Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1126/19.2T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: DOAÇÕES
BENS COMUNS
REDUÇÃO DE LIBERALIDADES
DÍVIDAS DAS RESPONSABILIDADES DE AMBOS OS CÔNJUGES
OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS
DIREITO DE REGRESSO
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 512.º, 524.º, 1693.º, N.º 2, 1695.º., N.º 1, 2174.º E 2175.º, TODOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Tendo os bens doados ingressado no património comum do casal e sendo a doação deles inoficiosa, pela dívida resultante da redução por inoficiosidade respondem solidariamente ambos os cônjuges, ainda que tais bens tenham sido adjudicados, na partilha após o divórcio deles, a um deles.

II – Tendo um dos cônjuges satisfeito integralmente a dívida resultante da redução por inoficiosidade das doações, tem ele o direito de exigir ao outro cônjuge o pagamento da parte correspondente à comparticipação deste naquela dívida.

Decisão Texto Integral:


Autora: AA

Réu: BB
                       
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    Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora intentou a presente acção declarativa de condenação contra o Réu, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 41.666,22, acrescida de juros legais moratórios, desde a citação e até efectivo pagamento do montante peticionado.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
- Foi casada com o Réu segundo o regime de comunhão geral de bens, tendo, na sequência da dissolução por divórcio, sido partilhado o património no processo de inventário que correu termos sob o n.º 410/06...., do antigo ... Juízo do Tribunal de ....
- Nesse inventário foram relacionadas como verbas 46 e 50, correspondentes a ½ de prédios, que foram adjudicadas à Autora pelo valor de € 86.000,00, tendo esta pago as tornas correspondentes ao Réu.
- As referidas verbas correspondiam a partes de prédios doados, por conta da sua quota disponível, pelo pai do Réu à Autora, por escrituras publicas realizadas em 31.10.1995 e 5.12.1994.
- Em 8.8.2012 – já a Autora e o Réu estavam divorciados - faleceu o pai do Réu, tendo, para partilha da herança aberta por esse óbito, corrido termos no tribunal de ..., sob o.º1947/12.... processo de inventário no qual foram relacionadas como verbas 31 e 32 a totalidade dos prédios de que ½ tinham sido doados à Autora.
- A Autora na qualidade de donatária na proporção de ½ de cada uma das referidas verbas foi chamada a intervir no inventário para partilha da herança deixada por óbito do pai do Réu, explicando a forma como adquiriu os referidos bens, bem como a venda que deles, entretanto, efectuou a um terceiro.
- Após avaliação do património a partilhar, apurou-se que a quota disponível do autor da sucessão era de € 28.833,78, tendo a Autora que pagar tornas – referentes ao valor a mais dos bens que lhe foram doados, no montante de € 41.666,22, pela seguinte forma:
-  Réu- BB- € 17.726;25
- interessado CC- € 6.287,49 e;
- interessada DD- € 17.652,48.
- A Autora notificada para pagar as tornas apresentou reclamação, explicando que já havia pago tornas no valor de € 86.000,00 referentes aos bens doados, ao agora Réu no inventário subsequente ao divórcio, concluindo que não tendo sido a única donatária daquelas verbas não pode ser a única obrigada, devendo só pagar ¼ daquilo que recebeu pelas doações.
- A reclamação foi indeferida e, tendo o Réu reclamado o pagamento das tornas, a Autora liquidou o seu valor na totalidade.
- A Autora tem direito de regresso sobre o Réu relativamente ao valor pago.
- Subsidiariamente, o pagamento dessa quantia sempre lhe será devido, a título de enriquecimento sem causa.

O Réu contestou e deduziu pedido reconvencional, alegando:
- no inventário subsequente ao divórcio em que o Réu foi declarado único e principal culpado, foram os interessados, quanto à partilha dos bens doados, remetidos para os meios comuns.
- A Autora na partilha optou pelo regime da comunhão de adquiridos, devendo assim, restituir ao reconvinte todos os bens imóveis que, segundo esse regime, seriam seus bens próprios, incluindo-se nestes as verbas 46 e 50, devendo a reconvinda pagar-lhe ½ do valor dos bens que identifica acrescida de € 1.080,00, valor esse será utilizado para compensar metade do valor do pedido e que competiria ao reconvinte restituir-lhe.
Concluiu nos seguintes termos:
 a) a ação deve ser julgada totalmente improcedente por não provada e o réu absolvido do pedido;
b) ser julgada procedente e provada a reconvenção e, depois de efectuada a compensação, ser a reconvinda condenada a pagar ao reconvinte a quantia de € 26.442,78 (vinte e seis mil, quatrocentos e quarenta e dois euros e setenta e oito cêntimos), acrescida de metade do valor que resultar da avaliação do terreno onde foi edificada a casa de habitação do dissolvido casal;
c) subsidiariamente, para o caso de improcederem os pedidos anteriores, ser a reconvinda condenada a pagar ao reconvinte metade do valor da avaliação dos bens herdados pela mesma, bem como daqueles adquiridos com o produto da permuta dos bens herdados, acrescida da quantia de € 1.080,00 referente ao ressarcimento do valor dos bens que integram as verbas n.º 3, 5, 10, 12, 21, 22, 23, 24, 28, 30, 31, 34 e 38 da relação de bens do inventário para separação de meações, devendo ser feita a compensação com o valor que o reconvinte estiver obrigado a restituir-lhe.

A Autora replicou, concluindo pela procedência da acção e improcedência da reconvenção.

No despacho saneador a Autora foi absolvida da instância reconvencional por verificação da excepção da autoridade do caso julgado.

Foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.

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A Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
 I- A decisão de mérito proferida, tendo por base os factos dados como provados, a análise critica da prova, e a motivação de direito invocada para fundamentar tal decisão, não poderá ser aceite pela Autora ora recorrente, a qual não se pode conformar com a referida sentença por entender que a mesma assentou numa convicção e entendimento erróneos sobre as regras de direito aplicáveis, resultante de uma incorreta subsunção dos factos, corretamente julgados como provados, bem como os documentos que foram dados como provados, às regras do direito aplicáveis;
II- A douta sentença, dando como provados os factos supramencionados no Ponto I) do presente recurso, vem de forma singela, e sem fundamentar a sua decisão de direito, referir que não há direito de regresso nem direito a enriquecimento sem causa por parte da recorrente, bem como existe uma contradição entre o proferido em sede de decisão final no que concerne ao meio processual usado pela recorrente (vide o referido no ponto 2. O Direito da decisão final), e o alegado em sede despacho saneador proferido em 13/09/2021 e notificado à recorrente em 15/09/2021 no qual menciona
Quanto à pretensão da Autora, não nos restam dúvidas que a causa de pedir invocada é o direito de regresso, motivo pelo qual entendemos que existe propriedade do meio processual escolhido e não ocorre exceção da autoridade de caso julgado.”
III- Vem assim de forma imprevisível para a recorrente, e de certa forma contraditória, em relação ao mencionado em sede de despacho saneador no qual considerou o meio processual movido pela recorrente o correto, estipular uma decisão de direito inesperada e contraditória, onde para a mesma questão teve sentido diverso, constatando-se que a mesma enferma de uma nulidade nos termos do disposto no artigo 615º n.º 1, alínea b); C) e D) do C.P.C, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
IV- Da discordância da requerente em relação à decisão proferida, uma vez que da matéria de facto dada como provada podemos concluir, sem sombra de dúvida, conforme DOC. n.º 9 junto à P.I (despacho) a Autora teria sempre que pagar naquele processo de inventário a totalidade do valor de tornas devido pelas doações que beneficiou e que integraram o acervo comum patrimonial do dissolvido casal, uma vez que era donatária dos bens mencionados, salvaguardando o facto de poder vir através de uma ação autónoma, discutir o seu direito de regresso, uma vez que estamos perante bens que ingressaram na esfera jurídica do património comum do ex-casal, do qual o réu beneficiou do pagamento de tornas.
V- De tal maneira foi o Réu beneficiário de tais doações referidas, que procedeu à partilha de bens em casos especiais (divórcio) com a sua ex-mulher- AA de tais bens, tendo recebido nesses bens tornas desta, no montante de € 86.000,00 (oitenta e seis mil euros).
VI- Assim, sendo este pagamento de tornas e a divida da responsabilidade de ambos (Autora e Réu), e tendo a Autora pago a sua totalidade por óbito do pai do Réu, terá sempre o direito de regresso contra o Réu, seu ex-cônjuge, da quota parte que pagou a mais, uma vez que também ele era co-responsável pelo pagamento daquela divida de tornas, atento o regime de casamento vigente entre ambos (comunhão geral de bens), E nos termos do disposto no artigo 524º do C.Civil, e do artigo 1693º n.º 2 do C. Civil.
VII- Tendo a recorrente, pago duas vezes tornas ao réu pelos mesmos bens, uma em sede de partilha por divórcio, por tais bens integrarem os bens comuns a partilhar pelo valor de € 86.000,00 e outra em sede de inventário por óbito do pai deste (EE), por redução por inoficiosidade de tais doações tendo a ora recorrente pago tornas no montante global de € 41.666,22, tornas essas pagas em duplicado pela totalidade dos bens doados, quando apenas era da responsabilidade da recorrente pagar ¼ da metade recebida em tais doações pelo montante de € 28.833,78, sendo a outra parte da responsabilidade do Réu.
VIII- Daí ter sido movida pela recorrente a presente ação de direito de regresso contra o Réu, que é o meio próprio para o efeito, uma vez que tal matéria ainda não foi jurisdicionalizada.
IX- Não se entendendo que existe direito de regresso por parte da recorrente (o que não se aceita) sempre se dirá que existe um enriquecimento do património do Réu, que recebeu pelos mesmos bens tornas em duplicado, á custa do empobrecimento da Autora (que pagou ao Autor tornas duas vezes, uma em sede partilha por divórcio, e outra em sede de inventário por óbito do pai daquele).
X- Mais se refere, que a questão suscitada nos presentes autos, não foi objeto de qualquer decisão de mérito por nenhum tribunal, conforme melhor consta do DOC. n.º 9, junto com a P.I nos presentes autos, o qual que não foi impugnado, e cujo conteúdo conforme já supra se mencionou, foi dado como provado no seu global.
XI- Este é o meio próprio para discutir a presente questão (Direito de Regresso e subsidiariamente Enriquecimento sem causa), o que aliás é admitido pelo próprio tribunal a quo, no seu despacho saneador proferido em 13/09/2021 e notificado à recorrente em 15/09/2021 no qual menciona “ Quanto à pretensão da Autora, não nos restam dúvidas que a causa de pedir invocada é o direito de regresso, motivo pelo qual entendemos que existe propriedade do meio processual escolhido e não ocorre exceção da autoridade de caso julgado.”
XII- Posto isto, a sentença proferida, vem assim de forma imprevisível para a recorrente, e de certa forma contraditória, em relação ao mencionado em sede de despacho saneador no qual considerou o meio processual movido pela recorrente o correto, estipular uma decisão de direito inesperada e contraditória, onde para a mesma questão teve sentido diverso, conforme se infere da decisão final por contrapartida ao mencionado em sede de despacho saneador, vide o referido no ponto 2. O Direito da decisão final.
Conclui, pedindo a procedência do recurso.

O Réu respondeu, pugnando pela confirmação da decisão proferida.

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1. Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas, cumpre apreciar:
a) Se a sentença é nula
b) Se o Réu deve ser condenado a pagar o montante pedido pela Autora.

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2. Das nulidades da sentença
A Autora imputa à sentença o vício da nulidade por falta de fundamentação, contradição entre os fundamentos e a decisão e omissão de pronúncia.
Quanto à falta de fundamentação:
Nos termos do disposto no art.º 607º do C. P. Civil, o juiz deve especifi­car os fundamentos de facto e de direito da decisão, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final – n.º 3.
Nos termos do n.º 4 do mesmo preceito, o juiz, na fundamentação da sen­tença declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumen­tais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convic­ção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
A nulidade em causa verificar-se-á quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, encontrando-se a sua previsão em consonância com o disposto no artigo 205º, n.º 1, da Constituição que impõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente sejam fundamentadas na forma prevista na lei
A fundamentação da decisão é indispensável, nomeadamente, em caso de recurso para se saber em que se fundou.
Analisando a decisão recorrida constata-se que a mesma especifica os fundamentos quer de facto, quer de direito em que se baseia.
Assim, não se verifica a nulidade invocada.

Quanto à contradição:
A nulidade prevista na al. c), do nº 1, do art.º 615º, do C.P.C., verifica-se quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resul­tado expresso na decisão, mas a resultado oposto, ou seja, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta àquela que logicamente deveria ter chegado.
Só releva, para este efeito, a contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos.
Em nosso entender a Autora discorda unicamente do enquadramento jurídico efectuado pela sentença e ao espelhado no despacho saneador.
Ora, face ao entendimento manifestado na decisão recorrida, que é o único que aqui releva. revela-se lógica a decisão de julgar improce­dente a acção, face à fundamentação que a suportou.
Não há, pois, qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão recorrida, não se verificando a nulidade apontada.

Da omissão de pronúncia:
Alega a Recorrente que a sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia. limitando-se a imputar este vício à decisão não concretizando os factos demonstrativos do mesmo.
Ora, percorrida a decisão não se vislumbra esta causa de nulidade, pelo que também improcede a respectiva arguição.

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3. Os factos
Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:
1. A Autora foi casada com o Réu, no regime da comunhão geral de bens, sendo que por processo de partilha judicial de divórcio (partilha de bens em casos especiais), que correu termos no tribunal de ... sob o processo n.º 410/06...., antigo ... Juízo, foram relacionados diversos bens imóveis e móveis, sendo que na relação de tais bens, entre outros, foram relacionados sob as verbas 46 e 50, como bens comuns do casal e partilhados entre ambos, sendo que a ora Autora, licitou na parte do seu ex-marido, e aqui Réu, BB, em tais verbas, tendo estas lhe sido adjudicadas pelo valor global de € 86.000,00 (oitenta e seis mil euros), cujas tornas foram pagas ao Réu.
2. Tais bens haviam sido doados à Autora casada no regime da comunhão geral de bens com o Réu, pelo pai deste, por conta das suas quotas disponíveis, através das seguintes escrituras de doação:
A) Verba 46 ( ½) prédio urbano artigo ...85 da freguesia ... ( extinto artigo ...14 da freguesia ...), - verba única da Doação celebrada pelo pai do requerido- EE, divorciado- no dia 31/10/1995 no Cartório Notarial de ... exarada a Fls. 21 a fls. 22 do livro de notas para escrituras diversas número quatrocentos e ..., composta de quatro folhas, bem esse que também corresponde à verba 32 da relação de bens junta no processo de inventário judicial por óbito do doador que infra se referirá em 4º.
B) FF ( ½) do prédio rústico artigo ...07 da freguesia ...- verba única da Doação celebrada pelo pai do requerido- EE, divorciado- no dia 05/12/1994 no Cartório Notarial de ... exarada a fls. Quarenta e quatro verso a fls. Quarenta e cinco verso do livro de notas para escrituras diversas número trinta e ..., bem esse também correspondente à verba 31 da relação de bens junta no processo de inventário judicial por óbito do doador.
3. A Autora pagou em sede de partilha judicial de divórcio, as tornas que lhe eram devidas ao Réu, conforme já referido em 1º da presente e registou tais bens a seu favor.
4. Em 08.08.2012, faleceu o pai do Réu, EE, e foi instaurado por óbito deste, em 01/10/2012, inventário Judicial que correu termos no tribunal de ..., sob o Processo n.º 1947/12...., Juízo Local Cível ... - Juiz ..., sendo que a Autora e o Réu já estavam divorciados.
5. No âmbito de tal processo para além de ser citado o Réu na qualidade de interessado, foi a ora Autora citada através de carta remetida pelo tribunal em 20/04/2016, na qualidade de donatária na proporção de ½ (metade) de cada um dos bens indicados em 2º da presente em A) e B), a intervir no processo de inventario referido em 4º da presente.
6. A tal citação veio a Autora, aí donatária, responder que não deduzia oposição ao inventário, bem como não impugnava a legitimidade dos interessados citados, nem vinha alegar a existência de outros bens, tal como não impugnava a competência do cabeça de casal, nem as indicações constantes das suas declarações, mas veio explicar a forma como havia adquirido tais bens, e a compra que efetuou em sede de partilha de divórcio ao ora Réu (aí herdeiro), bem como a venda que entretanto havia efetuado de tais bens a um terceiro adquirente.
7. Foi efetuada avaliação ao património do falecido (incluindo o património doado) através de perito, foi agenda conferência de interessados, onde os interessados diretos na partilha chegaram a acordo, houve a elaboração do Mapa informativo, sendo o definitivo já após diversas reclamações o datado de 20-09-2017, no qual a quota disponível da donatária, ora Autora era de € 28.833,78, tendo esta que pagar tornas dos bens indicados em 2º da presente, sob verba 46 e 50 (correspondente a ½ das verbas 31 e 32 da relação de bens do referido inventário judicial) no total de € 41.666,22 (quarenta e um mil seiscentos e sessenta e seis euros e vinte e dois cêntimos), da seguinte forma:
- Ora Réu, BB - € 17.726;25
- Interessado CC - € 6.287,49 e;
- Interessada DD - € 17.652,48.
8. Notificada a Autora para depositar as tornas, no âmbito de um mapa de partilha elaborado antes do referido em 7º da presente, a mesma elaborou um requerimento ao processo como reclamação no qual expõe que não concordava com o depósito das tornas, do qual se extrai que:
- O aí interessado BB, tanto foi beneficiário das doações indicadas…, que procedeu à partilha de bens em casos especiais (divórcio) com a sua ex-mulher- AA de tais bens, tendo recebido nesses bens tornas desta, no montante de € 86.000,00 (oitenta e seis mil euros).
- (…), que não pode a ora interessada, aceitar que somente ela seja devedora de tornas no que concerne á quota-parte que lhe foi doada nas verbas 31 e 32, uma vez que não foi só ela donatária de tais bens, mas também o seu ex-marido, e aqui interessado- BB.
- Decidir em sentido contrário, é beneficiar o interessado BB, uma vez que este passaria a receber tornas de tais bens em duplicado (por partilha de divórcio e pela presente partilha por óbito de seu pai- EE).
- Se o interessado BB, não tivesse beneficiado de tais doações, tais bens nunca seriam objeto de partilha de divórcio entre aquele e a ora interessada AA.
- (…)
- Tendo os interessados – AA e BB, estipulado o regime da comunhão geral, os bens constantes da verba 31 e 32, recebidos pelas doações referidas em 2º e 3º do presente, entraram na comunhão e nela permaneceram até à partilha por divórcio daqueles.
- Logo em face do exposto, não pode a ora interessada aceitar ser devedora do montante das tornas que lhe está atribuído, uma vez que do montante que a mesma está incumbida de liquidar, deve ser inserido na quota disponível do interessado BB - ¼ (correspondente à metade do valor recebido das doações) pela ora interessada no estado civil de casada no regime da comunhão geral de bens com este.
- Assim, a ora interessada apenas será devedora de tornas na proporção de ¼ (um quarto), daquilo que recebeu pelas doações indicadas em 2º e 3º do presente requerimento e não de ½ (metade) conforme foram efetuadas as contas.
- (…)
9. Sobre tal requerimento recaiu Despacho, no qual sucintamente, se refere que tal reclamação não se enquadra no escopo dos autos de inventário que estavam a ser discutidos, sendo que sem prejuízo da faculdade que assiste ao BB de abdicar de reclamar nos autos de inventário de tais tornas, o que numa fase inicial o fez, (…) salvaguardando assim uma eventual partilha adicional no referido inventário para separação de meações, ou até qualquer outra ação autónoma (…), tendo sido dado o prazo de 10 dias para o BB, vir referir se abdicava das tornas que lhe vissem a ser devidas (…).
10. O Réu veio nesse processo a reclamar o pagamento das aludidas tornas.
11. A Autora liquidou as tornas na sua totalidade, e foi proferida sentença homologatória em 19.10.2017, a qual transitou em julgado em 22.11.2017.

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4. O direito aplicável
No processo de inventário n.º Processo n.º 1947/12...., Juízo Local Cível ... - Juiz ..., em que era GG EE, foi apurado que a Autora, na qualidade de donatária de bens que lhe haviam sido doados pelo GG, devido a redução, por inoficiosidade, dessas doações, era devedora do valor de € 41.666,22.
Se é verdade que nesse processo se decidiu que era a Autora que deveria proceder ao depósito dessa quantia no inventário, não se excluiu, antes se previu, no despacho acima referido no ponto 9., a possibilidade de assistir à Autora um direito sobre o Réu, na sequência desse pagamento, uma vez que o Réu também foi beneficiário das doações objecto de redução. Não se verifica, pois, a excepção do caso julgado, que impeça o conhecimento do pedido formulado pela Autora neste processo.
Face à matéria de facto provada, é a seguinte a origem da dívida que a Autora satisfez no referido processo de inventário:
- A Autora foi casada com o Réu, no regime de comunhão geral de bens.
- Na constância do casamento foram-lhe doadas quotas (1/2) em dois imóveis pelo pai do Réu, EE, por conta da quota disponível, pelo que, atento o regime de bens do casamento, essas quotas ingressaram no património comum do casal, nos termos do art.º 1732º do C. Civil.
- Após divórcio litigioso, esse património foi objecto de partilha judicial, tendo sido adjudicadas à Autora essas quotas, além de outros bens, na sequência de licitação, tendo a Autora pago ao Réu € 86.000,00 de tornas.
- Posteriormente, a Autora vendeu essas quotas a terceiro.
- Foi aberto inventário, por morte de EE, tendo nesse inventário sido reduzidas, por inoficiosidade, as referidas doações, no valor de € 41.666,22, o qual foi pago pela Autora.
A redução por inoficiosidade das doações é um mecanismo sucessório de tutela da legítima que confere aos herdeiros legitimários o direito potestativo de impedir que aquela quota da herança indisponível possa ser afectada por doações efectuadas em vida ou por morte, limitando a capacidade de disposição dos bens a título gratuito.
Nos termos do art.º 2174º do C. Civil, apurando-se que a liberalidade, feita em benefício de terceiro, é inoficiosa, quando os bens doados são divisíveis, a redução é feita em espécie, separando-se dos bens a fracção necessária ao preenchimento da legítima afectada, pertencendo a parte restante ao donatário. Sendo os bens indivisíveis, se a importância da redução exceder metade do valor dos bens, estes pertencem integralmente aos herdeiros legitimários e o donatário haverá o resto em dinheiro; na hipótese inversa, os bens pertencem ao donatário, recaindo sobre este a obrigação de pagar em dinheiro aos herdeiro legitimários o valor da redução.
Mas também nas situações em que os bens doados já tenham sido alienados, mantém-se o direito dos herdeiros legitimários exigirem a redução das doações na parte em que se revelem inoficiosas, respondendo o donatário, em dinheiro, pelo preenchimento da legítima até ao valor daqueles bens, conforme prevê o art.º 2175º do C. Civil, uma vez que a obrigação de redução não se transmite para o adquirente do bem, não sendo uma obrigação propter rem nem um ónus real [1].
Foi esta última hipótese que ocorreu no caso sub iudice, tendo a Autora, na qualidade de donatária em doações que se revelaram inoficiosas, pago aos herdeiros legitimários do doador a quantia de € 41.666,22, correspondente ao valor da parte dos bens que excedeu a quota disponível da herança, atingindo a legítima.
Apesar da dívida resultante do exercício do direito de redução por inoficiosidade, apenas poder ser verificada à data da abertura da sucessão, pois só nesse momento é possível apurar o valor da quota disponível, essa dívida tem a sua origem no acto de disposição gratuita, pois é esse acto que ofende a legítima, gerando a obrigação de redução em espécie ou em dinheiro.
O art.º 1693º, n.º 2, do C. Civil, dispõe que as dívidas que onerem doações em que os bens doados ingressem no património comum do casal, são da responsabilidade de ambos os cônjuges, sendo certo que a referência a oneração não tem um cunho técnico, visando abranger todas as dívidas que tenham uma ligação estreita com os bens adquiridos a título gratuito [2].
Ora, sendo a Autora casada com o Réu no regime de comunhão geral de bens, no momento em que as quotas aqui em causa lhe foram doadas, estas ingressaram no património comum do casal, assim tendo sido objecto de partilha no inventário para separação de meações que se seguiu após o seu divórcio, onde foram adjudicadas à Autora, por licitação, contra o pagamento das respectivas tornas ao Réu.
Tendo as quotas doadas ingressado no património comum do casal, a dívida resultante da redução por inoficiosidade, nos termos do referido art.º 1693º, n.º 2, do C. Civil, é da responsabilidade de ambos os cônjuges, não interferindo nessa responsabilidade o facto dessas quotas terem sido adjudicadas posteriormente à Autora, por partilha, e vendidas, mais tarde, por esta a terceiro.
Conforme resulta do disposto no art.º 1695º, n.º 1, do C. Civil, relativamente aos bens que respondem pelas dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, essa responsabilidade é solidária, pelo que o pagamento da dívida poderia ser exigido na integralidade a qualquer um dos cônjuges – art.º 512.º do C. Civil -, como sucedeu no inventário por morte do doador EE.
Dispõe o art.º 524º do C. Civil que o devedor que satisfizer o direito do credor, além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete, sendo que, atenta a natureza da dívida, a comparticipação dos cônjuges na dívida tem igual medida (½.).
Assim, tendo a Autora satisfeito integralmente a dívida resultante da redução por inoficiosidade das doações das quais foi beneficiária, tem direito a exigir do condevedor, o Réu, o pagamento da parte correspondente à comparticipação deste naquela dívida, ou seja, ½.
O facto do Réu ter recebido tornas aquando da divisão do património comum, na qual foram adjudicadas à Autora as quotas doadas, apenas reflete o facto de essas quotas integrarem o património comum do casal, não sendo bens próprios da Autora, não se justificando que o pagamento dessas tornas pela Autora tenha qualquer influência na responsabilidade pelo pagamento da dívida resultante da redução das doações por inoficiosidade, a qual recai em igual medida sobre os beneficiários das doações.
Assim, deve o Réu ser condenado a pagar à Autora apenas € 20.833,11 (€ 41.666,22 : 2), acrescidos de juros de mora legais desde a citação, nos termos dos art.º 804º, 805º e 806º do C. Civil, pelo que o recurso deve ser julgado parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida.

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Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela Autora e, em consequência:
- revoga-se a decisão recorrida;
- em sua substituição, julga-se a acção parcialmente procedente e condena-se o Réu a pagar à Autora a quantia de € 20.833,11, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento daquela quantia, contabilizados à taxa definida por lei, absolvendo-se o Réu do demais peticionado.

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Custas da acção e do recurso, em igual proporção, por Autora e Réu.

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                                                                                   17.3.2022




[1] HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1990, pág. 462.

[2] JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, 3.ª ed., AAFDL, 2010, pág. 628.