Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3854/18.0T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: TERMOS POSTERIORES AOS ARTICULADOS
SUA REGULAÇÃO
PODERES DO JUIZ
Data do Acordão: 09/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 22-09-2021
Sumário: 1. O art.º 597º do CPC regula os termos posteriores aos articulados nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, conferindo ao juiz um amplo poder de gestão e adequação processual, norteado pela necessidade e a adequação do acto ao fim do processo.

2. Naquela situação, a decisão é discricionária, mas a audiência prévia deve ser convocada sempre que seja a forma mais eficiente de obter a satisfação dos princípios processuais que dela carecem (nesta fase) - maxime, os princípios do contraditório e da cooperação processual.

3. Observado o contraditório por escrito, nomeadamente com a prolação de despacho pré-saneador no sentido de apurar a realidade e aperfeiçoar a petição inicial dos embargos (opostos a execução para prestação de facto baseada em sentença condenatória), mantendo as partes as posições que já decorriam dos autos, não importa realizar outras diligências além das previstas no art.º 875º do CPC, se necessárias.

Decisão Texto Integral:



            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

I. Em 09.01.2019, P... e mulher, M... deduziram oposição, por embargos, à execução para prestação de facto que lhes é movida por C..., concluindo “pela impossibilidade da prestação por partes dos executados” e que “deve a execução ser julgada extinta”.

Alegaram, nomeadamente:

- O prédio que os executados foram condenados a reconhecer como sendo da “propriedade dos exequentes”, que teve a sua origem num outro prédio devidamente identificado nas alíneas h) e l) dos factos assentes da sentença condenatória (“sem sinais visíveis que o distingam do prédio dos exequentes”), não se encontra devidamente definido e não se pode extrair dos factos provados qual a sua exacta localização, área e limite nascente;

- Encontra-se prejudicada qualquer prestação que os executados eventualmente poderiam fazer, por indeterminação do objeto, neste caso o prédio autonomizado, pelo que a presente execução não deverá ser admissível enquanto não existir um expediente de demarcação do prédio autonomizado;

- Caso assim não se venha a entender, sempre se dirá que no local não existe qualquer rede metálica assente sobre postes, nem existe qualquer entulho a que a sentença faz referência, pelo que não podem os executados retirar o que não existe.

            A exequente contestou, impugnando todos os factos alegados pelos embargantes/executados, por não corresponderem à verdade; concluiu pela improcedência dos embargos e o prosseguimento da execução até final.

            Por despacho pré-saneador de 10.02.2020, a Mm.ª Juíza a quo - depois de referir que “da sentença dada à execução resulta que os réus, ora embargantes foram condenados, além do mais, a remover todo o entulho que fizeram enterrar no prédio descrito na alínea ll) dos factos provados: a retirar a vedação metálica e os postes em que assenta, colocados no prédio descrito na alínea ll) dos factos provados”, e que “resultou provado (…) que o entulho e vedação existiam” - convidou os embargantes a esclarecer, no prazo de 10 dias, «qual o sentido do alegado, designadamente, se o que pretendem referir é que já teve lugar a prestação de facto que lhes era exigida, ou seja, se o que pretendem verdadeiramente alegar é que posteriormente à condenação já teve lugar o cumprimento daquela obrigação (…), o que se determina, nos termos e para os efeitos do art.º 590º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil».

            Vieram então os embargantes dizer que «atualmente não existe no local qualquer rede metálica assente em postes, nem existe qualquer entulho», ao que a exequente respondeu, afirmando, designadamente:

            - É falso o alegado pelos embargantes, a rede metálica continua no local, tendo sido reforçada com arames apoiados nos postes de cimento;

            - O monte de brita desapareceu, mas não se conhece o que ali foi enterrado;

- Os embargantes não só não cumprem o decidido (por sentença transitada em julgado, confirmada por Acórdão da RC) como faltam à verdade ao Tribunal e continuam a praticar actos que perturbam, impedem, dificultam e estorvam o livre exercício do direito de propriedade, construindo o muro de cimento já depois do trânsito em julgado do Acórdão e agora reforçaram as vedações metálicas.[1]

            - De forma livre, voluntária e conscientemente afirmam que “não existe no local qualquer rede metálica assente em postes, nem existe qualquer entulho” (apenas é verdade que a brita desapareceu), faltando ostensivamente à verdade, pelo que devem ser condenados como litigantes de má fé em multa e indemnização condigna, conforme o previsto nos art.ºs 542º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC).

            Notificados nos termos e para os efeitos dos art.ºs 6º, n.º1 e 547º do CPC para responderem, querendo, ao pedido de condenação como litigantes de má fé (despacho de 04.4.2020), os embargantes pugnaram pelo seu desatendimento.

            Por saneador-sentença de 25.3.2021, a Mm.ª Juíza a quo, invocando o disposto nos art.ºs 592º, n.º 1, al. b) e 595º, n.º 1, al. a) do CPC [aplicável por força do art.º 732º, n.º 2 do CPC] e considerando os fundamentos da petição inicial (p. i.) de Embargos de Executado, os documentos constantes dos autos e a posição assumida pela Exequente, julgou improcedentes, por não provados, os presentes embargos à execução, determinando o prosseguimento da execução, com a fixação do prazo de 30 (trinta) dias para a prestação dos factos objecto da sentença que serve de título executivo.

Inconformados, os embargantes apelaram formulando as seguintes conclusões:

...

Rematam pugnando pelo conhecimento e decisão sobre a invocada nulidade processual, ou caso assim se não entenda, anulada a referida decisão e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos de embargos de executado até final.

            A exequente respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e/ou decidir, apenas, se o saneador-sentença deve ser anulado por omissão de audiência prévia.

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1) No dia 30.10.2018[2] a Exequente deu entrada do requerimento executivo constante dos autos principais, apresentando como título executivo sentença condenatória judicial já transitada em julgado em 13.6.2018[3], proferida no processo n.º ..., que correu termos no Juízo Local Cível de Pombal, em cujo dispositivo consta:

«Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente e, em conformidade:

a) Condena-se os Réus P... e M... a reconhecer que o prédio descrito na alínea ll) dos factos provados constitui hoje um prédio autónomo e distinto do prédio descrito nas alíneas h) e l) dos factos provados;

b) Condena-se os Réus a reconhecer que o direito de propriedade sobre o prédio descrito na alínea ll) dos factos provados foi adquirido, por usucapião, pela herança aberta por óbito de M..., de que a Autora C... e os chamados (…) são contitulares e de que a Autora é também cabeça-de-casal;

c) Condena-se os Réus a remover todo o entulho que fizeram enterrar no prédio descrito na alínea ll) dos factos provados;

d) Condena-se os Réus a retirar a vedação metálica e os postes em que assenta, colocados no prédio descrito na alínea ll) dos factos provados;

e) Condena-se os Réus a restituir à Autora e aos chamados, nas referidas qualidades de contitulares e de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de M..., tal parte do prédio em que enterraram entulho e colocaram a vedação, entregando-o livre de pessoas e coisas;

f) Condena-se os Réus a absterem-se da prática de todo e qualquer acto que perturbe, impeça, dificulte ou de qualquer modo estorve o livre exercício do direito de propriedade sobre tal prédio descrito na alínea ll) dos factos provados;

g) Absolve-se os Réus dos restantes pedidos formulados pela Autora

2) Na acção descrita em 1), as alíneas h), l), ll), tt), uu) e vv) dos factos provados têm a seguinte redacção:

h) Consta ainda da referida escritura que “os mencionados A... e E... eram donos e legítimos possuidores com exclusão de outrem dos vinte e sete prédios descritos no documento complementar”, entre eles o prédio descrito na verba n.º 22 como “terra de cultura com oliveiras no sítio da P..., a confrontar ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., com a área de quatrocentos metros quadrados”.

l) O prédio identificado na alínea h) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o n.º... como prédio rústico situado em ..., composto por terra de cultura com oliveiras e fruteira, com a área de 400 m2, a confrontar do ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ....

ll) Esta parcela, sita em..., tem uma oliveira, confronta do ...

tt) Em data não concretamente apurada, os Réus P... e M...- iniciaram a construção, nas proximidades, de uma casa de habitação na parte a nascente do prédio por eles adquirido.

uu) Tendo nessa ocasião enterrado entulho na parcela descrita em ll).

vv) Em data não concretamente apurada, os Réus abriram buracos no solo da parcela descrita em ll), próximo da estrada, e neles colocaram uma vedação metálica em toda a extensão que confronta com essa estrada.

2. E deu como não provado:

a) Os embargantes tenham cumprido o descrito em 1) dos factos provados.

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

           Na doutrina e na jurisprudência firmou-se o seguinte entendimento: “se a (pretensa) nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, (…) o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: ´dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se`.”

No caso em apreço a (pretensa) nulidade invocada ficou coberta (consumada/integrada) pela decisão recorrida, pelo que o recurso deduzido se mostra o meio processual adequado para contra ela reagir.[4]

4. O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão (art.º 639º, n.º 1 do CPC[5]), ou seja, ao ónus de alegar acresce o ónus de concluir - as razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, importando que a alegação feche pela indicação resumida das razões por que se pede o provimento do recurso (a alteração ou a anulação da decisão).

            Ora, o tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objeto do recurso; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objetiva que haja sido dada ao recurso, no corpo da alegação[6], sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no respetivo corpo.[7]

            5. O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (art.º 3º, n.º 3).

Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável (art.º 6º, n.º 1).

Não é lícito realizar no processo atos inúteis (art.º 130º).

O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo (art.º 547º).

Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior[8], se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594º; b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate; d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595º; e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6º e no artigo 547º; f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes; g) Programar, após audição dos mandatários, os actos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas (art.º 591º, n.º 1). O despacho que marque a audiência prévia indica o seu objeto e finalidade, mas não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa (n.º 2).

A audiência prévia não se realiza: a) Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568º; b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados (art.º 592º, n.º 1). Nos casos previstos na alínea a) do número anterior, aplica-se o disposto no n.º 2 do artigo seguinte (n.º 2).

 Nas acções que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591º (art.º 593º, n.º 1). No caso previsto no número anterior, nos 20 dias subsequentes ao termo dos articulados, o juiz profere: a) Despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595º (n.º 2).

O despacho saneador destina-se a: a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (art.º 595º, n.º 1). No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas; na hipótese prevista na alínea b), fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença (n.º 3).

Nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do art.º 590º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo: a) Assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados; b) Convoca audiência prévia; c) Profere despacho saneador, nos termos do no n.º 1 do art.º 595º; d) Determina, após audição das partes, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 6º e no art.º 547º; e) Profere o despacho previsto no n.º 1 do art.º 596º; f) Profere despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas; g) Designa logo dia para a audiência final, observando o disposto no art.º 151º (art.º 597º).

Se forem recebidos os embargos, o exequente é notificado para contestar, dentro do prazo de 20 dias, seguindo-se, sem mais articulados, os termos do processo comum declarativo (art.º 732º, n.º 2).

            6. Os embargos à execução constituem uma verdadeira ação declarativa, que corre por apenso ao processo de execução (cf. o art.º 732º, n.ºs 1 e 2).[9]

            A exequente atribuiu à execução o valor de €5.000,01, aceite pelos executados/embargantes como valor dos embargos e que o Tribunal fixou à causa (cf. fls. 3 verso, 28 verso e 48 e art.º 306º, n.ºs 1 e 2).

            Assim, a presente ação é de valor não superior a metade da alçada da Relação (cf. o art.º 44º, n.º 1, da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8).

            7. Decorre dos autos que a Mm.ª Juíza a quo proferiu despacho pré-saneador visando o aperfeiçoamento da p. i. e o cabal esclarecimento da realidade, pois era evidente que os executados/embargantes, com a sua alegação “genérica, vaga, imprecisa, tanto na p. i. como após o convite formulado pelo Tribunal”, não se dignaram esclarecer, principalmente, “quando, quem, como, de que forma é que deram cabal cumprimento à prestação em que foram condenados”, escudando-se “única e verdadeiramente na (pretensa) ausência de demarcação da parcela dada como provada propriedade da herança de que a exequente é cabeça-de-casal”.[10]

 Na fundamentação de direito, depois de aludir à tipificação (de títulos executivos) do art.º 703º, referiu, ainda, a Mm.ª Juíza:

- A presente execução funda-se numa sentença condenatória judicial transitada em julgado;

- A parcela (em causa) está delimitada, o entulho está provado que foi enterrado nessa parcela pelos embargantes e estes têm conhecimento da sua concreta localização e da vedação metálica e postes que assentaram na parcela, em toda a extensão que confronta com a estrada;

- A matéria alegada (nos embargos) visa inequivocamente a reapreciação dos fundamentos da decisão exequenda, o que não se enquadra no art.º 729º;

- Os executados reconhecem o não cumprimento da obrigação, refugiando-se em necessidade de demarcação prévia e apuramento de área;

- Na falta de prazo para os executados cumprirem a obrigação (a prestação do facto objecto da sentença que serve de título executivo), o Tribunal fixa o prazo indicado pela exequente.

8. A realização da audiência prévia é obrigatória sempre que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador (art.ºs 591º, n.º 1, alínea b) e 593º, n.º 1, a contrario), destinando-se, nesta hipótese, a facultar às partes a discussão de facto e de direito antes do proferimento do saneador-sentença, à semelhança do que acontece com as alegações orais com que termina a fase da audiência final (cf. art.º 604º, n.ºs 3, alínea e) e 5) e que antecedem o proferimento da sentença final.

Esta conclusão é confirmada pelo disposto no art.º 592º, n.º 1, al. b): a audiência prévia não se realiza quando o processo haja de findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta já tenha sido debatida nos articulados (o que, atendendo à actual função da réplica - cf. art.º 584 -, raramente acontece). Assim, ´a contrario sensu`, pode concluir-se que a audiência prévia deve realizar-se quando o juiz pretenda conhecer do mérito da causa no despacho saneador, o que se justifica pela referida função da audição prévia das partes.[11]

9. Conjugados os art.ºs 591º, n.º 1, 592º, n.º 1, 593º, n.º 1, 593º, n.º 3 e 597º resulta claro que a tramitação de uma ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (€15000) incluirá a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei assim o estabeleça, o que sucede nos casos referidos no art.º 592º, n.º 1, e quando o juiz dispense a realização da audiência, ao abrigo do art.º 593º, n.º 1. Com tais ressalvas, a audiência prévia é obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade.[12]

O regime regra é o de que a audiência prévia tem sempre lugar, como se prevê no art.º 591º, salvo nas situações previstas no art.º 592º, em que não se realiza, ou nas hipóteses expressamente contempladas no art.º 593º, n.º 1, em que se atribui ao juiz a faculdade de a dispensar. [13]

10. Resulta do mencionado quadro normativo que nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação, a realização de audiência prévia não é obrigatória, mas é a regra.[14]

Nessas acções (que hajam de prosseguir), o juiz não pode dispensar a realização da audiência prévia quando, para satisfação dos respectivos fins[15], haja necessidade de realizar qualquer dos actos previstos nas alíneas a) a c) e g) do n.º 1 do art.º 591º (art.º 593º, n.º 1).

A decisão de dispensa da audiência prévia deve ser precedida da consulta das partes (art.º 3º, n.º 3), assim se garantindo o contraditório sobre a gestão do processo e uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa - se a audiência prévia faz parte, por regra, do processo equitativo predisposto pelo legislador, a sua dispensa (também admitida por este) deve revestir-se das maiores cautelas, de modo a não gerar incoerências e desequilíbrios na estrutura do processo.[16]

11. Excluídas as situações em que o juiz a possa dispensar nos termos do art.º 593º, n.º 1 e a previsão do art.º 592º, a audiência prévia terá de ser realizada, sendo ilegal a sua dispensa, salvo na situação particular do art.º 597º.[17]

Trata-se do caso dos autos.

Na interpretação/aplicação do art.º 597º também se deverá concluir que a ponderação acerca da necessidade da realização da audiência prévia é uma decisão levada a cabo no uso dos poderes de gestão e adequação processual (art.ºs 6º e 547º).

Contudo, enquanto nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação o juízo de ponderação tem de ser feito em interacção com as partes, que em última análise têm de ser convencidas do bem fundado da decisão do juiz (sendo-lhes atribuído o poder de impor a realização da audiência prévia), nas acções que não atinjam aquele valor, diminuem as necessidades de interacção com as partes e os poderes destas na conformação do resultado (eliminando-se a possibilidade prevista no n.º 3 do art.º 593º), aproximando (se não equiparando) a actividade de ponderação do juiz nesse caso do ‘uso legal de um poder discricionário (art.º 630º, n.º 1).[18]

O art.º 597º regula os termos posteriores aos articulados nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, conferindo ao juiz um amplo poder de gestão e adequação processual, norteado pela necessidade e a adequação do acto ao fim do processo.[19]

No entanto, mesmo em tais situações, a audiência prévia deve ser convocada sempre que seja a forma mais eficiente de obter a satisfação dos princípios processuais que dela carecem (nesta fase) - maxime, os princípios do contraditório e da cooperação processual.

A decisão é discricionária, mas a satisfação dos princípios não o é, pelo que, se o juiz não convocar a audiência, deve oferecer o contraditório por escrito, sempre que, por exemplo, seja necessário ouvir as partes.[20]

12. Vejamos o caso em análise.

 O litígio das partes existe, em tribunal, desde 2009.

A decisão declarativa que definiu a situação dos autos já conta com mais de 3 anos, sendo que os embargantes/executados não trouxeram à ação executiva (novos) elementos para concluir por um diferente estado de coisas!

Daí, a ctividade processual implementada pela Mm.ª Juíza a quo no sentido de apurar a realidade (aperfeiçoando, clarificando e complementando o articulado na p. i.), visando saber, principalmente, se, quando e como os embargantes haviam cumprido o determinado pelo Tribunal da 1ª instância e confirmado pela Relação.

Aparentemente, e paradoxalmente, os embargantes continuaram a ignorar o que foi decidido, e, em posição diametralmente oposta à da exequente, afirmam que nada existe para cumprir!

Assim, perante os factos, a documentação junta aos autos, a descrita actuação processual e o apontado quadro normativo, era manifestamente desnecessário (inútil e excessivo) realizar quaisquer outras diligências ou audiências…

Salvo o devido respeito por entendimento contrário, cumprindo, ainda, o previsto no art.º 875º, a Mm.ª Juíza a quo observou o que era lhe ditado pela lei e a melhor/razoável leitura dos factos.

13. Desconhece-se se o Tribunal proferiu decisão sobre a conduta processual das partes, atento o regime previsto nos art.ºs 542º e seguintes (cf. o despacho de 04.4.2020 e ponto I., supra).

14. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos embargantes/executados.


22.9.2021


***

[1] Consta da parte final do “Requerimento de Execução de Decisão Judicial Condenatória”: «(…) Os Executados não só não cumprem o decidido, recusando-se a fazê-lo quando interpelados, como continuam a praticar actos que perturbam, impedem, dificultam e estorvam o livre exercício do direito de propriedade, colocando mais muros, entulho e vedações, daí a necessidade desta Execução para os obrigar a cumprir a Sentença num prazo não superior a 30 dias
[2] Existe lapso - a execução foi instaurada em 25.10.2018 (cf. fls. 50/77 verso).
[3] Consta dos autos que a sentença da 1ª instância, proferida a 13.7.2017, foi integralmente confirmada por acórdão desta Relação de 08.5.2018 (cf. os documentos de fls. 50 e 65).

[4] Neste sentido, cf., nomeadamente, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 424; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 183 e Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, pág. 393 e, de entre vários, os acórdãos da RP de 23.3.2020-processo 16238/15.3T8PRT-A.P1 e da RL de 09.10.2014-processo 2164/12.1TVLSB.L1-2 e 23.10.2018-processo 1121/13.5TVLSB.L1-1, publicados no “site” da dgsi.
[5] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[6] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V, cit., págs. 308 e seguintes e 358 e seguintes; J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33 e os acórdãos do STJ de 21.10.1993 e 12.01.1995, in CJ-STJ, I, 3, 84 e III, 1, 19, respectivamente.
[7] Cf. o citado acórdão do STJ de 12.01.1995.
[8] Que preceitua: “Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a: a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6º; b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes; c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de excepções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador”.
[9] Vide, entre outros, J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 228.
[10] Cf. a “motivação” da decisão sobre a matéria de facto apresentada pela Mm.ª Juíza a quo.
[11] Vide “post” colocado pelo Professor Miguel Teixeira de Sousa em comentário ao sumário do acórdão do TCA-S de 26.3.2015-processo 11818/15, no seu blogue do IPPC.
   Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII pode também extrair-se: «A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.»

[12] Como se prevê no n.º 1 do art.º 195º: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”

[13] Sobre este ponto e o anterior, vide, nomeadamente, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, págs. 650 e seguinte; Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, 1ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág. 369; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, CPC Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 686 e Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, 2ª edição, vol. I., págs. 525 e 535 e seguintes [comentando o art.º 591º, afirma-se, a págs. 526 e seguinte: «A realização da audiência prévia está longe de ser forçosa. (...) O legislador não quer que o juiz realize a audiências prévia como um fim em si mesmo. Quer, sim, que realize a melhor gestão do processo, de modo a que, com base numa adequada preparação da instrução, se venha a obter uma decisão que possa constituir a justa composição do litígio. (…) A realização da audiência prévia não é obrigatória, mas também não é facultativa. É a regra. (…)»] e, de entre vários, os acórdãos da RP de 24.9.2015-processo 128/14.0T8PVZ.P1 [com o seguinte sumário: «I - Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, deverá convocar audiência prévia para o fim previsto no artigo 591º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil./ II - A não realização desse acto processual só será consentida no âmbito do exercício do dever de gestão processual, a título de adequação formal, se o juiz entender que a matéria a decidir foi objecto de suficiente debate nos articulados, justificando a dispensa dessa diligência. Sobre o propósito de dispensar a audiência prévia deverá, porém, ouvir as partes, de acordo com o disposto nos artigos 6º, n.º 1, e 3º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil./ III - A não realização de audiência prévia, impondo a lei a sua realização, constitui nulidade processual, podendo ser arguida em sede de recurso, conduzindo à anulação da decisão que dispensou a sua convocação e do saneador-sentença que se seguiu a essa decisão.»], 12.11.2015-processo 4507/13.1TBMTS-A.P1 e 27.9.2017-processo 136/16.6T8MAI-A.P1, da RG de 01.3.2018-processo 9217/15.2T8VNF.G1, da RL de 09.10.2014-processo 2164/12.1TVLSB.L1-2 [concluindo-se: I. Se, em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, o juiz entende, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, que o processo deverá findar imediatamente com prolação de decisão de mérito, deverá convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito. II. A não realização de audiência prévia, neste caso, quando muito só será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (artigos 547º e 6º n.º 1 do CPC), se porventura o juiz entender que no processo em causa a matéria alvo da decisão foi objeto de suficiente debate nos articulados, tornando dispensável a realização da dita diligência, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio; tal opção carecerá, porém, de prévia auscultação das partes (cf. art.º 6.º n.º 1 e 3.º n.º 3 do CPC). III. A prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, assente tão só na asserção de que “o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa”, desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso, implicando a revogação da decisão que dispensou a convocação da audiência prévia e a consequente anulação do saneador-sentença proferido.], 05.05.2015-processo 1386/13.2TBALQ.L1 e 22.6.2021-processo 9796/19.5T8LRS.L1-7, da RC de 24.9.2019-processo 6/16.8T8PBL-A.C1 e da RE de 24.5.2018-processo 10442/15.1T8STB-A.E1 [assim sumariado: «1. O regime regra é o de que a audiência prévia tem sempre lugar, como se prevê no art.º 591º, do CPC, salvo nas situações previstas no art.º 592º, em que não se realiza, ou nas hipóteses expressamente contempladas no art.º 593º/1, em que se atribui ao juiz a faculdade de a dispensar. 2. Sempre que o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento, como decorre dos art.ºs 591º, n.º 1, als. b) e d) e 595º, n.º 1, al. b) do CPC. 3. Sendo obrigatória a convocação da audiência prévia, a omissão desse ato processual constitui nulidade processual inominada sujeita ao regime dos art.ºs 195º do CPC e seguintes.»], publicados no “site” da dgsi.

[14] Cf., de entre vários, os citados acórdãos da RL de 23.10.2018-processo 1121/13.5TVLSB.L1-1 e da RP de 23.3.2020-processo 16238/15.3T8PRT-A.P1.

[15] Também concretizados na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII: «No que respeita aos seus fins, a audiência prévia tem como objeto: (i) a tentativa de conciliação das partes; (ii) o exercício de contraditório, sob o primado da oralidade, relativamente às matérias a decidir no despacho saneador que as partes não tenham tido a oportunidade de discutir nos articulados; (iii) o debate oral, destinado a suprir eventuais insuficiências ou imprecisões na factualidade alegada e que hajam passado o crivo do despacho pré-saneador; (iv) a prolação de despacho saneador, apreciando exceções dilatórias e conhecendo imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; (v) a prolação, após debate, de despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.»
[16] Veja-se, a propósito, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., pág. 537 e, entre outros, os citados acórdãos da RP de 24.9.2015-processo 128/14.0T8PVZ.P1, 12.11.2015-processo 4507/13.1TBMTS-A.P1 e 27.9.2017-processo 136/16.6T8MAI-A.P1 e da RL de 05.05.2015-processo 1386/13.2TBALQ.L1.
[17] Cf. o cit. acórdão da RE de 24.5.2018-processo 10442/15.1T8STB-A.E1.

[18] Cf. o cit. acórdão da RL de 23.10.2018-processo 1121/13.5TVLSB.L1-1 [constando do sumário: «I. A dispensa, em contravenção dos critérios legais, da audiência prévia constitui nulidade prevista no art.º 195º do CPC. (…) III. A realização da audiência prévia não deve ser abordada numa dicotomia maniqueísta entre obrigatório ou facultativo, mas numa ponderação finalística: a realização da audiência prévia deve ter lugar sempre que for a forma mais adequada de realizar os fins por ela visados; na impossibilidade de alcançar esses fins ou se eles já tiverem sido alcançados de outra forma ou possam vir a ser mais adequadamente alcançados de outra forma a audiência prévia não deve realizar-se. IV. Essa ponderação é deixada fundamentalmente ao juiz, no exercício do seu dever de gestão processual, numa estreita interacção com as partes, e que em última análise têm de ser convencidas do bem fundado da opção do juiz.»].

[19] Cf. o cit. acórdão da RP de 23.3.2020-processo 16238/15.3T8PRT-A.P1.
[20] Vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. e vol. cit., pág. 558.