Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4037/20.5T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
ADMISSIBILIDADE
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 03/19/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA –JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 284º CT; 388º E 403º CPC; LEI Nº 98/2009, DE 04/09.
Sumário: I – No caso específico dos acidentes de trabalho, as indemnizações a garantir aos sinistrados são as previstas na Lei nº 98/2009, de 04/09, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro.

II - Havendo morte ou lesão corporal pode ser objeto da reparação antecipada qualquer dano patrimonial; tratando-se de dano emergente de qualquer outro ilícito, só poderão ser atendidos aqui os susceptíveis de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado, ou seja, o nº 4 tem, em face do nº 1, um âmbito de previsão simultaneamente mais amplo, no que respeita ao tipo de dano causado, e mais restrito, no que respeita ao tipo de necessidade a considerar.
III - O decretamento da providência de arbitramento de uma reparação provisória previsto no artº 403º está assim dependente da verificação cumulativa de três requisitos fundamentais:
a) Existência de indícios da obrigação de indemnizar por parte do requerido;
b) Existência de uma situação de necessidade;
c) Existência de um nexo causal entre os danos sofridos e a situação de necessidade.
IV - Ao tornarem a prestação dependente da demonstração de um nexo de causalidade adequada entre o evento lesivo e a situação de carência, as normas dos nºs 1 e 4 do artº 403º contêm uma formulação restritiva, que deve ser respeitada.
V - O fundamento dessa formulação restritiva reside no sistema de responsabilidade civil extracontratual instituído, o qual assenta fundamentalmente na culpa (artº 483º do CC) e limita a responsabilidade aos danos que tenham sido casualmente determinados pelo evento lesivo (artº 563º do CC).
Decisão Texto Integral:

Apelação 4037/20.5T8LRA-A.C1

(P. cautelar de arbitramento de reparação provisória)

Relator: Felizardo Paiva.

Adjuntos: Jorge Loureiro.

Paula Roberto.

Requerente: M...

Requerido: Companhia de Seguros T..., S.A,

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O requerente veio intentar a presente providência de ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA alegando que no passado dia 14.07.2020 sofreu um acidente de trabalho ao serviço da sua entidade patronal que o deixou totalmente incapacitado para continuar a trabalhar devido às dores intensas no braço/cotovelo e na perna/anca, que não eram sequer aliviadas com a toma de medicamentos.

Realizou vários exames, designadamente uma RMN do cotovelo esquerdo e outa da anca direita realizada pela seguradora, teve várias consultas médicas e fez tratamento de fisioterapia.

Por carta de 12.11.2020 a Requerida disse que não poderia continuar a  assumir qualquer responsabilidade pelo tratamento por considerar que não havia nexo causal.

O Requerente consultou outro médico especialista e o mesmo foi claro no seu relatório ao dizer que existe nexo de causalidade.

As lesões sofridas pelo Requerente resultam do referido sinistro e, como tal, não há como negar o nexo de causalidade.

Em resultado do sinistro e das lesões sofridas o Requerente está impossibilidade de trabalhar.

Com a alta médica indicada pelo corpo clínico da Ré, o Requerente deixa de ter direito a qualquer prestação.

Além do seu vencimento, o Requerente conta apenas com o vencimento da sua esposa que tem um rendimento mensal líquido médio na ordem dos 330,00€.

Além das despesas habituais com renda de casa, eletricidade, água, alimentação, vestuário, telemóvel, necessita de tratamento médico adequado e urgente, o que inclui a realização de consultas em médicos especialistas, exames complementares, fisioterapia prolongada, compra de medicamentos e, possivelmente, intervenção cirúrgica. Prevê-se que o tratamento possa demorar, pelo menos, seis meses.

Mesmo com o seu rendimento mensal habitual na ordem dos €1.200,00 líquidos não teria (não tem) condições financeiras para fazer face a todas as despesas de saúde que resultam do referido sinistro.

Termina pedindo que lhe seja arbitrada, provisoriamente, uma quantia mensal de, pelo menos, €2.000,00 (dois mil euros) pelo período de seis meses.

II- Pelo tribunal a quo foi proferida decisão de indeferimento liminar nos termos que a seguir se transcreve:

“Estamos no domínio da providência cautelar especificada de arbitramento de reparação provisória prevista no art. 388º e ss. CPC. A justificação dos procedimentos cautelares advém do facto de a demora na satisfação judicial do interesse protegido criar o risco de acarretar prejuízo sério para o seu titular (periculum in mora); por isso a lei permite que, através dum processo mais simples e rápido (summaria cognitio) – mas, por isso, menos seguro – demonstrada uma mera possibilidade séria da existência do direito (fumus bonus iuris), o tribunal possa decretar uma composição provisória do litígio, que permita esperar pela composição definitiva.

Representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal e assentam numa análise sumária (summaria cognitio) da situação de facto que permita concluir pela provável existência do direito (fumus bonus iuris) e pelo receio de que tal direito seja seriamente afectado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar (periculum in mora) – vide, neste sentido, “Temas da Reforma de Processo Civil”, vol. III – Procedimento cautelar comum.

No caso da providência de arbitramento de reparação provisória, a sua finalidade é antecipar a tutela pretendida ou requerida (ou seja, atribui-se o mesmo que se pode obter na composição definitiva).

No caso específico dos acidentes de trabalho, as indemnizações a garantir aos sinistrados são as previstas na Lei nº 98/2009, de 04/09, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro.

A Lei de Bases da Segurança Social (Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro) inclui esta eventualidade no âmbito material do sistema previdencial, estabelecendo o regime jurídico da proteção obrigatória em caso de acidente de trabalho, definindo os termos da respetiva responsabilidade – cfr. – cfr. arts. 52º, al. d) e 107º.

O Trabalhador/Sinistrado é beneficiário da Segurança Social – conforme decorre do recibo de vencimento que junta aos autos.

Enquanto não se encontrar reconhecida a responsabilidade de quem deva pagar a indemnização por acidente de trabalho, o Sinistrado deverá obter junto da Segurança Social o respectivo subsídio de doença e aí passará a ser tratado ao abrigo do protocolo com o SNS; logo que seja reconhecida a responsabilidade pelo pagamento da indemnização ou esta seja paga, cessa o pagamento provisório do subsídio e a Segurança Social tem direito ao reembolso do que pagou com o limite do valor da indemnização.

Ou seja, não pode o Sinistrado, utilizando a presente providência, tentar obter uma indemnização que a Segurança Social lhe garante através dos seus mecanismos de reparação previdencial, garantindo-lhe, através do Serviço Nacional de Saúde, o tratamento adequado, até ser definida a entidade responsável na reparação do presente acidente[1].

A tese do Requerente não tem qualquer possibilidade de ser acolhida perante a lei em vigor, sendo por isso, o seu pedido manifestamente improcedente. Nesta conformidade, e vistos os princípios expostos, indefiro liminarmente a presente providência cautelar”.

II – Não se conformando com esta decisão dela o requerente veio apelar, alegando e concluindo:
A)  O Tribunal a quo fez uma errada aplicação da lei (art. 388.º do CPC, art. 28.º, n. 2, al. d), 48.º a 52.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, e 99.º e ss do CPT, em confronto com os arts. 52º, al. d) e 107º da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, art. 184.º do CT), quando decidiu indeferir liminarmente o procedimento cautelar de reparação provisória, uma vez que o meio processual adequado para requerer e fixar uma pensão ou indemnização provisória, no decurso da fase conciliatória do processo de acidente de trabalho, é o procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória.
B) Tal entendimento é largamente aceite pela jurisprudência, designadamente no Ac. do TRE de 14.09.2017, Proc. 328/16.8T8BJA-A.E1, (Paulo Amaral), no Ac. do TRL de 09.06.2010, Proc. 18434/09.3T2SNT-A.L1-4 (Ferreira Marques), no Ac. do TRP de 30.05.2018, Proc. 20692/17.0T8PRT-A.P1 (Jerónimo Freitas) e no Ac. do TRC de 27.03.2014, Proc. 1024/04.4TTLRA.C1 (Ramalho Pinto).
C) A após a alta clínica dada pelo corpo clínico da Recorrida e recusa em assumir a responsabilidade decorrente do acidente de trabalho, o Recorrente não recebeu qualquer prestação ou rendimento.
D) O Recorrente vive com a sua esposa e contam apenas com o vencimento desta que tem um rendimento mensal líquido médio na ordem dos 330,00 €.
E) O Recorrente precisa de acautelar não só a sua subsistência e do seu agregado, mas também de ter recursos suficientes para realizar um tratamento adequado da sua situação de doença.
F) Mesmo que venha a receber subsídio de doença, o montante é manifestamente insuficiente para fazer face aos acréscimos de despesas de saúde.
G) Além das despesas habituais com renda de casa, electricidade, água, alimentação, vestuário, telemóvel, o Recorrente necessita de tratamento médico adequado e urgente, o que inclui a realização de consultas em médicos especialistas, exames complementares, fisioterapia prolongada, compra de medicamentos e, possivelmente, intervenção cirúrgica.
H) Prevê-se que o tratamento possa demorar, pelo menos, seis meses.
I) O Recorrente não tem que ficar à espera que a Segurança Social e o Serviço Nacional de Saúde dêem uma resposta.
J) Aliás, a própria legislação em vigor prevê que o Sinistrado possa escolher o médico assistente se lhe for dada alta sem estar curado, como acontece no caso em apreço (art. 28.º, n. 2, al. d) da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.
K)  Além disso, é público e notório que o Serviço Nacional de Saúde tem tempos de espera excessivamente prolongados, agravados com a situação gerada pela COVID-19 e que manifestamente não respondem à urgência que a situação de saúde do recorrente exige.
L) Portanto, é manifesto que o Recorrente poderá recorrer ao tratamento no sector privado, por ser mais célere, adequado e por lhe dar mais garantias de sucesso em resultado das opiniões médicas que recolheu.
M) Não existe na lei outra providência que permita acautelar adequadamente a pretensão do Recorrente.
N) Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que admita liminarmente a providência cautelar de reparação provisória e ordene que seja designado dia para o julgamento onde deverá ser produzida a prova requerida pelo Recorrente.


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A requerida contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.

Recebida a apelação, pronunciou-se o Exmº PGA no sentido da revogação da decisão impugnada.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir

III. A matéria de facto a considerar é a narrada no relatório do presente acórdão.

III. As conclusões da alegação da recorrente delimitam o objecto do recurso (arts. 684º, n° 3 e 690º, nº 1 do C. P. Civil), não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Decorre do exposto que a questão que importa resolver é a de saber a presente providência devia ter sido indeferida liminarmente.

Dispõe o artigo 403º do Cód. Proc. Civil:

1 - Como dependência da ação de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, podem os lesados, bem como os titulares do direito a que se refere o n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil, requerer o arbitramento de quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano.

2 - O juiz deferirá a providência requerida, desde que se verifique uma situação de necessidade em consequência dos danos sofridos e esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo do requerido.

3 - A liquidação provisória, a imputar na liquidação definitiva do dano, será fixada equitativamente pelo tribunal.

4 - O disposto nos números anteriores é também aplicável aos casos em que a pretensão indemnizatória se funde em dano susceptível de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado.

Este procedimento nominado foi criado pelo DL nº 329/A/95, de 12.12, constando do respetivo preâmbulo que merece especial referência a instituição da inovadora providência de arbitramento de reparação provisória, ampliada em termos de abranger não apenas os casos em que se trata de reparar provisoriamente o dano decorrente de morte ou lesão corporal como também aqueles em que a pretensão indemnizatória se funde em dano susceptível de por seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado.

O legislador deste modo pretendeu conceder a tutela antecipatória através da presente providência cautelar às situações em que estando em causa um direito de indemnização do lesado estivesse ele numa situação de carência, sem portanto fazer qualquer distinção entre responsabilidade civil contratual ou extracontratual, a natureza ou origem do acto ilícito.

O dano causado pode ter origem em acto ilícito de qualquer natureza, contratual ou extracontratual.

Havendo morte ou lesão corporal pode ser objecto da reparação antecipada qualquer dano patrimonial; tratando-se de dano emergente de qualquer outro ilícito, só poderão ser atendidos aqui os susceptíveis de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado, ou seja, o nº 4 tem, em face do nº 1, um âmbito de previsão simultaneamente mais amplo, no que respeita ao tipo de dano causado, e mais restrito, no que respeita ao tipo de necessidade a considerar.

Para além das situações asseguradas pelo nº 1 do artº 403º, podem ainda dela beneficiar os titulares do direito de indemnização que resulte de evento ilícito extracontratual, o qual, não afectando a vida ou a integridade física do lesado, o tenha deixado em situação de grave dificuldade de prover ao seu sustento ou habitação, bem como o evento que no âmbito de relação contratual, por incumprimento ou cumprimento defeituoso tenha afectado os mesmos bens fundamentais.

Também existe o direito à reparação provisória nas situações em que o evento danoso contribuiu para o estado de carência, em concorrência com outras causas, bem como nas situações em que agravou a situação de carência pré-existente – Acórdão da Relação do Porto de 12-06-08, Processo nº 0833448, in www.dgsi.pt/trp.

A ampliação do âmbito da providência cautelar prevista no nº 4 do artº 403º não assume qualquer especialidade relativamente às situações constantes do nº 1 do mesmo artigo.

O decretamento da providência de arbitramento de uma reparação provisória previsto no artº 403º está assim dependente da verificação cumulativa de três requisitos fundamentais:

a) Existência de indícios da obrigação de indemnizar por parte do requerido;

b) Existência de uma situação de necessidade;

c) Existência de um nexo causal entre os danos sofridos e a situação de necessidade.

Como escreve Cura Mariano (in a Providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, 2003, 80) “a situação de necessidade como requisito da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória caracteriza-se por uma insuficiência atual e manifesta de rendimentos para fazer face às despesas inerentes à vivência do lesado e seus dependentes, de acordo com um padrão de vida digno, definido pelos padrões vigentes. Não se exige a verificação de um estado de indigência ou de risco de sobrevivência física, mas a insuficiência de rendimentos deve ser suficientemente séria, não bastando uma qualquer dificuldade na gestão orçamental da vida económica do lesado”.

O mesmo autor entende que aquele critério se aplica não só ao caso de indemnização fundada em morte ou lesão corporal previsto no nº 1 do artº 403º, como também ao caso a que se refere o nº 4 do mesmo preceito: o dano que ponha em causa o sustento do lesado é todo aquele que o impede de obter os rendimentos necessários à manutenção de um nível de vida digno, de acordo com os critérios da actualidade. Desse nível de vida fazem parte os elementos necessários à sustentação fisiológica do corpo, incluindo os tratamentos médicos e a higiene, o vestuário, a habitação, os transportes, a instrução, a formação profissional, o convívio com os outros, a informação, a cultura e a diversão.

Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV, p. 136, entende que “por contraposição com o nº 4, o conceito de necessidade a que se reporta o nº 2 é mais amplo”.

O nº 4 tem em face do nº 1 “um âmbito de previsão simultaneamente mais amplo no que respeita ao tipo de dano causado, e mais restrito no que respeita ao tipo de necessidade a considerar (…).  Exemplo de séria ameaça à habitação do lesado: o ruir do prédio que lhe está arrendado por defeito de construção ou por explosão de energia eléctrica ou gás” (J. Lebre de Freitas, in Cód. Proc. Civil anotado, vol. II, 2001 pág. 111).

Ao tornarem a prestação dependente da demonstração de um nexo de causalidade adequada entre o evento lesivo e a situação de carência, as normas dos nºs 1 e 4 do artº 403º contêm uma formulação restritiva, que deve ser respeitada.

O fundamento dessa formulação restritiva reside no sistema de responsabilidade civil extracontratual instituído, o qual assenta fundamentalmente na culpa (artº 483º do CC) e limita a responsabilidade aos danos que tenham sido casualmente determinados pelo evento lesivo (artº 563º do CC).

E esse fundamento é também válido para o caso previsto no nº 4 do artº 403º, pese embora este se aplique também à responsabilidade contratual e pré-contratual – como vem sendo defendido pela doutrina – porque também aqui se exige a culpa e o nexo de causalidade entre o facto gerador da responsabilidade e os danos (cfr. artºs 798º e 227º do CC).

Assim, se o lesado já se encontrava em estado de carência antes de se ter verificado o evento danoso, em princípio não teria direito a que o lesante suprima esse estado de carência.

Mas tem-se entendido que existe o direito à reparação provisória nas situações em que o evento danoso contribuiu para o estado de carência, em concorrência com outras causas, bem como nas situações em que agravou a situação de carência pré-existente.

A providência provisória destina-se a antecipar a providência definitiva e justifica-se pelo chamado periculum in mora.

Visa-se defender o presumido titular do direito contra os danos e prejuízos que lhe pode causar a demora da decisão definitiva.

Exige-se apenas um exame sumário e rápido, tendente a verificar se a pretensão do requerente tem probabilidades de êxito e se, além disso, da demora do julgamento final pode resultar, para o interessado, dano irreparável ou, pelo menos, considerável.

Por outro lado, nada obsta a que o sinistrado possa lançar mão do procedimento cautelar em causa (Cfr. Ac. RE de 14.09.2017, procº 328/16.8T8BJA-A.E1 e da RL de 09.06.2010, procº Proc. 18434/09.3T2SNT-A.L1-4) considerando que ainda não nos encontramos na fase contenciosa do processo especial por acidente de trabalho, fase na qual a lei prevê expressamente a possibilidade de arbitramento de uma indemnização provisória e bem assim o pagamento dos tratamentos aos sinistrados por parte da entidade que anteriormente os vinha a custear (artºs 121º a 125º do C.Trabalho).

Como é próprio dos procedimentos cautelares, exige-se, como se disse, apenas uma análise sumária (“summaria cognitio”), um juízo de verosimilhança sobre o direito invocado a acautelar já existente ou que possa vir a emergir de acção constitutiva, já proposta ou a propor.

No caso que nos ocupa, a ser feita prova, ainda que sumária, dos factos alegados[2] pelo requerente/sinistrado, com toda a probabilidade ficarão demonstrados, ainda que perfunctoriamente, os pressupostos que poderão levar ao decretamento da providência.

Pelo que o requerido procedimento não devia ter sido indeferido liminarmente.

Porém, o tribunal a quo, conforme resulta do excerto acima transcrito, inferiu liminarmente o providência por entender que ao sinistrado estava vedado lançar mão da presente providência para tentar obter uma indemnização que a Segurança Social lhe garante através dos seus mecanismos de reparação previdencial, garantindo-lhe, através do Serviço Nacional de Saúde, o tratamento adequado, até ser definida a entidade responsável na reparação.

É verdade que no âmbito material do sistema previdencial português se incluem os acidentes de trabalho, com vista a garantir aos sinistrados laborais prestações substitutivas de rendimento do trabalho perdido (artºs 50º, 51º e 52º, nº 1, al. d) da Lei 4/2007, de 16/01)[3].

Mas isto não quer dizer que esteja vedado ao sinistrado o direito de reclamar a reparação infortunística de outros responsáveis, sejam eles o empregador ou a seguradora para onde aquele transferiu a responsabilidade pela reparação.

O que o sinistrado não pode é ser reparado duplamente, ou seja, receber duas quantias para reparação de danos emergentes do mesmo facto[4].

Daí que a lei atribua à Segurança Social o direito de pedir às entidades responsáveis pela reparação no domínio dos acidentes de trabalho o reembolso das quantias que tenha pago ao sinistrado no âmbito daquele domínio devendo, inclusivamente, a S.S. ser citada em todas as acções cíveis em que seja formulado pedido de indemnização de perdas e danos por acidente de trabalho para deduzir pedido de reembolso de montantes que tenha pago (DL nº 59/89, de 22/02).

Assim, se a SS vier a pagar ao sinistrado qualquer quantia em consequência do evento infortunístico, sempre poderá pedir o seu reembolso da entidade que vier a ser declarada responsável pela reparação.

Tudo isto para dizer que inexiste fundamento para que o presente procedimento cautelar fosse, como o foi, indeferido liminarmente.

IV- Pelos fundamentos expostos delibera-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão impugnada, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

Custas pela parte vencida a final.


Coimbra, 19 de Março de 2021

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Jorge Manuel da silva Loureiro)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)



***



[1] Negrito nosso.
[2] Designadamente: . No passado dia 14.07.2020 o Requerente sofreu um acidente de trabalho (…) 4º. O acidente deu-se da seguinte forma: ao deslocar-se pisou uma das caleiras de metal que havia local da obra, e que estava molhada, escorregou e caiu embatendo na mesma com alguma violência, embatendo com o braço/cotovelo esquerdo e a perna direita (anca). 8º. O Autor constatou que o referido acidente o tinha deixado totalmente incapacitado para continuar a trabalhar devido às dores intensas no braço/cotovelo e na perna/anca, que não eram sequer aliviadas com a toma de medicamentos. 12º. Porém, por carta de 12.11.2020, a Requerida disse que não poderia (continuar a) assumir qualquer responsabilidade pelo tratamento por considerar que não havia nexo causal (Doc. 5). 14º. As lesões sofridas pelo Requerente resultam do referido sinistro e, como tal, não há como negar o nexo de causalidade. 15º. Em resultado do sinistro e das lesões sofridas o Requerente está impossibilidade de trabalhar. 16º. Com a alta médica indicada pelo corpo clínico da Ré, o Requerente deixa de ter direito a qualquer prestação. 17º. Além do seu vencimento, o Requerente conta apenas com o vencimento da sua esposa que tem um rendimento mensal líquido médio na ordem dos 330,00 € Doc. 7). 18º. Além das despesas habituais com renda de casa, electricidade, água, alimentação, vestuário, telemóvel, o Requerente necessita de tratamento médico adequado e urgente, o que inclui a realização de consultas em médicos especialistas, exames complementares, fisioterapia prolongada, compra de medicamentos e, possivelmente, intervenção cirúrgica. 19º. Prevê-se que o tratamento possa demorar, pelo menos, seis meses. 20º. Mesmo com o seu rendimento mensal habitual (na ordem dos € 1.200,00 líquidos – Doc. 1) o Requerente não teria (não tem) condições financeiras para fazer face a todas as despesas de saúde que resultam do referido sinistro. 21º. Consequentemente, o Requerente precisa que lhe seja arbitrada, provisoriamente, uma quantia mensal de, pelo menos, € 2.000,00 (dois mil euros) pelo período de seis meses.
[3] Bases Gerais da Segurança Social.

[4] Lei 4/2007 de 16/01 (Bases Gerais do Sistema de Segurança Social)

Artigo 67.ºAcumulação de prestações

1 - Salvo disposição legal em contrário, não são cumuláveis entre si as prestações emergentes do mesmo facto, desde que respeitantes ao mesmo interesse protegido.
Artigo 70.ºResponsabilidade civil de terceiros
No caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder.