Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4331/06.8TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
INCIDENTE
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Data do Acordão: 12/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INST. CÍVEL DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 274º, NºS 1, 3, 4, 5 E 6, E 325º DO CPC.
Sumário: I – Com a reconvenção deixa de haver uma só acção e passa a haver duas acções cruzadas no mesmo processo. E esse cruzamento de acções só pode ser admitido em certos termos, sob pena de se poder facilmente subverter toda a disciplina do processo.
II - Há pressupostos de admissibilidade da reconvenção de carácter processual e de carácter substancial.

III - Nada parece obstar a que a reconvenção, que deve ser dirigida sempre contra o autor, envolva também outras pessoas que, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se aos litigantes ou intervir aos lado deles.

IV - O meio processual adequado a promover a presença desse terceiro na instância reconvencional é, como o próprio artº 274º, nº 4 sinaliza, o incidente de intervenção principal provocada, cujo regime consta dos artºs 325º e seguintes.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A… e mulher M…, residentes na …, intentaram acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra E…, divorciada, residente na Av. …, J…, solteiro, residente na … e L…, residente na …, pedindo a condenação dos RR. a:

         “A. Reconhecer que os AA. são donos e legítimos possuidores da fracção E;

         B. Que dessa fracção faz parte um espaço de 25 m2 destinado a garagem onde actualmente se encontra implantada uma garagem com 18 m2;

         C. Que os AA. no uso do seu direito de transformação têm o direito de transformar a actual garagem de 18 m2 numa outra com 25 m2 mantendo o seu actual comprimento;

         D. A abster-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou perturbem o exercício do direito de propriedade dos AA. nomeadamente o direito de transformação respeitando os condicionalismos legais e administrativos;

         Mais sejam condenados a:

E. Reconhecer que o sótão referido no artº 37º é parte comum e como tal os AA. têm direito ao seu uso nas mesmas condições e circunstâncias em que os RR. o exercem.

         Para tanto os AA. alegaram, em síntese, que, por o terem adquirido por contrato de compra e venda e por usucapião, são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio: fracção E (2º andar esquerdo), composto por hall de entrada, corredor, sala comum, três quartos, quarto de banho, sanitário, cozinha, despensa, duas varandas para tardoz e duas varandas para a frente e no pátio uma garagem com 25 m2 e ainda um sótão do lado esquerdo, por cima do 2º andar esquerdo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº …-E e com a inscrição de propriedade a favor dos AA.; que o contrato de compra e venda foi precedido de um contrato promessa em que a promitente vendedora, a 1ª R. E…, então única proprietária de todo o prédio onde a fracção E se integra, declarou expressamente autorizar o A. marido a realizar as obras necessárias a ampliar a garagem de 18 m2 para 25 m2, de modo a ficar com uma largura de, no mínimo, mais 75 cm, mantendo o comprimento; que do documento de alteração da constituição da propriedade horizontal ficou a constar que da fracção E faz parte uma garagem com 25 m2 de superfície, o mesmo constando da descrição da fracção na Conservatória do Registo Predial; que, entretanto, a R. E… vendeu outras fracções do imóvel, sendo actualmente a dita R. proprietária das fracções A, C e F, o R. J… da Fracção B, o R. L… da fracção D e os AA. da fracção E; que, pretendendo fazer obras no sentido de a garagem integrante da sua fracção passar o ocupar os 25 m2 referidos nos documentos, a Câmara Municipal de Aveiro deferiu o respectivo requerimento com a condição de o alargamento da garagem ser autorizado por todos os proprietários do imóvel, sendo que os RR. vêm injustificadamente recusando tal autorização; e que, sendo comum, porque não afectado ao uso exclusivo de qualquer condómino, o sótão existente por cima do 2º andar direito, sucede que só os RR. têm acesso a essa arte possuindo cada um deles a respectiva chave.

        

Os RR. J… e L… contestaram por excepção e por impugnação e deduziram reconvenção.

         Por excepção alegaram que a pretendida ampliação da garagem dos AA. redundaria na correspondente diminuição do pátio/logradouro interior do prédio, destinado à manobra de veículos, que é, de acordo com a lei e com o título constitutivo da propriedade horizontal, zona comum, sendo, por isso, sobre o administrador do condomínio – e não sobre os RR. – que recai a legitimidade passiva para a presente acção.

         Por impugnação contrariaram parte da factualidade alegada pelos AA. na petição inicial, sustentando que é o título de constituição da propriedade horizontal que enferma de erro e não a garagem da fracção E, a qual foi implantada no local e com as dimensões aprovados no projecto de licenciamento pela Câmara Municipal de Aveiro; e que o sótão por cima do 2º andar direito encontrava-se e encontra-se, desde muito antes da constituição da propriedade horizontal, sem oposição dos AA., a ser utilizado única e exclusivamente pelos proprietários do rés-do-chão, primeiro e segundo andares direitos.

         Em reconvenção os RR. pediram que se declarem parcialmente nulos os títulos constitutivo e modificativo da propriedade horizontal, relativamente à área de 25 m2 da garagem da fracção E dos AA. por violação do projecto elaborado e licenciado pela Câmara Municipal de Aveiro nº …, assim como relativamente aos valores atribuídos em termos de permilagem às seis fracções que compõem o prédio constituído em propriedade horizontal sito na Avenida …, na freguesia da …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº … e que não estão de acordo com o projecto licenciado.

         Também a R. E… contestou por excepção e por impugnação.

Por excepção arguiu a ilegitimidade passiva, defendendo que a respectiva legitimidade assenta no administrador do condomínio e não nos RR. E por impugnação contrariou em grande parte a factualidade alegada pelos AA.

Estes responderam sustentando que o pedido reconvencional deveria ter sido dirigido contra todos os condóminos, razão pela qual carecem de legitimidade, enquanto reconvindos. No mais, pugnaram pela improcedência das excepções e da reconvenção e concluíram como no articulado inicial.

Os RR. J… e L… vieram então, prevenindo a hipótese de procedência da excepção de ilegitimidade arguida pelos AA. na sua resposta, deduzir incidente de intervenção principal provocada da R. E…, na sua qualidade de condómina, tal como reconvintes e reconvindos.

Os AA. opuseram-se, mas a intervenção principal foi, por despacho de 14/05/2007 (cfr. fls. 200), admitida[1].

Os AA. interpuseram recurso, que foi admitido como agravo com subida diferida e efeito devolutivo, encerrando a alegação que para o efeito apresentaram com as seguintes conclusões:

1) Não é possível requerer a intervenção principal de quem já é parte no processo (artº 325º do CPC, a contrario sensu);

2) Não pode deduzir-se pedido reconvencional contra co-Réu (artº 274º, nº 1 e 4 do CPC).

Assim, revogando o despacho recorrido, se fará JUSTIÇA!

Os agravados responderam defendendo a manutenção do julgado.

O agravo não foi reparado.

A R./interveniente E… apresentou articulado declarando que aceita e adere à posição assumida pelos seus co-RR. ao deduzirem a reconvenção.

Foi marcada uma audiência preliminar destinada a discutir as excepções e tentar a conciliação das partes, sendo que no seu decurso foi dado conhecimento de que a R. E… vendera, por escritura de 25/05/2007, a fracção A, pelo que foi a audiência suspensa e autuado por apenso incidente de habilitação, no qual vieram os compradores, M… e marido D…, a ser julgados habilitados para intervirem na acção.

Ainda em sede de audiência preliminar foi, deferindo pretensão das partes nesse sentido, solicitada à Câmara Municipal de Aveiro a remessa, a título devolutivo, do processo administrativo nº … e ordenada uma perícia com vista ao “apuramento das diversas superfícies das fracções, respectivas permilagens, e (…) definição da área actual da garagem em causa”.

Nessa diligência se gastaram cerca de três anos, não tendo afinal, apesar dos elementos aportados pela perícia, sido alcançada a almejada conciliação das partes.

Foi então proferido o despacho de fls. 435 a 442 em que, além do mais que aqui não releva, se julgou inepta a petição inicial, se anulou todo o processado e se absolveu os RR. da instância.

Inconformados, os AA. recorreram, tendo o recurso sido admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Os agravantes apresentaram alegação que encerraram com as seguintes conclusões:

Os agravados J… e L…responderam, defendendo a manutenção do julgado.

O agravo não foi reparado.

Foram colhidos os pertinentes vistos.

Cumpre apreciar e decidir.

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil[2], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as seguintes questões:

         I – No agravo retido:

         a) (In)admissibilidade da intervenção principal provocada da R. Elisabete Augusta na acção reconvencional;

         II – No agravo principal:

         b) Se a decisão recorrida é nula por inobservância do disposto nos artºs 288º, nº 3 e 265º, nº 2 do Código de Processo Civil;

         c) Se a petição inicial é ou não inepta.

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         A 1ª instância fez assentar a decisão recorrida na seguinte factualidade, não impugnada pelos recorrentes:

         2.2. De direito

         2.2.1. (In)admissibilidade da intervenção principal provocada da R. E… na acção reconvencional

         Como ensinava o Prof. Antunes Varela[3], não constituindo o pedido reconvencional um simples corolário da defesa deduzida pelo réu, a reconvenção não pode ser admitida indiscriminadamente.

         Com a reconvenção deixa de haver uma só acção e passa a haver duas acções cruzadas no mesmo processo. E esse cruzamento de acções só pode ser admitido em certos termos, sob pena de se poder facilmente subverter toda a disciplina do processo.

         Há pressupostos de admissibilidade da reconvenção de carácter processual e de carácter substancial.

         Fazendo incidir a atenção sobre os primeiros, por serem os que interessam para a questão em apreciação, são requisitos de natureza adjectiva a competência do tribunal em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia (artº 98º) e a compatibilidade processual exigida pelo nº 3 do artº 274º.

         Tomando como ponto de partida a redacção do artº 274º anterior à reforma do Cód. Proc. Civil operada pelos Decretos-Lei nºs 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, escrevia o Prof. Antunes Varela: “Um terceiro requisito parece estar ainda implicitamente contido – embora não categoricamente formulado – no artº 274º, nº 1, quando nele se afirma que «o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor». Trata-se da identidade subjectiva das partes, embora em posições invertidas”[4]. Mas, aludindo a diferentes entendimentos, acabava concluindo que “(…) nada parece obstar, com efeito, a que a reconvenção, que deve ser dirigida sempre contra o autor, envolva também outras pessoas que, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se aos litigantes ou intervir aos lado deles”[5].

         Acolhendo esse ensinamento, a reforma do Cód. Proc. Civil levada a cabo pelos Decretos-Lei nºs 329-A/95 e 180/96, além de alterar o nº 3 do artº 274º aditou-lhe os nºs 4, 5 e 6, com a seguinte redacção:

4 – Se o pedido reconvencional envolver outros sujeitos que, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se ao reconvinte ou ao reconvindo, pode o réu suscitar a respectiva intervenção principal provocada, nos termos do disposto no artigo 326.º.

5 – No caso previsto no número anterior e não se tratando de litisconsórcio necessário, se o tribunal entender que, não obstante a verificação dos requisitos da reconvenção, há inconveniente grave na instrução, discussão e julgamento conjuntos, determinará, em despacho fundamentado, a absolvição da instância quanto ao pedido reconvencional de quem não seja parte primitiva na causa, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 31.º.

6 – A improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor.

         No caso dos autos, os RR. pediram, em reconvenção, que se declarem parcialmente nulos os títulos constitutivo e modificativo da propriedade horizontal, relativamente à área de 25 m2 da garagem da fracção E dos AA. por violação do projecto elaborado e licenciado pela Câmara Municipal de Aveiro nº …, assim como relativamente aos valores atribuídos em termos de permilagem às seis fracções que compõem o prédio constituído em propriedade horizontal sito na Avenida …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº … e que não estão de acordo com o projecto licenciado.

Tal pedido enquadra-se na previsão do nº 2 do artº 28º, isto é, pela própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter possa produzir o seu efeito útil normal é necessária a intervenção de todos os condóminos.

Assim, dada a qualidade de condómina da R. E…, não há dúvidas de que o pedido reconvencional a envolve, sendo a sua presença na acção reconvencional indispensável para que a legitimidade das respectivas partes se mostre assegurada.

A acção principal e a acção reconvencional não se confundem, constituindo acções distintas e autónomas, embora enxertadas uma na outra, como do nº 6 do artº 274º – onde se dispõe que a improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido – facilmente se alcança.

Ora, a R. E… era já parte na acção principal, mas não na acção reconvencional, perante a qual não pode deixar de ser considerada terceiro.

O meio processual adequado a promover a presença desse terceiro na instância reconvencional é, como o próprio artº 274º, nº 4 sinaliza, o incidente de intervenção principal provocada, cujo regime consta dos artºs 325º e seguintes[6]

De acordo com o nº 1 do artº 325º, o interessado com direito a intervir na causa, como sucede com a R. E… relativamente à acção reconvencional [cfr. artº 320º, al. a)], pode ser chamado por qualquer das partes, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

Isto é, contra o que os agravantes parecem entender, a referida E… não tinha necessariamente de intervir na acção reconvencional como sua associada, antes podendo intervir na dita acção, assegurando de igual forma a legitimidade das partes, como associada dos RR./reconvintes.

No caso dos autos verifica-se mesmo uma situação curiosa[7]: os reconvintes requereram a intervenção principal da R. E… como associada dos reconvindos, mas ela, no articulado que ofereceu, declarou que aceita e adere à posição assumida pelos seus co-RR. ao deduzirem a reconvenção. Isto é, preferiu associar-se aos reconvintes.

Não se coloca, portanto, a questão – de duvidosa solução[8] – levantada pelos agravantes, da dedução de pedido reconvencional contra co-réu na acção, já que o pedido reconvencional foi deduzido apenas contra os AA., destinando-se o incidente de intervenção principal provocada da R. E… na acção reconvencional apenas a promover a presença desta na dita acção, com vista a assegurar a legitimidade processual das partes na reconvenção.

Soçobram, pois, as conclusões da alegação do agravo retido, o qual, por isso, não merece provimento.

         2.2.2.          Se a decisão recorrida é nula por inobservância do disposto nos artºs 288º, nº 3 e 265º, nº 2 do Código de Processo Civil

         De acordo com o nº 3 do artº 288º, “as excepções dilatórias só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 265.º; ainda que subsistam, não terá lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da excepção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte”.

         Por sua vez, o nº 2 do artº 265º preceitua que “o juiz providenciará mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los”.

         Não há dúvida de que a ineptidão da petição inicial configura a falta de um pressuposto processual, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso de que, quando conhecida depois da citação do réu, resulta a absolvição da instância.        

Põe-se, porém, como escreve Lebre de Freitas[9], a questão de saber se a ineptidão constitui uma excepção suprível, aplicando-se-lhe o regime dos artºs 265, nº 2 e 508º, nº 1, al. a), ou se gera inelutavelmente a nulidade de todo o processo. Tudo está em saber se nos encontramos perante um pressuposto processual cuja falta seja susceptível de sanação.

A única possibilidade de sanação é a que prevê o nº 3 do artº 193º, ao estabelecer que se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, não se julgará procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial[10].

         No caso dos autos a verdadeira questão – de que infra nos ocuparemos – reside em saber se a petição é ou não inepta. Se sim, não havia sanação possível; se não, não era necessária sanação. Em ambos os casos não se justificava qualquer iniciativa do tribunal, nomeadamente ao abrigo das disposições legais invocadas pelos recorrentes.

         Nega-se, portanto, razão aos recorrentes quanto à questão acabada de apreciar.

         2.2.3. Ineptidão

Na sentença recorrida justificou-se a decisão de julgar inepta a petição inicial nos seguintes termos.

“(…).

Reportando-nos ao caso, atentas as diversas causas que originam a ineptidão da petição inicial, afigura-se-nos que a petição inicial é inepta.

Ora, na petição inicial, os autores depois de fazerem uma alegação que vai de encontro com os factos acima elencados, formulam os seguintes pedidos: “nestes termos e nos mais de direito aplicável deve a presente acção ser julgada procedente e provada e consequentemente serem os RR. condenados a :

A. Reconhecer que os AA. são donos e legítimos possuidores da Fracção E;

B. Que dessa fracção faz parte integrante um espaço de 25 m2 destinada a garagem onde actualmente se encontra implantada uma garagem com 18 m2;

C. Que os AA. no uso do seu direito de transformação têm o direito de transformar a actual garagem de 18 m2 numa outra com 25 m2 mantendo o seu actual comprimento;

D. A abster-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou perturbem o exercício do direito de propriedade dos AA. nomeadamente o direito de transformação respeitando os condicionalismos legais ou administrativos.

Mais sejam condenados a:

E. Reconhecer que o sótão referido no art.º 37º é parte comum e como tal os AA. têm direito ao seu uso nas mesmas condições e circunstâncias em que os RR. o exercem.”

No que respeita aos pedidos formulados de A. a D., atinentes ao reconhecimento do direito de propriedade sobre uma garagem com a área de 25 m2, os autores alegam, para o efeito, os requisitos factuais da aquisição de tal direito por usucapião (vide artigos 1º a 8º da petição inicial). De outra banda, e quanto ao pedido redigido em E., a única alegação que é, a este nível, efectuada, é a afirmação conclusiva que se encontra exarada no documento identificado sob o n.º 4, de onde consta que faz parte integrante da fracção E o sótão, com a área aproximada de 90 m2, para depois se concluir que é parte comum, não obstante ao identificar-se a fracção E no art. 1º se tenha ali incluindo o dito sótão e, como tal, quanto a este se tenham, de igual modo, alegado os já aludidos requisitos factuais da usucapião.

Da alegação fáctica tecida na petição, ao concretizarem que no local está implantada uma garagem com apenas 18 m2, tal como aliás foi declarado no contrato-promessa, e ao descreverem as diligências encetadas para obter o alargamento daquela em mais 75 cm (mantendo-se o comprimento), os autores reconhecem que a área não abrangida pela construção da dita garagem (os tais 75 cm) consubstancia parte comum. Daí a final pediram o reconhecimento por parte dos demais condóminos do direito de transformação, que mais não é do que a aplicação do regime das inovações, em partes comuns, a que alude o artigo 1425º, n.º 2 do C.C.. Por conseguinte, os autores apresentaram requerimento na edilidade municipal competente e levaram o assunto à Assembleia de Condóminos.

Não obstante o reconhecimento de que a parte não contemplada na garagem (75 cm) é comum os autores concluem pedindo o reconhecimento de que a dita garagem com a área global de 25 m2 lhes pertence por usucapião.

De todo o modo, ainda que a alegação não fosse nesse sentido, sempre operaria a presunção de que a garagem, pelo menos, na parte em litigio, atento o declarado pelos autores no contrato-promessa e toda a postura assumida pelos autores e pelos demais condóminos, é comum – cfr. artigo 1421º, n.º 2, al. b) do Código Civil.

Desta feita, perante esta alegação, não poderiam ter sido formulados aqueles pedidos. Na verdade, a afectação de uma parte comum ao uso exclusivo de um condómino (o que também não foi alegado) nunca lhe permitirá, como é óbvio e por essa razão, uma aquisição por usucapião - cfr. artigo1406º, n.º 2 do Código Civil.

Ademais, o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre os 75cm que faltam à garagem e o de reconhecimento que os autores tem direito a fazer as obras de alargamento/transformação da dita garagem são incompatíveis entre si, porquanto um assenta na propriedade singular e o outro na comunhão. Do exposto resulta existir uma contradição dos pedidos entre si e destes com a causa de pedir, relativamente aos pedidos formulados de A. a D..

Ademais, e já quanto ao sótão, valem as mesmas considerações que acima se expenderam, na medida em que a alegação da aquisição do direito de propriedade inclui, também, aquele, embora, a final se pretenda o reconhecimento de que o mesmo é parte comum. Neste particular, não é formulado pedido quanto à alegação da aquisição do direito de propriedade do sótão por usucapião, porque inexiste pedido. De todo modo, a consequência da formulação de tal pedido redundaria numa contradição do pedido com a causa de pedir, como já se referiu. Por outro lado, para o pedido formulado de reconhecimento como parte comum não foi efectuada qualquer alegação fáctica, inexistindo, assim, causa de pedir, que suporte tal pedido.

À luz do que acima se deixou dito, conclui-se que a petição é inepta, por contradição da causa de pedir e do pedido, por incompatibilidade dos pedidos e por falta da causa de pedir.

Com fundamento no atrás exposto, julgo inepta a petição inicial, pelo que anulo todo o processado e absolvo os réus da instância - artigos 193º nº1 e nº2 e 288º nº1 b) do Código de Processo Civil.

Custas pelos autores.

Notifique.

Separemos a questão da garagem da questão do sótão.

Comecemos pela garagem.

A tese dos AA./recorrentes é a de que ao adquirirem a fracção E adquiriram também, porque dela integrante, um espaço destinado a garagem, com a área de 25 m2, estando na altura 18 m2 ocupados por garagem e os restantes 7 m2 desocupados, pretendendo agora alargar a ocupação de forma a nela incluir toda a área. E como a Câmara Municipal condiciona o licenciamento da obra à autorização do conjunto dos condóminos e estes não dão tal autorização, pede ao tribunal a condenação dos RR. a:

         “A. Reconhecer que os AA. são donos e legítimos possuidores da fracção E;

         B. Que dessa fracção faz parte um espaço de 25 m2 destinado a garagem onde actualmente se encontra implantada uma garagem com 18 m2;

         C. Que os AA. no uso do seu direito de transformação têm o direito de transformar a actual garagem de 18 m2 numa outra com 25 m2 mantendo o seu actual comprimento;

         D. A abster-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou perturbem o exercício do direito de propriedade dos AA. nomeadamente o direito de transformação respeitando os condicionalismos legais e administrativo.

Em parte nenhuma se encontra qualquer reconhecimento por parte dos AA. de que os 7 m2 de pretendido alargamento da parte ocupada, correspondentes a um acréscimo, a todo o comprimento, da largura de 75 cm, constituam parte comum.

Pelo contrário, os AA. defendem que essa área integra a fracção E, toda ela por si adquirida por contrato de compra e venda e por usucapião, cuja factualidade alegam.

Se assim é ou não, e quais as consequências jurídicas, é questão logicamente posterior, a apurar eventualmente em julgamento.

Mas, com todo o respeito, não nos parece que, nesta parte, haja qualquer contradição entre a causa de pedir e os pedidos ou que estes sejam entre si incompatíveis.

Passemos ao sótão.

Há que distinguir o sótão que se sobrepõe ao 2º andar esquerdo (fracção E) – que os AA., invocando o título constitutivo da propriedade horizontal (alteração de 03/10/1996) e a descrição na Conservatória do Registo Predial, sustentam que faz parte integrante da sua fracção –, do sótão que se sobrepõe ao 2º andar direito (fracção F), relativamente ao qual nada foi previsto no título constitutivo (original ou alterado) da propriedade horizontal e que, por isso, nos termos dos artºs 1405º, 1420º e 1421º, nºs 2, al. d) e 3 do Cód. Civil, se presume comum e afectado ao uso, em conjunto, de todos os condóminos.

Conjugando os artigos 37º a 40º da petição inicial – em que os AA., após alegarem que o sótão que se sobrepõe ao 2º andar direito tem a natureza de parte comum, afirmam que só os RR. a ele têm acesso, possuindo cada um a respectiva chave – com o pedido a final formulado sob a letra “E”, conclui-se claramente que os AA. se referiam ao sótão que se sobrepõe ao 2º andar direito, reivindicando para si a possibilidade, que os demais condóminos lhes negam, de o usar nas mesmas condições e circunstâncias que eles.

Na decisão recorrida, seguramente por lapso, ter-se-á entendido que o pedido em causa – condenação dos RR. a reconhecer que o sótão referido no art.º 37º é parte comum e como tal os AA. têm direito ao seu uso nas mesmas condições e circunstâncias em que os RR. o exercem – tinha em mente o sótão que se sobrepõe ao 2º andar esquerdo (fracção E), do qual, segundo os AA., faz parte.

Daí a vislumbrada ineptidão que, desfeito o lapso, se desfaz com ele.

De quanto fica dito resulta que, contrariamente ao que foi entendido pela 1ª instância, a petição inicial não é inepta, não ocorrendo nulidade de todo o processo nem podendo subsistir a decisão de absolvição dos RR. da instância.

Logram êxito, portanto, na medida indicada, as conclusões da alegação dos recorrentes, o que conduz ao provimento do agravo principal e à revogação da decisão por ele impugnada.

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em:

a) Negar provimento ao agravo retido e, consequentemente, confirmar a decisão por ele impugnada;

         b) Dar provimento ao agravo principal e, consequentemente, revogar a decisão por ele impugnada.

         As custas do agravo retido são a cargo dos agravantes e as do agravo principal são a cargo dos agravados.

Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1] É o seguinte o teor desse despacho:
  “Configurando a reconvenção instância diversa da da acção, implicando pressupostos processuais próprios, nada impede, salvo melhor entendimento, intervenção principal de quem seja parte na acção.
  Assim, admito a requerida intervenção principal.
  Cumpra o disposto no artº 327º, nº 1 do C.P.Civil.”
[2] Na versão anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/08, que é a aplicável. São desse diploma legal, nessa versão, as disposições adiante citadas sem menção da origem.
[3] Manual de Processo Civil, 2ª edição, págs. 324/326.
[4] Obra e local citados.
[5] Obra citada, pág. 327.
[6] Ac. Rel. Porto de 04/10/2011 (Proc. 664/10.7TVPRT-A, relatado pelo Des. Fernando Samões), in www.dgsi.pt.
[7] Mas que, se bem vemos, nenhuma irregularidade comporta.
[8] Miguel Mesquita, Reconvenção e Excepção em Processo Civil, 2009, Almedina, págs. 107/110.
[9] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 1999, pág. 327.
[10] Autor e obra citados, pág. 470.. Ver também Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 2ª edição, pág. 80.