Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
198/15.3GCACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: BURLA
EXTORSÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO OU ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO
Data do Acordão: 05/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J L CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 217.º E 223.º DO CP; ART. 410.º DO CPP
Sumário: I - São elementos constitutivos do tipo de crime de burla:
- A acção típica isto é, que o agente, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determine o burlado à prática de actos que lhe causem a si ou a terceiro um prejuízo patrimonial; [Tipo objectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, ao qual acresce uma específica intenção, o dolo específico, a intenção de obtenção, para o agente ou para terceiro, de um enriquecimento ilegítimo. [Tipo subjectivo]

II - São elementos constitutivos do tipo de crime de extorsão:

- A acção típica isto é, que o agente, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranja outra pessoa a uma disposição patrimonial que lhe cause, ou a outrem, prejuízo; [Tipo objectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, e o dolo específico, a intenção de obtenção, para o agente ou para terceiro, de um enriquecimento ilegítimo. [Tipo subjectivo]

III - Na extorsão, o resultado, a disposição patrimonial, é alcançada por meio da violência ou ameaça com mal importante, enquanto que na burla, é alcançada através do erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados.

IV - O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão pode apresentar-se, basicamente, sob diversas formas, tais como, uma oposição na matéria de facto provada, uma oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada, uma incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto, ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão.

V - Verifica-se este vício quando, o tribunal a quo, através de diferente redacção, nos factos provados e nos factos não provados, veio a considerar provada e não provada, a mesma causa para a disposição patrimonial, para a entrega do ouro e dinheiro da ofendida às arguidas.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Alcobaça – Instância Local – Secção Criminal – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, das arguidas A... e B... , ambas com os demais sinais nos autos, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, c), ambos do C. Penal.

            A ofendida e demandante C... deduziu pedido de indemnização civil contra as arguidas, com vista á sua condenação no pagamento da quantia de € 12.270, por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da decisão e até efectivo e integral pagamento.

            Por despacho proferido na audiência de julgamento de 10 de Outubro de 2016 [acta de fls. 226 a 229], foi comunicada às arguidas uma alteração da qualificação jurídica, que passou a ser feita pelo crime de extorsão, p. e p. pelo art. 223º, nº 1 do C. Penal, tendo o Ilustre Mandatário das arguidas manifestado a sua discordância quanto a tratar-se de alteração não substancial de factos e requerido a faculdade de usar de novo da palavra para alegações, o que foi deferido.

            Por sentença de 10 de Outubro de 2016 foram as arguidas absolvidas da prática do imputado crime de burla qualificada e condenadas, pela prática, em co-autoria material, de um crime de extorsão, p. e p. pelo art. 223º, nº 1 do C. Penal, cada uma, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, com regime de prova, condicionada à observância de determinadas regras de conduta e à obrigação de pagamento à demandante, até ao termo de cada período de seis meses da suspensão, da quantia de € 500, no total de € 1.500, por conta do valor atribuído pela via do pedido de indemnização.

            Mais foram as arguidas condenadas, solidariamente, no pagamento à demandante civil, da quantia € 9.520, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.


*

            Inconformadas com a decisão, recorreram as arguidas, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1. Para verificarmos o crime de extorsão ou a violência devia ser apta ao mesmo, ou o constrangimento ser suficientemente relevante para que se considerasse o receio provocado na ofendida;

2. Se por um lado entendemos que o abanar os braços não é violência apta à extorsão, mais ainda entendemos que essa violência que se esgota no acto de abanar os braços da ofendida não se possa protelar no tempo de modo a que a Assistente levante dinheiro dias mais tarde em virtude de lhe terem abanado os braços antes;

3. Ou seja, por as arguidas abanarem os braços da Assistente a uma terça-feira, não é essa violência apta a que por exemplo a Assistente vá levantar dinheiro da sua conta bancária na segunda-feira seguinte!

4. Já o constrangimento, tem de ser apto a provocar um receio, não sendo esse constrangimento protelável de per si no tempo, tal como a violência de abanar os braços!

5. Alguns telefonemas feitos pelas arguidas dias depois não são aptos a protelar um constrangimento quando a Assistente não via e não sabia se voltaria a ver as arguidas.

6. Para que existisse o crime de extorsão, a violência teria que ser actual (o que não sucedeu na maioria das situações e nem assim resulta da factualidade dada como assente), como o constrangimento tinha de ser idóneo a provocar o receio (o que igualmente não sucede atendendo à factualidade dada como provada);

7. Veja-se que o “atemorizar” a Assistente de que a filha pode vir a ter algum problema de saúde (que não dependeria das arguidas) não é um acto apto ao constrangimento necessário à extorsão (ponto 18 factos dados como provados);

8. Igualmente, veja-se que “o temor pela reacção das arguidas face a uma eventual recusa” não é igualmente um acto de relevo (ponto 19 dos factos dados como provados), pois aquilo que haveria de ser ponderado seria a coacção perpetuada pelas arguidas e não o receio da Assistente em não agradar as arguidas;

9. Veja-se ainda que, se atentarmos à sequencia dos art.º 10º e 11º e na sequencia dos art.º 24º e 25º da factualidade dada como assente, temos que as arguidas disseram à Assistente que a filha daquela tinha problemas que apenas seriam resolvidos se certos bens fossem benzidos para que ela se curasse (o que não denota em si um constrangimento porque qualquer mal que pudesse suceder não resultaria da acção directa das arguidas mas do facto de a filha da Assistente necessitar de tratamento espiritual) – art.º 10º e 24º da factualidade provada – ficando a Assistente “amedrontada” (art.º 11º factos provados) e “assustada” (art.º 25º da factualidade dada como provada) por aquilo que poderia suceder à sua filha na falta do dito tratamento, não resultando que tenha ficado amedrontada ou assustada no sentido do que as arguidas pudessem fazer à sua filha, ou pelo menos assim não resultando da factualidade dada como provada;

10. De toda a factualidade dada como provada nem se alcança qual o receio em concreto que as arguidas colocaram à ofendida!

11. Enferma assim a douta sentença de que ora se recorre do vício da al. a) do n.º 2 do art.º 410º do Cód. Processo Penal;

12. Atente-se que não obstante o princípio da livre apreciação da prova, não pode o mesmo prevalecer à ausência de prova ou à prova em sentido contrário;

13. Ora, o Constitucional princípio do in dubio pro reo é aplicável não apenas quanto à questão da culpabilidade ou não, do cometimento ou não da prática de um crime, mas também a qualquer outra questão que da prova produzida em sede de audiência de julgamento possa surgir com razoabilidade e que possa beneficiar o arguido;

14. Não podendo como se disse o princípio da livre apreciação da prova se sobrepor à falta de prova para o apuramento de uma concreta questão;

15. Devem as penas aplicadas se graduarem próximas do seu limite mínimo, até atendendo à sua modesta condição social, cultural e económica e inserção social para atribuição da medida da pena;

16. Bem como à sua total ausência de antecedentes criminais;

17. Não havendo noticia de qualquer processo anterior a estes factos, e não havendo qualquer condenação por factos posteriores;

18. A medida da pena deve ser atribuída em função da culpa do agente, sob pena de se violar o disposto no 1 e 2 do art.º 40º e n.º 1 do art.º 71º, ambos do Cód. Penal;

19. Sendo excessivas as penas aplicadas às recorrentes, atendendo à sua modesta condição social, cultural e económica e inserção social, bem como à sua total ausência de antecedentes criminais e não havendo notícia de qualquer processo anterior a estes factos nem havendo qualquer condenação por factos posteriores;

20. Sem prejuízo da improcedência do pedido de indemnização cível;

21. E não devendo ficar as suspensões das penas sujeitas ao pagamento de quantias pecuniárias à Assistente, pois isso não apenas desvirtua a finalidade do pedido de indemnização cível mas também poderá colocar as arguidas na contingência de cumprimento da pena de prisão caso se venha a verificar não conseguirem as mesmas pagar tal quantia monetária, até porque não pode ser expectável que as arguidas vão delinquir para obter proventos a fim de pagar a indemnização com vista a evitar o cumprimento da pena de prisão;

22. Violados se revelam, em consequência, salvo melhor opinião, os preceitos legais invocados nas presentes alegações de recurso.

Nestes termos e nos mais de direito, deve ser julgado procedente o presente recurso, assim se fazendo …

… JUSTIÇA!


*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, alegando que os factos provados preenchem todos os elementos do tipo do crime de extorsão, por cuja prática foram as recorrentes condenadas, pelo que a sentença recorrida não enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que as penas não podem ser graduadas próximo do mínimo legal, atentos o valor do prejuízo causado, as características da personalidade das recorrentes e as exigências de prevenção geral, que é conveniente a suspensão da prisão condicionada à satisfação de deveres de natureza pecuniária, e concluiu pelo não provimento do recurso.

*

            Respondeu também ao recurso a ofendida e demandante civil, afirmando a suficiência dos factos provados para a decisão proferida e consequente verificação do crime de extorsão, a inexistência de desrespeito de qualquer norma constitucional e concluiu pela improcedência do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a resposta do Ministério Público, afirmando a inexistência de vícios e da dúvida razoável que suportasse a aplicação do pro reo, e concluiu pela improcedência do recurso.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


*

            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelas recorrentes, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A incorrecta qualificação jurídica dos factos provados e suas consequências;

- A excessiva medida da pena de prisão;

- O incorrecto condicionamento da execução da pena de prisão.


*

            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

1. A demandante C... nasceu em 15 de Fevereiro de 1944.

2. Tem como habilitações literárias o primeiro ano do ensino básico, correspondente ao que se designava por primeira classe.

3. No dia 15 de Junho de 2015, as arguidas, ao verem a demandante junto a um barracão anexo à sua residência, sita na Estrada Nacional n.º 8-6, em Ardido, Turquel, e percebendo a sua aparência humilde, abordaram-na para falar com ela e convencê-la a entregar-lhes os valores e quantias em dinheiro, dizendo-lhe para esse efeito que sabiam que a mesma tinha problemas familiares e que a poderiam ajudar com rezas.

4. Designadamente, disseram à demandante que sabiam que a mesma tinha uma filha muito doente e que a podiam ajudar através de rezas e benzendo-lhe o dinheiro, pois a doença da filha estava relacionada com este último.

5. Com efeito, a filha da demandante encontrava-se com uma depressão nervosa, tendo três filhas menores de idade que o pai abandonara.

6. Como se aperceberam que a demandante era uma pessoa impressionável e que reagiu à alegação da doença da filha, de imediato as arguidas resolveram apropriar-se do dinheiro que demandante tivesse consigo, dizendo-lhe que os seus problemas estavam relacionados com o dinheiro, que precisava de ser benzido.

7. Para mostrarem à demandante que o que lhe diziam era verdade, as arguidas disseram-lhe para ir a casa buscar um ovo, que colocaram no interior de um guardanapo e que pediram àquela para partir.

8. Depois de a demandante partir o ovo, as arguidas mostraram-lhe o guardanapo, em cujo interior a mesma viu que a gema do ovo tinha um rolo de cabelos, ao que as arguidas lhe disseram que era a prova do mal que a demandante e a filha tinham.

9. As arguidas, na execução do plano previamente gizado de fazerem seus os valores que a demandante tivesse consigo, disseram-lhe que para afastar o mal da filha, teria de ir buscar os objectos em ouro que tivesse em casa para serem benzidos.

10. Como a demandante se recusou, dizendo que não tinha quaisquer objectos em ouro, as arguidas amedrontaram-na dizendo-lhe “a sua filha tem a cova aberta, quer andar de luto?”, para assim a convencerem a ir buscar as peças em ouro.

11. Amedrontada, a demandante acabou por ir buscar e entregar às arguidas, para que as benzessem, peças em ouro que tinha na sua residência, nomeadamente um fio, duas alianças de casamento, um par de brincos, uma anel, uma argola e duas alianças de criança, tudo de concretas características e valores não concretamente apurados.

12. As arguidas guardaram as peças em ouro e disseram à demandante que mais tarde, depois de o benzerem, lhas devolveriam.

13. As arguidas continuaram então a insistir com a demandante para que esta lhes entregasse o dinheiro que tinha em casa para que o benzessem e assim ajudarem a recuperação da filha.

14. A demandante negou então que tivesse dinheiro em casa, face ao que ambas as arguidas começaram a agarrar-lhe as mãos e os braços, abanando-a e dizendo-lhe simultaneamente que tinha efectivamente dinheiro em casa e que devia ir buscá-lo, senão far-se-ia todo em cinzas.

15. A demandante, tolhida pelo medo resultante de uma tal atitude das arguidas, regressou então ao interior da sua residência, de onde trouxe pelo menos € 770,00 (setecentos e setenta euros) em numerário, que entregou às arguidas.

16. Na posse do referido dinheiro, as arguidas disseram à demandante que as rezas apenas resultariam se esta lhes entregasse todo o dinheiro que tinha, mesmo o que estava no banco, pois o dinheiro tinha de ser todo o benzido e só depois o poderiam devolver.

17. Como a demandante ainda mostrou alguma resistência ao que as arguidas lhe pediam, estas voltaram a confrontá-la com a possibilidade de a filha ficar ainda mais doente e de vir a morrer por sua responsabilidade.

18. A partir daí, as arguidas passaram a telefonar insistentemente para a demandante, atemorizando-a naqueles termos para que a mesma procedesse ao levantamento do dinheiro que tinha depositado no banco.

19. Continuando sempre temerosa pela reacção que as arguidas poderiam vir a ter face ao uma eventual recusa, a demandante acedeu a deslocar-se ao banco Millennium BCP, onde tinha domiciliada a sua conta bancária, e proceder ao levantamento de dinheiro que ali tinha depositado, para entregar às arguidas.

20. Assim, no dia 18 de Junho de 2015, procedeu ao levantamento da quantia de € 3.000,00 (três mil euros) em numerário da conta bancária n.º (...) , domiciliada na agência do banco Millennium BCP da Benedita.

21. Após, na sua residência, entregou tal quantia às arguidas, que para ali se haviam deslocado.

22. As arguidas guardaram o dinheiro em numerário que a demandante lhes entregou, fazendo-o seu, dizendo-lhe que o iam benzer e fazer as rezas.

23. Insistiram então em como a demandante ainda tinha mais dinheiro que também lhes tinha de entregar.

24. Continuavam a dizer-lhe que, caso não lhes entregasse todo o dinheiro para ser benzido, iria visitar a filha ao cemitério e seria sua culpa a morte dela, voltando a agarrar a demandante pelas mãos e pelos braços e a abaná-la.

25. Assustada, a demandante, no dia 19 de Junho de 2015, dirigiu-se mais uma vez à agência do banco Millennium BCP sita na Benedita, onde, da conta bancária supra referida, procedeu ao levantamento da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) em numerário.

            26. Mais uma vez as arguidas, que previamente haviam combinado com a demandante deslocar-se à residência desta para receber o dinheiro, ali se encontravam e receberam o dinheiro que guardaram e fizeram seu.

27. As arguidas actuaram sempre de forma concertada, e na execução de um plano que ambas previamente haviam elaborado, para conjuntamente se apropriarem de todo o ouro e dinheiro que conseguissem.

28. Desta forma, lograram apropriar-se da quantia total de € 8.770,00 (oito mil setecentos e setenta euros) pertencente à demandante, bem como das peças de ouro, que dividiram entre si de forma não concretamente apurada, em prejuízo daquela, que ainda as não recuperou, sabendo que às mesmas não tinham qualquer direito.

29. Agiram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que não tinham qualquer dom ou poder de ajudar a demandante, ao contrário do que lhe diziam e tentavam fazer crer, bem sabendo que toda a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.

30. As arguidas disseram sempre à demandante para não contar a ninguém o que se estava a passar.

31. Em decorrência directa de toda a conduta das arguidas, a demandante passou a sentir-se perturbada, ansiosa e nervosa, tendo dificuldades em descansar e em dormir.

32. Viu-se na necessidade de recorrer a ajuda médica e medicamentosa, que ainda subsiste.

[Dos antecedentes criminais das arguidas]

33. Nenhuma das arguidas tem actualmente quaisquer antecedentes averbados nos respectivos certificados de registo criminal.

[Da situação pessoal e da personalidade da arguida A... ]

34. Ao longo do percurso de socialização, A... foi vivendo em meios residenciais socialmente conotados pela existência de problemas de exclusão e marginalidade.

35. Segunda de uma fratria de três irmãos, a identificada arguida cresceu num agregado que vivia com humildes condições económicas, tendo a subsistência sido assegurada com os rendimentos da actividade ambulante dos progenitores.

36. A... refere que a dinâmica no seio nuclear foi isenta de conflitos significativos, tendo convivido com relacionamentos gratificantes com todos os elementos familiares.

37. Sem alegadamente ter consolidado as competências de escrita e leitura, a arguida abandonou o sistema de ensino aos doze anos de idade, altura em que frequentava o segundo ano de escolaridade.

38. É mãe de dois filhos no contexto da união matrimonial que mantém no presente.

39. Continua a subsistir com apoios institucionais e montantes advindos da prática de venda ambulante.

40. Aufere € 440,00 (quatrocentos e quarenta euros) a título de rendimento social de inserção, acrescendo ao orçamento familiar € 110,00 (cento e dez euros) de abono de família dos filhos, valores com os quais refere fazer face a encargos mensais que se cifram em cerca de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros).

41. A arguida continua a residir em habitação camarária que ocupou há cerca de doze anos, aguardando o deferimento da Câmara, a quem solicitou a regularização da actual condição.

42. Alegando ter inscrição formalizada no Centro de Emprego, continua sem envidar esforços no sentido de inverter a situação de desemprego.

43. Com efeito, recorre àquele serviço apenas para fins económicos, não mostrando motivação para aproveitar o recurso institucional para efeitos de inserção socioprofissional.

44. O seu dia-a-dia é passado com os filhos – um com doze meses e outro com quase dois anos – e/ou no convívio com pares do meio residencial, entre os quais a co-arguida B... , com a qual refere ter uma amizade há vários anos.

45. Relativamente aos menores, a filha da arguida está sinalizada à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens por absentismo escolar.

46. Não se apura a existência de problemas de saúde, sendo mencionada a inexistência de consumos de substâncias aditivas ao longo do seu percurso de vida.

47. No campo pessoal, em contexto de entrevista com os serviços da DGRSP para elaboração do relatório social junto aos autos, a arguida evidenciou ausência absoluta de capacidade crítica e desvalor da intervenção jurídico-judicial.

48. Nessa sede expressou a expectativa de uma absolvição neste processo, mostrando concomitante motivação para cumprir o que vier a ser determinado caso o desfecho recaia numa medida a executar na comunidade, inclusive o ressarcimento da alegada lesada.

[Da situação pessoal e da personalidade da arguida B... ]

49. De etnia cigana, o processo de crescimento de B... decorreu de acordo com os valores e costumes inerentes ao seu grupo de pertença.

50. A sua família era composta pelos pais e oito irmãos, sendo a subsistência proveniente da actividade da venda ambulante, não tendo assinalado dificuldades económicas.

51. Durante a sua infância e adolescência viveu com o seu agregado familiar em vários bairros de barracas na zona de Lisboa e arredores.

52. A arguida frequentou a escola até à terceira classe, ainda que seja praticamente iletrada.

53. Tal situação surge correlacionado com o facto de cedo ter começado a acompanhar os pais e irmãos na venda ambulante e de a família não valorizar a vertente escolar.

54. Refere um bom relacionamento familiar, tendo o mesmo ocorrido num registo funcional e com fraca estimulação intelectual.

55. Com quinze anos casou segundo a tradição cigana, relação da qual nasceram os seus quatro filhos, actualmente com dezanove, quinze, onze e cinco anos.

56. À data dos factos objecto dos presentes autos, residia com o marido e filhos, uma nora e dois netos numa habitação camarária que se localiza num bairro social marcado por várias problemáticas de cariz social.

57. Descreveu de forma superficial uma dinâmica familiar isenta de qualquer problemática relacional.

58. Os filhos mais novos encontram-se todos integrados no sistema de ensino.

59. O mais velho ajuda o pai que, segundo refere a arguida, dedica-se ao trabalho no ramo automóvel.

60. B... refere que se dedica à venda de artigos de vestuário, sem que para o efeito seja detentora que qualquer espaço ou autorização legal, mencionado que o que aufere é variável.

61. O agregado familiar conta ainda com € 876,69 (oitocentos e setenta e seis euros e sessenta e nove cêntimos) mensais a título de rendimento social de inserção e com € 218,52 (duzentos e dezoito euros e cinquenta e dois cêntimos) de abonos dos filhos menores.

62. Tem, entre outras despesas, a renda habitacional no valor de € 12,00 (doze euros) mensais, sendo assinaladas várias dívidas, uma das quais no âmbito do rendimento social de inserção, porquanto a SCML lhe adiantou um montante que tem de reembolsar, o que irá fazer em prestações.

63. Ainda assim, de forma evasiva e relativamente à sua situação económica, não assinalou dificuldades.

64. Do que transmitiu, o seu quotidiano decorre em torno do gerir as rotinas dos filhos mais novos e, em alguns períodos, da actividade de venda de forma itinerante.

65. Em termos de características pessoais evidenciou ser uma pessoa com labilidade emocional, porquanto alternou entre uma postura sedutora e uma postura de confronto, mostrando que os seus interesses individuais se sobrepõem aos interesses sociais e jurídicos.

66. Revelou também dificuldades de autocontrolo, nomeadamente quando se encontra em situações que para si são geradoras de tensão emocional.

(…)”

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

            “ (…).

a) A demandante tem como habilitações literárias o segundo ano do ensino básico;

b) A demandante acreditou que, caso recusasse a entrega do dinheiro, a sua filha pioraria;

c) A demandante só entregou as supra referidas quantias nos moldes descritos porque se convenceu que a história que as arguidas lhe contaram era verdadeira e que aquele esquema de crendice e de bruxaria viria a resultar em benefícios para a saúde da sua filha, acreditando em tudo o que as arguidas lhe contavam; e

d) As peças de ouro supra descritas tinham o valor global de € 500,00 (quinhentos euros).

(…).

C) Dela consta a seguinte fundamentação quanto à qualificação jurídica dos factos:          

            “ (…).

Como vimos, as arguidas vêm acusados da prática, em co-autoria material, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), ambos do Código Penal.

Dispõe o n.º 1 do citado artigo 217.º do Código Penal que «[q]uem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».

Se o agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença, a pena é de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias[artigo 218.º, n.º 1, alínea c)].

Sendo o bem jurídico protegido o património de outra pessoa, resulta da própria estrutura do tipo serem os seguintes os elementos constitutivos do crime de burla:

- intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo;

- uso de erro ou engano sobre factos astuciosamente provocado;

- para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial.

No entender de Simas Santos e Leal-Henriques (Código Penal Anotado, 3.ª edição, 2.º Volume, Parte Especial, Editora Rei dos Livros, 2000, p. 839), aquele enriquecimento ilegítimo «pode ocorrer por diversas formas: mediante um aumento patrimonial dos bens de terceiro ou do agente (...); mediante uma diminuição do passivo patrimonial do agente ou de terceiro (...); mediante a poupança de despesas, que são satisfeitas pelo lesado (...)». Essencial é, sempre, que o enriquecimento obtido não corresponda, objectiva ou subjectivamente, a qualquer direito.

Já no que concerne ao elemento «uso de erro ou engano, astuciosamente provocado», importa realçar que o mesmo se traduz, desde logo, na mentira que provoca no lesado ou em outra pessoa uma falsa representação da realidade, sendo essa mentira utilizada intencionalmente pelo agente do crime como forma de provocar essa «ilusão».

Seguindo a lição de Miguez Garcia e Castela Rio (Código Penal – Parte geral e especial com notas e comentários, Almedina, 2014, p. 915), «[o] agente engana mistificando, induzindo em erro, provocando uma contradição entre a representação e a realidade».

No que, por fim, ao elemento «prática de actos que causem um prejuízo patrimonial» concerne, deve existir uma perfeita e sucessiva relação de causa-efeito entre a conduta enganosa ou astuciosa e a prática de actos que causem, ao enganado ou a um terceiro, um efectivo prejuízo patrimonial.

Do ponto de vista do elemento subjectivo do tipo, e acompanhando Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição actualizada, UCE, 2015, p. 851), admitem-se «as formas de dolo directo e necessário, uma vez que a astúcia é incompatível com o dolo eventual (…). O tipo inclui ainda um elemento subjectivo adicional: a intenção de obter, para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo. Não é necessário que se verifique o enriquecimento, mas apenas a vontade de o obter».

No caso vertente, cremos que, ante a falta de demonstração da factualidade vertida nas alíneas b) e c) dos factos não provados, o acervo factual que se provou não é desde logo suficiente para considerar perfectibilizados todos os elementos objectivos do crime de burla, designadamente o sobredito elemento «uso de erro ou engano, astuciosamente provocado», uma vez que a mentira utilizada pelas arguidas não provocou na demandante ou em qualquer outra pessoa uma falsa representação da realidade.

Donde, sem mais, a absolvição de ambas quanto a tal ilícito criminal que lhes vinha imputado.

Impõe-se, contudo, e atendendo à comunicada alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, apreciar se os factos provados em 1 a 29 se subsumem aos elementos objectivos e subjectivo do crime de extorsão, sendo certo que, no nosso entendimento, está efectivamente apenas em causa uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, em relação aos quais, grosso modo, apenas não se provou, como vimos, os atinentes ao elemento «uso de erro ou engano, astuciosamente provocado», mas antes um minus, digamos assim, cujo correcto enquadramento jurídico tentaremos agora levar a cabo.

Ora, de acordo com o artigo 223.º, n.º 1, do Código penal, «[q]uem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até 5 anos».

Tal como bem sintetizado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-10-2009 (Processo n.º 1701/06.5TABRG.G1), são requisitos para a verificação do assinalado tipo legal de crime: «a) o emprego de violência ou ameaça ou a colocação de outra pessoa na impossibilidade de resistir; b) o constrangimento daí resultante a uma disposição patrimonial que cause prejuízo para alguém; c) intenção de conseguir para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.

O crime de extorsão é um crime de processo típico, no sentido de que os meios para a sua realização estão taxativamente referidos na lei “por meio de violência ou de ameaça com mal importante”.

É certo que a extorsão tem muitos elementos típicos comuns a vários outros tipos de crime, nomeadamente aos de coacção (art. 154), roubo (art. 210) e burla (art. 217).

No entanto as maiores afinidades são com o crime de coacção pois todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação àquele, apenas pela exigência de a conduta coagida se traduzir num prejuízo injusto para o sujeito passivo (que tanto pode ser a vítima como outra pessoa) e num enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro».

No confronto com o já assinalado crime de burla, e regressando à lição de Miguez Garcia e Castela Rio (ob. cit., p. 942), o ânimo de lucro aproxima ambos os crimes em apreço, mas ambos se distinguem pelos meios utilizados pelo agente, residindo a diferença em que num caso (burla) a vítima é levada a “colaborar” pelo engano, sendo que no outro (extorsão) essa “colaboração” se dá em ambiente coactivo.

Isento de dúvida parece-nos ser o entendimento de acordo com o qual a violência pressuposta pela extorsão pode ser física ou psíquica, neste caso traduzindo pressão psicológica sobre o visado.

Revertendo à situação dos autos, somos de parecer que, para além da violência física que não deixa de resultar dos factos provados em 14 e 24, todos os demais factos provados em 1 a 29 são mais do que suficiente para surpreender neles uma situação de patente pressão psicológica exercida sobre a demandante, não hesitando as arguidas em levarem a cabo essa pressão trazendo a lume o estado de saúde da filha daquela, dizendo-lhe, além do mais: “a sua filha tem a cova aberta, quer andar de luto?”.

Ademais, os aludidos factos provados também patenteiam a circunstância de a demandante ter agido tolhida pelo medo resultante da demonstrada conduta das arguidas, estando desse modo verificada a adequação da acção de constrangimento que desencadearam à disposição patrimonial realizada pela primeira.

E nem se diga, salvaguardando o devido respeito pelo que em contrário nos parece ter sido alegado pelo Ilustre mandatário das arguidas, que por a violência ser desfasada no tempo, não está verificado o crime de extorsão.

Repare-se que não estamos a tratar do crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, esse sim a reclamar a actualidade da violência.

Citando de novo Miguez Garcia e Castela Rio (ob. cit., pp. 942-943), «[a]s diferenças entre a extorsão e o roubo explicam-se também por na maior parte dos roubos o ladrão fugir com a coisa que é subtraída logo ali, em ato seguido ou simultâneo da violência. Este modus operandi não é típico da extorsão – nesta, cedendo o coagido, a vantagem patrimonial vem depois, de tal forma que a vítima como que colabora com o criminoso».

É precisamente o que, a nosso ver, resulta dos factos provados.

Por último, e aqui perante os factos provados em 27 a 29, cremos estar também verificado o elemento subjectivo do tipo, que admite qualquer modalidade de dolo, exigindo-se ainda uma intenção de obtenção de enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro (também assim, vide, por exemplo, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 866).

Na defluência do exposto, e inexistindo quaisquer causas excludentes da ilicitude ou da culpa, importa condenar as arguidas pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, do assinalado crime de extorsão.

(…).

D) E a seguinte fundamentação quanto à escolha e determinação da medida da pena;

            “ (…).

Enquadrada a conduta das arguidas da forma supra descrita, cumpre proceder à determinação das penas a aplicar em concreto, sabendo-se que o crime de extorsão que praticaram é abstractamente punível com pena de prisão entre 1 mês e 5 anos – artigos 41.º, n.º 1, e 223.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

            Ora, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do mesmo diploma), sendo certo que, dentro dessa medida, há que fazer intervir nesta sede a ponderação dos fins de prevenção geral e especial a que se submetem as penas e as medidas de segurança (artigo 40.º, n.º 1).

            A pena concreta fixar-se-á, desse modo, entre um limite mínimo já adequado à culpa e um limite máximo ainda adequado à culpa, tendo como referencial os mencionados fins de prevenção geral e especial.

Também do artigo 71.º, n.º 1, decorre que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Deve ainda levar-se em linha de conta o disposto no artigo 71.º, n.º 2, no qual plasmou o legislador, exemplificativamente, algumas circunstâncias acidentais de doseamento da pena que, «não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele».

            Acompanhando a clarividente síntese de Maria João Antunes (Consequências Jurídicas do Crime – Lições para os alunos da disciplina de Direito Penal III da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2010-2011, pp. 28-29), pode dizer-se que «[n]a determinação da medida da pena, o requisito legal de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção satisfaz a necessidade comunitária de punir o crime e, consequentemente, de realizar as finalidades da pena; o requisito legal de que seja considerada a culpa do agente satisfaz a exigência de que a vertente pessoal do crime, decorrente do respeito pela dignidade da pessoa do agente da prática do crime, limite as exigências de prevenção.

            Quando se fala de prevenção como critério geral ou principal regulativo da medida da pena tem-se em vista o sentido que é dado à expressão em matéria de finalidades das penas. Prevenção significa, pois, prevenção geral e prevenção especial, no preciso sentido que assumem na discussão sobre as finalidades da punição. Quando se fala na culpa trata-se da culpa que releva quer ao nível do princípio da culpa quer ao nível do conceito de crime.

            A prevenção e a culpa devem manter-se distintas na função que cada uma desempenha na determinação concreta da pena, sem que a distinção dos princípios regulativos da culpa e da prevenção signifique que cada um dos diversos factores de medida da pena (artigo 71.º, n.º 2, do CP) deva ser imputados só a uma ou a outra. Pelo contrário, há que aceitar a ambivalência de muitos destes factores, numa dupla acepção: há factores que podem relevar quer para a culpa quer para a prevenção; um mesmo factor pode mesmo relevar de forma antinómica, diminuindo (atenuando) a culpa e aumentando (agravando) as exigências de prevenção, ou vice-versa».

Assim, há desde logo a salientar que se mostram bastante elevadas as razões de prevenção geral associadas aos crimes contra o património, incluindo no que tange ao crime de extorsão, de que cada vez mais são vítimas as pessoas mais idosas, incluindo através da forma de actuação de ambas as arguidas, o que constitui motivo de constante alarme social, motivador de sanções penais que se mostrem eficazes para dissuadir a respectiva prática.

            Por outro lado, cremos ser de considerar um já relevante grau de ilicitude dos factos, sobretudo coincidente com o prejuízo patrimonial advindo para a ofendida, numa quantia total de € 8.770,00 (oito mil setecentos e setenta euros) a que acrescem as peças de ouro de valor não concretamente apurado.

A culpa, por seu turno, mede-se pela intensidade do dolo, que foi directo em relação a ambas as arguidas.

No que mais especificamente diz respeito às necessidades de prevenção especial, releva, a começar, a circunstância de nenhuma das arguidas ter actualmente quaisquer antecedentes averbados nos respectivos certificados de registo criminal.

Acresce que parecem estar ambas adequadamente integradas do ponto de vista familiar, o que, no entanto, já não pode dizer-se acerca dos respectivos graus de integração laboral e social.

Em contexto de entrevista com os serviços da DGRSP para elaboração do relatório social junto aos autos, a arguida A... evidenciou ausência absoluta de capacidade crítica e desvalor da intervenção jurídico-judicial, sendo que, embora expressando a expectativa de uma absolvição neste processo, mostrou concomitante motivação para cumprir o que vier a ser determinado caso o desfecho recaia numa medida a executar na comunidade, inclusive o ressarcimento da demandante.

Já a arguida B... evidenciou ser uma pessoa com labilidade emocional, porquanto alternou entre uma postura sedutora e uma postura de confronto, mostrando que os seus interesses individuais se sobrepõem aos interesses sociais e jurídicos.

Revelou também dificuldades de autocontrolo, nomeadamente quando se encontra em situações que para si são geradoras de tensão emocional.

Afigurando-se-nos assim legítima a conclusão de que ambas as arguidas apresentam patentes necessidades de reinserção social, e uma vez ponderados todos os factores vindos de enunciar, temos por adequado cominar a cada uma delas, em concreto, penas de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

(…).

            Importa agora equacionar se são de suspender na sua execução as penas de prisão em apreço, sabendo-se que, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

É, assim, pressuposto da suspensão da execução da pena de prisão a formulação, pelo julgador, de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de quanto a ele a simples censura e ameaça da pena de prisão serem suficientemente dissuasoras da prática de futuros crimes.

            Neste contexto, e fazendo nossas as palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-01-2015 (Processo n.º 16/13.7GDOAZ.P1), «[a] prognose exige uma valoração total de todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido. Estas circunstâncias são a sua personalidade (por ex., inteligência e carácter), a sua vida anterior (por exemplo, outros delitos anteriormente cometidos da mesma ou de outra natureza), as circunstâncias do delito (por exemplo motivações e fins), o seu comportamento depois de ter cometido o crime (por exemplo reparação do dano, arrependimento), as circunstâncias da sua vida (por exemplo, profissão, casamento e família) e os efeitos que se esperam da suspensão [...].

Porém, ainda que centrada na pessoa do arguido no momento atual e na avaliação da respetiva capacidade de socialização em liberdade, ou seja, em considerações radicadas na prevenção especial, a decisão que aprecie a propriedade de escolha por esta, ou outra, pena de substituição, deve atender igualmente às exigências de prevenção geral positiva, para que a reação penal responda adequadamente às expetativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada e assegure a proteção do bem jurídico afetado, como imposto pela parte final do nº1 do artº 50º do CP. Esse necessário balanceamento entre as finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial de socialização, em que a primeira exerce função limitadora da segunda, encontra relação direta com a gravidade da pena e a proximidade do limite de admissibilidade da pena de substituição».

No caso concreto, e não obstante a indisfarçável relevância das razões de prevenção geral positiva, há aqui que recordar que nenhuma das arguidas tem actualmente quaisquer antecedentes averbados nos respectivos certificados de registo criminal, parecendo estares ambas adequadamente integradas do ponto de vista familiar.

É também certo que se mostram insuficientes os respectivos graus de integração laboral e social e que os traços de personalidade das arguidas que emergem dos factos provados em 47, 48, 65 e 66 fazem-nos ter algumas reservas quanto ao seu comportamento futuro.

Nada, no entanto, que nos impeça de considerar que estão reunidas condições para, com acompanhamento dos serviços técnicos competentes, as arguidas responderem cabalmente, em liberdade, às necessidades de ressocialização que ainda se fazem sentir e emergem dos relatórios sociais juntos aos autos, nos quais também se conclui pela viabilidade de execução de medidas na comunidade.

Destarte, e por referência ainda ao disposto no n.º 5 do citado artigo 50.º do Código Penal, julgo adequado suspender a execução das penas de prisão ora aplicadas por idênticos períodos de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, suspensão essa que, nos termos do artigo 53.º, n.ºs 1, 2 e 3, do mesmo diploma, ficará sujeita a regimes de prova, assentes em planos de reinserção social a elaborar pela D.G.R.S.P., que vigiará e apoiará a respectiva execução.

Tendo em vista potenciar as virtualidades do instituto da suspensão, e considerando ainda os objectivos de ressarcimento da vítima, tais planos, obedecendo ao disposto no artigo 54.º do Código Penal, deverão ir sobretudo ao encontro das necessidades de prevenção que se fazem sentir e que resultam dos relatórios sociais juntos aos autos, impondo-se ainda às arguidas, de harmonia com os artigos 50.º, n.º 2, 51.º, n.º 1, alínea a), e 52.º, n.º 3, as seguintes obrigações:

- Obrigação de receberem visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;

- Obrigação de manterem actividade profissional durante o período da suspensão ou, pelo menos, de efectuar um esforço válido, consistente e permanente nesse sentido; e

- Obrigação de pagarem à demandante, até ao final de cada períodos de seis meses da suspensão, as quantias parcelares de € 500,00 (quinhentos euros), num total de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) cada uma, por conta do valor em que irão ser condenadas no âmbito do pedido de indemnização civil, quantias essas que se crêem perfeitamente comportáveis ante as respectivas situações socioeconómicas demonstradas nos factos provados.

            (…).


*

Da incorrecta qualificação jurídica dos factos provados e suas consequências

1. Às arguidas foi imputada na acusação a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, c), ambos do C. Penal, essencialmente, com base na seguinte síntese factual: em 15 de Junho de 2015, as arguidas abordaram a ofendida e, constatando que a mesma era uma pessoa impressionável e crédula, convenceram-na de que a doença da filha se devia a um mal e que esta já tinha uma campa no cemitério, e que para ser afastado esse mal, era necessário que lhes fosse feita a entrega de ouro e dinheiro, para serem benzidos por elas, já que eram estes a fonte do ‘mal’; a ofendida, sugestionada pelo que lhe fora dito, entregou às arguidas, para o referido efeito, objectos em ouro no valor de cerca de € 100 e a quantia de € 770, e tendo as arguidas continuado a insistir consigo em que também o dinheiro que estava no banco tinha que ser benzido, temendo pelo agravamento da saúde da filha, levantou no banco, em 18 de Junho de 2015, a quantia de € 3.000 que entregou às arguidas, para ser benzida; continuando as arguidas a insistir com a ofendida que ainda tinha dinheiro no banco que carecia de ser benzido, para não ter que ir visitar a filha ao cemitério, determinaram-na ao levantamento, em 19 de Junho de 2015, da quantia de € 5.000, que lhes entregou para o mesmo fim; as arguidas agiram concertadamente, com intenção de, fazendo a ofendida crer que poderiam contribuir para a melhoria do estado de saúde da sua filha, através da entrega de bens e dinheiro, no contexto de crendice e bruxaria em que a envolveram e do qual resultaria a melhoria da saúde da filha, fazerem seus, como fizeram, o ouro e o dinheiro, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Feito o julgamento, o tribunal a quo veio a considerar não provado, que a ofendida, nas abordagens que lhe foram feitas pelas arguidas, acreditou que a recusa das entregas do dinheiro pioraria o estado da filha, que só fez tais entregas por se ter convencido que a história que as arguidas lhe contaram era verdadeira, que acreditou que do esquema de crendice e bruxaria proposto – bênção do ouro e do dinheiro – resultariam benefícios para a saúde da sua filha, e que acreditou em tudo o que as arguidas lhe contaram.

Dito isto.

2. Dispõe o art. 217º, nº 1, do C. Penal, que prevê o tipo base do crime de burla:

Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 

São assim elementos constitutivos do tipo:

[Tipo objectivo]

- A acção típica isto é, que o agente, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determine o burlado à prática de actos que lhe causem a si ou a terceiro;

[Tipo subjectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, ao qual acresce uma específica intenção, o dolo específico, a intenção de obtenção, para o agente ou para terceiro, de um enriquecimento ilegítimo.

Trata-se, portanto, de um crime comum – pode ter por agente qualquer cidadão –, um crime de dano – só se consuma com uma lesão efectiva do bem jurídico, com a verificação de um prejuízo efectivo no património do ofendido –, de um crime de resultado – exige a produção de um acontecimento como consequência da actividade do agente, a saída do bem do âmbito da disponibilidade de facto do lesado – e de um crime de execução vinculada – a lesão do bem jurídico que tutela ocorre em consequência de uma específica forma de actuar do agente, traduzida na utilização de um meio enganoso capaz de induzir o burlado em erro, erro este que o determina à prática de actos causadores do prejuízo, passando a execução do crime pela verificação de um duplo nexo de causalidade: a conduta enganatória tem que ser causa do erro do burlado, erro este que, por sua vez, tem que ser causa da entrega, da disposição patrimonial em que se consubstancia o prejuízo (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Scientia Juridica, Ano 1970, pág. 301, Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, 2º Vol, 1996, Rei dos Livros, pág. 539 e A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 293 e ss.) – que tutela o bem jurídico património, globalmente considerado.

Uma vez que na decisão proferida sobre a matéria de facto, pela 1ª instância, se considerou não provado que a ofendida procedeu à entrega dos bens e valores às arguidas, por ter sido por estas induzida em erro sobre factos que astuciosamente provocaram, teria que concluir-se, como o fez o tribunal a quo, pelo não preenchimento do tipo do crime de burla.

3. Outrossim entendeu que as apuradas condutas das arguidas antes preencheram o tipo do crime de extorsão, sendo, aliás, esta a razão fundamental da dissidência das recorrentes.

Dispõe o art. 223º, nº 1, do C. Penal, que prevê o tipo base do crime de extorsão:

Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até cinco anos.

São assim elementos constitutivos do tipo:

[Tipo objectivo]

- A acção típica isto é, que o agente, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranja outra pessoa a uma disposição patrimonial que lhe cause, ou a outrem, prejuízo;

[Tipo subjectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, e o dolo específico, a intenção de obtenção, para o agente ou para terceiro, de um enriquecimento ilegítimo.

Também aqui estamos perante um crime comum, de dano, de resultado e de execução vinculada, que tutela o bem jurídico património ou, talvez melhor dito, a liberdade de disposição patrimonial (cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, Coimbra Editora, pág. 343).

Existindo manifestas semelhanças entre os dois tipos legais, como nota Taipa de Carvalho (ob. cit., pág. 341), o que os distingue é o processo causal ou a modalidade da acção. Na extorsão, o resultado, a disposição patrimonial, é alcançada por meio da violência ou ameaça com mal importante, enquanto que na burla, é alcançada através do erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados.    

 4. In casu, o tribunal a quo afastando a qualificação feita na acusação por crime de burla, pelas razões já expostas, considerou estarem provados factos demonstrativos de terem as arguidas agido com violência e/ou ameaça com mal importante, podendo ler-se no segmento da sentença em crise, denominado «Enquadramento jurídico-penal»: «(…) para além da violência física que não deixa de resultar dos factos provados em 14 e 24, todos os demais factos provados em 1 a 29 são mais do que suficientes  para surpreender neles uma situação de patente pressão psicológica exercida sobre a demandante, não hesitando as arguidas em levarem a cabo essa pressão trazendo a lume o estado de saúde da filha daquela, dizendo-lhe, além do mais: a “sua filha tem a cova aberta, quer andar de luto?”. Ademais, os aludidos factos provados também patenteiam a circunstância de a demandante ter agido tolhida pelo medo resultante da demonstrada conduta das arguidas, estando desse modo verificada a adequação da acção de constrangimento que desencadearam à disposição patrimonial realizada pela primeira. (…). Por último, e aqui perante os factos provados em 27 a 29, cremos estar também verificado o elemento subjectivo do tipo, que admite qualquer modalidade de dolo, exigindo-se ainda uma intenção de obtenção de enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro (…)».    

Ora, este entendimento suscita, desde logo, algumas reservas. Explicando

i) É certo que no ponto 24 da acusação pública se fez constar que, «De cada vez que a ofendida entregava dinheiro às arguidas, estas rezavam, agarravam-na pelos braços e pelas mãos e abanavam-na, como se a estivessem a benzer e a “fazer sair o mal do seu corpo”, dando assim a entender à ofendida que estavam a utilizar os seus “poderes” para afastar o “mal” que diziam existir sobre ela e sobre a filha desta,» mas, como decorre do próprio contexto, o facto de as arguidas agarrarem a ofendida pelos braços e pelas mãos e a abanarem incluía-se na encenação engendrada para a fazerem crer que, através dos seus ‘poderes ocultos’, lograriam afastar o ‘mal’, o ‘mau olhado’ sobre a ofendida e a filha e alcançar uma melhoria no estado de saúde desta, integrando, portanto, o típico erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados.

Na sentença recorrida, esta factualidade surge referida, não exactamente nos mesmos termos, nos pontos 14, 15 e 24, que têm a seguinte redacção:

- [14] A demandante negou então que tivesse dinheiro em casa, face ao que ambas as arguidas começaram a agarrar-lhe as mãos e os braços, abanando-a e dizendo-lhe simultaneamente que tinha efectivamente dinheiro em casa e que devia ir buscá-lo, senão far-se-ia todo em cinzas;

- [15] A demandante, tolhida pelo medo resultante de uma tal atitude das arguidas, regressou então ao interior da sua residência, de onde trouxe pelo menos € 770,00 (setecentos e setenta euros) em numerário, que entregou às arguidas;

- [24] Continuavam a dizer-lhe que, caso não lhes entregasse todo o dinheiro para ser benzido, iria visitar a filha ao cemitério e seria sua culpa a morte dela, voltando a agarrar a demandante pelas mãos e pelos braços e a abaná-la.

Como se vê, nesta factualidade provada, a relação entre a actuação física das arguidas sobre a ofendida, e o estratagema de ‘poderes ocultos’ que engendraram para obterem desta as entregas de ouro e dinheiro, resulta mais esbatido, relativamente ao que foi levado à acusação mas não deixa de estar presente. Com efeito, o que resulta dos pontos 14 e 15 é que o abanar da ofendida foi ‘relacionado’ com a possibilidade de o dinheiro que a esta guardava em casa, se transformar em cinzas – o que é uma novidade factual – portanto, mais uma vez, crendice e ‘poderes ocultos’. E o que resulta do ponto 24, referida que está a benzedura do dinheiro, a visita à campa da filha e a morte desta por culpa da ofendida, é que o abanar da ofendida se enquadrava no referido estratagema de ‘poderes ocultos’.

Sendo este o contexto da actuação física das arguidas sobre a ofendida, não vemos que ela possa integrar os conceitos típicos de violência ou de ameaça com mal importante.

ii) Por outro lado, já vimos que o tipo subjectivo do crime de extorsão é composto pelo dolo genérico e pelo dolo específico, devendo o primeiro abarcar todos os elementos do tipo objectivo. O dolo genérico deve, portanto, abranger, além do mais, o processo causal ou seja, o emprego da violência ou da ameaça para alcançar a disposição patrimonial.

Ora, dos pontos 27, 28 e 29 não resulta explicitada esta realidade subjectiva.

E nenhuma alteração de factos, substancial ou não, foi comunicada às arguidas.

iii) É nesta linha de questões que deve colocar-se a invocada – conclusão 11 – existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410º, nº 2, a) do C. Processo Penal, quando as recorrentes alegam que não consta da matéria de facto provada o concreto receio que terão colocado à ofendida, exigido para o preenchimento do tipo da extorsão.

Com efeito, a alegação produzida nada tem a ver com o vício da decisão convocado que, aliás, não descortinamos na sentença recorrida, mas com questão distinta, a da tipicidade da conduta provada.

5. Sem prejuízo do que fica dita, a sentença recorrida apresenta outras dificuldades, que se colocam em momento anterior ao da qualificação dos factos provados, e que consubstanciam o vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na alínea b) do nº 2 do C. Processo Penal, e cujo conhecimento é oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro (DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995). Vejamos.

O regime dos vícios da decisão, comummente designado por revista alargada, previstos  no art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal, é um dos instrumentos processuais que a lei contempla para sindicar a matéria de facto. Os três vícios tipificados na norma referida – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – constituem defeitos estruturais da própria decisão penal e por isso, a lei exige que a sua evidenciação resulte do respectivo texto, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo lícito, para tal efeito, o recurso a elementos que não integrem a sentença, mesmo que constem do processo.

Aqui o tribunal ad quem não reaprecia a prova – como sucede com a impugnação ampla da matéria de facto – limitando a sua actuação à detecção do defeito e, não podendo saná-lo, determina o reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão pode apresentar-se, basicamente, sob diversas formas, tais como, uma oposição na matéria de facto provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis], uma oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto], uma incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta], ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso].

Dito isto.

6. Já vimos que a acusação pública descreve uma situação que se vem tornando recorrente e que passa pelos seguintes passos: o agente ou agentes escolhem uma vítima humilde, pouco letrada e impressionável, abordam-na referindo-lhe a doença de um familiar próximo e a sua capacidade para ajudar na cura, dizem-lhe que o problema reside em objectos de valor, designadamente, ouro, e dinheiro, que precisam de ser benzidos, e com maior ou menor relutância da vítima, desta obtêm a entrega de ouro e dinheiro, com a promessa de serem devolvidos depois de benzidos, o que não vem a acontecer.

O que há de específico na situação dos autos é i) que a doença, real, afecta uma filha da ofendida, ii) que esta recusa inicialmente entregar ouro e dinheiro, o que vem a fazer, uma primeira vez, depois de as arguidas lhe dizerem que a filha já tinha campa aberta no cemitério e lhe perguntarem se aí a queria ir visitar, por ter acreditado nos seus ‘poderes’ e recear que algo pudesse acontecer à filha, iii) que vem a fazer mais duas entregas em dinheiro, porque as arguidas lhe disseram que se não entregasse o dinheiro para ser benzido, seria por sua culpa que iria visitar a filha ao cemitério, iv) que de todas as vezes que a ofendida entregava dinheiro às arguidas estas rezavam, agarravam-na pelos braços e mãos e abanavam-na, assim a benzendo e afastando o ‘mal’ que existia sobre ela e sobre a filha. 

Não foi esta, no entanto, a versão que veio a ser considerada provada pelo tribunal a quo.

Com efeito, na sentença recorrida considerou-se provado, na parte em que agora releva:

- Que as arguidas disseram à ofendida que sabiam que esta tinha uma filha muito doente e que a poderiam ajudar com rezas e benzendo-lhe o dinheiro, pois a doença estava relacionada com este, sendo certo que ela padecia, efectivamente, de depressão nervosa [pontos 4 e 5 dos factos provados];  

- Que as arguidas, executando o plano previamente acordado para fazerem seus os valores da ofendida, lhe disseram que, para afastar o mal da filha, ela teria que ir buscar o ouro que tivesse em casa para ser benzido e como disse que não tinha ouro, as arguidas disseram-lhe que a filha tinha cova aberta no cemitério e perguntaram-lhe se queria andar de luto, amedrontando a ofendida que acabou por ir buscar e entregar-lhes, peças em ouro, de valor não apurado, que tinha em casa, para serem benzidas, que as arguidas guardaram, com a promessa de as devolverem, depois de benzidas [pontos 9, 10, 11 e 12 dos factos provados]; 

- Que as arguidas insistiram com a ofendida para lhes entregar o dinheiro que tinha em casa para o benzerem e ajudarem na recuperação da filha, e tendo a ofendida negado ter dinheiro em casa, a agarraram por mãos e braços e a abanaram, ao mesmo tempo que diziam que ela tinha dinheiro em casa e se não fosse buscá-lo, ficaria feito em cinzas, o que amedrontou a ofendida e fez ir a casa buscar € 770 que entregou às arguidas que lhe disseram que as rezas só fariam efeito se lhes entregasse todo o dinheiro que tinha para ser benzido, mesmo o que estava no banco, que depois devolveriam, e como a ofendida mostrou relutância em aceder ao pedido, arguidas confrontaram-na com a possibilidade de a filha piorar e vir a morrer por culpa sua [pontos 13, 14, 15, 16 e 17 dos factos provados];   

- Que as arguidas passaram a telefonar com insistência para a ofendida, atemorizando-a com os mesmos argumentos, para que levantasse o dinheiro depositado no banco, o que a levou, temendo o que poderia resultar da sua recusa, a levantar € 3.000 que depois, em sua casa, entregou às arguidas, que o guardaram, dizendo que os iam benzer e fazer rezas, dizendo-lhe ainda que ela tinha mais dinheiro no banco que, caso não fosse entregue para ser benzido, iria visitar a filha ao cemitério por culpa sua, voltando a agarrá-la por mãos e braços e a abaná-la, assim a assustando e determinando mais um levantamento bancário, agora de € 5.000, que a ofendida, em sua casa, entregou às arguidas, que os guardaram [pontos 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26 dos factos provados];

- Que as arguidas agiram de forma concertada, em execução de plano prévio, para se apoderarem de ouro e dinheiro da ofendida, o que conseguiram, cientes de que não tinham qualquer dom ou poder para a ajudar, ao contrário do que lhe diziam e tentavam fazer crer [pontos 27, 28 e 29 dos factos provados]. 

De acordo com esta factualidade, o plano criminoso das arguidas passava por fazerem crer à ofendida que possuíam poderes capazes de afastar o ‘mal’, o ‘mau olhado’, objectivado na doença que afectava a filha desta, poderes que, para actuarem, exigiam que a ofendida lhes entregasse ouro e dinheiro, fontes do ‘mal’, para serem sujeitos a rezas e benzeduras. Sendo sabedoras, como é evidente, que não tinham tais poderes, também sabiam que o plano só poderia resultar com uma vítima particularmente vulnerável, fosse pela idade, pela fraca instrução, pela credulidade e impressionabilidade, características estas que a ofendida reúne, como resulta, além do mais, dos pontos 1, 2 e 6 dos factos provados.

A execução prática do plano engendrado pelas arguidas passou sempre pelos mesmos tópicos, como resulta dos sublinhados da síntese da matéria de facto provada, supra. Assente que a filha da ofendida padecia de uma doença – pouco interessa qual – e que a ofendida era sensível a tal situação, abordaram-na, dizendo-se possuidoras de ‘poderes ocultos’, dissipadores daquele ‘mal’, com origem no ouro e dinheiro da ofendida que, para isso, teriam que lhes serem entregues, para serem benzidos, após o que seriam devolvidos. E, não obstante as referidas características da ofendida, face às suas naturais reservas, foram-lhe dizendo, insistentemente, que a filha já tinha lugar marcado no cemitério que, se assim não procedesse, acabaria, por culpa sua, por ali a ir visitar que, deste modo a amedrontando e levando às sucessivas entregas, de ouro e dinheiro, não mais devolvido.

Como é evidente, face ao contexto factual em causa, o que nas palavras das arguidas causou receio e amedrontou a ofendida, e a determinou às entregas, foi a possibilidade de, não lhes entregando os bens para serem benzidos, a sua filha piorar, ao ponto de sobrevir o seu decesso [e não, uma qualquer ameaça directamente a si feita]. Este receio implica, logicamente, a admissão por parte da ofendida, de que as arguidas tinham efectivamente o poder de adivinhar a causa do ‘mal’ que afectava a filha e o poder de lhe por termo, através das propostas rezas e benzeduras [não sendo de estranhar que nas declarações prestadas na audiência de julgamento, como resulta da motivação de facto, a ofendida tenha afirmado nunca ter acreditado no esquema de bruxaria e crendice apresentado pelas arguidas, pois não raras vezes as vítimas, neste tipo de situações, têm vergonha em assumir as suas próprias fragilidades].

Ora, se a ofendida – com maior ou menor convencimento – admitiu aqueles ‘poderes’ e as capacidades curativas das arguidas, e por essa razão procedeu às entregas, dúvidas não subsistem de que a factualidade provada em análise é insanavelmente contraditória com a matéria de facto levada às alíneas b) e c) dos factos não provados da sentença recorrida. Com efeito, o tribunal a quo, através de diferente redacção, nos factos provados e nos factos não provados, veio a considerar provada e não provada, a mesma causa para a disposição patrimonial, para a entrega do ouro e dinheiro da ofendida às arguidas.       

Concluímos, então, que a sentença recorrida padece do vício previsto na alínea b) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.

Não sendo possível a decisão da causa [até porque não foi requerida a renovação da prova, prevista no art. 412º, nº 3, c) do C. Processo Penal], impõe-se, nos termos do disposto no art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal, o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto.


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            O decidido reenvio do processo prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, ainda que por distintos fundamentos, em conceder provimento ao recurso.

Em consequência, revogam a sentença recorrida e determinam o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto.



Recurso sem tributação (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal).

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Coimbra, 17 de Maio de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro  – adjunta)