Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
672/09.0T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: CHEQUE
RECUSA DE PAGAMENTO
BANCO
EXTRAVIO
RESPONSABILIDADE CIVIL BANCÁRIA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE MÉDIA E PEQUENA INSTÂNCIA CÍVEL DE AVEIRO DA COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 483, 487 CC, 29, 32 LUCH
Sumário: 1.- O portador do cheque que pretenda efectivar a responsabilidade civil da instituição bancária sacada por ter recusado sem justa causa o pagamento do cheque tem o ónus de alegar e provar – tal como sucede com qualquer lesado que pretenda prevalecer-se da responsabilidade civil por factos ilícitos prevista no nº1 do art. 483º do C.Civil – todos os pressupostos da responsabilidade civil.

2.- O extravio de cheque constitui motivo legítimo para o titular da conta sacada se opor ao pagamento.

3.- À situação de recusa de pagamento do cheque por parte da instituição bancária sacada, com fundamento na declaração de extravio por parte do sacador, durante o prazo de apresentação a que se refere a primeira parte do artigo 29.º da L.U.Ch., não é aplicável o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, proferido no Processo n.º 06A542, que preconiza a responsabilidade por perdas e danos por parte do Banco.

4.- O Banco só deve proceder ao pagamento se existirem sérios indícios de que o extravio comunicado é falso e foi invocado apenas para o emitente do cheque frustrar o seu pagamento.

5.- A instituição bancária sacada que recusa o pagamento de cheque apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29º da L.U.Ch., com fundamento em comunicação de extravio do sacador, só fica constituída na obrigação de indemnizar o portador do cheque pela quantia nele inscrita quando a conta sacada dispuser de fundos suficientes para o respectivo pagamento.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

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            1 – RELATÓRIO

V (…) SRL”, com sede em via S. Lorenzo, 42, Cá Rainati, San Zenone degli Ezzelini, Treviso, Itália, intentou a presente acção declarativa, com processo sumário, contra “B (…), S.A.”, com sede na Rua de João Tavira, nº 30, Funchal, alegando, em síntese, que é legítima portadora de um cheque com o nº1800648002, no montante de € 10.700,00 sacado sobre o banco R., cheque este que foi emitido por (…) e entregue a ela A. em pagamento (parcial) de mercadoria por esta última fornecida, sucedendo que o cheque foi apresentado a pagamento, mas foi devolvido, na Compensação do Banco de Portugal, sem pagamento, com a nota de “por cheque revogado por justa causa – extravio”, porém a informação de “extravio” aposta na parte posterior do cheque é falsa, tendo a R. aceitado a ordem de “revogação” do cheque sem ter procurado obter quaisquer informações, designadamente junto da ora A. ou do Banco intermediário italiano, sobre a forma por que o cheque havia chegado ao poder daquela (A.), sendo certo que aceitando, mecanicamente, a “revogação” do cheque por extravio, a R. impediu que ela ora A. recebesse o respectivo montante e causou-lhe um prejuízo no valor de € 10.700,00 dele constante, pois o devedor foi declarado insolvente, termos em que concluiu no sentido de que, na procedência da acção, por provada, fosse a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 12.055,34, acrescida de juros vincendos, à taxa legal, sobre o montante de € 10.700,00, desde a entrada da petição em juízo e até integral pagamento.

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            Citada a Ré, deduziu esta a sua contestação a fls. 27, na qual alega desconhecer se o cheque dos autos foi ou não entregue à A., com que finalidade e em que circunstâncias, sendo que o cheque foi devolvido com fundamento em justa causa por extravio, por ter sido essa a instrução do cliente/sacador ao banco R.; este, como sempre faz, verificou a situação com base na actuação do cliente, verificando se era ou não hábito deste fazer estes pedidos cancelamentos de cheques, se a conta a sacar andava a descoberto e se tinham sido ou não devolvidos cheques por falta de provisão; e verificou que era seu cliente desde 2001, que era um cliente de crédito e cumpridor e que a conta sobre a qual foi sacado o cheque era pouco movimentada a débito por saque de cheques; este cliente só foi incluído na LUR (Listagem de Utilizadores de Risco), por emissão de cheques sem provisão de outras instituições bancárias, passados dias após ele ter feito a comunicação do extravio do cheque; assim, ele R. agiu com a diligência e cuidado que lhe é exigível, sendo certo que, por outro lado, o cheque em causa nunca seria pago por falta de provisão da conta, sendo devolvido sem pagamento como o foram outros cheques por essa altura, termos em que pugnou pela improcedência da acção, com a sua absolvição dos pedidos formulados.

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            A A. deduziu articulado de resposta, no qual manteve o já defendido na petição inicial.

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Foi proferido despacho saneador e foi elaborada a condensação que não sofreu reclamações.

Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, não tendo sido objecto de reclamação as respostas aos quesitos constantes do despacho de fls. 328 a 330.

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Na sentença, considerou-se, em suma, que o Banco R. agiu de forma ilícita e culposa ao aceitar a revogação do cheque ajuizado, o que gera obrigação para o mesmo de indemnizar a A. no quadro da responsabilidade civil extra-contratual, donde, por estarem verificados todos os requisitos para o funcionamento desta, se concluiu por julgar a acção procedente, e, em resultado disso, se condenou o R. “B (…) S.A.”, a pagar à A. “V (…) SRL”, a quantia de € 10.700,00 (dez mil e setecentos euros), com juros de mora, à taxa comercial, contados desde a data da devolução do cheque até integral pagamento.

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Inconformada, apresentou o R. recurso de apelação, que finalizou com as seguintes conclusões:

(…)

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            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 684º, nº3 e 685º-A, nºs 1 e 3, ambos do C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no art. 3º, nº3 do C.P.Civil, face ao que é possível detectar:

- se ocorreu inutilidade superveniente da lide (art. 287º, al.e) do C.P.Civil) com a assunção de dívida por 3º;

- se ocorreram nulidades da sentença (art. 668º, nº1, als. b) e e) do C.P.Civil);

- se ocorreu incorrecto julgamento de facto (ponto 10º da Base Instrutória);

- se ocorreu erro na aplicação do direito (sob o aspecto do ónus de prova, do AUJ nº 4/2008 de 28.02.2008 e dos pressupostos da responsabilidade civil).

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3 – FUNDAMENTAÇÃO

            3.1 – Tendo em vista o conhecimento das várias questões, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, o que naturalmente contempla a conjugação da condensação dos factos assentes com os decorrentes das respostas dadas aos quesitos da base instrutória elaborada, obviamente sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade. 

            Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados na 1ª instância:

I – J (…) subscreveu, a favor de “V (…), SRL”, o cheque nº 1800648002, emitido sobre a conta solidária DO nº 60335877/10 da agência de Aveiro do B (…)da titularidade de J (…)– ( (…). [al.A) dos Factos Assentes];

II – Este cheque está datado de 2006/03/17, é do montante de € 10.700,00, tem, no canto superior esquerdo, dois traços paralelos feitos na diagonal e está, nele, riscada a expressão “à ordem”, por cima da qual foi escrita, à mão, a expressão “não à ordem”. [al.B) dos Factos Assentes];

III – “V (…), SRL”, apresentou o mesmo cheque a pagamento, mas este foi devolvido, na Compensação do Banco de Portugal, sem pagamento, com a nota de “porcheque revogado por justa causa – extravio”. [al.C) dos Factos Assentes];

IV – No cheque em referência, para além da alteração dita em B), não existe qualquer rasura, ou alteração de nome ou dos demais dados. [al.D) dos Factos Assentes];

V – Foi o subscritor (J (…)) do cheque identificado na Matéria Assente quem o preencheu, nele escreveu a expressão “não à ordem” e o entregou à ora A. para pagamento parcial dos materiais constantes da factura nº 1117, constante de fls. 13 a 17. [resposta ao quesito 1º da Base Instrutória];

VI – A R. aceitou a ordem de “revogação” do cheque sem ter procurado obter quaisquer informações junto da ora A. ou do Banco intermediário italiano sobre a forma por que o cheque havia chegado ao poder daquela (A.). [resposta ao quesito 3º da Base Instrutória];

VII – A ora A. fez remeter, a 29/06/2007, por intermédio do seu mandatário forense, a J (…), a carta de fls. 18, a pedir o montante total de € 12.494,75, do montante do cheque, acrescido de juros de mora e despesas bancárias com a devolução do cheque. [resposta ao quesito 6º da Base Instrutória];

VIII – O J (…) recebeu a carta. [resposta ao quesito 7º da Base Instrutória];

IX – A C (…) respondeu a esta com a carta de fls. 20, propondo o plano de pagamento que da mesma carta consta. [resposta ao quesito 8º da Base Instrutória];

X – A ora A. não recebeu, até ao presente, a importância de € 10.700,00 que se encontrava titulada pelo cheque em causa. [resposta ao quesito 9º da Base Instrutória];

XI – Nem se antevê que a possa receber, já que o sacador foi declarado insolvente. [resposta ao quesito 10º da Base Instrutória, com destaque nosso, por o mesmo se encontrar questionado pela R./apelante];

XII – J (…)  enviou, a 16/12/2005, ao ora R. a carta de fls. 32,

pedindo a anulação do cheque nº 1800648002, emitido sobre a sua conta de DO nº 078.00603358.011.0, no montante de € 10.700,00, por se ter extraviado. [resposta ao quesito 11º da Base Instrutória];

XIII – O B (…) após ter recebido esta carta, verificou a situação para despistar indícios de falsas declarações e verdade da motivação ínsita na carta, indagando se:

a) - era ou não hábito do seu cliente J (…) fazer estes pedidos de cancelamento de cheques;

b) – a conta a sacar andava a descoberto;

c) - tinham sido ou não devolvidos cheques por falta de provisão.

[resposta ao quesito 12º da Base Instrutória];

XIV – Verificou que era seu cliente desde 2001 e que ele era um cliente de crédito e cumpridor. [resposta ao quesito 13º da Base Instrutória];

XV – A conta sobre a qual foi sacado o cheque era pouco movimentada a débito por saque de cheques. [resposta ao quesito 14º da Base Instrutória];

XVI – Tinha havido, durante todo o ano de 2005, alguns cheques sacados cujo pagamento o BANIF autorizou a descoberto, que de seguida foi regularizada, exactamente por o cliente lhe merecer confiança na sua actuação enquanto cliente e sacador de cheques. [resposta ao quesito 15º da Base Instrutória];

XVII – O cliente não tinha antes feito comunicação de extravio de cheques. [resposta ao quesito 16º da Base Instrutória];

XVIII – Ele só foi incluído na LUR (Listagem de Utilizadores de Risco), por emissão de cheques sem provisão de outras instituições bancárias, passados dias após ele ter feito a comunicação do extravio do cheque. [resposta ao quesito 17º da Base Instrutória];

XIX – O cheque em causa nunca seria pago por falta de provisão da conta, sendo devolvido sem pagamento como o foram outros cheques por essa altura. [resposta ao quesito 18º da Base Instrutória].

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            3.2 – A primeira questão que com precedência lógica importa solucionar é se a assunção da dívida por um terceiro (denominado “C (…)”) gerou a inutilidade superveniente da presente lide (art. 287º, al.e) do C.P.Civil):

            Ora, confrontando o facto IX, o que resulta é que um terceiro em relação ao sacador (o referenciado J (…)) e ao tomador (o Banco ora Réu), a saber, a entidade C (…)[1], respondeu à tentativa de cobrança da dívida por parte da ora A., com uma carta (junta a fls. 20 dos autos), propondo o plano de pagamento que da mesma carta consta.

            Temos portanto uma “proposta” de pagamento por terceiro.

            “Quid iuris”?

            Consabidamente, a transmissão singular de dívidas pode ocorrer através de duas modalidades: (a) por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (sendo necessária a intervenção dos três sujeitos) ou (b) por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.

            A assunção de dívida, liberatória do antigo devedor, só tem lugar havendo expressa declaração do credor nesse sentido. Não existindo essa declaração, estar-se-á perante uma assunção cumulativa de dívida, também designada por co-assunção da dívida, adjunção à dívida ou adesão à dívida, continuando o antigo devedor a responder solidariamente com o novo obrigado.

            Sendo que, precisamente porque é essencial para o credor a pessoa do devedor, a lei estabelece em seu favor uma medida de protecção, pois, ao não exonerar o antigo devedor, aquele poderá exigir de qualquer deles o cumprimento da obrigação.

            Por outro lado, podendo o credor aceitar a prestação de terceiro (cf. art. 767º do C.Civil), o acordo entre ele e o assuntor pode fazer-se independentemente da intervenção do antigo devedor, sendo que o contrato de assunção de dívida está sujeito ao princípio da consensualidade ou da liberdade de forma (cf. art. 219º do C.Civil) e se distingue da fiança[2].

            Ora, no caso vertente resulta desde logo questionável que o credor (leia-se, a ora A.) tenha aceite a “proposta” do dito terceiro, mesmo tendo em conta o disposto no art. 234º do C.Civil (que, em certos casos, considera dispensável a “declaração de aceitação”): tenha-se presente a “redução” da quantia a pagar!

Em todo o caso, no limite, o que poderia existir era uma assunção cumulativa de dívida (cf. o citado art. 595º, nº1, al.b) do C.Civil), isto é, ter-se constituído o dito terceiro (“C (…)”) obrigado solidário com o devedor originário (o referenciado J (…)) perante a A., quanto à divida existente…[3]

Acontece que, insofismavelmente, a dívida subsiste até ao presente por pagar (cf. facto X).

            Pelo que, por definição e consequência natural, estava e está salvaguardado o direito de acção contra o aqui R..

            Acresce que também não seria possível configurar a ocorrência de uma “novação” (subjectiva)[4].

Pois que, como a vontade de “novar” deve ser expressamente manifestada – assim o determina o art. 859º do C.Civil – tal significa que a mesma não se presume, assim como não se admite manifestação tácita do animus novandi.

            O que tudo serve para dizer que, em nosso entender, bem andou o Tribunal a quo em “desconsiderar” o que resultava do dito facto IX, pois que não vislumbramos – em qualquer enquadramento que se faça – como ocorre a inutilidade superveniente da lide, à luz do disposto no art. 287º, al.e) do C.P.Civil.

Improcede assim, sem necessidade de maiores considerações, este fundamento recursório.

                                                           *

            3.3 – A seguinte questão que se impõe solucionar é se ocorreram nulidades da sentença (art. 668º, nº1, als. b) e e) do C.P.Civil):

            Começando pela primeira de tais nulidades, e segundo a alegação recursória, da factualidade apurada não resulta nem a prática de acto ilícito nem a actuação com culpa por parte da Ré, donde contradição entre os fundamentos e a decisão, o que constitui nulidade da sentença (art. 668º, nº1, al.c) do C.P.Civil)[5].

            Segundo a referida alínea c) do citado art. 668º, nº1, a sentença será nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”: obviamente que quando se fala, a tal propósito, em “oposição entre os fundamentos e a decisão”, está-se a aludir à contradição real entre os fundamentos e a decisão; está-se a aludir à hipótese de a fundamentação apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto.[6]

Ora, o que se detecta como tendo ocorrido na sentença, foi o perfilhar um certo enquadramento de direito, designadamente quanto aos ditos dois requisitos da responsabilidade civil extra-contratual, com suporte em interpretação doutrinal e jurisprudencial que nesse sentido se invocou, entendendo a Ré/Apelante que a outra e diferente conclusão se deveria ter chegado no caso, mas isso não configura claramente a nulidade a que se reporta este dispositivo.

Dito de outro modo: o que foi citado em termos de fundamentação jurídica pelo tribunal a quo, poderá significar um alegado erro de julgamento (de direito) sobre a questão sub judice, mas não um vício estrutural da sentença, que tivesse virtualidades para conduzir à nulidade da mesma.

Termos em que igualmente improcede claramente esta via de argumentação aduzida pela Ré/Apelante como fundamento para a procedência do recurso, sem embargo do que infra se decidirá na apreciação do também alegado fundamento recursório do “erro na aplicação do direito”.

Depois, sustenta a Ré/Apelante que a sentença condenou em quantidade superior ao pedido e, por esta razão, enferma da nulidade prevista na alínea e), do nº1, do art. 668º, do C.P.Civil.

A resposta a esta questão é positiva – e releve-se este juízo antecipativo.

Com efeito, na p.i. a A. pedia a condenação da Ré na “importância de € 12.055,34 acrescida de juros vincendos à taxa legal, sobre o montante de € 10.700,00, desde a presente data até integral e efectivo pagamento” (sublinhado nosso), e na sentença veio a ser proferida condenação da Ré a pagar à A. “a quantia de € 10.700,00 (dez mil e setecentos euros), com juros de mora, à taxa comercial, contados desde a data da devolução do cheque até integral pagamento” (sublinhado nosso).

“Juros legais” são aqueles cuja obrigação de pagamento emerge directamente de uma disposição legal e que se vencem independentemente da existência de qualquer acordo de vontades – é o que sucede, designadamente, no âmbito do contrato de mútuo oneroso (cf. art. 1145º do C.Civil), ou contrato de mandato (cf. art. 1164º do C.Civil), ou quando há agravamento da responsabilidade do enriquecido, no enriquecimento sem causa (cf. art. 480º do C.Civil), e bem assim, na pré-fixação dos danos emergentes da mora no cumprimento de obrigações pecuniárias (cf. art. 806º, nº1 do C.Civil).

A expressão “juros legais” pode também significar que se aplica a determinada situação a taxa de juro que a lei supletivamente prevê, como decorre do art. 559º do C.Civil, para onde remete o art. 806º, nº2 do C.Civil (quanto aos juros moratórios de obrigações civis) ou o art. 4º do DL nº 262/83 de 16.04 (quanto aos juros moratórios de obrigações cartulares) ou ainda o art. 102º, § 2º do C.Comercial (quanto aos juros de obrigações de natureza comercial).

Acontece que está em causa nos autos precisamente a taxa de juros numa obrigação cartular – a quantia inscrita no cheque sacado – pelo que, tendo o art. 4º do DL nº 262/83 de 16 de Junho permitido o pedido de juros de mora a taxa correspondente à que vigorar para os juros legais, fixada nos termos do art. 559º do C.Civil, temos que, actualmente, e desde 1.05.2003, a mesma se encontra fixada em 4% ao ano (cf. Portaria nº 291/03 de 8.04.).

Sendo certo que há muito é entendimento jurisprudencial pacifico o de que se o autor se limitar a pedir juros à “taxa legal”, deve entender-se que é a que resulta do art. 559º do C.Civil e não a que é aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais ou entidades bancárias.[7]

Deste modo, ao decidir-se na sentença recorrida pela aplicação da taxa de “juros comercial”, quando apenas se podia considerar efectivamente pedida a taxa de “juros civis”, incorreu-se em nulidade da mesma, “ex vi” da invocada alínea e), do nº1, do art. 668º, do C.P.Civil.

Esta nulidade determina, nos termos legais, a correspondente nulidade de tal segmento da decisão, com a prolacção de nova decisão neste particular (cf. art. 715º, nº2 do C.P.Civil), ao que se procederá a final, sendo disso caso.[8]

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3.4 – Dirige-se ainda a crítica do R./apelante ao incorrecto julgamento do quesito 10º da Base Instrutória, mais concretamente, que este na sua formulação já não era factual mas meramente especulativo e conclusivo, donde dever ser anulado, ou, a assim se não entender, que sempre ocorreu um incorrecto julgamento do mesmo, pois que a prova produzida não permite a resposta que lhe foi dada, antes devendo ser no sentido de “não provado”:

Vejamos antes de mais a formulação literal do dito quesito, a saber

                                                                       “10.º)

        Nem se antevê que a possa receber, já que o sacador foi declarado insolvente?

            Quesito este a que foi dada resposta integralmente positiva, tendo a Exma. Juíza a quo fundamentado uma tal resposta da seguinte forma

            “Quesito 10º: documentos juntos a fls. 161/165.

 (cf. fundamentação das respostas à matéria de facto, constante de fls. 330 dos autos).

            Merecerá efectivamente procedência a crítica do R./apelante?

            Confrontando os docs. de fls. 161/165, pode-se constatar que se trata de uma certidão extraída dos autos de insolvência que sob o nº 3282/07.3TBAVR, relativa aos  autos de insolvência de pessoa singular de “J (…)” que correm termos no Juízo do Comércio de Aveiro da Comarca do Baixo Vouga, certidão essa composta pela sentença de declaração de insolvência do dito, prolatada em 26-10-2007, que se consigna ter transitado em julgado em 21-12-2007.

            Temos assim que está comprovada por esse documento autêntico a declaração de insolvência do referenciado, assim se “ultrapassando” as eventuais dúvidas e insuficiente valor probatório da prova testemunhal sobre tal produzida, pois que as testemunhas apenas souberam sobre tal efectivamente dizer que “sim, é verdade, sei que foi declarada insolvente” ((…)) e “sei que foi declarada falida, mas não sei nada mais” ((…))  - cf. fls. 272 a 275.

            Agora, quanto aos demais aspectos, a saber, se se “antevê” ou não que a aqui A. possa receber a quantia titulada no cheque ajuizado, essa formulação na verdade não era a mais correcta nem correspondia à melhor técnica processual, por traduzir não um facto real e concreto, mas pouco mais do que um juízo especulativo e de pendor conclusivo.

            Sendo certo que se desconhece o actual estado dos autos de insolvência em referência, designadamente o volume total dos créditos reclamados e se face ao activo apurado existe alguma possibilidade, presente ou futura, de a aqui A. vir nessa sede a receber a dita quantia…

Assim, no acolhimento parcial deste fundamento do recurso, porque se justifica uma correcção na redacção da correspondente resposta, que melhor traduza e evidencie o que resultou apurado e se pode consignar neste particular, a resposta ao quesito 10º  passará a ser restritiva, donde o facto em causa passará a ter o seguinte teor:

XI – O referenciado J (…) foi declarado insolvente nos autos que sob o nº 3282/07.3TBAVR correm termos no Juízo do Comércio de Aveiro da Comarca do Baixo Vouga, por sentença transitada em julgado em 21-12-2007. (nova resposta ao quesito 10º da base instrutória).

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

            4.1. – Questão de ter ou não ocorrido erro na aplicação do direito (sob o aspecto do ónus de prova, do AUJ nº 4/2008 de 28.02.2008 e dos pressupostos da responsabilidade civil):

            Começando pelos aspectos atinentes ao ónus de prova, diremos que se afirmou na sentença recorrida que a culpa da Ré se presume, invocando-se para tal asserção o disposto no art. 487º, nº1 do C.Civil (cf. pág. 9 da sentença, a fls. 340 dos autos).

Em contraponto, sustenta a Ré/apelante que, ao invés do afirmado na sentença, caberia à A. a prova dos pressupostos da responsabilidade civil (arts. 342º, 483º e 487º do C.Civil), nomeadamente da culpa, o que aquela não logrou fazer.

Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do lesante merecer a reprovação ou censura do direito, sendo que a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia agir de outro modo, modo esse pelo qual agiria um bom pai de família perante as mesmas circunstâncias – art. 487º, nº2 do C.Civil.

Ora, a prova do facto relevante a esta luz (conhecimento da falsidade da declaração de extravio), integrador do pressuposto da culpa, incumbia na íntegra à A./apelada, nos termos gerais do art. 342º do C.Civil.

De facto, não vislumbramos que “presunção” de culpa existia ou podia ser invocada neste particular…

Nem, aliás, ela foi explicitada e evidenciada na sentença recorrida…

Procede assim, este fundamento recursório, mas cuja ilacção final nos reservamos para quando infra apreciarmos o aspecto substancial/mérito da causa quanto à prova efectiva (ou não) da culpa da Ré/apelante pelo sucedido (não pagamento do valor inscrito no cheque).

                                                           *

Passando agora ao aspecto de se o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2008 (invocado e aplicado na sentença), admite a recusa de pagamento de cheque fundada em “justa causa”, nomeadamente “extravio”, tendo assim afastado do seu objecto (ou seja não inserindo na responsabilização dos Bancos por violação do art. 32º da L.U.Ch.) o caso de extravio como justa causa de recusa do pagamento, o que tem aplicação mesmo provando-se que o motivo da devolução do cheque (extravio) era falso:

Uma leitura mais adequada e atenta do dito Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2008[9], leva-nos efectivamente a concluir que o caso de extravio como justa causa de recusa do pagamento foi afastado do seu objecto.

Na verdade, como já foi doutamente sustentado, “II. A ordem de proibição de pagamento do cheque, dada pelo sacador ao banco sacado com fundamento em “extravio”, não se confunde com a revogação prevista no artigo 32.º da Lei Uniforme Sobre Cheques. III. No caso de extravio ou qualquer outra forma de “ilegítima apropriação”, o que está em causa não é a revogação. Nestes casos o sacador proíbe o pagamento por considerar inválido o seu saque. Logo, não o revoga, porque a revogação pressupõe a validade do acto que, por esse efeito, se extingue.[10]

E bem se compreende que assim seja, pois que, no caso de extravio ou qualquer outra forma de “ilegítima apropriação” «… o que está em causa não é a revogação – o sacador proíbe o pagamento por considerar inválido o seu saque. Logo, não o revoga, porque a revogação pressupõe a validade do acto que por esse efeito, se extingue».[11]

“Revogação” e “extravio” são, assim, realidades distintas, de acordo com o que defende José Maria Pires na obra citada, pelo que não é de aplicar, sem mais, ao “extravio” as consequências da “revogação”, sendo certo que no referenciado Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, a responsabilidade civil extracontratual do banco sacado se funda numa dupla violação: i) da segunda parte do corpo do artigo 14º do Decreto n.º 13 004 - que se refere à recusa de pagamento baseada na revogação pelo sacador; ii) da primeira parte do artigo 32º da L.U.Ch. - que se refere também à revogação pelo sacador no prazo de apresentação.

Acontece que na situação ajuizada, não há “revogação” pelo sacador (o referenciado (…)), no prazo de apresentação para pagamento, mas sim declaração de extravio pelo mesmo perante o Banco ora Réu.

Donde, ao contrário do propugnado na sentença recorrida, nem sequer era aplicável directamente na situação ajuizada o dito Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, termos em que improcede a argumentação em que a mesma se louvou!

Mas não só nessa parte nos merecem acolhimento as alegações recursórias.

Pois que sustentamos tal entendimento ser de manter, mesmo quando se prova que o motivo da devolução do cheque (extravio) era falso.

Na verdade, no caso ajuizado, parece-nos apodíctica a afirmação de que a comunicação de “extravio” era falsa, na medida em que o cheque ajuizado foi regularmente emitido pelo seu titular e entregue à tomadora, ora A., para pagamento de montante devido por aquele a esta (cf., “maxime”, os factos I, II, IV e V).

Sucede que coisa diversa – e essa, quanto a nós, não apurada nem sendo lícito considerá-la como adquirida – é que o Banco ora Réu disso tivesse tido conhecimento ou não pudesse deixar de saber…

Mas como estes últimos aspectos já se prendem com a eventual ilicitude e culpa na actuação deste último, entendemos reservar a sua apreciação mais detalhada e aprofundada para tal sede, do que se cuidará de seguida.                                                                                                                *

É efectivamente o momento de entrar na apreciação mais focalizada sobre se da factualidade apurada não resulta nem a prática de acto ilícito, nem a actuação com culpa por parte do Banco Réu, nem se está (ou não) provado em definitivo o prejuízo da A. (por só estar provado que não recebeu o cheque!), nem se finalmente está (ou não) provado que esse prejuízo, a existir, resulta da conduta do Banco Réu:

Tendo presente que determinante para uma tal apreciação e decisão será a prévia aferição de se, ao invés do afirmado na sentença recorrida, caberia à A. a prova dos pressupostos da responsabilidade civil (arts. 342º, 483º e 487º do C.Civil), o que aquela não teria logrado fazer.

Nos termos do art. 342º, nº1 do C.Civil «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.»

Sendo certo que são factos “constitutivos” do direito invocado, por exemplo, os pressupostos da responsabilidade civil.[12]

Temos assim como inquestionável resultar do quadro legal que o portador do cheque que pretenda efectivar a responsabilidade civil do Banco sacado por ter recusado sem justa causa o pagamento do cheque tem o ónus de alegar e provar – tal como sucede com qualquer lesado que pretenda prevalecer-se da responsabilidade civil por factos ilícitos prevista no nº1 do art. 483º do C.Civil – todos os pressupostos da responsabilidade civil.

Esse ónus de prova acabado de enunciar só não será de exigir se o portador beneficiar de presunção, dispensa ou liberação do ónus da prova ou convenção válida nesse sentido (cf. o nº1, do art. 344º do C.Civil).

Não é o que se passa no caso, pois não há lei nem convenção que dispense o portador de provar qualquer dos ditos pressupostos, antes tal ónus lhe está expressamente conferido, no que à culpa diz respeito, pelo art. 487º do C.Civil.  

Por outro lado, dispõe o art. 483º, nº1 do C.Civil que «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

  São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual a prática de um facto voluntário do agente, ilícito (violador de um direito de outrem ou de disposição legal), a culpa, o dano e o nexo causal entre o facto ilícito culposo e o dano.

A ilicitude pode derivar da violação de direitos alheios ou de violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios (violação de normas de protecção), sendo certo que é nesta segunda variante da ilicitude que se pode integrar a conduta do sacado.

Acontece que, quanto a nós, não sendo invocável na situação ajuizada a violação de “disposição legal” – pois que, contrariamente à situação prevista e julgada no acórdão uniformizador de 28.02.2008, não são aplicáveis à invocação de extravio por parte do sacador, nem a segunda parte do corpo do art.14º do Decreto n.º 13 004, nem a primeira parte do artigo 32º da L.U.Ch. (reportam-se exclusivamente à “revogação”, que é uma realidade distinta!) –, acresce que parece não se verificar a violação do direito subjectivo do tomador do cheque (leia-se a ora A.), na medida em que este apenas terá direito ao pagamento se o Banco ora Réu (sacado) estivesse obrigado a fazê-lo, por não se verificar qualquer fundamento (justa causa) de recusa, como a inexistência de provisão (que também se provou), ou a indicação de extravio (que primacialmente se provou).

De igual modo, quanto ao pressuposto essencial da culpa, não se tendo provado na situação ajuizada, o conhecimento da falsidade de declaração de extravio por parte do Banco ora Réu/Apelante, no âmbito da relação contratual entre o dito (Banco sacado) e o cliente/sacador (o referenciado (…)) não faria sentido a investigação por parte do Banco, sobre a veracidade e boa fé da declaração deste seu cliente.

Sendo certo que neste particular, após ser feita uma pesquisa jurisprudencial cuidada, em douto aresto desta Relação de Coimbra [13], se veio douta e ponderadamente a sustentar o seguinte entendimento:

«1. O extravio de cheque constitui motivo legítimo para o titular da conta sacada se opor ao pagamento.

2. É necessário, no entanto, encontrar-se um ponto de equilíbrio entre o interesse do sacador em opor-se ao pagamento de um cheque perdido ou fraudulentamente subtraído, e a necessidade de proteger a fé pública do cheque enquanto meio de pagamento.

3. Tal equilíbrio depende dos seguintes requisitos:

1º) O banco sacado não tem o dever de averiguar se é exacta a alegação de extravio transmitida pelo titular da conta sacada;

2º) Depois de receber a comunicação de extravio, o banco sacado não tem de suscitar o “incidente de extravio”, dando conhecimento da comunicação ao apresentante do cheque para que este possa provar que é legítimo;

3º) O banco sacado tem o dever de se certificar que a comunicação foi efectuada pelo titular da conta sacada;

4º) O banco deve proceder ao pagamento se existirem sérios indícios de que o extravio comunicado é falso e foi invocado apenas para o emitente do cheque frustrar o seu pagamento.»

A situação factual que estava em causa neste aresto tem perfeita similitude com a da situação ajuizada nos presentes autos, donde o acolhimento por nós desse entendimento e sua transposição para os presentes autos.

Com o que queremos dizer que não se detecta culpa na actuação do Banco ora Réu/apelante, pois que o mesmo, após lhe ser pedida por carta pelo sacador a “anulação” do cheque “por se ter extraviado” (cf. facto XII), efectiva e positivamente diligenciou por “despistar indícios de falsas declarações e verdade da motivação” ínsita em tal carta, fazendo um “levantamento” do histórico de tal cliente até então, face ao que designadamente constatou uma situação perfeitamente “normal”, sem nada de negativo a apontar, e que o mesmo nunca antes tinha feito comunicação de extravio de cheques, assim vindo então a aceitar a ordem de “revogação” (cf. factos XIII a XVIII).

Neste quadro, entendemos que mais não lhe era nem é exigível, por tal não estar contemplado nas relações entre o Banco sacado e o tomador do cheque, no contexto do contrato de cheque que aquele celebrou – unicamente – com o sacador…

Numa palavra, «Esta exigência ao banco para que investigue, fazendo-o assumir a responsabilidade pela não detecção da falsidade de um invocado motivo, afigura-se exagerada e estranha à vocação financeira e comercial de uma instituição bancária.»[14]

É então tempo de apreciar os últimos pressupostos da responsabilidade civil ora directamente questionados – o dano que a A./apelada queria ver reparado e a relação de causalidade entre o facto ilícito e o dano.

Retomando e dando aqui por reproduzido o que supra se sustentou quanto ao ónus de prova de todos os pressupostos da responsabilidade civil, diremos que não há lei nem convenção que dispense o portador de provar o prejuízo que lhe foi causado; nem há lei nem convenção que presuma que o prejuízo sofrido em situações como a dos autos corresponde ao montante do cheque.  

Ora se assim é, temos desde logo que a A./apelada não logrou provar que foi o questionado acto do Banco ora Réu/Apelante que lhe causou um prejuízo no valor de € 10.700,00, que era o valor inscrito no cheque (cf. resposta restritiva ao quesito 5º).

Apenas logrando provar mais singelamente que não recebeu até ao presente essa importância que se encontrava titulada pelo cheque em causa (cf. facto X).

A dita resposta restritiva significou inequivocamente que não se julgou provada a relação de causalidade entre a conduta do Banco ora Réu/apelante e o não recebimento do montante em causa.

Sendo certo que outro não podia ser o entendimento, pois que o sacador (o referenciado (…)) nem sequer tinha a conta sacada provisionada (cf. facto XIX).

Este é um aspecto que julgamos da maior relevância, constituindo nessa medida um dos pontos onde a sentença recorrida julgou seguramente com desacerto.

É que temos para nós como seguro que a instituição sacada (leia-se o Banco ora Réu/apelante) que recusa o pagamento de cheque apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29º da L.U.Ch., com fundamento em comunicação de extravio do sacador, só ficaria constituída na obrigação de indemnizar o portador do cheque pela quantia nele inscrita quando a conta sacada dispusesse de fundos suficientes para o respectivo pagamento.[15]  

E nem se argumente em sentido contrário – como feito na sentença recorrida – ser aqui de rejeitar a teoria da “causa virtual” (falta de aprovisionamento da conta pelo sacador), por não ficar afastada a responsabilidade do autor da causa real (o Banco ora Réu/apelante que fez actuar a “causa real” do extravio)!

É que, como já foi nesse particular sustentado em douto aresto da 1ª secção do T. da Rel. de Coimbra no proc. n.º 1118/11. 0TBFIG[16], “não dispondo o sacador de fundos (na sua conta de depósito) para o pagamento do cheque e não havendo assim para o banco sacado a obrigação de pagar ao portador o valor nele inscrito, não há qualquer diferença entre a situação (real) em que o facto ilícito deixou o portador do cheque e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano (real) sofrido. Se não tivesse ocorrido o “dano real” – se o cheque não tivesse sido “inutilizado” em função da aceitação da ordem de revogação – não dispondo o sacador de fundos (na sua conta de depósitos), não teria o cheque sido pago. Com ou sem “dano real”, a situação patrimonial do lesado/portador do cheque continua a mesma. Com ou sem “dano real”, o seu balanço patrimonial continua/aria a apresentar não só o mesmo saldo como, inclusivamente, a mesma composição em termos de activo: um crédito sobre o sacador do cheque e não a soma pecuniária que, caso dispusesse o sacador de fundos (na sua conta de depósito), passaria a integrar o seu património em substituição de tal crédito”.

Donde, não tendo resultado provado que havia fundos na conta para pagar o cheque, não se vê como se pode sustentar que a conduta do Banco ora Réu/apelante causou à Autora/apelada prejuízo patrimonial correspondente ao montante do cheque...

Acresce que, dizendo o artigo 3º da L.U.Ch. que “o cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque”, é bom de ver que, como já escreveu PAULO OLAVO CUNHA[17], “constitui pressuposto da emissão do cheque a existência de provisão suficiente. Não havendo fundos disponíveis, por não terem sido previamente depositados ou concedida a respectiva utilização, o Banco não é obrigado a satisfazer a importância indicada no cheque, embora possa fazê-lo por sua conta e risco, pois poderá não vir a ser ressarcido da importância despendida”.

 Enfim, sendo o nexo de causalidade um dos pressupostos da obrigação de indemnização e não se tendo provado a relação de causalidade entre a acção imputada ao Banco ora Réu/apelante, e o prejuízo que a Autora/apelada invocou – o não recebimento da quantia titulada pelo cheque –, é patente que a acção não estava em condições de proceder.

 Em jeito de conclusão, dir-se-á, então, que tendo o portador (leia-se a ora A./apelada) alegado que o prejuízo que lhe foi causado foi o não recebimento do cheque, e pedindo, em consequência, a condenação do Banco ora Réu/apelante no pagamento do respectivo montante, seria condição de procedência da acção a prova de que não recebeu o montante do cheque e que a causa do não recebimento foi o não acatamento da ordem de pagamento do mesmo constante: ora, este último ponto não resultou provado, pois que se efectivamente não recebeu a Autora/apelada até ao momento o montante do cheque, já não se pode de todo dizer que tal foi consequência da actuação do Banco ora Réu/apelante...

Termos em que se conclui no sentido de que ao condenar o Banco ora Réu/apelante no pagamento da importância inscrita no cheque, a sentença recorrida violou efectivamente o disposto nas normas invocadas nas alegações recursórias, pelo que não pode subsistir.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O portador do cheque que pretenda efectivar a responsabilidade civil da instituição bancária sacada por ter recusado sem justa causa o pagamento do cheque tem o ónus de alegar e provar – tal como sucede com qualquer lesado que pretenda prevalecer-se da responsabilidade civil por factos ilícitos prevista no nº1 do art. 483º do C.Civil – todos os pressupostos da responsabilidade civil.

II – O extravio de cheque constitui motivo legítimo para o titular da conta sacada se opor ao pagamento.

III – À situação de recusa de pagamento do cheque por parte da instituição bancária sacada, com fundamento na declaração de extravio por parte do sacador, durante o prazo de apresentação a que se refere a primeira parte do artigo 29.º da L.U.Ch., não é aplicável o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, proferido no Processo n.º 06A542, que preconiza a responsabilidade por perdas e danos por parte do Banco.

IV – O Banco só deve proceder ao pagamento se existirem sérios indícios de que o extravio comunicado é falso e foi invocado apenas para o emitente do cheque frustrar o seu pagamento.

V – A instituição bancária sacada que recusa o pagamento de cheque apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29º da L.U.Ch., com fundamento em comunicação de extravio do sacador, só fica constituída na obrigação de indemnizar o portador do cheque pela quantia nele inscrita quando a conta sacada dispuser de fundos suficientes para o respectivo pagamento.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se o Réu do pedido.

Custas em ambas as instâncias pela A./apelada.

                                                           *

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Maria José Guerra

Albertina Pedroso


[1] Ficou por apurar qual a verdadeira natureza jurídica de tal entidade – e admitindo que tenha personalidade jurídica –, se era uma pessoa colectiva, ou um empresário em nome individual.
[2] cf., inter alia, Vaz Serra, “Assunção de Dívida”, in B.M.J.nº 72, a pags. 189 e segs; Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 7ª ed., a pags. 358 e segs.
[3] Veja-se, versando uma situação de entrega de cheques por um terceiro, o Ac. do S.T.J de 23.09.2008, no proc. nº 08A2171, acessível in www.dgsi.pt.
[4] “Novação” é a convenção pela qual as partes extinguem uma obrigação, substituindo-a pela criação de uma obrigação nova, com objecto ou título diferente (objectiva), ou entre diferentes pessoas (subjectiva).
[5] De referir que o R. invocou nas alegações (pág. 26 das mesmas) a al.b) do nº1 do art. 668º, mas foi certamente por lapso de escrita, como flui do fundamento aí exposto e bem assim do que consta diversamente – e a nosso ver correctamente – nas conclusões (sob XXX, a pág. 30 das ditas).
[6] Cf. sobre este fundamento de nulidade, o que sobre tal discorre LEBRE DE FREITAS, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, a pags. 704.
[7] Cf., inter alia, o Ac da Rel. de Coimbra de 20.10.1987, in C.J., tomo IV, a pags. 89.
[8] Estamos a salvaguardar a possibilidade de tal ficar prejudicado pela procedência da apelação quanto à própria quantia de capital objecto da condenação, pois que consabidamente os juros são um mero “acessório” dessa condenação…
[9] Por força do qual foi uniformizada a jurisprudência nos seguintes termos: «Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do art. 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14.º, 2.ª parte do Dec. n.º 13.004 e 483.º,n.º 1, do Código Civil.»
[10] Citámos o Ac. do T.R.Coimbra de 17-11-2009, proc. nº 576/08.4TBAVR.C1, acessível em  www.dgsi.pt/jtrc.
[11] Assim, JOSÉ MARIA PIRES in “O Cheque”, Editora Rei dos Livros, pág. 107.


[12] Cf., neste expresso sentido, PIRES DE LIMA e A. VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, Cª Editora, 1987, a pags. 305.
[13] Trata-se do Ac. do T.R.Coimbra de 27-03-2012, no proc. nº 4050/07.8TBAVR.C1, acessível em  www.dgsi.pt/jtrc.
[14] Citámos o Ac. da Rel. de Lisboa de 16-06-2009, no proc nº 5479/07.7TVLSB.L1-1, acessível em  www.dgsi.pt/jtrl.  
[15] Quanto ao fundamental deste sentido, veja-se o recentíssimo Ac. do T.R.Coimbra de 09-10-2012, no proc. nº 1051/09.5TBVIS.C1, acessível em  www.dgsi.pt/jtrc.
[16] Este citado no supra referido Ac. do T.R.Coimbra de 09-10-2012, no proc. nº 1051/09.5TBVIS.C1.
[17] Na obra “Cheque e Convenção de Cheque”, Livª Almedina, a pags. 621.