Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
381022/09.9YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SEIA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 685.º-B N.º 1 A) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - Se o recorrente não identificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, face ao disposto no artigo 685.º-B n.º 1 a) do Código de Processo Civil, o recurso deve ser rejeitado na parte em que pretende impugnar o julgamento da matéria de facto.

II - No requerimento de interposição de recurso, ao identificar-se a decisão de que se recorre, delimita-se, numa primeira vez, o objecto do recurso. Depois, nas conclusões, o recorrente pode restringir esse objecto, mas aí já não lhe é permitido ampliá-lo de modo a abranger uma questão que foi conhecida numa outra decisão de que não se recorreu.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... apresentou requerimento de injunção, contra B... e C... L.da, pedindo a condenação destes no pagamento do montante de 21.907,01 €.

Alega, em síntese, que no exercício da sua actividade comercial, a pedido da ré, a partir de 1 de Janeiro de 2005 e até Agosto de 2009, prestou-lhe serviços de contabilidade, pelo valor mensal acordado de 500 €. A partir de Junho de 2006 esta deixou de lhe pagar qualquer valor. Demanda o réu por este ter assumido a posição de fiador em tal contrato.

Os réus deduziram oposição afirmando, em suma, que há erro na forma de processo e que entre a autora, o marido desta e a ré foi feito um acordo nos termos do qual aquela passaria a tratar da contabilidade de todas as empresas do réu, mulher e filho, mediante o pagamento mensal de 500 € e o marido da autora passaria a dar todo o apoio jurídico àquelas empresas dentro da sua actividade profissional de solicitador. Como compensação deste trabalho o réu disponibilizou àquele um andar de que é proprietário no Porto. Mais referem que o réu entregou ao marido da autora, para pagamento de despesas e serviços, cheques num valor global de 114.500 €, tendo, ainda, entregue, directamente a esta, em numerário 45.000 €. A autora e o marido não apresentam contas, nem apresentaram os documentos referentes às empresas e os réus aguardam que o façam para se ver quem deve a quem.

Sustentam, ainda, que pagaram as avenças à autora até 31-7-2007 e que esta não prestou qualquer trabalho à ré no ano de 2009. Negam que o réu se tenha constituído fiador e principal pagador da ré.

Foi proferido despacho em que se absolveu o réu B... da instância[1].

Realizou-se julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:

Em face do exposto, vistas as já indicadas normas e os princípios expostos, o Tribunal decide julgar a presente acção parcialmente procedente, por provada, e em consequência condenar a Ré a pagar à Autora a quantia que vier a ser liquidada, a título de preço dos serviços por esta prestados àquela desde Junho de 2006 (inclusive) a Julho de 2009 (inclusive), até ao limite de € 19.000,00, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, a partir da liquidação.

Inconformada com tal decisão, a ré dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

I- A Recorrente celebrou com a Recorrida e o marido desta um contrato verbal o qual envolvia a prestação ele serviços na área da contabilidade por parte da Recorrida e a prestação de serviços na área jurídica por parte do marido desta, em virtude do mesmo ter a profissão de Solicitador, serviços não só para a empresa aqui em causa mas também para as restantes empresas do grupo, ou seja, " D...", " E..." e " F...".

II- Do contrato fazia parte que o preço a pagar pelos serviços prestados a todas estas empresas seriam de € 500.00 mensais para a parte da contabilidade.

III- Para além deste valor o representante destas empresas, B..., cederia um andar no prédio de que é proprietário sito na Rua ..., ao marido da Recorrida - G... para este aí instalar o seu escritório, como veio a acontecer, bem como para a Recorrida, sem qualquer custos para estes.

IV - Todos os documentos inerentes às empresas eram entregues no escritório do G... o qual fazia uma triagem daqueles que se destinavam a ele próprio e aqueles que eram para a sua mulher, entregando a esta esses documentos.

V - No que concerne a pagamentos os mesmos eram feitos ao G..., conforme fora acordado, retirando este o dinheiro que fazia com despesas com processos e deveria entregar o restante à Recorrida.

VI- Desta forma o representante da Recorrente, Eng.º B..., entregou ao G... para o efeito os montantes de € 5.500,00; € 9.000,00; € 50.000,00: € 30.000,00; € 3.750,00 e € 16.250,00 todos titulados por cheques.

VII- Entregou o mesmo em dinheiro de contado à Recorri a quantia de € 45.000,00 em virtude desta assim o ter solicitado devido a estar em desavenças conjugais.

VIII- Porém, de todas as importâncias entregues nunca lhe foram passados qualquer facturação apesar de o ter solicitado inúmeras vezes, pelo que desconhece se está devedora ou credora para com aqueles

IX. Como se extrai pela leitura da Sentença a Meritíssima Juíza não deu como provado que a Recorrente tenha toda a sua situação regularizada com a Recorrida até 2007.07.31, contrariando desta forma o que o depoente H... afirmou em audiência de julgamento.

X. Porquanto este não só o afirmou peremptoriamente, como ainda disse que entregara pessoalmente à Recorrida um cheque no valor de Esc. 1.800.000$00 aquando esta se deslocou à Figueira da Foz.

XI- Não deu como provado também a entrega cm dinheiro dos € 45.000,00 o que contrasta com as afirmações proferidas pela testemunha H... em audiência de julgamento, o que vem ao arrepio da verdade dos tactos.

XII- Não deu corno provado também as quantias tituladas por cheques entregues ao G..., apesar de no processo a Recorrente apresentar fotocópias dos mesmos.

XIII- Para além de tudo isto é entendimento da Recorrente que a Recorrida lançou mão dum meio que não é o próprio para o fim visado, isto é, intentou processo de injunção contra a Recorrente quando o mesmo não é permitido por lei o que leva a que o processo seja nulo.

Termina pedindo que se revogue a sentença recorrida.

A autora contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil[2], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se há erro na apreciação da matéria de facto e se há erro na forma de processo, tendo que, em ambas as questões, se averiguar, previamente, se estão preenchidos os requisitos processuais para as apreciar.


II

1.º


Foram considerados provados os seguintes factos:

1. A Autora, técnica oficial de contas, presta serviços na área da contabilidade, quer a pessoas singulares quer a pessoas colectivas.

2. No exercício da sua actividade comercial, a pedido da Ré, e com efeitos a partir de 01.01.2005, foi entregue à Autora a gestão e organização da contabilidade daquela, sendo que por tal serviço fixaram um valor mensal fixo.

3. Em 01 de Setembro de 2009 a Autora enviou uma carta registada à Ré onde declarava resolver, por falta de pagamento dos serviços, o contrato referido em 2.

4. A Autora prestou serviços à Ré desde 01.01.2005 até 28.07.2009, e os serviços foram por aquela última aceites sem qualquer reserva.

5. A Autora interpelou a Ré, por diversas vezes, para proceder ao pagamento de serviços prestados e não pagos, a partir do mês de Junho de 2006.


2.º

O artigo 685.º-B n.º 1 a) obriga o recorrente a, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

O ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto traduz-se, deste modo, na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento -o ponto ou pontos da matéria de facto- da decisão  proferida que considera viciada por erro de julgamento[3]. Estas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2.ª instância[4]. É, pois, certo que se impõe ao recorrente um ónus rigoroso[5]

O recorrente tem de concretizar um a um quais os pontos de factos que considera mal julgados, seja por terem sido dados como provados, seja por não terem sido considerados como tal. (…)  Se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, compreende-se que os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento tenham de ser devidamente especificados nas conclusões do recurso. Na verdade, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, importa que os pontos de facto que ele considera incorrectamente julgados sejam devidamente concretizados nas conclusões, pois se aí não forem indicados o tribunal de recurso não poderá tomar conhecimento deles[6].

Por outro lado, a fim de desincentivar claramente possíveis manobras dilatórias, este preceito não previu o convite ao aperfeiçoamento da alegação que versa sobre a matéria de facto que se pretende impugnar e que, desde logo, não satisfaça minimamente, o estipulado nos n.ºs 1 e 2[7].

Ora, a ré não diz nas suas conclusões, nem tão pouco nas alegações, quais os artigos dos articulados[8] que considera incorrectamente julgados.

Nestes termos, sendo manifesta a inobservância do estatuído no citado artigo 685.º-B n.º 1 a), rejeita-se o recurso, no que toca à reapreciação da matéria de facto[9], o que tem por efeito a impossibilidade de, por esta via, se alterar a decisão da 1.ª instância, relativa aos factos provados e não provados.


3.º

A ré sustenta que a autora lançou mão dum meio que não é o próprio para o fim visado, isto é, intentou processo de injunção contra a Recorrente quando o mesmo não é permitido por lei o que leva a que o processo seja nulo[10].

Esta questão já tinha sido por si suscitada na parte inicial da sua oposição e foi decidida no despacho das folhas 23 a 26.

No requerimento em que interpõe recurso, a ré afirma que este é interposto da douta sentença final do processo que julgou o mesmo parcialmente procedente. Significa isso que a ré não interpôs recurso da decisão das folhas 23 a 26[11]; apenas recorreu da sentença.

O requerimento de interposição de recurso, ao identificar a decisão de que se recorre, delimita, numa primeira vez, o objecto do recurso. Depois, o recorrente tem a faculdade de, nas conclusões, o restringir, questionando apenas segmentos da decisão de que recorreu. Mas, já não lhe é permitido que, nas conclusões, amplie esse objecto, indo para além da decisão recorrida, com o propósito de abranger uma outra decisão de que não recorreu.

Consequentemente, não é possível ser aqui conhecida uma questão que foi julgada numa outra decisão, da qual não foi interposto recurso.

Não pode, portanto, conhecer-se do alegado erro na forma de processo.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pela ré.

                                       
António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Hélder Almeida


[1] Cfr. folhas 23 a 26.
[2] São do Código de Processo Civil todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
[3] Lopes do Rego, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. I, pág. 584, referindo-se à redacção que o artigo 690-A n.º 1 a) tinha antes da reforma introduzida pelo Decreto-Lei 303/2007 de 24 de Agosto, que era praticamente igual à do actual artigo 685.º-B n.º 1 a)
[4] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 142.
[5] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. III, pág.61.
[6] Acórdão do STJ de 8-3-06, processo 05S3823. Ver ainda neste sentido Ac. Rel. Coimbra de 12-5-09, Proc. 2546/06.8TBAVR.C1 e de 3-6-08, Proc. 245-B/2002.C1, da Rel. Lisboa de 26-3-09, Proc. 301-1997.L1.2 e Ac. Rel. Guimarães de 23-9-2010, Proc. 2139/06.0TBBRG-A.G1, todos em www.gde.mj.pt.
[7] Lopes do Rego, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. I, pág. 585. Neste sentido pode ver-se também Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 141, Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 3ª edição, pág. 150, nota 301 e o acórdão do STJ de 8-3-06 acima citado.
[8] Importa não esquecer que nesta acção não há lugar à elaboração de base instrutória.
[9] Neste sentido Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 143.
[10] Conclusão XIII.
[11] Podia fazê-lo nos termos do disposto no artigo 691.º n.º 3.