3. Fundamentação de Direito:

Considerando o trânsito em julgado da sentença que impôs o cumprimento de 10 meses de prisão a cumprir em regime de dias livres, equivalentes a 60 períodos de fim-de-semana e emitida a correspondente guia de apresentação, encontra-se o condenado privado da sua liberdade e vinculado à reclusão nos períodos indicados.

De acordo com o art. 125.º, n.º 4, do CEPMPL, as faltas de entrada no estabelecimento prisional de harmonia com a sentença são imediatamente comunicadas ao TEP. Se este tribunal, depois de ouvir o condenado e de proceder às diligências necessárias, não considerar a falta justificada, passa a prisão a ser cumprida em regime contínuo pelo tempo que faltar, passando-se, para o efeito, mandados de captura.

A não apresentação apenas será justificável, segundo julgamos, perante hipóteses de impossibilidade absoluta. Trata-se de hipóteses sobreponíveis ao conceito de justo impedimento.

De acordo com a definição fornecida pelo art.º 146º do CPC, por justo impedimento entende-se todo o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.

Na sua anterior redacção, a norma referida em último lugar definia o justo impedimento como “o evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o acto, por si ou por mandatário”.

Tal definição levava a doutrina a circunscrever o âmbito da previsão legal àquelas hipóteses em que a pessoa onerada com a prática do acto houvesse sido colocada na absoluta impossibilidade de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto, independente da sua vontade, e que o cuidado e diligências normais não fariam prever (cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 1º, pg. 321).

Como bem nota Abílio Neto (Código de Processo Civil Anotado, 14.ª ed., pg. 211), a esta quase responsabilidade pelo risco contrapôs a reforma de 95 uma definição conceitual mais flexível, fazendo derradeiro apelo ao “meio termo” de que falava Vaz Serra (RLJ, 109º, pg. 267): deve exigir-se às partes que procedam com a diligência normal, mas já não lhes é exigível que entrem em linha de conta com circunstâncias excepcionais.

Ora, no caso dos autos, nenhuma justificação atendível foi apresentada pelo arguido para o não comparecimento no Estabelecimento Prisional.

Assim, nos termos do disposto no art.º 125º nº 4 do CEP julgo injustificadas as faltas do arguido e determino, em consequência, o cumprimento da pena em regime contínuo.

3. Decisão:

Por todo o exposto, em conformidade com as disposições legais supra referidas, decide-se julgar injustificadas as não apresentações do condenado A... no Estabelecimento Prisional e, consequentemente, determina-se o cumprimento em regime contínuo da pena de 10 meses de prisão em que foi condenado.

(…)».

3. Apreciação

Questiona o condenado/recorrente a decisão judicial proferida no âmbito dos Autos de Processo Supletivo [Lei n.º 115/2009] registados sob o n.º 221/13.6TXCBR – A.C1, a correr termos no Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, no seio do qual foram julgadas injustificadas as suas faltas de apresentação no Estabelecimento Prisional, conforme decidido na sentença proferida no processo sumário n.º 20/12.2GALSA do Tribunal Judicial da Lousã e, em consequência, determinou o cumprimento em regime contínuo do remanescente da pena de prisão naquela fixada para ser cumprida em regime de dias livres, porquanto – aduz – violadora do artigo 2.º da DUDH, do n.º 2 do artigo 13.º da CRP e, bem assim, do n.º 4 do artigo 125.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

A resolução do caso, em nosso entender, não dispensa um breve excurso sobre os elementos disponíveis no processo.

Assim, para além da certidão da sentença condenatória proferida nos autos de processo sumário acima identificados, mostram-se os mesmos instruídos com um número considerável de «informações» dirigidas pelo Director do Estabelecimento Prisional ao Juiz do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, dando conta das múltiplas faltas de apresentação do condenado/recorrente no EP para cumprimento dos períodos de fim-de-semana [concernentes à pena] nas mesmas identificados, invariavelmente acompanhadas da menção de não haver aquele [condenado] fornecido, para o efeito, qualquer justificação formal ou informal [cf. vg. fls. 18, 20, 21, 22, 40, 42, 43, 59, 78, 79, 82, 83, 84, 89, 105, 111 e 112], ausências, essas, referidas no ponto 2. do despacho recorrido e ainda com informação actualizada sobre os períodos de apresentação efectivamente cumpridos.

Apesar de se tratar de questão não abordada pelo recorrente, pelas consequências que daí poderiam advir, impõe-se, desde já, deixar claro que no caso concreto se mostram efectivados os princípios constitucionais do contraditório e da audiência pois que, por duas vezes, em execução do n.º 4 do artigo 125.º do CEPMPL, foram designadas datas para audiência do condenado, na presença do seu, então, defensor, às quais, não obstante regularmente notificados, o primeiro [condenado] não logrou comparecer, circunstância que deu origem à injustificação da respectiva falta [processual] com a correspondente condenação em quantia pecuniária.

Por outro lado, na sequência da promoção do Ministério Público no sentido de serem consideradas injustificadas as faltas de apresentação no EP e, como decorrência, que fosse determinado o cumprimento da pena em regime contínuo, foi a defesa notificada para, em 10 dias, querendo, se pronunciar não tendo, contudo, reagido.

Significa, pois, que mesmo para a corrente – maioritária, diga-se – que defende a necessidade de dar a oportunidade – facultar a possibilidade - ao condenado de ser pessoalmente ouvido e não já, tão só, por meio de instrumento dirigido ao juiz no qual, na sequência de notificação para o efeito, exponha as eventuais razões – argumentos e comprovação dos motivos - do incumprimento em que incorreu o problema não se suscita, porquanto, como decorre dos autos, a observância de tais princípios mostra-se concretizada na modalidade «mais exigente», modalidade, essa, que, a nosso ver, colhe toda a pertinência considerando o particular relevo do objecto da decisão, constituindo «autêntico “desenvolvimento” ou “prolongamento” da sentença e de onde pode resultar alteração significativa no cumprimento da pena de prisão» - [cf. o acórdão do TRL de 21.09.2011 (proc. n.º 6874/10.0TXLSB – B.L1 – 3); no mesmo sentido vg. os acórdãos TRL de 13.07.2011 (proc. n.º 2914/10.0TXLSB – A.L1 – 3), TRP de 19.12.2012 (proc. n.º 561/11.9TXPRT – A.P1), TRC de 06.03.2013 (proc n.º 559/11.7TXCBR – A.C1)].

Sendo a função do recurso apreciar da bondade e legalidade do despacho recorrido e não já conhecer ex novo de questões que, no momento próprio, não foram colocadas perante a entidade competente – o juiz do TEP - para se debruçar sobre a argumentação expendida e aquilatar da prova oferecida, no caso concreto destinada à justificação das faltas de apresentação e tendo o condenado/recorrente deitado pela janela a oportunidade que, por mais de uma vez, lhe foi facultada de afirmar e comprovar as insuficiências que em sede de recurso vem invocar, nenhuma censura merece o despacho recorrido, designadamente enquanto desatende à «cota» lavrada pelo funcionário do TEP a fls. 80, onde faz constar que o condenado/recorrente compareceu «justificando» as suas faltas de apresentação no TEP por motivos financeiros, invocando encontrar-se a trabalhar, desde Setembro de 2013 pelo período de um ano, na Câmara Municipal de Miranda do Corvo, circunstância que podia ter atempadamente invocado e demonstrado [perante a entidade competente], o que não foi o caso.

Acresce que sempre tal «justificação» deixaria por explicar o motivo pelo qual, por um lado, até determinado momento o condenado foi capaz de cumprir as apresentações determinadas e, por outro, a razão de ainda em momento anterior ao da alegada deslocação para Miranda do Corvo registar diversas faltas de apresentação no Estabelecimento Prisional.

Temos para nós e já noutra ocasião o escrevemos – também a propósito de situação similar em que a alegada falta de meios económicos; ausência de transportes; mudança de residência por via de questões laborais, surgem, sistematicamente, invocados – que o que aconteceu com o ora recorrente, como em parte significativa dos casos, é o ter-se deixado invadir por uma postura acomodatícia, reveladora de um défice de avaliação quanto à necessidade de responder de forma responsável à punição imposta, traduzindo, assim, uma atitude de fraca interiorização do sentido do cumprimento da pena.

Por outro lado, não pode ser o condenado a colocar-se numa posição que inviabilize o cumprimento da pena, exigindo-se-lhe, antes, que adeque a sua vida de modo a dar resposta à mesma, a qual, emanando do poder punitivo do Estado, tem necessariamente de ser encarada como uma prioridade, ajustando, em consequência, as opções dos aspectos pessoais e profissionais da sua vida a tal desiderato, não podendo, pois, secundarizá-lo em função do demais, assumindo uma atitude – muito típica, aliás – de deixar andar que depois logo se vê!

Conclui-se, pois, no contexto traçado, não ocorrer resquício de violação dos princípios e normas invocadas, assistindo-se, antes, a uma conduta displicente do condenado impeditiva do exercício, em toda a sua plenitude, do poder punitivo do Estado, circunstância que não pode ser premiada.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que integram este tribunal em negar provimento ao recurso.

Condena-se o recorrente em 3 [três] Ucs de taxa de justiça.

Coimbra, 8 de Outubro de 2014

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)