Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
476/03.4TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: DESCRIMINALIZAÇÃO
DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
Data do Acordão: 05/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 220º, Nº1, ALC) DO CP E 311º,338ºE 368º DO DO CPP.
Sumário: 1.Discutindo-se na jurisprudência se determinada conduta constitui crime ou contra ordenação, tendo sido proferido despacho a designar data para julgamento pela prática de crime e posteriormente o arguido declarado contumaz, não pode depois o juiz, por simples despacho, ordenar o arquivamento dos autos com o fundamento de que a conduta está descriminalizada.
Decisão Texto Integral: - 21 -

Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


No processo supra identificado foi proferido despacho em que se declarou cessada a contumácia e determinou o arquivamento dos autos com base no entendimento de que a conduta do arguido D. que vinha acusado da prática de um crime de burla para obtenção de serviços, previsto e punido pelo artº 220º, nº 1, alínea c., do Código Penal, se encontra actualmente despenalizada.
Inconformado com o decidido, o MP interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
1ª. Não se pode concordar, com o teor da decisão proferida pelo M.mo Juiz, a qual, em nosso sentir, é passível de reparo negativo pois que a conduta do arguido é uma conduta criminal e como tal terá de ser havida;
2ª As condutas contra-ordenacionais não merecem o mesmo valor ético jurídico das condutas criminais;
3ª A conduta em apreço nos autos cai no campo criminal e não no campo contra-ordenacional.
4ª São diferentes os campos de aplicação das condutas contra-ordenacionais e criminais.
5ª Mantém-se em vigor a previsão contida no artº 220° n° l-c) do CPenal de 1995, que não foi alterada com a revisão de 2007;
6ª A decisão ora em apreço violou as disposições dos artºs 220° nº l-c) do CPenal, os art°s 7°, 14° e 15° do Decreto-Lei 28/2006, os art°s 1 ° e 2° do Decreto Lei 433/82, de 27-10 e o art° 3° nº 2-b) do Decreto-Lei 108/78, de 24-5.
Termos em que,
Deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, e ser revogada a decisão ora em recurso e substituída por outra que mantenha a situação de contumácia do arguido nos presentes autos, prosseguindo estes os seus legais trâmites, como é de Justiça e Direito
Não houve resposta.
O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.
Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.
No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal não houve resposta.
Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.
Cumpre conhecer do recurso
Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.
É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).
Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.
Questões a decidir: descriminalização do artº 220º, nº 1, alínea c., do Código Penal na parte referente a transporte ferroviário
Com interesse para a decisão, há que ter em conta o seguinte:
1) Em 16 de Dezembro de 2003 o Ministério Público deduziu contra o arguido D a acusação que se passa a transcrever:
“No dia 25 de Março de 2003, o arguido foi encontrado a viajar no comboio n.º 515, na linha da Beira do Norte, procedente de Lisboa, Santa Apolónia, com destino à Guarda.
Para o efeito, o arguido não adquiriu na bilheteira o respectivo bilhete ou título de transporte, porquanto era sua intenção não pagar o preço daquela viagem.
O revisor do comboio exigiu ao arguido o pagamento do preço do bilhete correspondente à viagem, no valor de € 52,00. Porém, o arguido não o efectuou o pagamento daquela quantia, tendo afirmado não ter dinheiro para o fazer.
Por essa razão, foi o arguido notificado de que tinha o prazo de oito dias para proceder ao pagamento do preço de bilhete, sob pena de ficar sujeito ao pagamento do décuplo daquela importância - € 520,00.
O arguido não pagou aquela quantia no prazo legal, nem fez até hoje, pelo que, até á presente data o dito pagamento do preço da viagem se encontra por realizar.
Ao actuar da forma descrita, agiu o arguido de forma voluntária, livre e consciente, com intenção de não pagar o preço da referida viagem, bem sabendo que a mesma implicava o pagamento do preço do respectivo bilhete e que, deste modo, causava um prejuízo à denunciante.
Não ignorava que a sua conduta era ilícita e punível.
Desta forma, cometeu o arguido, em autoria material, um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. no art. 220°, nº 1, al. c) do C. Penal, revisto pelo D.L. 48/95, de 15/3.”
2) Em 26 de Fevereiro de 2004 foi proferido despacho designando data para julgamento
3) Em 9 de Julho de 2004 foi o arguido declarado contumaz
4) Em 26 de Janeiro de 2010 foi proferido o despacho sob recurso e que passamos a transcrever:
Encontra-se o arguido D acusado da prática no dia 25 de Março de 2003, em autoria material e na forma consumada de um crime de burla para obtenção de serviços, previsto e punido pelo artigo 220º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal, tudo ns termos da acusação deduzida a fls. 43 e 44, que aqui se dá como pressuposta.
Foi o mesmo arguido entretanto declarado contumaz por não se ter revelado possível notificá-lo da data designada para julgamento, situação essa que presentemente se mantém.
Ora, é nosso entendimento que a infracção em causa se encontra hoje descriminalizada desde data posterior aos factos pelos motivos que passamos a expender em seguida, podendo esta figura ser apreciada e decidida a qualquer momento do procedimento, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2º, n.º 2, do Cód. Penal.
Com efeito, nos termos daquele referido artigo 220º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal, na parte que nos interessa, “Quem, com intenção de não pagar, utilizar meio de transporte (...) sabendo que tal supõe o pagamento de um preço e se negar a solver a dívida contraída é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.”.
Conforme resulta, muito sucintamente, do que escreve Almeida Costa (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, tomo II, págs. 275 e seguintes e 322 e seguintes), o bem jurídico aqui protegido consiste no património globalmente considerado, tratando-se de um crime de dano, que apenas se consuma com a produção de um resultado, que consiste no prejuízo efectivo (ou empobrecimento) no património do ofendido, e não necessariamente no enriquecimento no agente do crime. Em termos muito genéricos, o tipo objectivo preenche-se com a utilização pelo agente de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa em erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. A nível subjectivo, trata-se de um crime meramente doloso, uma vez que não se encontra prevista a punibilidade a título de negligência.
Revertendo ao caso concreto, recorde-se que se encontra alegado na acusação, em termos gerais, que o arguido, de forma voluntária e consciente, acedeu a transporte colectivo (comboio) sem ser detentor de bilhete que lhe permitisse envidar tal viagem, sabendo que tal supunha o pagamento de um preço, agindo com intenção de não pagar o mesmo e, apesar de instado para o efeito, recusou-se ainda assim, a pagar o devido, assim como não o fez posteriormente. Pareceriam assim de forma fácil e simples integrados todos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito penal em apreço.
No entanto, a questão assume contornos mais complexos quando se confronta a disposição de índole penal referida com o regime constante do Decreto-Lei n.º 108/1978, de 24 de Maio, em vigor à data da prática dos factos (ainda que já não na actualidade, conforme mais adiante se analisará). De facto tal diploma legal, ainda que anterior ao Código Penal de 1982, visou estabelecer normas relativas ao sistema de cobrança nos transportes colectivos de passageiros, de forma a garantir, entre o mais, o respeito da obrigação legal de pagar o preço do transporte, estabelecendo o sancionamento com o pagamento de multas (cfr. o respectivo preâmbulo).
Com efeito, estabelecia o respectivo artigo 2º, n.º 1, que “A utilização de transportes colectivos de passageiros só pode ser feita por quem tenha um título de transporte válido”, rezando o subsequente artigo 3º que quem infringisse tal disposição ficaria sujeito ao pagamento do preço do bilhete, acrescido de multa, em montantes aí definidos. Com interesse, refira-se ainda que o artigo 5º, n.º 1, do mesmo Decreto-Lei n.º 108/1978 estabelecia que “A multa e o preço de transporte poderão ser pagos ao agente autuante ou, no prazo de dez dias, nos escritórios da empresa transportadora”, completando o n.º 2 no sentido de que “O pagamento voluntário só pode ser feito se simultaneamente for liquidada a multa e o preço do bilhete”, e o n.º 5 quando reza que “Findo o prazo a que se refere o n.º 1 e sem que o pagamento tenha sido efectuado, será o original do auto enviado ao Tribunal da Comarca do lugar da infracção”.
Tem sido longa a controvérsia jurisprudencial acerca da compatibilização entre os preceitos legais acabados de referir e a acima aludida incriminação. Desde logo, houve quem defendesse que o Decreto-Lei n.º 108/78 teria sido pura e simplesmente revogado de forma tácita pelo Cód. Penal ou pelo Decreto-Lei n.º 400/82 [vide Acórdãos, da Relação de Coimbra, de 20-4-88, de 11-5-88 e de 6-10-88 (Colectânea de Jurisprudência, ano XIII, tomo II, pág. 96 e segs., tomo III, pág. 98 e segs. e tomo IV, pág. 92 e segs., respectivamente), e, da Relação de Lisboa, de 20-5-87 (sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 367, pág. 562)].
Esta concepção mostra-se, no entanto, ultrapassada por jurisprudência mais recente, afirmando-se que o aludido Decreto-Lei n.º 108/78 não se mostrou expressamente revogado pelo Cód. Penal de 1982 nem muito menos pelo na altura novo regime contra-ordenacional estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 433/1982, de 27 de Outubro, cujo artigo 6º, n.º 1, de forma explícita deixa intocadas todas as normas relativas a contravenções que punam factos incriminados pelo Cód. Penal.
Por outro lado, afirma-se que as formulações legais do Cód. Penal e do Decreto-Lei n.º 108/78 são claramente diversas, incluindo até esta última a punibilidade a título negligente, enquanto que a incriminação não o faz. Como ensina Cavaleiro de Ferreira, trata-se de normas com “relações de interferência propriamente dita, pois o conteúdo de uma coincide parcialmente com o conteúdo da outra, mas o que as une diz respeito a factos perfeitamente lícitos, como sejam a utilização de um meio de transporte e o conhecimento de que tal supõe o pagamento de um preço” (neste sentido, veja-se, por todos, o Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Abril de 2004, relatado por Clemente Lima e disponível em www.dgsi.pt, ou Acórdão da Relação de Évora de 11 de Abril de 2000, in CJ, tomo II, pág. 287).
É assim na sequência do que acabamos de dizer e da própria formulação legal do Decreto-Lei n.º 108/78, que consideramos mais avisada a tese segundo a qual haverá contravenção (nos termos deste último Decreto-Lei) nos casos de negligência e crime de burla nos casos de dolo, entendendo-se o Cód. Penal e o Decreto-Lei n.º 433/82, se 27 de Outubro, como tendo mantido em vigor o ilícito contravencional apenas sob a sua forma negligente [neste sentido, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-10-87 (BMJ n.º 370, pp. 312 e segs.), o Acórdão da Relação de Coimbra, de 15-2-89 (CJ ano XIV, tomo I, pp. 77 e segs.), e ainda o da Relação de Lisboa, de 26-11-86 (CJ ano XI, tomo V, pp. 166 e segs.)].
Com efeito, entendemos que, para que se encontre preenchido o tipo de crime é necessário que o agente tenha a intenção de não pagar, que utilize o meio de transporte sem título válido, que saiba que tal supõe o pagamento de um preço e que se recuse a solver a dívida contraída. Diferentemente, para que fique preenchida a hipótese legal contravencional do Decreto-Lei n.º 108/1978, basta tão-só que o agente utilize o meio de transporte sem título válido sabendo que tal exige o pagamento de um preço. Estão assim incluídas no tipo contravencional condutas meramente negligentes (por exemplo o agente esquecer-se de obter ou validar o título), condutas estas que se encontram fora do ilícito criminal por não se encontrar expressamente prevista a punibilidade do crime a título negligente, nos termos gerais do artigo 13º do Cód. Penal.
Com efeito, é também isto que resulta do regime legal do Decreto-Lei n.º 108/1978, na medida em que, basta a mera constatação de que o agente viaja sem título válido para que seja imediatamente autuada a contravenção, nos termos do disposto no respectivo artigo 3º, sendo desnecessário sequer apurar dos restantes requisitos a que acima aludiu quanto à infracção penal, designadamente que o agente tenha a intenção de não pagar e que (simultânea ou posteriormente) se recuse a solver a dívida contraída.
Contra o que se acaba de dizer escreve-se no já referido Acórdão da Relação do Porto de 21 de Abril de 2004, relatado por Clemente Lima, que “Importa, ademais, afastar a tese de que, no caso de negligência, se está perante a contravenção e, no caso de dolo, se estará perante o crime de burla. É que, sendo certo que nunca há crime nos casos de mera negligência, tem de reconhecer-se que há casos dolosos que não configuram a burla. Basta imaginar a hipótese de o agente utilizar o transporte público sabendo que não dispõe de título válido habilitante mas que, uma vez descoberto pelo fiscal da transportadora, se dispõe a pagar a dívida contraída – existirá a contravenção, mas não o crime, já que este supõe que o agente se recuse a solver a dívida contraída.”.
Ora, assim não entendemos. O dolo é usualmente entendido como o conhecimento e vontade de preenchimento da conduta típica, sendo que no exemplo descrito, o agente, por sua vontade, acede ao transporte sem se munir de título válido, com intenção de não pagar e bem sabendo que era obrigado a fazê-lo, apenas não se tendo recusado ao pagamento posterior por ter sido surpreendido por agente de fiscalização. Em tais casos é manifesta a presença do dolo. O que não se verifica é a consumação do crime por inexistência de recusa ao pagamento posterior, sendo certo que tal recusa (ou omissão de pagamento) sempre se verificaria caso o agente não houvesse sido detectado. A não consumação ocorre por facto exterior independente da vontade do agente (o facto de ter sido detectado por agente fiscalizador), pelo que se trataria de um caso de tentativa de burla para obtenção de serviços, sendo certo que, reitere-se, esta figura não faz sequer sentido sem que se verifique o dolo.
Finalmente, defende-se ainda a coexistência entre a contravenção e o crime em apreço, na medida em que ambas visam proteger interesses diversos: a primeira visa proteger o bom funcionamento e a credibilidade dos transportes públicos, enquanto que a segunda visa proteger o património da empresa lesada, incorrendo na prática do crime e também da contravenção aquele cuja actuação integrar o âmbito de qualquer das (simultâneas) normas. Neste ponto acompanhamos já o aludido Acórdão da Relação do Porto de 21 de Abril de 2004, no que é secundado pelo Acórdão da mesma Relação de 20 de Junho de 1990 (CJ, ano XV, tomo III, pág. 248).
É no enquadramento legal que se acaba de aduzir que, de acordo com o ordenamento jurídico vigente à data da prática dos factos, entendemos que o arguido deveria ser, no caso concreto e à luz do que acima já se disse quanto à matéria provada, punido a título de crime, não obstante a co-existente contravenção.
No entanto, e como supra já resultou ventilado, o Decreto-Lei n.º 108/78 foi entretanto integralmente revogado pela Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho, a qual entrou em vigor no passado dia 4 de Novembro de 2006. É à luz deste novo diploma que entendemos que todo regime legal terá de ser reequacionando, em homenagem ao princípio geral de direito penal segundo o qual, em caso de sucessão de leis no tempo, será sempre aplicável a lei que em concreto se revelar mais favorável ao arguido, ainda que retroactivamente, tudo conforme se estabelece no artigo 2º do Cód. Penal e no artigo 29º, n.º 4, da Constituição da República. Será particularmente premente procurar-se conjugar o disposto nesta nova lei com a intocada norma penal que acima se analisou.
Assim sendo, reza o artigo 1º desta Lei n.º 28/2006 que “A presente lei estabelece as condições de utilização do título de transporte válido nos transportes colectivos, as regras de fiscalização do seu cumprimento e as sanções aplicáveis aos utilizadores em caso de infracção.” (sublinhado nosso). Da análise desta disposição legal é desde logo possível intuir-se uma pretensão de regulamentação globalizante desta temática, tendo-se como se disse, através do respectivo artigo 15º revogado na íntegra o Decreto-Lei n.º 108/78 e ainda o n.º 1 do artigo 43º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39780/1954, de 21 de Agosto, cujo conteúdo era semelhante, mas aplicável no âmbito dos caminhos-de-ferro, com regulamentação expressamente diferenciada do pretérito Decreto-Lei n.º 108/78.
No mais, estatui-se da mesma forma que é obrigatória a detenção de título de transporte válido (cfr. artigo 2º, n.º 1), sendo a violação desta norma agora sancionada, em termos gerais, nos termos do artigo 7º, n.º 1, nos moldes seguintes: “A falta de título de transporte válido, a exibição de título de transporte inválido ou a recusa da sua exibição na utilização do sistema de transporte colectivo de passageiros, em comboios, autocarros, troleicarros, carros eléctricos, transportes fluviais, ferroviários, metropolitano e metro ligeiro, é punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menor valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante, com o respeito pelos limites máximos previstos no artigo 17º do regime geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, constante do Decreto-Lei n.º 433/1982, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/1989, de 17 de Outubro, Decreto-Lei n.º 244/1995, de 14 de Setembro, e Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, e sem prejuízo do disposto no n.º 3 do presente artigo.” (sublinhados nossos).
Dos termos desta disposição legal é desde logo de realçar o sancionamento com coima (e já não com multa), a declaração marcada no sentido de que a infracção “é punida” como tal, e a referência expressa ao regime do ilícito de mera ordenação social previsto no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que, aliás, é inclusivamente estabelecido como regime legal subsidiário, nos termos do subsequente artigo 12º. Do que se vem dizendo até agora fica assim definitivamente afastado, pelo menos, o sancionamento a título de contravenção.
Prosseguindo na nossa análise, temos que se mantém a possibilidade de pagamento voluntário da coima, quer logo perante o agente de fiscalização, quer num posterior prazo de cinco dias úteis (cfr. artigo 9º, n.º 1). No entanto, caso o agente não use desta faculdade, verifica-se aqui uma diferença de monta face ao anterior regime constante do Decreto-Lei n.º 108/78: estabelece agora o subsequente n.º 2 que, nestes casos, “a empresa exploradora do serviço de transporte em questão envia o auto de notícia à entidade competente, que instaura, no âmbito da competência prevista na presente lei, o correspondente processo de contra-ordenação e notifica o arguido, juntando à notificação duplicado do auto de notícia.”. Diferentemente, nos termos do pretérito Decreto-Lei n.º 108/78 (artigo 5º, n.º 5), “Findo o prazo a que se refere o n.º 1 (prazo de pagamento voluntário) e sem que o pagamento tenha sido efectuado, será o original do auto enviado ao Tribunal da Comarca do lugar da infracção”.
A diferença é relevante na medida em que, agora de forma totalmente invalidada, se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 18 de Novembro de 2004, relatado por Francisco Caramelo, e no Acórdão da Relação do Porto de 22 de Janeiro de 2004, relatado por Almeida Cabral, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, que a remessa do auto para o tribunal nos termos do artigo 5º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 108/78 só se entenderia como sendo-o para efeitos de procedimento criminal, também como forma de não resultar esvaziada a norma do artigo 220º, n.º 1, al. c) do Cód. Penal.
Assim, como se viu, em caso algum há na actualidade remessa do auto para o tribunal nesta fase, mas sim para a entidade competente para o subsequente processo contra-ordenacional, que é, nos termos do artigo 10º da Lei n.º 28/2006, e conforme os casos, a Direcção-Geral dos Transportes Terrestres e Fluviais ou o Instituto Nacional do Transporte Ferroviário.
Prosseguindo, estabelece a nova lei em sujeito, no respectivo artigo 14º um regime transitório que, digamo-lo desde já, não deixa de poder suscitar alguma estranheza face à vasta pendência de processos da natureza criminal como o presente por factos constantes de tal nova lei: é que de parte nenhuma de tal regime transitório se faz referência a tais processos criminais, parecendo que o legislador ou ignora ou afasta a existência dos mesmos. Com efeito, estabelece o n.º 1 que “As contravenções e transgressões praticadas antes da data da entrada em vigor da presente lei são sancionadas como contra-ordenações, sem prejuízo da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis.”. Por seu turno, reza o n.º 2 que “Os processos por factos praticados antes da data da entrada em vigor da presente lei pendentes em tribunal nessa data continuam a correr os seus termos perante os tribunais em que se encontrem, sendo-lhes aplicável, até ao trânsito em julgado da decisão que lhes ponha termo, a legislação processual relativa às contravenções e transgressões.”. Mesmo neste último caso parece mais uma vez que tais processos serão apenas relativos a contravenções ou transgressões, uma vez que “continuam” nos mesmos moldes até final.
Ora, afastando, por irrazoável, o “esquecimento” ou “ignorância” do legislador (e presumindo que o mesmo consagra sempre as soluções mais acertadas e se sabe exprimir adequadamente, nos termos do artigo 9º, n.º 3, do Cód. Civil), tal regime transitório pode perfeitamente ser entendido como uma forma de se vislumbrar uma espécie de expressão de vontade manifestada agora pelo legislador no sentido de que as infracções que aqui se encontram em causa deveriam sempre ter sido entendidas como ilícito contravencional, e não como ilícito criminal.
Acresce ainda que, por outro lado, perdeu totalmente força a tese que perfilhávamos no sentido de que coexistiria o ilícito contravencional para os casos de negligência e o criminal para os casos de dolo. É que, pretendendo agora, com lei nova e posterior ao Código Penal, estabelecer-se a falta de porte de título válido como contra-ordenação, e extraindo todas as consequências de se trazer à liça, como direito subsidiário, todo o regime do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, estabelece então o correspondente artigo 8º, n.º 1, que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”. No caso vertente, a infracção por negligência encontra-se prevista (cfr. artigo 7º, n.º 6 da nova lei), mas o que é facto é que o regime regra de punibilidade continua a ser a título de dolo (tanto mais que a referência expressa à punibilidade negligente foi considerada, e bem, como necessária), sendo certo que desta feita não se pode considerar que os casos em que tal dolo se verifica são afastados pelo Código Penal, uma vez que a nova lei em sujeito lhe é posterior.
De referir ainda que mesmo o argumento segundo o qual persistiria em simultâneo o ilícito contravencional como forma de proteger o bom funcionamento e a credibilidade dos transportes públicos colectivos, e o ilícito criminal como forma de proteger o património da empresa transportadora perdeu acutilância. Na verdade, já não se torna premente a protecção do património da empresa transportadora a título criminal, uma vez que, nos termos do artigo 11º da nova lei, uma percentagem do produto das coimas aplicadas reverte sempre a favor de tal empresa, enquanto que nos termos do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 108/78 a multa constituía invariavelmente receita do Estado.
Assim, da análise do novo diploma legal que se vem empreendendo, é já por demais evidente que propendemos para considerar que os factos em apreço nestes autos se encontram actualmente punidos exclusivamente como ilícito contra-ordenacional, atenta a forma esgotante como o legislador pretendeu agora regular a situação. Particularmente impressivo é, no nosso entender, e como se disse, a remessa do auto para entidade administrativa mesmo após a falta de pagamento voluntário, e a consequente intervenção de todo o arsenal normativo do Decreto-Lei n.º 433/82, mesmo, caso seja necessário, para eventual execução do valor coima por parte do Ministério Público. Tal novo regime obedece também, e além do mais, ao propósito actual e confessado do legislador em proceder por este meio à progressiva abolição do ilícito contravencional e transgressional.
Contra o que se acaba de defender não se diga que desta forma fica o artigo 220º, n.º 1, al. c) do Cód. Penal esvaziado de conteúdo na parte em que se refere a “transporte” sem que tal tenha sido expressamente revogado. É que o mesmo subsiste claramente para os casos em que se encontre em causa meio de transporte que não caiba no âmbito da Lei n.º 28/2006, designadamente por não se revestir da qualidade de transporte colectivo de passageiros, como é exemplo óbvio o táxi.
Com efeito, pelo menos para este caso manterá plena aplicabilidade a sanção penal, o que faz, aliás, todo o sentido. É manifesta a claramente maior danosidade social nestes casos, uma vez que tal meio de transporte se desloca e procede à viagem por único e exclusivo interesse do agente da infracção, que não tem intenção de pagar pelo serviço que lhe é prestado e se recusa a fazê-lo, sendo certo que neste caso, o prejuízo do transportador corresponde à totalidade dos custos em que incorreu com a deslocação.
Ora, bem diferente é a situação do utilizador não pagador de transporte colectivo, que apenas pretende “passar despercebido” entre os restantes utilizadores, sendo também certo que a empresa transportadora sempre procederia à viagem mesmo que o agente não acedesse ao veículo em causa.
Por seu turno, o prejuízo da referida empresa neste caso encontra-se muito longe de corresponder ao custo total da deslocação, dado que equivale apenas, pelo menos em regra, ao singelo preço do bilhete em falta.
Aqui chegados, entendendo como entendemos, que os factos constantes da acusação consubstanciavam crime na data da sua prática, mas que actualmente, face a lei entretanto vigente, apenas consubstanciam a prática de uma contra-ordenação, despiciendo se torna averiguar qual o regime que em concreto se revela mais favorável ao arguido por ser obviamente o contraordenacional, face à diferente natureza da própria sanção abstractamente aplicável, que de pena de multa ou de prisão passa a mera coima.
Face a tudo quanto vem exposto, resta ainda então determinar-se a forma como poderia ser ou não sancionado o arguido, tendo em conta a verificação de uma sucessão de leis que determinou, como vimos, a conversão, no nosso entendimento, de um crime em contra-ordenação. A este respeito, e referindo-se à eficácia temporal da lei contra-ordenacional nova face a antiga lei penal, escreve Taipa de Carvalho (“Sucessão de Leis Penais”, Coimbra Editora, Coimbra, 1990, págs. 90 e 91) que “o princípio geral é o de que a lei que «cria» contra-ordenações só se aplica aos factos praticados
depois da sua entrada em vigor (Dec.-Lei n.º 433/82, art. 3º, n.º 1 – eficácia pós-activa). Todavia, não está constitucionalmente consagrada – pelo menos de forma expressa – a proibição da retroactividade da lei sobre contra-ordenações.
Assim, se a lei que altera a qualificação do facto de crime (ou de contravenção) para contra-ordenação não estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do seu início de vigência, tais acções que, necessária e constitucionalmente, são despenalizadas, também não podem ser julgadas como ilícitos de mera ordenação social. Tornam-se, portanto, juridicamente irrelevantes. (...)
Se, pelo contrário, a lei que converte a infracção penal em contra-ordenação estabelecer, por disposição transitória, a sua eficácia retroactiva, no sentido de tornar extensivo o seu regime e as coimas respectivas aos factos praticados na vigência da lei antiga (evitando, assim, a impunidade total dos factos ainda não julgados), podem não levantar-se, mas também poderão surgir problemas de constitucionalidade da norma transitória.”
Do trecho que nos permitimos citar extrai-se então a ideia fundamental de que, ou a lei nova estabelece norma transitória que defina a forma de punição dos factos praticados antes da sua entrada em vigor, e então será tal norma aplicável, ressalvados problemas de eventual inconstitucionalidade que aqui não vêm ao caso, ou então não existe qualquer norma transitória, e os factos anteriores à entrada em vigor da nova lei ficam impunes.
Revertendo ao nosso caso concreto, e conforme se adiantou já acima, a nova Lei n.º 28/2006 dispõe de uma norma transitória no seu artigo 14º. A questão é que, conforme já igualmente se disse, tal norma não contempla os casos de crime praticado antes da sua entrada em vigor, mas apenas de contravenções ou transgressões. Com efeito, estabelece o respectivo n.º 1 que “As contravenções e transgressões praticadas antes da data da entrada em vigor da presente lei são sancionadas como contra-ordenações, sem prejuízo da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis.” (sublinhado nosso). Os restantes números da mesma disposição legal em nada relevam para o caso, designadamente o n.º 2, que apenas se refere a “legislação processual”, e igualmente parecendo abarcar apenas os casos contravencionais ou transgressionais, na medida em que “continuam a correr os seus termos”.
Assim sendo, apesar de formalmente existir um “regime transitório”, a hipótese do nosso caso concreto não se encontra aí prevista, pelo que, em conformidade com o entendimento acima vertido, defendido pelo autor Taipa de Carvalho, e o qual subscrevemos, as condutas do arguido nestes autos terão de passar neste momento a considerar-se juridicamente irrelevantes, e consequentemente a ficar impunes.
Contra o que se acaba de dizer não se afirme que, se o regime transitório aludido determina a punição de antigas contravenções e transgressões agora como contra-ordenações, por maioria de razão assim deverão ser punidos os crimes. Tal não entendemos, uma vez que semelhante solução traduzir-se-ia numa aplicação analógica in malam partem de lei sancionatória, que é vedada pelo disposto no artigo 1º, n.º 3, do Cód. Penal.
Aqui chegados, por todo o exposto, como acima já se foi adiantando, entendemos que se encontra actualmente descriminalizado o crime pelo qual o arguido se encontra acusado nestes autos, o que determina a nosso ver a imediata cessação da respectiva contumácia e o consequente e oportuno arquivamento dos mesmos autos, o que se decide.”
_______
Apreciando:
O despacho recorrido recupera a velha questão de se saber se o comportamento do arguido (viajou de comboio sem que tivesse adquirido previamente o respectivo título de transporte e não só não o pagou quando foi detectado, como também não o fez dentro do prazo que lhe foi concedido nem posteriormente) constitui contra-ordenação ou crime de burla para obtenção de serviços.
No entanto, a jusante desta questão há uma outra cuja resolução é essencial.
Referimo-nos ao momento em que o despacho recorrido foi proferido: depois do saneamento do processo (art.º 311º do Código de Processo Penal[ Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem]) e antes da audiência de julgamento.
Da leitura do Código de Processo Penal parece resultar que os momentos apropriados para conhecer de questões que obstem à apreciação do mérito da causa são os indicados nos artºs 311º, 338º e 368º.
No entanto, e uma vez que o nosso Código de Processo Penal não tem disposição expressa a permitir ou proibir esse conhecimento, razões de economia e celeridade processual abrem a possibilidade de, em casos de desnecessária constrição de direitos fundamentais, conhecer em momentos diversos dos apontados de questões anteriormente imprevisíveis, nomeadamente daquelas cuja decisão vai no sentido de impedir o prolongar de um processo inviável.
Entre essas questões está naturalmente a descriminalização da conduta que seria submetida a julgamento.
Temos assim que neste campo e em princípio, nada haveria a apontar à decisão recorrida.
Contudo, no caso dos autos não estamos perante um processo inviável, no sentido de que não poderia ser outra a solução jurídica.
Com efeito, como acima dissemos, desde há muito que a questão da criminilização/descriminalização de condutas como a dos autos, vem sendo discutida.
Tão antiga é a querela e tantas foram as decisões antagónicas proferidas, que nos dispensamos de citar exemplos.
A lei vem sendo alterada sucessivamente, mas a discussão mantém-se, sem que o legislador tome posição inequívoca.
Aliás, o despacho recorrido evidencia esta evolução e faz uma súmula esclarecedora das diversas posições jurisprudenciais.
No entanto, embora se possa reconhecer que os fundamentos apresentados merecem uma séria reflexão, o certo é que a posição nele assumida não é pacífica, tanto mais que a jurisprudência a que tivemos acesso e que está publicada é quase unânime no sentido de que a Lei nº 28/2006, de 4 de Julho, não revogou o artº 220º, nº 1, alínea c), na parte respeitante a meio de transporte.
Vejam-se, neste sentido, os Acórdãos da Relação do Porto de 23 de Maio de 2007, de 13 de Junho de 2007, de 27 de Junho de 2007, de 4 de Julho de 2007, de 26 de Setembro de 2007, de 24 de Outubro de 2007 e de 12 de Dezembro de 2007 (este com voto de vencido).
Em sentido contrário, ou seja, no sentido de que o artº 220º, nº 1, alínea c) foi revogado pela Lei nº 28/2006, de 4 de Julho na parte respeitante a meio de transporte, apenas encontrámos Ac. TRLisboa de 30 de Janeiro de 2008 (apenas sumário).
Como se vê, a solução é tudo menos pacífica.
Ora, se a jurisprudência se divide dada a falta de clareza da lei, temos para nós que não se verifica o pressuposto consistente em decidir sobre questão que obste à apreciação do mérito da causa para impedir o prolongar de um processo inviável.
O M.mo Juiz optou por uma solução jurídica, quando uma outra também é possível.
Interessa ainda dizer o seguinte:
Da leitura do nº 2, do artº 14º, da Lei nº 28/2006, de 4 de Julho não resulta claro que, como é dito no despacho sob recurso, o legislador não se esteja a referir a crimes.
Parece-nos até que não exclui ilícitos criminais, pelo que, ainda que o entendimento fosse no sentido de que a situação dos autos constituiria actualmente uma contra-ordenação, o regime transitório instituído pela norma supra referida, sempre imporia que o despacho visasse concretizar esse mesmo regime.
De qualquer maneira, não podia ser neste momento proferido despacho determinando o arquivamento dos autos.
Nesta conformidade, acorda-se em julgar procedente o recurso e consequentemente, revogando-se o despacho recorrido, determina-se que seja proferido um novo onde se determine o prosseguimento dos autos.
Sem tributação.
Coimbra,