Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20929/19.1T8LSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: DÍVIDAS DE CÔNJUGES
QUOTA EM SOCIEDADE
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1691º, Nº 1, AL. D) DO C.CIVIL.
Sumário: 1. - No âmbito do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges, a aquisição por um deles, casado no regime da comunhão de adquiridos, de uma quota de uma sociedade comercial por quotas – de que já era sócio e gerente –, por forma a tornar-se titular de 50% do capital social, implica que essa quota passe a integrar o património comum do casal, de que ambos são contitulares em termos igualitários, daí resultando o proveito comum desse casal, posto estar subjacente, independentemente dos resultados obtidos, um fim/escopo direcionado para o interesse comum do casal.

2. - Porém, ainda que se entenda que o cônjuge adquirente agiu como administrador, a aquisição de tal quota constitui um ato de administração extraordinária (ou de disposição), extravasando os limites dos seus poderes de administração sobre os bens comuns (quanto ao capital implicado na aquisição), para cuja prática teria de dispor do consentimento do outro cônjuge, considerando-se não preenchido, para o efeito de responsabilização por dívidas, o requisitório da al.ª c) do n.º 1 do art.º 1691.º do CCiv..

3. - Nesse caso, embora o ato de cessão/transmissão da quota seja de qualificar como objetivamente comercial, não se provando que o cônjuge adquirente seja comerciante e tenha agido no exercício do seu comércio, também tem de afastar-se a responsabilização do outro cônjuge, pela dívida resultante, no quadro da al.ª d) do n.º 1 daquele art.º 1691.º.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

I..., com os sinais dos autos,

intentou ([1]) ação declarativa condenatória, sob a forma de processo comum, contra

1.ª – P... e

2.º - L..., estes também com os sinais dos autos,

pedindo que os RR. sejam condenados, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de €38.728,00, a título de capital (a “totalidade das prestações em dívida”), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- tendo vendido à 1.ª R. a quota que detinha numa sociedade, pelo preço de €43.628,00, que devia ser liquidado em 50 prestações, e encontrando-se vencido, à data da propositura da ação, um total de 43 prestações, aquela R. apenas liquidou o montante de € 4.900,00, encontrando-se, então, em dívida €33.128,00;

- valor que, não obstante as insistências da A., se encontra por pagar, tendo-se vencido a totalidade da dívida prestacional, a qual deve ter-se por comunicada ao co-R., tendo em conta a sua qualidade de cônjuge (casamento no regime da comunhão de adquiridos) e por os benefícios gerados com a aquisição da quota terem permitido ao casal auferir os proventos do exercício pela R. da gerência da sociedade.

Apenas o 2.º R. contestou, concluindo pela improcedência da ação quanto a si, para o que deixou alegado (para além do mais):

- desconhecer o negócio a que alude a A., mas negando, em qualquer caso, a existência de proveito comum, sendo que a sociedade mencionada suportava um passivo tal que não angariava qualquer rendimento da sua atividade;

- sempre ter sido o R./contestante a suportar as despesas do casal e dos dois filhos menores, com os rendimentos que aufere da sua profissão de eletricista.

Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, procedendo-se à enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova, após o que foi realizada a audiência final.

Seguidamente, foi proferida sentença ([2]), pronunciando-se assim o Tribunal:

«(…) decide-se julgar a presente acção como parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a Ré P... a pagar à Autora I..., a quantia de €38.728,00 acrescida dos juros de mora computados à taxa de 4% vencidos desde a data da citação e vincendos até efectivo e integral pagamento. Absolvendo-se, por seu turno, o Réu L... do pedido formulado.».

Inconformada com tal sentença absolutória quanto ao 2.º R., vem a A. interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([3]):

...

Não foi apresentada contra-alegação de recurso.

Este foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo e subida imediata, tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursivo.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, importa saber:

a) Se, no âmbito da empreendida impugnação da decisão da matéria de facto, existe erro de julgamento, devendo a factualidade julgada não provada passar a provada (conclusões 2.ª a 10.ª);

b) Se deve alterar-se a decisão de direito, em termos de procedência da ação também contra o 2.º R. – sua corresponsabilidade pelo pagamento da dívida, em virtude da existência de proveito comum ou por outro motivo legal (conclusões 11.ª a final).

III – Fundamentação

A) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto

A A./Apelante não se conforma com a decisão absolutória proferida relativamente ao 2.º R., manifestando um claro inconformismo em matéria de direito, radicado também em divergência quanto à forma como foi decidida a matéria de facto, mais precisamente a factualidade dada como não provada, a qual a Recorrente pretende que, mediante sindicância recursiva pela Relação, seja julgada provada.

Trata-se, então, do seguinte factualismo que a 1.ª instância julgou não provado:

«1. A sociedade A Q... tem vindo a gerar lucros e rendimentos desde o acordo descrito na alínea a) dos factos provados que foram colhidos pelo Réu L... [artigo 17.º da p.i.].».

Invoca a impugnante as seguintes provas em abono da sua pretensão recursiva:

a) O documento de fls. 26 do processo físicocomunicação dirigida pela 1.ª R. (mulher) à A. em 03/06/2019, a que alude a al.ª f) do quadro dos factos provados;

b) O depoimento de parte da mesma R., prestado em 28/04/2021, como documentado em ata de fls. 103 e segs., onde nada se fez constar para os efeitos a que alude o art.º 463.º, n.º 1, do NCPCiv. (confissão), sem que houvesse sido deduzida alguma reclamação a respeito (cfr. n.º 2 do mesmo art.º).

Na sentença foi apresentada a seguinte justificação para a convicção negativa do Tribunal:

«(…) no que se refere à comunicabilidade da dívida, constata-se que o único facto alegado pela Autora I... com vista a densificar a ocorrência de proveito comum do casal foi transposto para o ponto 1 dos factos não provados. (…) cabe, de qualquer forma, estabelecer que se assistiu a um total naufrágio probatório da Autora (…) quanto a afirmação de que o Réu L... teria beneficiado dos lucros e rendimentos de A Q... Apenas logrando comprovar que o mesmo Réu (…) teria conhecimento do negócio materializado pois que acompanhou a sua cônjuge à assinatura do contrato e presenciou a correspondente subscrição.

Isto inversamente aos esforços probatórios desenvolvidos pelos Réus P... e L..., os quais, em conjunto com a testemunha A..., convergiram na constatação que A Q... tem passado por constantes dificuldades financeiras ao ponto de os valores gerados serem apenas afectos à satisfação do passivo. Sem que a própria Ré P... logre obter remuneração pela sua actuação como gerente. Ao ponto de ser o salário do Réu L..., como electricista, que os capacita ao sustento da casa e das necessidades de um agregado familiar que se acha, complementarmente, composto por dois filhos de 6 e 4 anos.» (itálico aditado).

Quanto ao aludido documento, invoca a Recorrente que a 1.ª R. ali afirmou que “temos tido muito trabalho a preparar os primeiros casamentos da época”, bem como que “sábado tivemos aqui um casamento e pediram para vir a pagar para a semana, pois hoje arrancaram em lua-de-mel” e ainda que “peço à Drª. I... se pode aguardar até final da semana que vem para lhe poder pagar.”.

Refere a Apelante que «tudo prenuncia que (…) a sociedade teve actividade e facturou serviços, e como é natural e do comum da vida, a 1ª. Ré-mulher não trabalhou “de borla” e algum rendimento obteve da gerência e do seu trabalho na firma».

Porém, como é patente, no âmbito do julgamento de um litígio por um Tribunal Judicial não pode bastar um «prenúncio», sabido que não operam presunções no campo em discussão.

É necessário fazer a prova da factualidade alegada, a tendente a responsabilizar a contraparte, sob pena, doutro modo, de ter essa factualidade de ser julgada como não provada.

Acrescenta a impugnante que “na dita carta de 03/06/2019 (a fls. 26) a 1ª. Ré-mulher afirma terem optado «por fazer um rebranding e criar a Quinta da ... Fomos ter de pedir um empréstimo para liquidar o leasing e ter fundos para fazer obras para podermos angariar clientes”.

Porém, também daqui não resulta a demonstração de obtenção pela sociedade mencionada de quaisquer lucros – ignora-se o respetivo volume de receitas e de custos de atividade –, nem, também por isso, pela R. mulher de quaisquer proventos, os quais houvessem sido levados por esta para o âmbito da sua vida familiar/conjugal, de molde a ter resultado um qualquer proveito económico/patrimonial para o R. marido.

Já quanto ao convocado depoimento de parte da 1.ª R. (mulher), deve reiterar-se que inexiste confissão ([5]), posto nada ter sido reduzido a escrito nesse âmbito na ata da audiência final – e era obrigatória a redução a escrito na parte em que houvesse confissão –, resultado com que se conformou a A., uma vez que nenhuma reclamação deduziu (cfr. o mencionado art.º 463.º, n.ºs 1 e 2, do NCPCiv.).

Apesar disso, invoca a Apelante que aquela R., em depoimento de parte, acabou por disser, «inquirida pelo advogado da A., que a sociedade contraiu um empréstimo de 140.000 euros sobre o seu património imóvel e onde esse dinheiro foi aplicado para pagar o empréstimo do Banco X... e para fazer obras. Porém, é do comum da vida, que de tal empréstimo tenha saído também o seu ordenado de gerente para custear as suas despesas do dia a dia da família» (itálico aditado).

Ora, a contração de empréstimos é, por regra, a assunção de passivo, com os inerentes custos/encargos, não podendo, obviamente, daí concluir-se, sem mais, que a R. mulher tenha auferido «ordenado de gerente» e qual o destino que tenha dado a esse ordenado, em montante, aliás, desconhecido.

Também nada pode concluir-se de seguro quanto às invocadas «obras que diz ter feito nos imóveis da sociedade», que viessem a «aumentar o valor patrimonial da quota que a Ré-mulher adquiriu à A. e de que o Réu-marido também beneficiou porque essa mais valia foi-o sobre a quota de que ele comunga por efeito do regime do seu casamento».

Como dito, desconhece-se qual a grandeza do ativo e do passivo daquela sociedade, sem o que nada pode retirar-se/inferir-se de concludente quanto ao incremento do «valor patrimonial da quota que a Ré-mulher adquiriu».

E, se a dita sociedade agora, eventualmente, «continua a poder exercer a sua actividade normal», desconhece-se que concreta atividade vem sendo exercida de forma lucrativa, qual o seu volume de negócios/atividade, de custos e de receitas, sem o que não pode dizer-se que existem lucros, bem como qual o destino dado aos mesmos, nem, do mesmo modo, qual o montante da remuneração da R. mulher e qual o destino que a mesma lhe vem dando.

Donde que não possa, salvo o devido respeito, concluir-se pela verificação de «benefício material para o Réu-marido, que adquiriu da aquisição pela Ré-mulher à A. da quota cedida».

Mas ainda que não se comungasse desta perspetiva crítica, sempre a impugnação haveria de claudicar por outro motivo.

É que, como visto, a 1.ª instância alicerçou a sua convicção negativa na conjugação de diversas provas produzidas, entre elas o depoimento da testemunha A..., a convergir «na constatação que A Q... tem passado por constantes dificuldades financeiras ao ponto de os valores gerados serem apenas afectos à satisfação do passivo. Sem que a própria Ré P... logre obter remuneração pela sua actuação como gerente. Ao ponto de ser o salário do Réu L..., como electricista, que os capacita ao sustento da casa e das necessidades de um agregado familiar que se acha, complementarmente, composto por dois filhos de 6 e 4 anos.».

Ora, tendo este depoimento testemunhal sido decisivo, nos termos exarados na fundamentação da convicção, para o alicerçar do juízo negativo (de não provado), não poderia a Recorrente, obviamente, demitir-se de analisar tal depoimento, de molde a mostrar a sua imprestabilidade para formação da convicção.

Isto é, a Apelante, para evidenciar o invocado erro de julgamento do Tribunal recorrido no quadro da decisão da matéria de facto, não poderia deixar de se referir àquele depoimento testemunhal, mostrando as razões pelas quais o mesmo não deveria ter sido valorado pelo modo como foi: teria de mostrar, por exemplo, que a testemunha não depôs desse modo e nesse sentido, ou que não merece a credibilidade que lhe foi atribuída, designadamente por falta de razão de ciência ou por contradições em que incorreu, ou que o seu depoimento foi contrariado/infirmado por outras provas, de pendor prevalecente/dominante.

Porém, tal Apelante omitiu, no seu acervo conclusivo, qualquer análise crítica a esse depoimento testemunhal, agindo como se o Tribunal a quo o não tivesse elegido e valorado com essencial para a formação da sua convicção probatória.

Donde, pois, que, na ausência, como mencionado, de confissão de parte – ou outra prova com força probatória plena – e permanecendo incólume, por outro lado, o aludido depoimento testemunhal e a análise crítica/valorativa que sobre o mesmo recaiu, não resulte evidenciado o pretendido erro de julgamento de facto quanto à factualidade dada como não provada ([6]).

Em suma, improcede a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, sem necessidade de outras considerações a respeito, termos em que se queda inalterado – e, assim, tornado definitivo – o quadro fáctico da sentença (o julgado provado e o não provado), o único, pois, a atender para decisão do presente recurso.

B) Quadro fáctico dado como provado

1. - Na sentença recorrida foi julgado provado – sem alteração pela Relação – o seguinte factualismo:

...

2. - E persiste julgada como não provada a seguinte factualidade:

«1. A sociedade A Q... tem vindo a gerar lucros e rendimentos desde o acordo descrito na alínea a) dos factos provados que foram colhidos pelo Réu L... [artigo 17.º da p.i.].».

C) Substância jurídica do recurso

Da responsabilidade do R. marido pela dívida contraída pela R. mulher

1. - Quanto ao invocado proveito comum do casal

Dispõe o art.º 1691.º (com a epígrafe «Dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges»), no seu n.º 1, al.ª c), do CCiv. que são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.

Ora, já se viu que persiste não provado que a dita sociedade tem vindo a gerar lucros e rendimentos desde o acordo descrito na alínea a) dos factos provados, que foram colhidos pelo Réu L...

Por isso, tendo improcedido a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, logo poderia parecer ter de soçobrar também – e por consequência – a pretensão de direito da A./Recorrente com fundamento no invocado proveito comum dos cônjuges, posto poder entender-se nada demonstrar esse alegado proveito comum do casal.

Com efeito, sabido que, por regra, o proveito comum não é de presumir ([7]), é patente, na situação dos autos, que nem se logra mostrar, quanto a resultados ([8]), que aquela sociedade tem vindo a gerar os alegados lucros e rendimentos, nem, logo por isso, o respetivo benefício/proveito (enquanto repercussão de tais resultados) em favor do R. marido.

Falhando, pois, a A./Apelante no que concerne ao seu ónus da prova neste particular (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), seria de perspetivar, como fez o Tribunal recorrido, um julgamento em seu desfavor.

Note-se que, na sua sentença, argumentou ainda o Tribunal a quo:

«A Autora (…) defende, complementarmente, que a dívida deve ser considerada como contraída para proveito comum do casal ou para fazer face aos encargos normais da vida familiar. Fá-lo, é certo, de forma extremamente lacónica. Limitando-se a apontar para as alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil com a paralela enunciação do circunstancialismo plasmado no ponto 1 dos factos não provados.

Quanto ao proveito comum do casal, retira-se da alínea c) supra transcrita que a sua verificação se acharia dependente da alegação adicional da imputação da qualidade de cônjuge administrador à Ré P... e de uma simultânea actuação no âmbito dos correspondentes poderes [artigos 1678.º e 1681.º do Código Civil]. O que a Autora I... não fez… Mas ainda que o tivesse feito, sempre se mostraria forçosa a constatação que não há [directamente] proveito comum do casal na pura aquisição da quota de uma sociedade.

Note-se que, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Dezembro de 2016,

O apuramento do proveito comum do casal traduz-se numa questão mista ou complexa, envolvendo questões de facto e de direito, residindo a primeira na determinação do destino dado ao dinheiro representado pela dívida e a segunda, já de carácter jurídico, que consiste em averiguar se tendo em conta aquele destino, se encontra preenchido o conceito legal de proveito comum (…).

(…)

Ora, a dívida foi contraída pela Ré P... para aquisição de uma participação social. A qual ficou na sua titularidade ao ponto de ser aquela passou [ou continuou] a assumir a qualidade de sócia e a exercer os correspondentes direitos sociais. O proveito que assim sobreveio de tal negócio foi colhido directamente por aquele sujeito processual… Qualquer benefício que pudesse, assim, mediar para o casal seria sempre mediato ao ponto de não corresponder à própria aplicação visada da dívida».

Todavia, nas suas conclusões 13.ª e 14.ª defende a Recorrente que, sendo os RR. casados entre si, à data da cessão de quota, no regime da comunhão de adquiridos, tal aquisição da quota é bem comum, nos termos da al.ª b) do art.º 1724.º do CCiv., devendo considerar-se a dívida como comum desde que haja simples expetativas de obtenção de benefícios futuros.

Vejamos esta argumentação.

Na doutrina, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira ([9]) referem, a respeito, que «(…) o proveito comum se afere, não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu. Se este fim foi o interesse do casal, a dívida considera-se aplicada em proveito comum dos cônjuges, embora, na realidade, dessa aplicação tenham resultado prejuízos. Assim, a dívida que um dos cônjuges contrai para montar uma exploração agrícola será comunicável mesmo que a exploração não dê lucros ou até traga prejuízos, pois se trata de dívida aplicada no interesse comum do casal», exigindo-se, em qualquer caso, «uma intenção objectiva de proveito comum, ou seja, é necessário que a dívida se possa considerar em proveito comum aos olhos de uma pessoa média e, portanto, à luz das regras da experiência e das probabilidades normais» (itálico aditado).

E, para Pires de Lima e Antunes Varela ([10]), a «maior parte das dívidas contraídas em proveito comum do casal terá como fim imediato a satisfação de necessidades materiais de ambos os cônjuges (v. g., aquisição de bens comuns ou reparação de bens, que, embora próprios, sejam fonte de rendimentos comuns)».

Ora, é bem sabido que os aqui RR. se encontram casados entre si desde momento anterior à discutida cessão de quota [matrimónio celebrado em 03/09/2011, como resulta do facto provado da al.ª g)], tendo adotado o regime supletivo da comunhão de adquiridos, posto inexistir convenção antenupcial (cfr. o mesmo ponto fáctico).

De acordo com este regime de bens do casamento, são comuns – fazendo, assim, parte da comunhão conjugal –, para além do produto do trabalho dos cônjuges, os bens adquiridos por estes na constância do matrimónio (desde que não excetuados por lei), como decorre claramente do disposto no art.º 1724.º do CCiv..

Daqui tem de concluir-se que a quota adquirida ingressou na comunhão conjugal dos RR., tornando-se um ativo comum, um elemento integrante do património da comunhão dos cônjuges.

Assim, embora adquirida pela R. mulher, a quota em causa passou a integrar a comunhão, o património comum, cuja titularidade cabe a ambos os cônjuges (R. mulher e R. marido).

Com efeito, após a transmissão/aquisição da quota pela R. mulher, esta não ficou a ser proprietária única/exclusiva desse elemento/ativo patrimonial – muito embora só ela figure, compreensivelmente, no registo com a qualidade de sócia e de gerente da sociedade [cfr. facto provado da al. b), referente ao registo comercial] –, vista a natureza específica da comunhão conjugal ([11]) e do inerente direito (um só, único, sem quotas) de ambos os cônjuges sobre os bens que integram o património comum ([12]).

Quer dizer, a quota social adquirida por um só dos cônjuges ingressou, por força do regime de bens do casamento, na massa patrimonial (os bens comuns) pertencente aos dois cônjuges (também ao R. marido), ingresso esse em bloco, sendo, por isso, tais cônjuges, ambos eles, titulares de um único direito dominial sobre ela.

Mas, se assim é – e efetivamente é –, então algo mais haverá de concluir-se, em termos jurídicos, perante a factualidade provada, quanto ao “fim visado” pela aqui R. mulher, mormente se se moveu no horizonte de um “fim comum”.

É que ela teve em vista engrandecer a sua posição no capital social – passando a dispor de 50% desse capital, quando antes apenas detinha 33,335% –, com as inerentes repercussões em termos de reforço da sua posição social e de gerência da sociedade [cfr. factos das als. a) e b)] –, mas não poderia olvidar que a quota adquirida passou a integrar a comunhão conjugal, ficando ambos os RR. a serem os titulares de um direito único sobre ela, em posição de igualdade.

Donde que seja indiscutível, salvo o devido respeito, que o R. marido beneficiou com a aquisição da quota, desde logo pela simples razão de que se tornou seu (co-)titular, em posição de igualdade com a adquirente, aumentando o património comum (a comunhão conjugal), de que ambos são titulares.

Por isso, tem de perspetivar-se o «fim visado pelo devedor» [ou «os fins determinantes da operação», a que aludem, no mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela ([13])] como indissociável do consumado (e automático) ingresso da quota no património comum dos cônjuges, tornando-se o R. marido, por força do regime de bens do casamento, titular com a R. mulher de um direito único sobre a quota adquirida.

Ora, se o R. marido se tornou (co-)titular, em posição de igualdade com a R. adquirente, aumentando o património comum/comunhão conjugal, forçoso é inferir que resultou a aquisição da quota num efetivo proveito comum dos cônjuges, também na perspetiva do «fim visado» pela adquirente.

Por outro lado, integrando o produto do trabalho dos cônjuges o património da comunhão conjugal [al.ª a) do art.º 1724.º do CCiv.], é de perspetivar que os proventos decorrentes da titularidade da quota e da gerência da R. mulher (eventual distribuição de lucros e remuneração da gerência), se e quando existentes, irão também repercutir-se sobre o património comum, em proveito, pois, também do R. marido ([14]).

Donde que, ainda por esta via, o fim visado seja o do benefício comum dos cônjuges.

Todavia, argumenta o Tribunal recorrido que faltou, no caso, a demonstração de se tratar do cônjuge administrador (a R. mulher) e de ter o mesmo agido nos limites dos seus poderes de administração, com o que decairia a pretensão da A./Recorrente de ilustração dos requisitos da al.ª c) do dito art.º 1691.º.

Referem Pires de Lima e Antunes Varela que essencial «para esse efeito é que a dívida caiba no âmbito dos poderes de gestão do administrador», sendo da responsabilidade comum, por exemplo, as despesas que se insiram «no círculo dos actos de administração ordinária, ao alcance de qualquer dos cônjuges» ([15]). E precisam estes Autores:

«O n.º 3 do artigo 1678.º (...) consagra o novo princípio (da co-direcção) a que passou a subordinar-se a gestão dos bens comuns (…) e que se desdobra (…) em duas regras distintas, mas complementares.

A 1.ª, da administração concorrente, refere-se aos actos de administração ordinária. Qualquer dos cônjuges tem legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal.

A 2.ª, da administração conjunta, abrange os actos de administração extraordinária. Os actos desta natureza, relativos aos bens comuns, só podem ser validamente praticados com o consentimento de ambos os cônjuges» ([16]).

Quanto à distinção entre atos de administração ordinária e extraordinária, apontam estes Autores serem do primeiro tipo «os que se destinam a prover à conservação dos bens (pintar a casa, reparar o muro caído, concertar a viatura, etc.) ou promover a sua frutificação normal (apanha da azeitona, monda da seara, poda das árvores, substituição da vinha envelhecida, etc.)», pertencendo aos atos de administração extraordinária «os que visam a realização de benfeitorias ou melhoramentos nas coisas ou a frutificação anormal dos bens» ([17]).

Nesta senda, refere Carlos Alberto da Mota Pinto que «não pertencem à mera administração – sendo actos de disposição – os negócios que alteram a própria substância do património administrado, que importem a substituição de uns bens por outros, que afectem, numa palavra, o capital administrado, pondo-o em risco, por importarem um novo e diverso investimento desse capital. Por ex.: vender os prédios que constituem o capital confiado ao administrador para dar qualquer outra aplicação ao respectivo preço; comprar prédios com dinheiro que faça parte do mesmo capital». Isto, tendo em conta que «o mero administrador, por falta de interesse pessoal ou das aptidões normais tem de confinar-se nos limites de uma gestão muito comedida e prudente. É incumbido apenas, na gestão dos bens administrados, de deferir ao expediente da gestão; numa palavra, fazer o trivial. Nada de voos arriscados. Nada de aventurosos empreendimentos, de iniciativas não isentas de perigos consideráveis. Nada de altas cavalarias» ([18]).  

Já Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira ([19]) esclarecem, por sua vez, que «os poderes de administração dentro do casamento são mais amplos do que os poderes dos vulgares administradores de bens alheios; assim, o cônjuge que está a administrar um bem comum, ou próprio do outro, por força de uma atribuição legal (art. 1678.º, n.º 2), tem poderes muito amplos, que só terminam, grosso modo, nos limites impostos pela necessidade de pedir consentimento ao outro, para a prática de certos actos, sob pena de ilegitimidade».

Ponderados estes ensinamentos doutrinais, patente resulta que a consumada aquisição pela R. mulher de uma quota social representativa de 16,665% do capital social – de molde a passar a dispor de 50% desse capital social –, assumindo-se, para tanto, devedora do montante de € 43.628,00, a ter de ser pago à transmitente, traduz um claro ato de administração extraordinária ou de disposição, carecido, por isso, do consentimento do outro cônjuge (art.º 1678.º, n.º 3, do CCiv.).

No caso, sabemos que a R. mulher era sócia e gerente da aludida sociedade, condição que não cabia ao seu cônjuge. Donde que, nesse horizonte, fosse de admitir ser aquela R. cônjuge administrador quanto a bem comum, com legitimidade para a prática de atos de administração ordinária, sendo que os restantes atos de administração só poderiam ser praticados – reitera-se – com o consentimento de ambos os cônjuges.

Termos em que, notoriamente excedidos os limites dos poderes de administração do cônjuge mulher, não está verificado o requisitório do art.º 1691.º, n.º 1, al.ª c), do CCiv., afastando a responsabilização do R. marido pela dívida neste âmbito, contraída para aquisição da quota.

2. - Quanto à invocada comercialidade do ato de aquisição da quota social

Dispõe o art.º 1691.º, n.º 1, al.ª d), do CCiv. que são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer deles no exercício do comércio (salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens).

Visto já que o regime de bens do casamento dos RR. é o supletivo legal – o da comunhão de adquiridos [cfr. al.ª g) dos factos provados e art.º 1717.º do CCiv.] –, importa, então, saber se a dívida em causa foi contraída pelo cônjuge mulher no exercício do (seu) comércio, estando em causa o ato de aquisição – por cessão – da dita quota em sociedade comercial ([20]).

Na sentença em crise foi exarada, no essencial, a seguinte fundamentação jurídica:

«Podemos, desde já, excluir a categorização da dívida como comum em função do desejo de atribuição da qualidade de comerciante à Ré P... [e que, a ser aceite, conduziria à imputação do ónus da prova de inexistência de proveito comum ao Réu L...]. (…)

É que a Ré (…) se achava já sócia e gerente de A Q... com carácter prévio ao negócio de cessão de quotas outorgado com a Autora (…). Detendo desde 14 de Fevereiro de 2012 uma quota de €6.667,00 e figurando, outrotanto, como gerente desde 25 de Fevereiro de 2013.

Ainda que assim não fosse, a realidade é que a circunstância de tratarmos de um contrato tendente à transmissão de uma quota em nada contribui para que a Ré P... possa ser reconhecida como comerciante. Atente-se que se assumirão comerciantes, para efeitos do artigo 13.º, n.º 1 do Código Comercial, “as pessoas, que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão”. No que tal qualidade não se ancora na prática de um acto objectivo de comércio mas antes na própria actividade desenvolvida pelos intervenientes no negócio.

(…)

As funções de gerente assumidas pela Ré P... também não possibilitam o seu enquadramento como comerciante. Como preconiza o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Outubro de 2012 [no mesmo sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2015, do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Junho de 2005, do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Outubro de 2011 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 4 de Junho de 2020],

2. A qualidade de comerciante obtém-se a partir da prova de factos de onde decorra o exercício continuado de actos substancialmente de comércio.

3. Ser sócio gerente de uma sociedade comercial não acarreta a qualidade de comerciante, uma vez que os actos de gerência societária são actos de representação e não em nome próprio.

Temos, assim, que, para a alínea d) do n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil, se apresenta absolutamente inócua i) a circunstância de a Ré P... ser sócia de A Q..., ii) ser também sua gerente e/ou iii) de ter celebrado o negócio mencionado na alínea a) dos factos provados com vista à aquisição de quota complementar.».

Convoca, ex adverso, a Recorrente o disposto no art.º 463.º, n.º 5, do CCom. ([21]), argumentando que a contratada cessão/aquisição (reconduzindo-se à matriz da compra e venda) de quota em sociedade comercial é, por si, um ato comercial – leia-se, objetivamente comercial –, que, como tal, tem de responsabilizar ambos os cônjuges, nos termos do disposto na al.ª d) do n.º 1 do art.º 1691.º do CCiv..

Nesta vertente, defendera o Tribunal a quo o entendimento jurisprudencial no sentido de ser “exercício de comércio”, «não a prática de quaisquer actos de comércio, mas apenas o desempenho da profissão de comerciante, deste modo se excluindo da presunção do artigo 1691.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil e do art.º 15.º do C. Comercial, nomeadamente as dívidas provenientes de actos de comércio isolados e as dívidas provenientes de actos de comércio estranhos ao exercício da sua profissão (comercial) habitual».

Isto, tendo em conta que o «objectivo que emana desta norma (art.º 463.º do C. Comercial) é o de, especifica e concretamente, incluir no tipo de comercialidade mercantil todas as situações nela individualizadas, deste modo estendendo e submetendo aos princípios informadores do direito mercantil, ou seja, às disposições da lei comercial, todos os contratos ou negócios jurídicos que se prendem, designadamente com “as compras e vendas de partes ou de acções de sociedades comerciais”». Porém, sendo «objectivamente comercial a compra e venda duma quota, ou parte dela, duma sociedade comercial, isto é, integra um contrato de compra e venda comercial a transmissão assim estipulada», tal não faz subsumir, sem mais, a situação na previsão da «alínea d) do n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil: a aplicação deste preceito está dependente da constatação de estarmos perante uma dívida contraída por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio.» (citação da sentença, que, por sua vez, transcreve segmentos de Ac. TRG de 07/12/2006, com itálico aditado).

Assim sendo, tem de responder-se à seguinte questão: o requisito legal (do direito civil) “exercício do comércio”, para o efeito de responsabilização do outro cônjuge pela dívida resultante, basta-se com a prática de um ato objetivamente comercial – como a aquisição de uma quota de sociedade comercial – ou exige, a mais disso, o exercício/desempenho (subjetivo) da profissão de comerciante, levando à exclusão de dívidas provenientes de atos de comércio isolados e de atos de comércio estranhos ao exercício da profissão (comercial) habitual?

Com efeito, como salienta António Menezes Cordeiro ([22]), para além dos atos de comércio objetivos – todos aqueles que, nas palavras do art.º 2.º, primeira parte, do CCom., se acharem especialmente regulados neste Código, incluindo, pois, as «Compras e vendas comerciais», previstas no referido art.º 463.º, isto é, aqueles «que o são por si e em si mesmos» –, a lei prevê os atos de comércio subjetivos, «todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar» (cfr. o mesmo art.º 2.º, segunda parte), âmbito em que «a comercialidade deriva do sujeito», empregando-se o conceito «comerciantes» em sentido «reportado à definição de comerciante que resulta do artigo 13.º», o qual, por seu lado, preceitua serem «comerciantes» (i) as pessoas, que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão e (ii) as sociedades comerciais.

Indicam ainda os aludidos Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira ([23]) que o legislador visou «a tutela do comércio» naquela al.ª d) do n.º 1 do art.º 1691.º, posto, ao alargar «o âmbito da garantia patrimonial concedida aos credores daqueles que exercem o comércio (…) facilita-se a estes últimos a obtenção de crédito e, desta maneira, favorecem-se as actividades mercantis», sendo que este regime se completa com o normativo do art.º 15.º do CCom., segundo o qual as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do comércio. Complementam que tal alargamento do âmbito da garantia patrimonial «corresponde a um sacrifício dos interesses do cônjuge do comerciante, que preferia ficar alheio aos riscos da actividade desenvolvida pelo comerciante; este sacrifício (…) é-lhe imposto em favor do credor e do comércio».

Em causa está, pois, o exercício do comércio, uma vez que o legislador teve o propósito de acorrer à «tutela do comércio», enquanto atividade profissional do cônjuge devedor comerciante. Não basta, pois, a simples demonstração da prática de um ato objetivamente comercial.

Cabe, então, perguntar: a R. mulher é comerciante e adquiriu a dita quota no exercício do seu comércio?

Da factualidade provada nada resulta que permita concluir nesse sentido: apenas se sabe que tal R. é sócia e gerente da sociedade, tendo passado a deter 50% do capital social, desconhecendo-se, porém, qual a sua profissão ou qual a atividade a que se vem dedicando.

Não podendo, assim, por falta de factos de suporte ([24]), chegar-se à conclusão no sentido de a R. mulher ser comerciante e ter adquirido a quota societária no exercício do seu comércio ([25]), por preencher ficam também, como se haverá de convir, os requisitos da al.ª d) do n.º 1 do referenciado art.º 1691.º.

Donde que tenham de soçobrar, salvo o devido respeito, os argumentos da Apelante em contrário, não se mostrando violados os preceitos legais a que alude, com a consequência da manutenção da decisão absolutória recorrida.

Improcede, pois, a apelação.

 

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - No âmbito do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges, a aquisição por um deles, casado no regime da comunhão de adquiridos, de uma quota de uma sociedade comercial por quotas – de que já era sócio e gerente –, por forma a tornar-se titular de 50% do capital social, implica que essa quota passe a integrar o património comum do casal, de que ambos são contitulares em termos igualitários, daí resultando o proveito comum desse casal, posto estar subjacente, independentemente dos resultados obtidos, um fim/escopo direcionado para o interesse comum do casal.

2. - Porém, ainda que se entenda que o cônjuge adquirente agiu como administrador, a aquisição de tal quota constitui um ato de administração extraordinária (ou de disposição), extravasando os limites dos seus poderes de administração sobre os bens comuns (quanto ao capital implicado na aquisição), para cuja prática teria de dispor do consentimento do outro cônjuge, considerando-se não preenchido, para o efeito de responsabilização por dívidas, o requisitório da al.ª c) do n.º 1 do art.º 1691.º do CCiv..

3. - Nesse caso, embora o ato de cessão/transmissão da quota seja de qualificar como objetivamente comercial, não se provando que o cônjuge adquirente seja comerciante e tenha agido no exercício do seu comércio, também tem de afastar-se a responsabilização do outro cônjuge, pela dívida resultante, no quadro da al.ª d) do n.º 1 daquele art.º 1691.º.


***

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a sentença absolutória recorrida.

Custas da apelação a cargo da A./Apelante.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.
Coimbra, 15/12/2021

Vítor Amaral (Relator)

         Luís Cravo

         Fernando Monteiro                                    




([1]) Em 11/10/2019.
([2]) Datada de 08/07/2021.
([3]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([4]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) É sabido que a prova por depoimento de parte se destina a obter confissão (a denominada prova por confissão das partes, como consta da epígrafe da secção respetiva do NCPCiv.) e que a confissão é sempre o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (cfr. art.º 352.º do CCiv.).
([6]) Assim como ao Tribunal é exigido um esforço de cabal fundamentação, em sede de decisão da matéria de facto, de molde a deixar claramente explicitado o iter decisório, passando por uma análise crítica e conjugada das diversas provas relevantes, sopesando-as, para que seja totalmente percetível o modo como foi fundada/firmada, quanto a cada concreto facto, a convicção da decisão de facto, elencando-se os elementos probatórios que foram decisivos para a formação dessa convicção, e dizendo-se, perante a força probatória atribuída a cada um deles, por que motivos o foram, também, nesse âmbito, o impugnante da decisão de facto, com vista à reapreciação recursiva desta, terá de deixar evidenciado onde se manifesta o erro do julgador, não podendo passar ao lado, logicamente, para triunfar nesse objetivo, de qualquer das provas que esse julgador elegeu como essenciais/decisivas para formação da sua convicção. Antes haverá de desmontar o raciocínio de quem procedeu ao ato de julgar, deixando claros os motivos pelos quais aquelas concretas provas – todas as valoradas – não poderiam justificar a convicção adotada.
([7]) Cfr. a taxativa enunciação do art.º 1691.º, n.º 3, do CCiv..
([8]) É esta a perspetiva – a dos resultados – em que a Apelante começou por focar-se.
([9]) V. Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, ps. 410 e seg..
([10]) Em Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 331.
([11]) Muito diversa da compropriedade (ou propriedade em comum), onde coexistem diversos direitos sobre a mesma coisa/bem, com quotas individuais (indivisas) a favor dos titulares do direito de com(propriedade), de acordo com o disposto no art.º 1403.º do CCiv., razão pela qual nenhum dos consortes é obrigado, por regra, a permanecer na indivisão (art.º 1412.º, n.º 1, do mesmo Cód.).
([12]) Cfr., a propósito do disposto no art.º 1730.º, n.º 1, do CCiv., o que referem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., ps. 510 e seg.: é atribuído “a cada cônjuge o direito a metade do valor do património comum, do activo e do passivo”, sendo, porém, que “não se trata de cada cônjuge ter um direito a metade de cada bem concreto do património comum – o que não corresponde ao conceito de património colectivo que a comunhão é”. Já o n.º 2 do mesmo art.º 1730.º alude claramente à “meação nos bens comuns” que assiste a cada cônjuge. Veja-se também, deste mesmo Coletivo, o Ac. TRC de 09-05-2017, Proc. 2440/13.6TBLRA.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt, onde se escreveu: «Quanto à natureza jurídica da comunhão conjugal, esclarece a doutrina que se trata de uma massa patrimonial (os bens comuns), com certo grau de autonomia, “que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco”, sendo tais cônjuges, ambos eles, “titulares de um único direito sobre ela”. // Nesta matéria, estabeleceu o legislador, quanto à participação dos cônjuges no património comum, a regra da metade, segundo a qual os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, tendo, por isso, cada um deles, em condições de igualdade, a sua meação nos bens comuns (…)». Neste sentido, os mencionados Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., p. 507.
([13]) Op. cit., p. 330.
([14]) Veja-se até o disposto no art.º 1725.º do CCiv., estabelecendo que, em caso de dúvida sobre a comunicabilidade dos bens móveis, os mesmos são considerados como comuns.
([15]) Cfr. op. cit., p. 334.
([16]) Op. cit., p. 289.
([17]) Cfr. op. cit., p. 289.
([18]) V. Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª ed. actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1983, ps. 407 e seg.. No mesmo sentido, com desenvolvida explicitação, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 9.ª Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2003, ps. 59 e segs..
([19]) Op. cit., p. 410.
([20]) Como comprovado, trata-se de quota na sociedade comercial por quotas designada «A Q... - Organização de Eventos, Lda.».
([21]) Preceito (referente às «Compras e vendas comerciais») segundo o qual são consideradas comerciais as compras e vendas de partes ou de ações de sociedades comerciais.
([22]) V. Manual de Direito Comercial, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, ps. 189 e 200 e seg..
([23]) Cfr. op. cit., ps. 412 e segs., seguindo, desde logo, ensinamento de Vasco Xavier.
([24]) Cujo ónus probatório invariavelmente cabia à A./Recorrente (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.).
([25]) Como bem sinalizado na sentença sob impugnação, a função de sócia e gerente é de mera representação da sociedade – repercutindo-se os atos que assim pratique na esfera jurídica desta – e não de exercício pessoal/profissional (por e para si) do comércio. Neste sentido, inter alia, o Ac. STJ de 10/12/2015, Proc. 2876/12.0TTLSB.L11.S1 (Cons. Gonçalves Rocha), e o Ac. TRG de 04/06/2020, Proc. 2848/19.3T8VNF-A.G1 (Rel. Fernanda Proença Fernandes), ambos disponíveis em www.dgsi.pt (aliás, invocados na decisão recorrida), o último deles com o seguinte sumário: «I. Do facto de exercer a gerência e ser sócio de uma sociedade comercial de responsabilidade lda, não decorre para o executado (marido da embargante/apelante) a qualidade de comerciante, pois que aí age como representante de uma sociedade, ainda que, no exercício da actividade comercial que esta desenvolve. // II. Ou seja, não exerce o comércio em nome próprio, mas sim da sociedade. // III. Tal impede a invocação da presunção de comunicabilidade da dívida emergente do art. 1691º, nº 1, al. d), do CC, bem como a aplicação do disposto no artº 15º do C.Comercial.».