Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
637/13.8TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA
PRAZO DE VIGÊNCIA
APROVAÇÃO DO DIPLOMA
CONSELHO DE MINISTROS
INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
Data do Acordão: 01/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 141.º E 142.º DO CÓDIGO DA ESTRADA, REVISTO PELO DL N.º 44/2205; ARTIGO 165.º, N.º 4, DA CRP
Sumário: I - O momento relevante para determinar se foi utilizada uma autorização legislativa durante o prazo da sua vigência é o da aprovação do diploma autorizado em Conselho de Ministros, sendo irrelevante a circunstância de a promulgação, referenda e subsequente publicação do diploma ocorrerem após a caducidade da autorização legislativa.

II - Assim, o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23-02 - que, ao abrigo da Lei de autorização legislativa n.º 53/2004, de 04-11-2004, reviu, entre outros, os artigos 141.º e 142.º do Código da Estrada -, por que foi aprovado em Conselho de Ministros em data anterior à da demissão do Governo, não padece de inconstitucionalidade orgânica.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO:
1. Por decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária de 24.06.2011 foi o arguido A... (melhor identificado nos autos) condenado, pela prática, a título de negligência, mas também como reincidente, de uma contra-ordenação ao disposto no artigo 103º nº 2 do Código da Estrada, punida nos termos dos artigos 136º, 143º e 145º, al. i) do Código da Estrada, com a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 75 (setenta e cinco) dias.

2. Inconformado o arguido impugnou judicialmente a decisão.

3. Recebido o recurso – que correu sob o n.º 637/13.8TALRA no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria – por despacho de 15.07.2013 decidiu o tribunal pela sua improcedência, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

4. Não se conformando com o assim decidido recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
A) A demissão do Governo determina a caducidade de todas as autorizações legislativas que não tenham sido utilizadas até esse momento;
B) A data da recepção do Decreto-Lei na Presidência da República marca o momento em que se considera que o Governo utilizou a correspondente Lei de Autorização Legislativa;
C) As autorizações legislativas cujo correspondente Decreto-Lei não tenha sido recebido na Presidência da República até à data de demissão do Governo caducam, deixando o Governo de poder utilizá-las para legislar sobre as matérias em causa;
D) A 13 de Dezembro de 2004 foi publicado o Decreto do Presidente da República n.º 100-A/2004, de 13 Dezembro, nos termos do qual o Presidente da República decretou a demissão do Governo;
E) O Decreto-Lei que alteraria o Código da Estrada ao abrigo da Lei de Autorização Legislativa n.º 53/2004, de 4 de Novembro, não tinha sido recebido na Presidência da República à data de 13 de Dezembro de 2004;
F) A Lei de Autorização Legislativa n.º 53/2004, de 4 de Novembro caducou a 13 de Dezembro de 2004;
G) As alterações ao regime de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir introduzidas pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, consagradas no artigo 141.° do Código da Estrada são organicamente inconstitucionais, por violação do artigo 165.°, n.º 1, alínea c), da CRP;
H) A aplicação do regime ínsito no artigo 141.° do Código da Estrada, na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 44/2003, de 23 de Fevereiro, nos presentes autos traduz-se na aplicação de uma norma inconstitucional, por violação do artigo 165.°, n.º 1, alínea c), da CRP.
I) A inconstitucionalidade do artigo 141.° do Código da Estrada determina a repristinação da norma revogada, nos termos do artigo 282.°, n.º 1, da CRP.
J) O caso sub judice tem de ser enquadrado e regulado pelo regime em vigor antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, ou seja, pelo regime previsto no artigo 142.° do Código da Estrada na redacção aprovada pela Lei nº 20/2002, de 21 de Agosto.
K) A suspensão da execução da sanção acessória ao abrigo do artigo 142.° do Código da Estrada na versão em vigor antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, depende da verificação dos pressupostos previstos no artigo 50.° do CP para a suspensão da execução das penas e pode ser aplicável mesmo que seja imputada ao arguido contra­ordenação muito grave;
L) Verificam-se os pressupostos para a suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada ao Arguido ao abrigo do artigo 142.° do Código da Estrada na redacção em vigor antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro;
M) O Despacho proferido pelo Tribunal a quo deve ser revogado com fundamento em erro de direito, sendo ordenada a suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada ao Arguido, nos termos do artigo 142.° do Código da Estrada na redacção em vigor antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao recurso, requerendo-se a V. Ex. as que se dignem revogar o Despacho proferido pelo Tribunal a quo, anulando a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária nos presentes autos, e suspendendo a sanção acessória de inibição de conduzir aplicada ao Arguido nos presentes autos nos termos dos artigos 50.° do CP e 142.° do Código da Estrada, na versão anterior às alterações introduzidas pelo Decre­to-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro.
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5. O Ministério Público junto do tribunal recorrido (a fls. 135 a 139), respondeu ao recurso concluindo que ao mesmo deve ser negado provimento.

6. O recurso tinha sido admitido por despacho de fls. 132.

7. Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto (a fls. 146 e 147), emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
8. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, a recorrente não respondeu.
9. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Em processo de contra-ordenação, o regime de recurso interposto, para o Tribunal da Relação, de decisões proferidas em primeira instância, deve observar as regras específicas referidas nos artigos 73º a 75º do DL 433/82, de 27-10, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 244/95, de 14-09 e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12 (Regime Jurídico das Contra-Ordenações, que doravante será apenas designado pela sigla RGCO), seguindo, em tudo o mais, a tramitação do recurso em processo penal (art. 74º, n.º 4), em função do princípio da subsidiariedade genericamente enunciado no art. 41.º, n.º 1, do RGCO.
Em recursos interpostos de decisões do tribunal de 1.ª instância, no âmbito de processos de contra-ordenação, o Tribunal da Relação apenas conhece, em regra, da matéria de direito, como estatui o nº 1 do artigo 75º do RGCO, sem prejuízo de poder “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida” ou “anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido” (cfr. art. 75.º, n.ºs 1 e 2 do RGCO).
Por outro lado, importa também não esquecer, e constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores, que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo da apreciação das questões importe conhecer oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo Código.

A questão que vem colocada pelo recorrente consiste em saber se é possível suspender a sanção acessória de inibição de conduzir, por aplicação dos arts 50º do Código Penal e 142º do Código da Estrada, este último normativo na versão anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro.

Vejamos, desde já, a decisão a decisão recorrida, na parte que tem relevância para a questão a apreciar:
“Em face dos elementos constantes dos autos, julgam-se provados os seguintes factos:
1. No dia 08.09.2010, pelas 19.25 horas, o arguido conduziu o veículo ciclomotor com a matrícula 1-VFX (...), pela Avenida Bernardo Pimenta, área da comarca de Leiria;
2. Ao aproximar-se de uma passagem assinalada para a travessia de peões não parou para deixar passar o peão que já tinha iniciado a travessia da faixa de rodagem, por desatenção sua, tendo sido interveniente num acidente;
3. O recorrente efectuou o pagamento voluntário da coima;
4. O recorrente foi anteriormente condenado em duas contra-ordenações rodoviárias, praticadas em 2009, em cada uma na sanção acessória de inibição de conduzir por 30 dias, suspensa por 180 dias, sem prestação de caução.
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O tribunal fundou a sua convicção no teor do auto de contra-ordenação de fls. 1; na participação de acidente de viação de fls. 3 a 7; no teor da decisão recorrida de fls. 17 a 19; no teor da declaração de pagamento voluntário da coima de fls. 17; no teor da petição de recurso de fls. 50 a 75; e no teor do RIC de fls. 102 a 104.
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Os factos acima descritos integram efectivamente os elementos típicos da prática da contra-ordenação prevista e punida pelo art.º103º-2-4 do Código da Estrada, com coima e sanção acessória de inibição de conduzir, a qual é classificada como grave (art.º 145º-i) do CE), infracção contra-ordenacional esta cuja prática o arguido não contesta.
Agiu, pois, o arguido com negligência pois que como qualquer condutor normalmente prudente e avisado podia e devia ter adoptado uma conduta de acordo com a imposição legal existente, o que não sucedeu, por conduzir desatento e descuidado em relação aos deveres que sobre si impendiam como condutor na via em apreço.
Preencheu com a sua conduta todos os elementos típicos da infracção contraordenacional, não se verificando o preenchimento de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que bem andou a autoridade administrativa no levantamento do auto de contra-ordenação e subsequente sancionamento da conduta verificada, conforme decisão proferida.
Tendo em conta que o arguido, ora recorrente, tem averbadas no seu RIC a prática anterior de duas contra-ordenações graves há menos de cinco anos (fls. 103-4), o que o torna reincidente (art.º 143º-1 do CE), mostra-se afastada a possibilidade de suspender a execução da sanção acessória que lhe foi administrativamente imposta pela entidade recorrida.
A contra-ordenação sub judice é qualificada pelo Código da Estrada de grave, sendo sancionada com a sanção acessória de inibição de conduzir, graduável entre 1 mês e 1 ano (art.º 147º-2 do CE).
Preceitua o art.º 141º do CE que “1 - Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes. 2 - Se o infractor não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser determinada pelo período de seis meses a um ano. 3-A suspensão pode ainda ser determinada, pelo período de um a dois anos, se o infractor, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave, devendo, neste caso, ser condicionada, singular ou cumulativamente: a) à prestação de caução de boa conduta; b) ao cumprimento do dever de frequência de acções de formação (…); c) ao cumprimento de deveres específicos (…).4 – (…) 5 – (…) 6 – (…)”.
O regime sancionatório – em confronto com o vigente até 2005 - actualmente em vigor é patentemente mais repressivo e gravoso, tratando-se de clara opção legislativa, como é do conhecimento geral de todos os cidadãos.
Dos autos e dos factos acima dados como provados resulta que o arguido, ora recorrente, tem averbado ao seu registo individual de condutor a prática de duas contraordenações e foi punido com sanção acessória de inibição de conduzir em ambas.
Resulta do regime sancionatório que em relação às contra-ordenações graves pode ser suspensa a execução da sanção acessória de inibição de conduzir desde que 1º - se encontre paga a coima e 2º - se o infractor não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave.
A lei confere a faculdade de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir se o infractor, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave.
No caso dos autos, o arguido praticou uma contra-ordenação grave, mas tem dois antecedentes contra-ordenacionais graves, proibindo a lei a possibilidade de suspender na sua execução o período de inibição de conduzir (já foi apreciada a constitucionalidade deste regime: Ac. da RC 21.11.2007, Desemb. Alberto Mira, www.dgsi.pt/jtrc; Ac. da RC 10.10.2007, www.dgsi.pt/jtrc; e Ac. da RC 13.06.2007, www.dgsi.pt/jtrc).---------------
Verifica-se que o recorrente não preenche as hipóteses legais com vista a poder beneficiar da aludida suspensão da execução da sanção acessória.
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Quanto à invocada inconstitucionalidade:
Não assiste razão ao recorrente.
Com efeito, a jurisprudência dos Tribunais das Relações e do Tribunal Constitucional já se debruçou sobre a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº n.º 44/2005, de 23-02, emitido ao abrigo da Lei de Autorização Legislativa n.º 53/2004, de 04-11, bem como a inconstitucionalidade por excesso do sentido e âmbito da respectiva autorização legislativa, no sentido de inexistirem tais vícios, fundamentos a que aderimos e reafirmamos, pelo que, atenta a data da prática dos factos, é aplicável a redacção actualmente em vigor do C. da Estrada (vd. Ac. da RC de 10.10.2007, Gabriel Catarino, www.dgsi.pt/jtrc; Ac. da RC de 27.11.2007, Alberto Mira, www.dgsi.pt/jtrc; Ac. da RP de 19.09.2007, António Gama, www.dgsi.pt/jtrp; Ac. da RE de 09.09.2008, Ribeiro Cardoso, www.dgsi.pt/jtre; Ac. da RC de 12.12.2012, Eduardo Martins, www.dgsi.pt/jtrc, Ac. do TC n.º 604/2006, Bravo Serra, de 14.11.2006, DR II-S, n.º 249, de 29-12-2006 (… “deste modo, e pela dupla ordem de razões apontadas - radicando a primeira na competência concorrente do Governo e da Assembleia para a edição da norma em causa e, a outra, na constatação de que, em qualquer caso, o Governo legislou a coberto de autorização legislativa concedida na Lei n.º 53/2004 -, não padece o art. 141.º do Código da Estrada, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23-02, do vício de inconstitucionalidade orgânica (…), pelo que também não padece desse vício o art. 1.º desse DL n.º 44/2005,por ter alterado os artigos 141.º e 142.º do CE…”; e “... na edição do Decreto-Lei nº 44/2005, o legislador governamental, não interferindo na definição da natureza dos ilícitos, no tipo de sanções e seus limites, tão somente desenhou um modo de facultar o cumprimento de certa espécie de sanções (a sanção acessória de inibição de conduzir) com reporte a dado tipo de infracções, ao abrigo de uma possibilidade que lhe estava «aberta» pela «consagração especial» decorrente da Lei nº 53/2004 (e que já se encontrava especificamente prevista desde a Lei nº 6/93 e do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94), e isto, claro está, mesmo não se perfilhando o entendimento segundo o qual a suspensão de execução de uma pena, verdadeiramente, se posta, não como uma forma direccionada à sua execução, mas sim como uma pena de substituição em sentido próprio (…) Haverá, desta arte, que concluir que o legislador governamental, ao editar a norma sub iudicio, não desbordou a sua competência legislativa, pelo que se não divisa enfermar a norma em apreço do vício de inconstitucionalidade orgânica (…).
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Não se reconhecendo fundamento à pretensão do recorrente, improcede a sua defesa e, consequentemente, julga-se improcedente o recurso, por falta de fundamento legal, devendo manter-se a decisão administrativa recorrida nos seus precisos termos.
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Atento o exposto, decide-se:
I - Julgar improcedente o recurso interposto por A..., mantendo-se, em consequência, a decisão administrativa recorrida (decisão da ANSR de 24.06.2011: fls. 17 a 19), nos seus precisos termos.
II - Condenar a recorrente em custas, com uma UC de taxa de justiça (art.º 8º do RCP e Tabela Anexa).
III - Condenar o recorrente, no prazo de 15 dias úteis após o trânsito em julgado da presente decisão, entregar a carta de condução de que é titular na Secretaria deste Tribunal ou no IMT da área da sua residência, a fim de cumprir o período de inibição de conduzir imposto, sob pena de incorrer no crime de desobediência e a mesma vir a ser-lhe apreendida (art.ºs 348º-1 do Código Penal e 160º-3-4 do CE).
IV - Comunique.
V - Notifique.”
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Passemos então a apreciar a questão suscitada pelo recorrente que consiste em saber se é possível suspender a sanção acessória de inibição de conduzir, por aplicação dos arts 50º do Código Penal e 142º do Código da Estrada, na versão anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, sendo que o recorrente fundamenta tal pretensão com a argumentação de que este Decreto-Lei nº 44/2005 (que introduziu alterações aos arts 141º e 142º do Código da Estrada) padece de inconstitucionalidade orgânica decorrente do facto de à data da dissolução do Governo (operada através do Decreto de Presidente da República nº 100-A/2004, de 13 de Dezembro) ainda não tinha sido recebido na Presidência da República.
Importa, pois, em primeiro lugar indagar se se verifica ou não a apontada inconstitucionalidade orgânica do mencionado Decreto-Lei nº 44/2005, decorrente da demissão do Governo ocorrida em 13 de Dezembro de 2004.
É por demais consabido que em 4 de Novembro de 2004 foi publicada a Lei n.º 53/2004 (Lei de autorização legislativa) através da qual a Assembleia da República, no uso das prerrogativas previstas no artigo 161º alínea d) da Constituição da República Portuguesa, conferiu ao Governo autorização legislativa para proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-lei nºs 2/98, de 3 de Janeiro, e 265-A/2001, de 28 de Setembro, e pela Lei n.º 20/2002, de 21 de Agosto, e ainda a criar um regime especial de processo para as contra-ordenações emergentes de infracções ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação complementar (cfr. artigo 1º de tal Lei). E tal autorização com o sentido fixado no seu artigo 2º (que aqui se dá por reproduzido), tinha, entre outras características a seguinte extensão fixada no seu artigo 3º (transcrição):
“Artigo 3.º
Extensão
A autorização referida no artigo 1.º contempla:
(…)
m) A previsão de atenuação especial e de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir condicionadas ao prévio pagamento da coima e ao facto de o infractor não ter praticado outras infracções no período fixado;
n) A consagração do princípio de que a suspensão da execução da sanção acessória possa ser condicionada, além da prestação de caução de boa conduta, à frequência de acções de formação ou ao cumprimento de deveres específicos previstos em legislação própria;
(…)
p) O alargamento para cinco anos do período relevante para efeitos de reincidência;
(…)”
E estabelecia tal Lei, no seu artigo 4º, respeitante ao “Prazo” que “A autorização legislativa concedida pela presente lei tem a duração de 180 dias.”

Resulta também, da leitura do Diário da República, que em 13 de Dezembro de 2004, através do seu Decreto nº 100-A/2004, o Presidente da República decretou a demissão do Governo, constando, textualmente, de tal Decreto do Presidente da República nº 100-A/2004, de 13 de Dezembro: “É demitido o Governo por efeito do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro Ministro Santana Lopes”.

Decorre do artigo 165º nº 4 da Constituição da República Portuguesa que “As autorizações caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República.
Em anotação ao nº 4 de tal artigo 165º da Constituição da República Portuguesa, Gomes Canotilho e Vital Moreia referem o seguinte: “A caducidade da autorização decorre automaticamente da demissão do Governo a que houver sido concedida (o qual só continua em funções para a prática dos actos estritamente necessários à gestão dos negócios públicos) ou da dissolução da AR ou termo da legislatura (nº 4).
A solução é perfeitamente coerente, pois que, as autorizações são dadas por uma determinada AR a um determinado Governo, caducando portanto quando aquela deixar de poder dá-las, ou quando este deixa de poder utilizá-las” (cfr. citados autores, in Constituição da República Portuguesa Anotada, II Vol, Coimbra Editora, 4ª Ed, Agosto de 2010, pag. 339).

Não havendo dúvidas que, a par das outras situações elencadas naquele nº 4 do artigo 165º, a demissão do Governo implica a caducidade da autorização legislativa que havia sido concedida pela AR, a questão que agora se coloca é a de saber até quando pode ser validamente aproveitada uma autorização legislativa.
E a esta questão, a Jurisprudência do Tribunal Constitucional tem, de forma unânime, enveredado por considerar a data da aprovação em Conselho de Ministros (cfr. entre outros os seguintes Acórdãos do Tribunal Constitucional: Acórdão n.º 150/92, de 8 de Abril, in Diário da República, 2: série, n.º 172, de 28 de Julho de 1992; Acórdão nº 121/93, de 14 de Janeiro, in Diário da República, 2ª série, n.º 83, de 8 de Abril de 1993; Acórdão nº 206/94, de 2 de Março, in Diário da República, 2ª série, n.º 160, de 13 de Julho de 1994; Acórdão n.º 461/99, de 13 de Julho, Diário da República, 2ª série, n.º 62, de 14 de Março).
De entre estes acórdãos acabados de referir, destacamos o Ac nº 206/94, de 2 de Março que a dado passo diz textualmente o seguinte: “O momento relevante para saber se foi utilizada uma autorização legislativa durante o prazo de vigência da mesma é o da aprovação em Conselho de Ministros do diploma autorizado”. E este mesmo acórdão encontra-se também sumariado na base de dados do ITIJ, sendo de destacar parte do respectivo sumário que tem o seguinte teor” “III - O Tribunal Constitucional firmou já jurisprudência, em ambas as suas secções de forma unânime, sobre o momento relevante a que há-de atender-se para saber se o diploma autorizado foi elaborado durante o prazo de vigência da autorização legislativa correspondente. Sendo em abstracto sustentável que o momento relevante pudesse ser o de aprovação em Conselho de Ministros, o de envio ao Presidente da Republica para promulgação, o da promulgação, o de referenda ou o da publicação, o Tribunal considerou que o momento atendível havia de ser o de aprovação em Conselho de Ministros do diploma autorizado.
Também no Acórdão do mesmo Tribunal de 21.03.1996 é dito expressamente: “O Tribunal Constitucional tem entendido, em jurisprudência constante, que o momento relevante é o da aprovação do diploma autorizado em Conselho de Ministros, sendo irrelevante a circunstância de a promulgação, referenda e subsequente publicação do diploma ocorrerem após a caducidade da autorização legislativa”.
Sendo, pois, pacífico o entendimento do Tribunal Constitucional de que a aprovação em Conselho de Ministros constituiu o momento relevante do iter legislativo do diploma autorizado, pela análise/leitura do sindicado Decreto-Lei nº 44/2005 constamos que o mesmo foi “Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 7 de Dezembro de 2004” (cfr. fls. 1585 do Diário da República nº 38, I Série - A, de 23 de Fevereiro de 2005).
Ora, quando a 07.12.2004, em Conselho de Ministros, aprovou o mencionado Decreto-Lei, o Governo estava em plenitude do exercício das suas funções. A demissão do Governo apenas veio a ocorrer já depois, mais concretamente em 13.12.2004.
Por isso, o Decreto-Lei em causa não enferma de qualquer inconstitucionalidade, designadamente a invocada pelo recorrente.
Apenas um parênteses. A atender-se à tese do recorrente, alicerçada na “propensão” de Jorge Miranda, de que contaria o momento da entrada do diploma da Presidência da República poder-se-ia estar a fazer depender a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de um diploma, elaborado e aprovado pelo órgão autorizado, para o efeito, pela Assembleia da República, de um acto posterior apenas dependente da actuação de serviços administrativos e/ou de serviços de correios, e não do próprio Governo. A seguir-se essa posição todos os Decretos Leis teriam a constitucionalidade suspensa até à entrada do diploma na Presidência da República, a que acresceria uma maior dificuldade de, a ser assim, constantemente, ocorrer a necessidade de indagar e controlar essa mesma entrada. Afigura-nos, pois que não seria viável tal “propensão”, a qual, para além de, eventualmente, poder depender de terceiros correria o risco de vir a ser concretizada de forma algo aleatória.
Daí que, enveredando nós também pela corrente jurisprudencial constante do Tribunal Constitucional (já atrás enunciada exemplificativamente) que considera relevante a data da aprovação em Conselho de Ministros e atendendo a que o Decreto-Lei nº 44/2005 foi aprovado em Conselho de Ministro numa altura em que o Governo se encontrava em pleno exercício de funções, conclui-se que tal Decreto Lei nº 44/2005 não enferma da suscitada inconstitucionalidade orgânica. E quer como reflexo disso quer porque no uso dessa autorização legislativa o Governo não extravasou o sentido e extensão da lei habilitante (Lei nº 53/2004), conforme também já havia sido deixado bem esclarecido na decisão recorrida, o art 141º do Código da Estrada que, entre outros, veio a ser alterados ao abrigo do artigo 1º de tal Decreto-Lei, igualmente não está inquinado de qualquer inconstitucionalidade orgânica.

Inexistindo a apontada inconstitucionalidade (e nessa medida não sendo possível fazer repristinar o artigo 142º do Código da Estrada na versão anterior à dada pelo mencionado Decreto-Lei nº 44/2005), vejamos agora se, mesmo assim, é possível suspender a execução da inibição de conduzir aplicada ao recorrente.
Afirmamos desde já que não.
Recordemos o que, em relação a isto – e depois de ter sido fixada a matéria de facto apurada (e já supra mencionada que se mantém inalterada) - foi dito na decisão recorrida.
“Os factos acima descritos integram efectivamente os elementos típicos da prática da contra-ordenação prevista e punida pelo art.º103º-2-4 do Código da Estrada, com coima e sanção acessória de inibição de conduzir, a qual é classificada como grave (art.º 145º-i) do CE), infracção contra-ordenacional esta cuja prática o arguido não contesta.
Agiu, pois, o arguido com negligência pois que como qualquer condutor normalmente prudente e avisado podia e devia ter adoptado uma conduta de acordo com a imposição legal existente, o que não sucedeu, por conduzir desatento e descuidado em relação aos deveres que sobre si impendiam como condutor na via em apreço.
Preencheu com a sua conduta todos os elementos típicos da infracção contraordenacional, não se verificando o preenchimento de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que bem andou a autoridade administrativa no levantamento do auto de contra-ordenação e subsequente sancionamento da conduta verificada, conforme decisão proferida.
Tendo em conta que o arguido, ora recorrente, tem averbadas no seu RIC a prática anterior de duas contra-ordenações graves há menos de cinco anos (fls. 103-4), o que o torna reincidente (art.º 143º-1 do CE), mostra-se afastada a possibilidade de suspender a execução da sanção acessória que lhe foi administrativamente imposta pela entidade recorrida.
A contra-ordenação sub judice é qualificada pelo Código da Estrada de grave, sendo sancionada com a sanção acessória de inibição de conduzir, graduável entre 1 mês e 1 ano (art.º 147º-2 do CE).
Preceitua o art.º 141º do CE que “1 - Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes. 2 - Se o infractor não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser determinada pelo período de seis meses a um ano. 3-A suspensão pode ainda ser determinada, pelo período de um a dois anos, se o infractor, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave, devendo, neste caso, ser condicionada, singular ou cumulativamente: a) à prestação de caução de boa conduta; b) ao cumprimento do dever de frequência de acções de formação (…); c) ao cumprimento de deveres específicos (…).4 – (…) 5 – (…) 6 – (…)”.
O regime sancionatório – em confronto com o vigente até 2005 - actualmente em vigor é patentemente mais repressivo e gravoso, tratando-se de clara opção legislativa, como é do conhecimento geral de todos os cidadãos.
Dos autos e dos factos acima dados como provados resulta que o arguido, ora recorrente, tem averbado ao seu registo individual de condutor a prática de duas contraordenações e foi punido com sanção acessória de inibição de conduzir em ambas.
Resulta do regime sancionatório que em relação às contra-ordenações graves pode ser suspensa a execução da sanção acessória de inibição de conduzir desde que 1º - se encontre paga a coima e 2º - se o infractor não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave.
A lei confere a faculdade de suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir se o infractor, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave.
No caso dos autos, o arguido praticou uma contra-ordenação grave, mas tem dois antecedentes contra-ordenacionais graves, proibindo a lei a possibilidade de suspender na sua execução o período de inibição de conduzir (…).”
Consideramos correcta a argumentação da primeira instância pelo que pouco mais temos a acrescentar.
Com efeito, tendo ao arguido, no dia 08.09.2010 cometido uma contra-ordenação grave e atendendo a que nos últimos 5 anos tinha sido condenado, em inibição de conduzir, por duas contra-ordenações graves, face ao que estabelece o artigo 141º do Código da Estrada, na redacção vigente à data dos factos (redacção essa decorrente das alterações introduzidas pelo mencionado Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro), e que se mantém actualmente, não se torna legalmente possível essa pretendida suspensão da inibição de conduzir por que tinha sido condenado pela autoridade administrativa, condenação essa confirmada pela primeira instância.
Com efeito dispõe tal artigo 141º que tem por epígrafe “Suspensão da execução da sanção acessória” na parte que para aqui tem interesse:
“1 - Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes.
2 - Se o infractor não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser determinada pelo período de seis meses a um ano.
3 - A suspensão pode ainda ser determinada, pelo período de um a dois anos, se o infractor, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave, devendo, neste caso, ser condicionada, singular ou cumulativamente:
a) À prestação de caução de boa conduta;
b) Ao cumprimento do dever de frequência de ações de formação, quando se trate de sanção acessória de inibição de conduzir;
c) Ao cumprimento de deveres específicos previstos noutros diplomas legais.
(…)
Tendo em conta o mencionado normativo, e considerando que o arguido tinha sido anteriormente condenado em duas contra-ordenações graves, praticadas em 2009, pelo facto de agora ter incorrido na prática de uma outra contra-ordenação grave – apesar de ter pago a respectiva coima - jamais se verificam os requisitos/pressupostos objectivos exigidos no corpo do nº 3 do artigo 141º do Código da Estrada para que fosse possível tal suspensão. E muitos menos se verificam os requisitos exigidos pelo nº 2 desse mesmo artigo.
Inexistindo, pois, base legal que permita suspender a sanção acessória de inibição de conduzir que havia sido fixada pela autoridade administrativa, bem andou o tribunal a quo em manter a decisão administrativa.
É, pois, de confirmar a decisão recorrida.

Assim, e em síntese conclusiva, naufragando todas as pretensões dos recorrente - e não se mostrando violados quaisquer princípios ou preceitos constitucionais ou qualquer preceitos legais ordinários, designadamente os invocados nas suas conclusões de recurso - terá o recurso que improceder, sendo de confirmar a decisão recorrida.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC´s.
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Coimbra, 29 de Janeiro de 2014

 (Luís Coimbra - relator)

(Isabel Silva - adjunta)