Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2977/22.6T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: ANSR
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS
DIREITO CONTRAORDENACIONAL
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO LOCAL CRIMINAL - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 147.º DO CÓDIGO DA ESTRADA
ARTIGO 419.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGO 49.º, N.º 2, ALÍNEA C), DO D.L. N.º 232/79, DE 24 DE JULHO
ARTIGO 58.º, N.º 2, ALÍNEA C), NA REDACÇÃO INICIAL DO DECRETO LEI N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/RGCO
ARTIGO 72.º-A DO RGCO
Sumário: I – A suspensão da execução da sanção acessória de apreensão do veículo apenas tem aplicação às pessoas singulares.

II – No recurso interposto unicamente pela arguida o tribunal não pode determinar a não suspensão da sanção acessória de apreensão do veículo aplicada pela autoridade administrativa, porque tal constitui uma modificação da sanção em prejuízo da arguida/recorrente, em violação da proibição da reformatio in pejus, consagrada no artigo 72.º-A do RGCO.

III – O princípio da proibição da reformatio in pejus, do artigo 72.º-A do RGCO, abrange o tipo de sanção escolhida, o valor da coima, a condenação em sanção acessória que não figure na decisão administrativa, bem como a não suspensão desta sanção, quando a ANSR determinou essa suspensão.

IV – A sanção acessória com execução suspensa constitui uma sanção diferente e autónoma da sanção acessória efectiva, em similitude com a consideração da pena de prisão com execução suspensa como uma pena autónoma relativamente à pena de prisão efectiva.

Decisão Texto Integral:

Acórdão da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


     I - Relatório
     1.1.  A... – Sociedade de Capital de Risco, S. A. interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Local Criminal de Viseu - Juiz do Tribunal da Comarca de Viseu,  a qual  julgou improcedente o recurso interposto, mantendo a decisão da autoridade administrativa de apreensão do veículo automóvel ligeiro, matrícula ..-SN-.., por trinta dias em substituição da sanção acessória de inibição de conduzir, nos termos do disposto no artigo 147º, nº 3 do Código da Estrada, mas revogando a suspensão da respectiva execução decretada pela mesma autoridade administrativa.
 
     1.2.  - No recurso em apreciação o assistente apresentou as seguintes conclusões:
1. Por decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) foi  aplicada à arguida A... – Sociedade de Capital de Risco, S.A., uma contraordenação prevista no artigo 28º, nº 1, alínea b) do Código da Estrada, sancionável com coima de 120,00€ a 600,00€, nos termos dos artigos 28º, nº 5 e 27º, nº 2, alínea a) do Código da Estrada e ainda uma sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, substituída nos termos do artigo 147º, nº 3 do Código da Estrada, por se tratar de pessoa coletiva, pela apreensão do veículo automóvel ligeiro, matrícula ..-SN-.., sendo suspensa esta última na sua execução por um período de 180 dias. (Vide decisão de fls. 10 e 11 dos autos).
2. A decisão recorrida manteve incólume a decisão administrativa impugnada …
3. Todavia, na decisão aqui recorrida, foi revogada a suspensão da execução pelo período de 180 dias da aludida apreensão decretada pela ANSR, com fundamento na inaplicabilidade dos arts. 141º e 147º, ambos do CE, às pessoas coletivas.
4. É contra este segmento da sentença recorrida que o aqui Recorrente se insurge e que constituí o objeto do seu recurso e ainda quanto à parte que considerou que a ANSR tem competência para decretar a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art. 147º do Código da Estrada e que está ultima sanção acessória é de aplicação automática.
5. Pois, conforme resulta inequívoco a decisão recorrida a violou de forma gritante o vertido no n.º 1 do art. 72º-A do RGCO – preceito este que estatuiu a proibição de “Reformatio in pejus”.
6. Com efeito, o normativo legal enunciado no preceito anterior estipula o seguinte: “1 - Impugnada a decisão da autoridade administrativa ou interposto recurso da decisão judicial somente pelo arguido, ou no seu exclusivo interesse, não pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.”
7. O Tribunal a quo alicerçou a sua decisão de revogação da suspensão da execução pelo período de 180 dias da aludida apreensão decretada pela ANSR no decidido em sete acórdãos, todos eles emanados das Relações de Coimbra, Porto, Lisboa, Évora e Guimarães.
8. Analisado cada um desses doutos arestos resulta que no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-11-2017 (Processo nº 1433/17.9T8VIS.C1; Relator: Vasques Osório; disponível em www.dgsi.pt) a suspensão da execução da sanção acessória foi liminarmente afastada porquanto o aí arguido/recorrente não liquidou voluntariamente antes da decisão da autoridade administrativa.
9. E as restantes decisões melhor descritas na motivação deste recurso versam todos sobre o pedido de suspensão da execução da apreensão do veículo requerido pela arguida/recorrente na sua impugnação judicial e em sede de recurso e que não tinha sido em momento algum decretada pela autoridade administrativa competente.
10. Ou seja, em todos esses processos a autoridade administrativa competente não tinha decidido pela suspensão da execução da apreensão do veículo, situação inversa à que se verifica in casu.
11. A questão da suspensão da execução da apreensão do veículo, nos citados aresto, foi o objeto da impugnação e recurso por parte da aí arguida/recorrente, não tendo a autoridade administrativa competente sequer decidido ou se pronunciado sobre uma eventual suspensão da execução da apreensão do veículo.
12. Pelo que a decisão recorrida ao decidir como decidiu não só fez uma incorrecta aplicação do direito ao caso concreto, como cita jurisprudência cuja matéria factual é distinta da constante nos presentes autos.
13. Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-12-2016 (Processo nº 2038/15.4T8CTB.C1; Relator: LUÍS RAMOS; disponível em www.dgsi.pt): “I - Por ser de conhecimento oficioso qualquer erro na integração jurídica dos factos, sempre poderia o tribunal efetuar a alteração que efetuou, desde que desse cumprimento à norma acima referida [358.º n.º 3 do CPP], visto que a mesma redundava na agravação da posição da qualificação jurídica com a consequente agravação da posição da arguida. II -Tendo o recurso sido interposto pela arguida, a proibição de reformatio in pejus sempre impediria que alteração atingisse o objeto do recurso em resultado daquela modificação da qualificação jurídica. III - Em casos como o dos autos, a requalificação jurídica dos factos, porque mais gravosa para a recorrente, apenas tem como efeito o rigor jurídico da decisão, sendo inócua quanto a todos os demais efeitos que lhe sejam prejudiciais.”
14. Bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04-04-2016 (Processo nº 141/15.0T8VFL.G1; Relator: MANUELA PAUPÉRIO; disponível em www.dgsi.pt) que refere o seguinte: “O objeto do recurso jurisdicional não está limitado pelo conteúdo da decisão recorrida, podendo ser conhecidas questões que não foram apreciadas na decisão impugnada, com o limite previsto no artº 72º-A do RGCO.”
15. Em face do supra exposto deverá ser revogada por este douto tribunal a revogação determinada pelo Tribunal a quo da suspensão da execução da apreensão do veículo anteriormente determinada pela ANSR, por violação do princípio da proibição da de “Reformatio in pejus” consagrado no n.º 1 do art. 72º-A do RGCO, o que se requer.
16. Mas ainda que assim não se considere, o que só à cautela se equaciona, é entendimento do Recorrente que a ANSR é incompetente para decretar a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art. 147º do Código da Estrada.
17. Conforme decorre da descrição feita na motivação do presente recurso e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, a matéria contra-ordenacional é ainda matéria penal (ou, no mínimo, matéria à qual se aplicam os mais elementares princípios penais), exigindo certeza, segurança e rigor, tanto na determinação das sanções e do seu regime, quanto na determinação da competência para a sua aplicação, não se compadecendo com uma interpretação que não seja a literal.
18. O legislador também foi sensível a tal ideia, tendo estabelecido a aplicação subsidiária do Direito Penal e do Direito Processual Penal (cfr. artigos 32.º e 41.º do Regime Geral das Contra-Ordenações), não podendo deixar de se ver aqui uma remissão também para o Direito Constitucional Penal e Processual Penal.
19. E aquela norma que atribua ou que seja interpretada no sentido de atribuir tal competência a entidades administrativas, na verdade a qualquer outra entidade que não um Tribunal, viola ainda o princípio da jurisdicionalização da aplicação das medidas sancionatórias de natureza criminal, princípio que se encontra nos artigos 27.º, 29.º, 32.º e 202.º da Constituição da República Portuguesa.
20. Será o caso, por exemplo, da norma contida no artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, a qual foi já inclusive declarada inconstitucional pelo Acórdão n.º 574/2006 do Tribunal Constitucional (Diário da República, 2.ª Série, n.º 238, de 13 de Dezembro de 2006).
21. Sobre isto, vejam-se, por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 28/83 (Diário da República, 2.ª Série, n.º 94, de 21 de Abril de 1984) e 337/86 (Diário da República, 2.ª Série, n.º 299, I Série, de 30 de Dezembro), o Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Abril de 1992 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de Novembro de 1980 (in B.M.J., 303, 276).
22. Aliás, diz-se já que tal argumentação, levada ao extremo, conduzir-nos-ia à conclusão de que qualquer pena ou medida de segurança que não a prisão ou o internamento poderiam ser aplicadas por entidade que não o Tribunal, o que não pode aceitar-se, pois é evidente, além do mais, que as penas e medidas de segurança, atenta a sua natureza criminal, só podem ser aplicadas por um Tribunal.
23. E evidente é também que a sanção acessória de inibição de conduzir tem natureza mista de pena e medida de segurança (ou, ao menos, de medida de segurança, seguindo a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça), pelo que é inequívoca a sua natureza criminal, logo, só o Tribunal a pode aplicar.
24. Com efeito, a medida de segurança em causa (inibição de conduzir) constitui uma medida restritiva da liberdade.
25. Efectivamente, e como é sabido, o direito à liberdade – como, aliás, qualquer direito, e este particularmente, por ser talvez aquele que, ontologicamente, mais estreitamente se liga à definição do humano – deve ser analisado nas suas várias vertentes e componentes.
26. Aliás, não é por acaso que no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, no seu n.º 2, se prevê a privação total e a privação parcial da liberdade.
27. Termos em que a inibição de conduzir, medida restritiva da liberdade ambulatória (tanto mais importante e central na compreensão total do direito à liberdade, quanto mais levarmos em conta as características e a organização da vida nos nossos dias), não pode deixar de se considerar abrangida pelo princípio da jurisdicionalização, mesmo numa leitura restritiva do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa.
28. Assim, achando-se a norma ao abrigo da qual qualquer entidade que não um Tribunal aplique tal sanção acessória ferida de inconstitucionalidade, a decisão que vier a aplicar-se ao Arguido no processo aqui em causa encontrar-se-á necessariamente viciada.
29. Ainda que se não colham os argumentos anteriormente vincados, o que, sublinhe-se, só à cautela se equaciona, julgamos ainda não poder aplicar-se a sanção acessória de inibição de conduzir sem uma ponderação concreta da culpa do arguido e sem o juízo de adequação da mesma sanção acessória a esta última.
30. Pois, verifica-se efectivamente que o Código de Estrada e demais princípios e regras aplicáveis declaram puníveis com sanção acessória de inibição de conduzir, além do mais, as contra-ordenações graves e as muito graves.

32. Atente-se, por exemplo, nas seguintes palavras do Professor Germano Marques da Silva: “Condição necessária, mas não suficiente, da aplicação de uma pena acessória é a condenação numa pena principal. Para além desse requisito torna-se, porém, sempre necessário ainda que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória. [destaque nosso]” (GERMANO MARQUES DA SILVA, “Crimes Rodoviários”, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1996, pág. 28).
33. Ou seja, condição necessária, mas nunca suficiente, de aplicação de uma sanção punitiva acessória é a condenação numa sanção punitiva principal.
34. Mas, para além disso torna-se “sempre necessário que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória [destaque nosso]” (FIGUEIREDO DIAS; “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993).

37. Não se pode aplicar a sanção acessória se, tudo visto, a mesma não se justificar, quer do ponto de vista puramente sancionador, quer sobretudo do ponto de vista da medida de segurança.
38. Refira-se aliás, que esta necessidade de delicada ponderação caso a caso é mais uma razão a justificar que a competência para a aplicação da sanção de inibição de conduzir caiba unicamente aos Tribunais, como sustentámos supra.
39. Neste sentido tem entendido o Tribunal Constitucional, de forma pacífica, que é proibido que à condenação em certas penas se acrescente de forma automática, mecanicamente, por efeito directo da lei (ope legis), uma outra pena que se traduza na perda de direitos civis, profissionais ou políticos, ou que tal ocorra como efeito automático da condenação pela prática de certas infracções – ver, por todos, o Acórdão n.º 202/2000, publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 11 de Outubro de 2000 e o Acórdão n.º 520/2000, publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 31 de Janeiro de 2001.
40. Ora, o certo é que in casu se não encontram no auto de notícia elementos de facto suficientes em que se possa basear a aplicação acessória em causa …
42. Não pode, porém, ser assim, há que em cada caso elencar elementos que fundamentem um certo conteúdo de ilícito que, no caso, justifiquem a aplicação da sanção principal e, sobretudo, da sanção acessória.
43. Pois a sanção acessória não é uma consequência da sanção principal, mas antes uma sanção autónoma, com exigências e fundamentos próprios.
44. É por isso, aliás, que o artigo 30.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa estabelece que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.
45. Proibição esta inteiramente aplicável ao DMOS, o que, aliás, determina a inconstitucionalidade das normas retiradas do Código de Estrada, nomeadamente dos seus artigos 138.º, 145.º, 146.º e 147.º, no sentido da aplicação automática da sanção acessória de inibição de conduzir sempre que ocorra uma contra-ordenação grave ou muito grave, o que desde já se deixa invocado.
46. Sendo a sanção de inibição de conduzir fundamentalmente preventiva, há que averiguar se as circunstâncias do caso são reveladoras de uma perigosidade que justifique a sua aplicação.


49. Acontece que no caso sub judice não se prevê, como é prática neste tipo de contra-ordenações, que venha a ser feito um juízo de perigosidade bastante para a inibição de conduzir.
50. O que desde logo implicará que a decisão não venha a cumprir as exigências que o artigo 58º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas coloca à decisão condenatória, no seu n.º 1, alíneas b) e c).
51. Gerar-se-á nulidade (cfr. artigo 379º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41º do Regime Geral das Contra-Ordenações), que aqui se deixa, desde já, arguida para todos os efeitos legais.
52. Ou se assim não se vier a entender, irregularidade, a qual não carece sequer de arguição, por caber na previsão do artigo 123º, n.º 2 do Código de Processo Penal (aplicável ex vi artigo 41º do aludido Regime Geral).
53. Nulidade ou irregularidade essas que deverão ser evitadas no momento da decisão a proferir, e, em consequência, serem levadas em conta no referido momento decisório as concretas circunstâncias do caso sub judice.

     

       1.2 O Ministério Público junto do tribunal a quo, respondeu concluindo:

1) A sociedade arguida recorrente não coloca em causa a prática dos factos que lhe são imputados …

2) No presente caso o tribunal a quo não aplicou sanção acessória que não tenha sido ordenada pela entidade administrativa, apenas fez a interpretação dos artigos 141º e 147º do Código da Estrada, sendo que ao tribunal de recurso, ainda que não seja argumentado pela recorrente, não está lhe está vedado decidir as questões de direito.

3) Por outro lado, dado que se trata de uma questão de direito e nada foi argumentado pelo Ministério Público nesse sentido, em nosso entender, não se impunha ao tribunal a quo que desse o contraditório do entendimento do tribunal a quo à recorrente no que concerne à possibilidade ou não da suspensão da execução da apreensão do veículo tal como decretada pela ANSR, por alegada violação do disposto nos artigos 141º e 147º, nº 3 do Código da Estrada.

6) Alega ainda a sociedade recorrente que a ANSR é incompetente para decretar a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art. 147º do Código da Estrada.

7) Somos de entender que bem andou o tribunal a quo ao considerar que a ANSR é competente para decretar a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art. 147º do Código da Estrada, não tendo ocorrido nenhuma nulidade por violação do artigo 58º do RGCO (artigo 379º do CPP, aplicável ex vi artigo 41º do RGCO).

8) Como bem concluiu o tribunal a quo, não se está, no caso, perante um “efeito automático”, ope legis, da condenação pela prática de contraordenação grave ou muito grave que leve à perda do direito de conduzir veículos, mas antes perante um tipo de conduta que sendo valorada para a condenação em coima, deve também ser apreciada complementarmente para permitir a aplicação pela autoridade administrativa da sanção de inibição temporária da condução.

9) Do teor da decisão administrativa impugnada resulta que a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, substituída pela sanção acessória de apreensão do veículo identificado nos autos por a arguida ser uma pessoa colectiva, ponderou os elementos determinantes da medida de sanção constantes no artigo 139º do Código da Estrada, ou seja, a gravidade da contraordenação e da culpa, e os antecedentes do infractor.

10)Acresce que, nem do elemento literal, nem do elemento teleológico do artigo 139º do Código da Estrada resulta que a autoridade administrativa deva realizar qualquer juízo de perigosidade bastante para decretar a inibição de conduzir.

11)A aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir não viola o preceito constitucional do artigo 30º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, como a decisão da autoridade administrativa não padece de qualquer nulidade ou irregularidade.

      

       1.3. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de ser julgado improcedente o recurso.


*

       II - Fundamentação de Facto

       É a seguinte da sentença sob recurso (transcrição parcial do trecho que importa)

       (…) Da suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir

Alega a recorrente que deverá concluir-se pela suspensão da aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir ao abrigo do disposto no artigo 141º, nº 2 do Código da Estrada. Caso assim não se entenda, a requerida suspensão poderá ser condicionada à prestação de outros deveres e nomeadamente à prestação de caução de boa conduta prevista no artigo 141º, nº 4 do Código da Estrada, tendo requerido que seja fixada no mínimo (500,00€).

Impõe-se, desde já, concluir pela improcedência da requerida suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir, pois esta foi efectuada pela ANSR, constando do teor da decisão administrativa o seguinte: “Nestes termos, ponderados os elementos determinantes da medida de sanção constantes no artigo 139º do Código da Estrada, determino: - a aplicação ao arguido da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias. Uma vez que a arguida é uma pessoa colectiva, determino, nos do nº 3 do art. 147º do Código da Estrada, a substituição daquela sanção acessória pela apreensão do veículo identificado nos presentes autos, pelo período fixado, ou seja, 30 dias, suspendendo-se a execução da mesma por um período de 180 dias”.

Acresce que, na interpretação deste Tribunal, não há lugar à suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada a pessoa colectiva, ainda que condicionada à prestação de boa conduta, pelo que se impõe revogar a decisão da ANSR neste segmento em particular.

Concretizando.

Em sede de 1ª instância, o Tribunal conhece de toda questão em discussão — “o objecto da sua apreciação não é a decisão administrativa, mas a questão sobre a qual incidiu a decisão administrativa” (assim, Maria Borges Campos, Os poderes de cognição e decisão do tribunal na fase de impugnação judicial do processo de contraordenação, in Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal, coord. Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, p. 390).

O âmbito de cognição deste tribunal é bastante amplo: não se limita a um controlo da legalidade do acto, mas procede a uma apreciação de todo o acto administrativo, uma “apreciação da veracidade e exactidão dos factos (e da sua qualificação)”, e também uma apreciação da medida da coima aplicada, considerando-se que o Tribunal tem “poderes de jurisdição plena” (neste sentido, Joaquim Pedro Formigal Cardoso da Costa, O recurso para os tribunais judiciais da aplicação de coimas pelas autoridades administrativas, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 366 (abril-junho, 1992), p. 59, 64, 67-8).

O tribunal irá decidir do mérito da causa como se fosse a primeira vez — o julgador não estará vinculado, nem limitado pelas questões abordadas na decisão impugnada, nem estará limitado pelas questões que tenham sido suscitadas aquando da impugnação, estando apenas limitado pelo objeCto do processo definido pela decisão administrativa. Esta sofre uma transformação — o Ministério Público recebe da autoridade administrativa os autos, e remete-os ao juiz “valendo este acto como acusação” (artigo 62º, nº 1 do RGCO).

O Tribunal decidirá ex novo com respeito pelo princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no artigo 72.º-A do RGCO: “1 - Impugnada a decisão da autoridade administrativa ou interposto recurso da decisão judicial somente pelo arguido, ou no seu exclusivo interesse, não pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes. 2 - O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de agravamento do montante da coima, se a situação económica e financeira do arguido tiver entretanto melhorado de forma sensível”.

Em anotação a este preceito diz-nos António Beça Pereira que “a impossibilidade de agravamento da “sanção aplicada” impede que, por via do recurso, não só se suba o valor da coima para um montante superior ao que consta da decisão recorrida, como também que se condene em sanção acessória que não figure nessa mesma decisão” (in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 12ª Edição, Almedina, 2020, p. 222).

De igual modo, refere Paulo Pinto de Albuquerque que “A proibição da reformatio in pejus abrange a coima e as sanções acessórias (…). O tribunal de recurso não pode aplicar uma sanção acessória que não foi ordenada na decisão administrativa. (…) A proibição da reformatio in pejus respeita ao valor da coima aplicada ou ao montante/duração das sanções acessórias, não podendo ser agravadas mesmo que o tribunal de recurso modifique a qualificação jurídica” (in op. cit., p. 355 e 356).

Serviu este enquadramento para justificar que a revogação do segmento da decisão da ANSR que determinou a suspensão da execução da sanção acessória por um período de 180 dias, cujo motivos exporemos infra, não viola a proibição da reformatio in pejus, pois não se trata da aplicação de uma sanção acessória que não foi ordenada na decisão administrativa. Trata-se sim do resultado da interpretação dos artigos 141º e 147º do Código da Estrada levada a cabo por este Tribunal.

Dispõe o artigo 141º do Código da Estrada, sob a epígrafe “Suspensão da execução da sanção acessória”, do seguinte modo:

“1 - Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contraordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes.

2 - Se o infrator não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contraordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser determinada pelo período de seis meses a um ano.

3 - A suspensão pode ainda ser determinada, pelo período de um a dois anos, se o infrator, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contraordenação grave, devendo, neste caso, ser condicionada, singular ou cumulativamente:

b) Ao cumprimento do dever de frequência de ações de formação, quando se trate de sanção acessória de inibição de conduzir;

c) Ao cumprimento de deveres específicos previstos noutros diplomas legais.

4 - A caução de boa conduta é fixada entre (euro) 500 e (euro) 5000, tendo em conta a duração da sanção acessória aplicada e a situação económica do infrator.

5 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação são suportados pelo infrator. 6 - (Revogado.)”.

O artigo 147º do Código da Estrada, epigrafado “Inibição de Conduzir”, estabelece o seguinte:

“1 - A sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contraordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir.

2 - A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contraordenações graves ou muito graves, respetivamente, e refere-se a todos os veículos a motor.

3 - Se a responsabilidade for imputada a pessoa singular não habilitada com título de condução ou a pessoa coletiva, a sanção de inibição de conduzir é substituída por apreensão do veículo por período idêntico de tempo que àquela caberia”.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-11-2017 (Processo nº 1433/17.9T8VIS.C1; Relator: Vasques Osório; disponível em www.dgsi.pt), “- A suspensão da execução da sanção acessória aplicável às contra-ordenações rodoviárias depende da verificação de três condições: a) a verificação do pressuposto material de que a lei penal faz depender a suspensão da execução da pena de prisão; b) o pagamento da coima; c) a inexistência de condenação, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de contra-ordenação grave ou muito grave, ou a prática, nos últimos cinco anos, de apenas uma contra-ordenação grave; (…)”.

Colhe-se do citado aresto que o pressuposto material da suspensão da sanção acessória aplicável às contraordenações rodoviárias consiste na verificação dos pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, ou seja, os consignados no artigo 50º do Código Penal.

Por conseguinte, o Tribunal suspende a pena se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir 

que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Em face do exposto, pergunta-se: considerando que a recorrente é uma pessoa colectiva, como é que a ANSR avalia a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior à contraordenação e as circunstâncias desta?

Ainda que se admita que a ANSR possa aferir da conduta anterior e posterior à contraordenação através do registo de infracções, é claro aos olhos do Tribunal que a suspensão da execução da sanção acessória assenta em critérios que não são adaptáveis às pessoas colectivas, nomeadamente a ANSR não tem como proceder à avaliação da personalidade do agente ou das suas condições de vida.

Com efeito, o artigo 50º do Código Penal, pensado para pessoas singulares, prevê requisitos que apenas em relação às pessoas são pertinentes, como seja a ponderação das suas condições de vida e da sua personalidade com vista a, conjugadamente com o seu cadastro de condutor, poder concluir por um juízo de prognose favorável.

Deste modo, parece-nos inegável que o instituto da suspensão da sanção acessória não se aplica às pessoas colectivas, pelo que se considera que a ANSR violou o disposto nos artigos 141º e 147º, nº 3 do Código da Estrada.

Como bem se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-10-2006 (Processo nº 210/06.7TBOBR.C1; Relator: Freitas Vieira; disponível em www.dgsi.pt), “Ora, se fosse intenção do legislador clarificar uma qualquer intenção de aplicabilidade às pessoas colectivas do instituto de suspensão, não poderia deixar de começar pela definição das condições que a estas seriam exigíveis para efeitos da suspensão. Subsiste pois a ausência de previsão expressa de aplicabilidade às pessoas colectivas do instituto de suspensão da sanção acessória de apreensão de veículo interveniente em infracção e de que sejam proprietárias não tendo identificado como condutor do mesmo. (…) Enquanto com a sanção acessória de inibição de conduzir se visa a prevenção especial, através de uma actuação directa sobre o agente da infracção para que no futuro não pratique infracções idênticas, no caso apreensão do veículo interveniente na infracção, quando aplicada a pessoa colectiva, que não exerce obviamente a condução de veículos, prossegue-se uma finalidade necessariamente diferente, qual seja a de, actuando indirectamente, sobre o proprietário do veículo – e não sobre o condutor infractor - evitar que fiquem impunes situações de infracção pelo facto de não ser identificado o condutor, e dessa forma desincentivar condutas que por essa via pudessem frustrar a finalidade que o legislador visa prosseguir com a inibição de conduzir. Só indirectamente a apreensão do veículo, enquanto sanção acessória, poderá atingir a mesma finalidade de prevenção especial que se visa com a inibição de conduzir. Por isso que se entende, ao contrário do sustentado pela recorrente, que o facto de a arguida, enquanto proprietária de veículo interveniente em prática de contra-ordenação punível com sanção acessória de inibição de conduzir, não ter indicado quando para isso notificada, o condutor do veículo no momento da prática da infracção, é condição necessária e suficiente para fazer aplicar a referida medida de apreensão da viatura. Sendo assim como se entende que de facto é, também não resulta violado o princípio constitucional da igualdade a que se refere o artº 13º da C.R.P. pois que é sabido que este principio constitucional não pressupõe um tratamento formalmente igual de todas as situações, admitindo e pressupondo mesmo o tratamento diferenciado de situações objectivamente desiguais, como é o caso em análise”. Concluiu-se, por conseguinte, no aludido aresto que “Não pode ser suspensa a execução da sanção acessória de apreensão do veículo com o qual foi praticada contra-ordenação grave, sanção resultante do facto de a arguida, pessoa colectiva, não ter identificado o condutor infractor”.

De igual modo, colhe-se do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22-06-2004 (Processo nº 294/04-1; Relator: Sénio Alves; disponível em www.dgsi.pt) que “A sanção acessória de apreensão de veículo prevista no artº 152º, nº 4 do Cod. Estrada não pode ser suspensa na sua execução, porquanto não existe dispositivo legal que o permita e o artº 142º do mesmo diploma legal não é susceptível de aplicação analógica”.

Segundo o aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-03-2005 (Processo nº 2222/2005-9; Relator: Trigo Mesquita; disponível em www.dgsi.pt), “Está conforme à lei, sendo de rejeitar o recurso da sentença que confirmou a decisão da DGV de determinar a apreensão do veículo da recorrente, pessoa colectiva, em substituição da sanção acessória da inibição de conduzir, nos termos do artº 152º do C.E., uma vez que está em causa uma contra-ordenação por excesso de velocidade cometida por condutor que a recorrente não identificou. Não pode suspender-se a execução da pena acessória porque, em relação a pessoa colectiva, não é aplicável o disposto no artº 50º, do C.Penal”.

Decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-11-2006 (Processo nº 263/06.8TBFND.C1; Relator: Luís Ramos; disponível em www.dgsi.pt) que “Não pode ser suspensa a execução da sanção acessória de apreensão do veículo com o qual foi praticada contra-ordenação grave, sanção resultante do facto de a arguida, pessoa colectiva, não ter identificado o condutor infractor”.

Extrai-se do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-01-2007 (Processo nº 2061/06-1; Relator: Estelita Mendonça; disponível em www.dgsi.pt) que “I – Dispõe nº 1, do artigo 141º do C. da Estrada (redacção do Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro) que “pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes.” II – Temos assim que a lei actual estendeu a possibilidade de suspensão de execução a qualquer sanção acessória o que quererá dizer que tal possibilidade de suspensão abrange também aquela que se concretiza na apreensão da viatura. III – No entanto tal possibilidade depara com um obstáculo intransponível, que é o de que essa suspensão exige a verificação dos pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, ou seja, os consignados no artº 50º do Código Penal. IV – Determina este artigo que o tribunal suspende a execução da pena se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. V – Ora, atenta essa a remissão para o art. 50°, nº 1 do C. Penal, não se alcança como poderiam tais pressupostos, pensados para pessoas físicas, ser transpostos para situações em que o sancionado era uma pessoa colectiva. VI – De facto, como se poderia apreciar a “personalidade do agente” sendo este uma pessoa colectiva? O que se poderia entender como “as condições da sua vida”? Em que é que consistiria a “conduta anterior e posterior ao crime”? Como apreciar a sua intervenção nas “circunstâncias” que rodearam a prática da contravenção? VII – A resposta deparar-se-á sempre com a da impossibilidade de apurar tais elementos uma vez que estes apenas são susceptíveis de ser apreciados quando estão em causa pessoas físicas, e se alguma dúvida restasse, bastava examinar as condições do nº 3, do artº 141,° para concluir que o legislador não teve em mente estender o instituto da suspensão a casos como o dos autos, em que foi determinada a sanção

acessória de apreensão de viatura propriedade de uma pessoa colectiva. VIII – Por outro lado, as finalidades visadas a sanção acessória de inibição de conduzir e a da apreensão do veículo interveniente na infracção, quando aplicada a pessoa colectiva, são manifestamente diversas. IX – Enquanto com a 1ª se visa a prevenção especial, através de uma actuação directa sobre o agente da infracção para que futuro não pratique infracções idênticas, no caso da 2ª, uma vez que a pessoa colectiva não exerce obviamente a condução de veículos, prossegue-se uma finalidade, necessariamente, diferente, qual seja a de, actuando indirectamente, sobre o proprietário do veículo - e não sobre o condutor infractor - evitar que fiquem impunes situações de infracção, e dessa forma desincentivar condutas que por essa via pudessem frustrar a finalidade que o legislador visa prosseguir com a inibição de conduzir. X – Sendo assim como se entende que de facto é, também não resulta violado qualquer princípio constitucional, nomeadamente o da igualdade a que se refere o artº 13° da C. R. p. pois que é sabido que este principio constitucional não pressupõe um tratamento formalmente igual de todas as situações, admitindo e pressupondo mesmo o tratamento diferenciado de situações objectivamente desiguais, como é o caso em análise”.

De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16-05-2017 (Processo nº 407/16.1T8TNV.E1; Relator: Gomes de Sousa; disponível em www.dgsi.pt), “Os excessos de velocidade previstos nas alíneas b), c) e d) do nº 1 do artigo 145º do CE (10, 20 e 30 km/h) não são um «desconto», um «direito», uma «tolerância», são sim um elemento diferenciador dos tipos contra-ordenacionais. Em conjunto com o artigo 146º do CE a norma visa definir de forma clara a qualidade ou gravidade de contra-ordenações estradais, sistema que é definido originariamente pelo artigo 136º do CE, em contra-ordenações leves, graves e muito graves. O artigo 141º do CE determina que é aplicável às contra-ordenações estradais graves – que é o caso - o regime dos pressupostos da suspensão da pena previsto no Código Penal. Mas a aplicação desse regime de pressupostos está dependente dos pressupostos específicos estradais previstos nos restantes números do preceito – ns. 2 a 6 do artigo 141º do CE. E desses resulta evidente que a dita suspensão foi pensada, exclusivamente, para pessoas singulares infractoras das regras estradais. Requisitos – e sanção – que se não coadunam com a personalidade colectiva da recorrente. Razão por que a sanção de inibição de conduzir – aplicável aos humanos – “é substituída por apreensão do veículo por período idêntico de tempo que àquela caberia” no caso de pessoas colectivas. E nem o artigo 147º, nem o artigo 141º do CE prevêm a possibilidade de suspensão da sanção «apreensão de veículo»”.

Por último, sustenta o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-05-2017 (Processo nº 99/16.8T8TBU.C1; Relator: Isabel Valongo; disponível em www.dgsi.pt) que “I – O decretamento da apreensão de veículo com motor, em substituição da sanção de inibição de conduzir, ao abrigo do disposto no artigo 147.º, n.º 3, do Código da Estrada, reporta-se sempre ao momento da prática da respectiva contra-ordenação - grave ou muito grave -, sendo, por isso, independente da circunstância de, posteriormente à prática da infracção, o ente responsável da mesma transmitir, por qualquer título, a propriedade ou a posse da viatura. II - Não pode ser decretada a suspensão da referida sanção acessória de apreensão de veículo imposta a pessoa colectiva”.

Considerando que a recorrente é pessoa colectiva deve ser mantida a decisão da autoridade administrativa de apreensão do veículo por trinta dias em substituição da sanção acessória de inibição de conduzir, nos termos do disposto no artigo 147º, nº 3 do Código da Estrada, decisão insusceptível de suspensão na sua execução ante o exposto no artigo 141º do mesmo diploma legal.


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       III - - Fundamentação de Direito

       Apreciando e decidindo

       b) A principal questão a apreciar nesta instância de recurso, prende-se em saber se o tribunal a quo poderia ter revogado a decisão da entidade administrativa, na parte em que tinha suspendido a apreensão do veículo automóvel ligeiro, matrícula ..-SN-.. na sua execução por um período de 180 dias sem que tal implicasse a violação do princípio do reformatio in pejus, atendendo a que apenas a arguida recorreu daquela decisão .

       Subsidiariamente (cfr. conclusão 16ª), aferir se a ANSR é incompetente para decretar a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art. 147º do Código da Estrada.

        c) Relativamente à questão principal, recorde-se então que inicialmente a autoridade administrativa aplicou à ora recorrente a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, substituída nos termos do artigo 147º, nº 3 do Código da Estrada (por se tratar de pessoa colectiva), pela apreensão de um veículo de que aquela é proprietária pelo período fixado, ou seja, 30 dias, suspensa na sua execução por um período de 180 dias, tendo por fundamento a prática da contra-ordenação prevista no artigo 28º, nº 1, alínea b) do Código da Estrada (punida com coima), e ainda com a sanção acessória de inibição de conduzir de 1 a 12 meses por força do disposto nos artigos 138º e 145º, nº 1, alínea b) do Código da Estrada.

          Interposto recurso dessa decisão da autoridade administrativa apenas pela também aqui recorrente, foi proferida decisão pelo tribunal a quo, a qual indeferindo a argumentação deduzida pela recorrente, manteve em geral a decisão administrativa impugnada, mas revogando a suspensão da execução pelo período de 180 dias da referida apreensão do veículo com fundamento na inaplicabilidade dos arts. 141º e 147º, do Código da Estrada às pessoas coletivas.

       d) Insurge-se então o aqui recorrente contra a decisão proferida pelo tribunal por considerar que a mesma a violou o n.º 1 do art. 72º-A do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (Dec.-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que doravante designaremos por  RGCO) o qual estatuiu a proibição de “Reformatio in pejus”.

       O princípio do reformatio in pejus” (do Latim reformatio, isto é, “mudar'”, “aprimorar”, e “peius, ou seja, “pior”) estabelece que quando o recurso da decisão final é interposto somente pelo arguido, ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido, o tribunal superior não pode agravar, na espécie ou na medida, as sanções impostas na decisão recorrida.

     O reformatio in pejus é acolhido genericamente por todos os países que abrigam o Estado de Direito,  o qual constitui entre nós princípio constitucional (ainda que sem norma expressa na CRP), e manifesta-se no âmbito do C.P.P. no artigo 419º que estatui no seu n.º 1 que “Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes  excepcionando o n.º 2 que “A proibição estabelecida no número anterior não se aplica à agravação da quantia fixada para cada dia de multa, se a situação económica e financeira do arguido tiver entretanto melhorado de forma sensível.

       No âmbito do direito contra-ordenacional, que agora nos ocupa, o RGCO inicialmente admitia a reformatio in peius na impugnação judicial da decisão administrativa de aplicação da coima, embora o fizesse de forma apenas indirecta ao determinar que da decisão de aplicação da coima devia constar a informação segundo a qual “não vigora o princípio da proibição da reformatio in peius”  - art. 49.º, n.º 2, al. c), do Dec.­‑Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, e 58.º, n.º 2, al. c), na redacção inicial do Dec.­‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro). Todavia, a situação alterar­‑se­‑ia drasticamente na reforma introduzida pelo Dec.­‑Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, o qual introduziu o art. 72.º­‑A do RGCO que, sob a epígrafe “Proibição da Reformatio in Pejus” dispõe que “impugnada a decisão da autoridade administrativa ou interposto recurso da decisão judicial somente pelo arguido, ou no seu exclusivo interesse, não pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes”, acrescentando o n.º 2 que “o disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de agravamento do montante da coima, se a situação económica e financeira do arguido tiver entretanto melhorado de forma sensível”.

       e) Regressando ao caso em apreciação, o tribunal a quo não ignorou a questão da eventual violação daquele princípio, a qual resultaria da circunstância de ter decidido não suspender a execução da sanção acessória de apreensão do veículo como decidido pela autoridade administrativa, sendo certo que apenas a arguida interpôs recurso. 

   Todavia, interpretou o citado art. 72-A do RGCO no sentido de que o mesmo tinha eficácia apenas quanto ao tipo de sanção escolhida, ao valor da coima, à condenação em sanção acessória que não figure na decisão administrativa, escrevendo que (…) “a revogação do segmento da decisão da ANSR que determinou a suspensão da execução da sanção acessória por um período de 180 dias, cujo motivos exporemos infra, não viola a proibição da reformatio in pejus, pois não se trata da aplicação de uma sanção acessória que não foi ordenada na decisão administrativa. Trata-se sim do resultado da interpretação dos artigos 141º e 147º do Código da Estrada levada a cabo por este Tribunal.

 E expõe de seguida os motivos pelos quais considera que a suspensão da sanção acessória não é aplicável às pessoas colectivas, citando jurisprudência nesse sentido.

 f) Ainda que concordemos com a decisão recorrida no sentido de que a suspensão da execução da sanção acessória apenas tem aplicação às pessoas singulares (com exclusão das pessoas colectivas), já divergimos na parte em que o tribunal a quo defende que, no caso concreto, a não suspensão da mesma sanção possa ser determinada pela decisão judicial que conhece o recurso da autoridade administrativa, tendo esse recurso sido unicamente interposto pela arguida, não tendo sequer o mesmo recurso por objecto a execução ou não da mesma sanção acessória.

   Isto porque consideramos – como a recorrente – que tal violaria o citado artigo 72-A do RGCO, o qual consagra o referido princípio do reformatio in pejus; determinar que a sanção acessória seja desde logo efectivamente executada, e não apenas suspensa (ao menos inicialmente) na sua execução, constitui a modificação da sanção em prejuízo da arguida/recorrente.

  g) O tribunal a quo aparentemente interpretou restritivamente o citado art 72-A do RGCO no sentido de não abranger a alteração do modo de execução da coima.

Ora, por um lado parece poder defender-se que a sanção acessória com execução suspensa já constitui uma sanção diferente e autónoma da sanção acessória efectiva, em similitude com a consideração da pena de prisão com execução suspensa como uma pena autónoma relativamente à pena de prisão efectiva – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Parte Geral II, Reimpressão, Coimbra 2005, Coimbra Editora, p. 339, e Ac. da Relação do Porto de 22-2-2017, processo n.º 1422/08-4PBAVR-A P1.

   Por outro, e mesmo que assim não fosse, o artigo 74-A do RGCO não permite a interpretação restritiva defendida pelo tribunal a quo, uma vez que se refere genericamente à modificação da sanção, e alterar o modo de execução da sanção (admitindo que não se trata de uma sanção autónoma) é modificá-la. Neste campo o citado art. 74-A ao referir-se apenas à impossibilidade de modificação da sanção é até menos descritivo do que o art 409º do C.P.P., o qual se refere especificamente à alteração das sanções “na sua espécie e medida”, sem que, seguramente, ninguém defenda que a revogação de uma suspensão da execução da pena de prisão em sede de recurso interposto exclusivamente pelo arguido não ofenda o princípio do reformatio in pejus.

h) E ainda que nos comentários ao art 74-A do RGCO, os autores citados pelo tribunal a quo não façam especificamente referência à modificação da sanção acessória suspensa para efectiva como estando abrangida pelo reformatio in pejus (Beça Pereira e Pinto de Albuquerque, respectivamente em in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Ed.  Almedina, e 2020, e Comentário ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Ed. UCP), cremos que tal sucede porque se referem às situações em que tal ocorre de forma meramente exemplificativa, sem intenção da afastarem aquela possibilidade; note-se que, em termos legais, a única situação excluída pelo 74-A n.º 1, é a excepção do n.º 2, restringida ao montante da coima, e não à sua alteração ainda que apenas quanto ao modo de execução.

O recurso deve assim proceder.

      i) Como referimos supra, a recorrente pretende ainda que seja subsidiariamente (cfr. conclusão 16ª), conhecida a questão de aferir se a ANSR é incompetente para decretar a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art. 147º do Código da Estrada.

      Sendo procedente a argumentação deduzida a título principal pela recorrente, não se tomará conhecimento desta questão, ainda que se estranhe que a recorrente coloque a mesma a título secundário, uma vez que a sua eventual procedência prejudicaria o conhecimento da questão da violação do principio reformatio in pejus formulado a título principal, e de cuja procedência decorreria a inexistência da sujeição à sanção acessória.

           Mas ainda que colocasse esta questão a título principal (ou não a colocasse a título subsidiário), diga-se que a decisão recorrida debruçou-se de forma exemplar sobre esta questão (motivação constante de a fls. 10 a 13, à qual aderimos) concluindo pela inexistência da violação de algum preceito legal (designadamente o art 30º n.º 4 da CRP) na aplicação pela autoridade administrativa da sanção acessória (cfr., para além da argumentação deduzida pelo tribunal a quo, o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 424/2007, que se pode consultar em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc.

IV- Dispositivo

Face ao exposto, julgo procedente o recurso interposto por A... – Sociedade de Capital de Risco, S. A., revogando-se a decisão recorrida na parte em que determinou que a sanção acessória não fosse suspensa, mantendo-se no demais a mesma decisão.

Sem custas atenta a procedência parcial do recurso.

                                Coimbra, 10 de Maio de 2023


João Novais

                         

Rui Pedro Lima

Jorge Jacob