Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
139/09.7TBACN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PRESTAÇÃO SOCIAL
PRESSUPOSTOS
ACÇÃO
ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: INUTILIDADE/IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Legislação Nacional: LEI Nº 23/2010, DE 30/08
Sumário: I – A Lei 23/2010, de 30/08 (Regime Legal da Protecção da União de Facto), é de aplicação imediata e aos processos pendentes.

II – Com efeito, não tendo a lei nova restringido o seu âmbito temporal de aplicação e tendo alargado o âmbito subjectivo da prestação social que concede, aplica-se a todos os que reúnam (continuam a reunir) os requisitos novos, únicos que passam a ser exigíveis, por força dos princípios da universalidade e da igualdade.

III – Mas igual conclusão, no sentido da aplicabilidade imediata e às situações anteriores (existentes) à sua entrada em vigor decorre do disposto no artº 12º, nº 2, 2ª parte do Código Civil.

IV – Dessa aplicação imediata resulta a inutilidade superveniente da lide.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1 - Relatório

1.1 – O processo na 1.ª instância

A..., devidamente identificada nos autos, instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, IP e peticionou que, na procedência da sua pretensão, seja declarado que a autora é titular das prestações por morte, no âmbito dos regimes de segurança social, previstas no DL. 322/90, de 18/10, no Decreto Regulamentar 1/94, de 18.01 e alínea e) do n.º 3 do artigo 6.° da Lei n.º 7/2001, de 11/05, decorrentes da morte de B..., e o réu condenado a reconhecê-lo, com as legais consequências.

A autora, fundamentando a pretensão, alegou (em síntese) que no dia 26.12.2008 faleceu B...., com última residência habitual no Concelho de ..., no estado de divorciado e que, desde o mês de Outubro de 2005, viveu com o falecido, na mesma habitação, partilhando a mesma cama, relacionando-se afectiva e sexualmente, tomando as refeições em conjunto, passeando e saindo juntos. Acrescenta que a aludida vivência em comum, desde há mais de três anos, contados à morte do falecido, era pública e notória tudo conforme resulta, nomeadamente, de atestado da Junta de Freguesia de ..., que juntou. Diz que cada um, autora e falecido, contribuía com os rendimentos que auferiam para a aquisição de todos os bens alimentares, móveis, electrodomésticos e outros que existem na referida habitação; a demandante cuidava do falecido quando este se encontrava doente, e ele dela, auxiliando-se mutuamente no dia-a-dia e vivendo como se de marido e mulher fossem. Esclarece ainda que o falecido, à data do óbito, não tinha pais vivos e os descendentes, dois filhos, vivem em paradeiro incerto, tendo-o desprezado por completo, desde há muitos anos; que o falecido possuía os bens móveis que constam da que foi a sua habitação e também da autora e a herança, a existir, é composta de bens imóveis de valor muito reduzido e insuficiente para responder pelas prestações por morte; por sua vez, a autora, nascida em 6/12/1950, é divorciada, não tem pais ou irmãos vivos e tem uma única filha, que aufere rendimento mensal de valor próximo do salário mínimo nacional, valor que a impede de auxiliar ou prestar alimentos à mãe; vive exclusivamente de um subsidio social de desemprego no valor de 187,18€, que apenas serve para suportar as despesas primárias e pessoais de alimentação e renda de casa, sendo essa quantia insuficiente para suportar as suas despesas de vestuário, medicamentos, electricidade, gás e as demais, indispensáveis à sua subsistência. Finalmente, conclui que o falecido era pensionista, com o n.º 11113773491 e, tendo a demandante vivido com ele desde o mês de Outubro de 2005 até à data do seu óbito, tem direito às prestações por morte, no âmbito dos regimes de segurança social, previstos no DL 322/90, de 18/10, mas é necessário, para a sua concessão, o reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante a competente acção interposta com essa finalidade.

Citado, o réu contestou. Por excepção veio dizer que a autora não alegou factos que fundamentem a conclusão de que o ex-cônjuge não lhe pode prestar alimentos e não documenta certificadamente o seu estado civil ou a insuficiência económica dos filhos do beneficiário falecido. Entende, por isso, que há insuficiência da causa de pedir. Por impugnação, invoca o desconhecimento dos factos não certificados e acrescenta que a presente acção se destina unicamente ao reconhecimento da qualidade de titular das prestações, mas cabe à Administração deferir ou indeferir o requerimento das prestações, em função, além da procedência da acção, da verificação ou não dos restantes requisitos legais.

A autora, respondendo, defendeu que não há insuficiência da causa de pedir, pois “narra os factos necessários e suficientes para justificar o pedido”, já que o direito em causa tem como finalidade compensar os familiares do beneficiário da perda dos rendimentos determinados pela morte e, muito embora, a atribuição do direito comece por visar os familiares, o certo é que tal direito é extensivo às pessoas que se encontrem na situação de união de facto, como sucedeu com a autora.

No prosseguimento dos autos e na sequência de despacho, foi apresentada, (fls. 48 e ss.), petição corrigida e treze documentos, nomeadamente quanto à concretização do acervo hereditário e das despesas, além de ser ter corrigido o lapso de haver sido dito que a autora não tinha irmãos vivos. Terminando com idêntico pedido diz-se, agora de novo, neste rectificado articulado:

- A herança do falecido é composta pelos seguintes bens que, são, pelo seu valor e estado de indivisão, manifestamente insuficientes para responder pelas prestações por morte: a) metade indivisa de um prédio urbano sito na Freguesia de ..., com o valor patrimonial de 42.400,00€; b) Um veículo ligeiro de passageiros, do ano de 1991, matricula X..., com o valor de 1.200,00€ c) Um veículo ligeiro de passageiros, do ano de 1986, matricula J..., com o valor de 1.000,00€.

- A autora não tem pais vivos e tem um irmão com meios económicos que mal lhe permitem sobreviver e, com o qual não mantém qualquer contacto;

- Vive, exclusivamente, de um subsidio social de desemprego, que apenas serve para suportar as despesas primárias e pessoais de alimentação e renda de casa, sendo essa quantia insuficiente para suportar as suas despesas de vestuário, medicamentos, electricidade, gás e demais despesas indispensáveis para a sua subsistência, tudo de montante bem superior ao referido no número anterior e que, a titulo de exemplo e atenta a sua regularidade diária, semanal ou mensal, se passam a descriminar: a) Consumo de electricidade referente aos períodos de 6/11/2008 a 5/1/2009, e de 7/1/2009 a 4/3/2009, respectivamente, no valor de €48,61 e 41,13; b) comunicações telefónicas básicas, referente a 6/1/2009 e a 5/3/2009, respectivamente, no valor de €32,52 e 16,62 c) consumo de água referente a 23/8/2006 e a 24/4/2007, respectivamente, no valor de €11,36 e 13,16; d) consumo de gás referente a 10/3/2009; e) exemplos de consumo, semanal, de bens alimentares de primeira necessidade, no valor de €46,36 e 37,18.

Em resposta, o réu manteve integralmente a posição que havia assumido nos autos.

No normal prosseguimento do processo foram os autos saneados. Quanto à excepção de ineptidão, julgou-se a mesma improcedente[1], declarou-se o processo próprio e isento de outras nulidades, excepções ou questões prévias. Na mesma ocasião seleccionou-se a matéria de facto assente e organizou-se base instrutória[2].

Teve lugar a audiência de julgamento e, posteriormente, sem qualquer reclamação, respondeu-se à base instrutória. Concluso o processo foi proferida sentença onde o Exmo. Juiz declarou “improcedente por não provada a presente acção e consequentemente, absolvo o réu do pedido.”

1.2 Do recurso

A autora, inconformada com o decidido na 1.ª instância, veio apelar a esta Relação. Termina o seu articulado recursório com as seguintes Conclusões:

[…]

O réu não contra-alegou e o recurso foi recebido, nos termos próprios e legais. Nesta Relação, conforme fls. 182, foi proferido despacho a notificar as partes para, querendo e em observância do contraditório, se pronunciarem sobre os eventuais efeitos na acção da publicação e, entretanto, da entrada em vigor da Lei 23/2010, de 30 de Outubro, que procedeu à alteração da Lei 7/2001, de 11 de Maio. Notificados, não se pronunciaram. Os autos, posteriormente, aguardam a realização de um Plenário das Secções Cíveis, cujo objecto era, justamente, a ponderação dos efeitos da entrada em vigor daquela Lei 23/2010.

Ponderando a discussão havida e com o acordo do Exmos. Adjuntos foram dispensados os Vistos. Nada constatamos, agora, que obste à apreciação (em sentido amplo) do recurso de apelação.

1.3 Objecto do recurso

Definido pelas conclusões da apelante, mas sem embargo das questões que importe conhecer oficiosamente, o objecto deste recurso coincide com os requisitos do deferimento da pretensão da recorrente, concretamente, com a resposta à questão de saber se os factos apurados são suficientes à aludida pretensão ou se, ao invés, bem andou a 1.ª instância ao considerar improcedente a acção, precisamente ao considerar que não se encontravam preenchidos todos os pressupostos que à recorrente competia provar. Na análise da questão importará ter em conta, acrescente-se, a nova lei vigente, ou seja, os efeitos e consequência decorrentes da entrada em vigor da Lei 23/2010.

2. Fundamentação

2.1 Fundamentação de facto

[…]

Para cabal esclarecimento do decidido, mais se acrescenta que se considerou como não provados[3] os factos constantes dos quesitos 6.º[4], 13.º[5], 15.º[6], 16.º[7], 19.º[8], 21.º[9] e 22.º[10].

2.2 Apreciação do direito

2.2.1 A sentença sob censura

Aplicando o direito aos factos apurados, a decisão da 1.ª instância, disse e concluiu o seguinte: “O art.º 6 da Lei nº 7/01 (…) diz que beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do art.º 3 no caso de uniões de facto previstas na presente lei, quem reunir as condições constantes do artigo 2020.º do Cód. Civil, decorrendo a acção perante os Tribunais Civis. Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número anterior, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição. O art.º 2020 do Cód. Civil diz (…). O artigo 3º, alínea e) da Lei n.º 7/2001 prescreve que, quem vive em união de facto tem direito a protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei. Para os efeitos desta lei, considera-se união de facto a vivência de pessoas, independentemente do sexo, que vivam uma com a outra há mais de dois anos. (…)

No caso dos autos (…) Esta acção reveste a natureza de uma acção de simples apreciação positiva, em que o autor deve pedir que se declare que, com fundamento em vivência em condições análogas às dos cônjuges por mais de dois anos com pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, é titular do direito às prestações por morte. Na verdade, a sentença obtida no tribunal comum constitui um mero documento que irá instruir o requerimento a apresentar à instituição de segurança social competente para atribuição das prestações por morte (artigo 5.º do decreto regulamentar n.º 1/94 de 18 de Janeiro[11]).

Feitas estas considerações gerais, importa agora analisar os requisitos de procedência da presente acção. Por força do disposto no art.º 6º, n.º 1, e art.º 3 al f) da Lei n.º 7/01 de 11 de Maio, a autora beneficia de protecção na eventualidade da morte do beneficiário da segurança social desde que reúna as condições previstas no artigo 2020º do Código Civil. E que condições são estas?

Para que uma pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens mas com vivência, há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges com uma pessoa falecida beneficiária do regime geral de segurança social, possa beneficiar das prestações da segurança social, é necessário que prove, que carece de alimentos e que não os consegue obter, do seu cônjuge ou ex-cônjuge, dos seus descendentes, dos seus ascendentes e dos seus irmãos por inexistência ou insuficiência de bens e os não logre receber, por idêntica razão, da herança do seu falecido companheiro. Deve, para o efeito, interpor acção contra a instituição de segurança social competente para atribuição das prestações, tendente a demonstrar estas circunstâncias. – [neste sentido os acórdãos do STJ de 23-10-07 (Relator Cons. Azevedo Ramos), de 20-9-07 (Relatora Maria dos Prazeres Beleza), de 24-4-07 (Relator Cons. Silva Salazar) de 14-11-06 (Relator Cons. Sousa Leite) e proc. 07A4799 todos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.nsf]. As disposições legais que impõem estes procedimentos, não são inconstitucionais. Em conclusão, a autora tem nesta acção o ónus de provar: a) a morte de um beneficiário da segurança social não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens (artigo 2º, alínea c) da Lei n.º 7/01); b) a vivência da autora com essa pessoa em condições análogas às dos cônjuges, por um período superior a dois anos (artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 7/01); c) a sua necessidade de alimentos (artigo 2020º, n.º 2, in fine do Código Civil); d) a impossibilidade de os obter nos termos das alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 2009º do Código Civil (artigo 2020º, n.º 2, in fine do Código Civil).

O beneficiário B... faleceu a 26.12.08. – al A) factos assentes. A autora viveu com o B... desde o mês de Outubro de 2005 até 26 de Dezembro de 2008, numa casa de habitação sita na morada acima referida, partilharam a mesma cama, relacionando-se afectiva e sexualmente, tomaram as refeições em conjunto, passearam e saíram juntos, faziam companhia um ao outro e auxiliavam-se nas deslocações ao Centro de Saúde de ..., viviam um com o outro como marido e mulher. – r qs 2 a 9. A autora encontra-se desempregada. A autora apenas recebe o Rendimento Social de Inserção no valor de 175,93 €. Não são conhecidos bens imóveis à autora. A herança do falecido B... é constituída por dois veículos automóveis e encontrava-se inscrito (…), desconhecendo-se, se lhe pertence. Os pais da autora faleceram. A única filha que tem, C...., não dispõe da possibilidade de contribuir com parte do que mensalmente ganha para ajudar sua mãe.

Mas desconhece-se se o irmão vivo [a autora tem um irmão vivo cf al R)] e o ex-cônjuge [que se desconhece se é vivo ou morto], pessoas obrigadas a alimentos podem ou não contribuir para os prestar. Este facto cabia a autora provar[12]. Desconhecendo o Tribunal se a autora poderia obter alimentos destas duas pessoas vinculadas a tal, não estão preenchidos todos os pressupostos para se decidir favoravelmente, devendo assim o pedido improceder”.

Como decorre da decisão sob censura, a improcedência da pretensão da recorrente (pretensão que, adiante-se desde já, é apenas a obtenção de uma sentença que declare o preenchimento de uma situação - fáctico-jurídica - que permita, conjugada com outros requisitos que cabe à Administração apreciar, o eventual deferimento de uma pensão[13]) derivou da falta de prova – que à recorrente cabia – de todos os pressupostos (requisitos ou condições) para o deferimento da declaração pretendida.

A sentença funda-se na jurisprudência claramente maioritária que cita, nomeadamente do STJ, e afasta a inconstitucionalidade da exigência decorrente dessa interpretação da lei. Escusando-nos a repetições, dizemos apenas que, ao tempo em que foi proferida, a decisão da primeira instância aplicou correctamente a lei (vigente) e fundou adequadamente o indeferimento da pretensão: a recorrente não provou que duas das pessoas obrigadas à prestação de alimentos não possam prestá-los.

Em conformidade com o que acaba de ser dito, e considerando que não padece de inconstitucionalidade a interpretação feita, a sentença aplicou o sentido jurisprudencial dominante e mostra-se fundada. Deveria, se nada mais houvesse a considerar, ser confirmada.

2.2 A Lei 23/2010 e as suas consequências neste processo 

A conclusão afirmada no último parágrafo do ponto anterior não considera a alteração legislativa operada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto. Entendemos, no entanto, que ela tem que ser considerada, e sê-lo também neste processo e nesta apelação.

Importa, a tal propósito e mesmo que resumidamente, tecer algumas considerações que permitam compreender melhor a evolução legislativa e, com ela, o propósito do novo diploma e a sua aplicação aos processos pendentes.

A Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto veio proceder à primeira alteração da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, ou seja, e concretamente, ao regime da protecção social, em caso de morte do beneficiário, das pessoas que vivem em união de facto, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social, apresentando, se bem vemos, as seguintes e mais relevantes alterações: a) o membro sobrevivo da união de facto tem direito à pensão de sobrevivência por efeito da morte do beneficiário do sistema de Segurança Social ou da Caixa Geral de Aposentações, independentemente da necessidade de alimentos (artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, conjugado com o artigo 40.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-lei n.º 142/73, de 31 de Março, e com o artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, todos na nova redacção conferida pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto); b) O direito à pensão de alimentos apenas está dependente da prova da existência da união de facto (definida no artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, na nova redacção), a qual deverá ser efectuada de acordo com o disposto na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio (artigo 2.ºA aditado pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto) - artigo 41.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 142/73, de 31 de Março, e artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-lei 322/99, de 18 de Outubro, ambos na nova redacção conferida pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto); c) A pensão de sobrevivência, quando exigida à Caixa Geral de Aposentações, será devida a partir do início do mês seguinte ao do falecimento do beneficiário, quando requerida pelo membro sobrevivo nos seis meses posteriores (artigo 41.º, n.º 3, do Decreto-lei n.º 142/73, de 31 de Março, na nova redacção conferida pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto)[14]; d) o casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens, impede a atribuição dos direitos e benefícios conferidos na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio (artigo 2.º, alínea c) na nova redacção); e) o membro sobrevivo da união de facto tem direito de exigir alimentos da herança do falecido, independentemente de quaisquer requisitos (artigo 2020.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção conferida pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto).

Igualmente resulta do novo diploma legal a revogação tácita do Decreto-Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro, que, na regulamentação da atribuição da pensão ao unido de facto sobrevivo, fazia depender esse direito de uma sentença judicial, reconhecedora do direito a alimentos da herança do falecido, nos termos do disposto no artigo 2020.º do CC ou de reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, através de acção declarativa instaurada contra a instituição competente para a atribuição das prestações (artigo 3.º), como resultava do artigo 6.º da Lei n.º 7/2001, igualmente alterado. Assim, face do novo regime, deixou de ser necessário (e nem sequer é previsto como hipótese possível) propor qualquer tipo de acção com vista a reconhecer o direito à pensão de sobrevivência. Em vez da imposição anterior, o membro sobrevivo da união de facto, agora, requererá o pagamento da pensão de sobrevivência nos mesmos termos de outros titulares desse direito (artigos 30.º e 49.º e ss. do Decreto-lei n.º 142/73, de 31 de Março, e 46.º e ss. do Decreto-lei n.º 322/90, de 18 de Outubro).

A Lei 23/2010 entrou em vigor cinco dias após a sua publicação, salvo no que respeita aos seus normativos com repercussão orçamental (artigo 11.º), que apenas produzem efeitos com a entrada em vigor – entretanto ocorrida – do Orçamento de Estado.



Feitos os esclarecimentos precedentes, a questão relevante que deve agora colocar-se é a dos efeitos da nova lei nas acções pendentes (como a presente) onde se peticiona o reconhecimento do direito à pensão de sobrevivência pelo membro sobrevivo da união de facto, de acordo com o regime estabelecido nos diversos diplomas invocáveis, nas redacções anteriores, ou mesmo, mais genericamente, em situações de união de facto cuja morte ocorreu também anteriormente ao início de vigência.

A nova lei não estabeleceu qualquer regime específico de aplicação nem fixação da data de produção de efeitos, no sentido de poder dizer-se que a vontade legislativa foi de discriminar o âmbito subjectivo da sua aplicação. Pensamos que o não fez adequadamente e que essa omissão tem um significado: estamos perante (a atribuição de) uma prestação social e a pretensão inequívoca de equipar, também aqui, a união de facto ao casamento; a atribuição de uma prestação social, tendo em conta os princípios da universalidade e da igualdade, vale sempre para o futuro; não no sentido em que habitualmente se diz que a lei vale para o futuro; no sentido, isso sim, que, não o restringindo expressamente a lei, a prestação (o direito atribuído) vale para todos aqueles que se encontrem na (nova) situação prevista, ou seja, no novo âmbito subjectivo da atribuição.

Assim, antes de indagarmos da aplicabilidade imediata da nova lei, servindo-nos da hermenêutica própria da aplicação da lei no tempo e dos princípios consagrados no Código Civil, cremos não poder esquecer que estamos perante uma norma que alarga o âmbito subjectivo de uma prestação social (todos os que eram abrangidos nas redacções anteriores dos normativos invocáveis, continuam a sê-lo; outros, que o não eram, passam a sê-lo), que aumenta o universo dos destinatários, que diminui os requisitos de atribuição. Compreender-se-ia mal que quem se encontra nas condições da lei nova não tivesse acesso à prestação social porque, no tempo da lei antiga (lei com requisitos diversos) ela lhe não foi – ou não seria – concedida[15].

Ao entendimento acabado de expor tem-se contraposto o princípio geral da não retroactividade da lei (artigo 12.º, n.º 1 do CC) e que, relevantemente, é a morte o facto constitutivo do direito à pensão. Salvo o devido respeito, a escolha da morte como (único) facto determinante, inquina o raciocínio: o direito à pensão depende obviamente da morte e sem ela não há aquele, mas nada legitima que se olvidem os demais factos constitutivos do direito. Como se sabe, no domínio da lei anterior ou da actual, a sentença ou, agora, um outro meio de prova, não são atributivas de determinada pensão, e este direito depende de requisitos (como o tempo contributivo, desde logo) que determinam a concessão ou o indeferimento da pretensão do unido de facto sobrevivo.

Diríamos, por isso, que, não tendo a lei nova restringido o seu âmbito temporal de aplicação e tendo alargado o âmbito subjectivo da prestação social que concede, aplica-se a todos os que reúnem (continuam a reunir) os requisitos novos, únicos que passam a ser exigíveis, por força dos princípios da universalidade e da igualdade. Neste sentido pode dizer-se que a autora, enquanto sujeito da nova abrangência da prestação social o que efectivamente tem direito (desde logo pelo princípio da igualdade) é à lei nova, ou seja, à prestação social nos moldes em que a lei nova lhe a conceda.

Sem embargo, chegamos a igual conclusão pela directa ponderação dos princípios civis que regem à aplicação da lei no tempo. É verdade que o artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil, estabelece o princípio geral da não retroactividade da lei, aí se prevendo que a lei só dispõe para o futuro, e mesmo que tenha eficácia retroactiva ficam ressalvados os efeitos jurídicos já protegidos, mas o seu n.º 2 desenvolve esse princípio da não retroactividade mitigando-o com a teoria do facto passado, e esclarecendo na sua 2.ª parte que, quando a lei dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor[16].

Mesmo que se reconheça alguma dificuldade na integração em cada acto legislativo do requisito da independência do facto que origina a relação jurídica, quando a lei dispõe sobre o conteúdo desta (condição de aplicação da 2.ª parte do artigo 12.º, n.º 2 do CC), parece-nos que a “solução normativa mais adequada” (nas palavras Pinto Bronze, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra Editora, 2002, pág. 773) é no sentido da aplicabilidade imediata da nova lei imediata às acções pendentes, porquanto, ao contrário do que insiste alguma jurisprudência recente, o facto constitutivo e essencial do direito à pensão de sobrevivência não é, ou não é apenas, a morte do beneficiário, membro da união de facto. E, por outro lado, se a expressão nos é permitida, não há facto mais duradouro que a morte; ou seja, esse requisito necessariamente perdura no futuro. Diríamos mesmo que é o único que, se existia no momento da lei antiga, irremediavelmente continua a existir no domínio da lei nova.

 

Entendemos que a nova lei, embora não seja uma lei interpretativa[17], é aplicável às situações que já existiam ao momento do seu início de vigência. Importa acentuar novamente que a morte de um dos membros da união de facto é, ou é apenas, o elemento que permite desencadear o exercício dos direitos que advêm da situação de união de facto que se verificou, necessariamente, em momento anterior. Sendo indiscutível que a situação de união de facto se constituiu e perdurou anteriormente ao início da vigência do novo regime e que a situação jurídica que permite ao sobrevivo peticionar o pretendido direito já estava constituída, ela subsiste, aquando da entrada em vigor do novo regime.

Em rigor, o que concede o direito é a vivência em união de facto (pelo período mínimo legal, por referência à morte de um dos seus membros), e, sem cuidar agora de outros requisitos, o exercício do direito está condicionado pela morte de um dos membros da união de facto.

Em suma, em casos como o presente, em que a situação (a definição do direito) não se encontra definitivamente resolvida[18] aquando do início de vigência da lei nova, estamos perante uma situação que trata do conteúdo de relações jurídicas já constituída mas subsistentes, sendo de aplicar a lei nova, por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte do CC.

Chegados à conclusão anterior, importa saber das suas consequências na acção. Deve proferir-se decisão aplicando a lei nova ou a acção, a lide, tornou-se supervenientemente inútil?

Entendemos que a segunda das soluções é a mais correcta.

Em primeiro lugar não pode esquecer-se (como se afirma na decisão da 1.ª instância e como o réu não deixou de vincar na sua contestação) que a sentença é um mero documento ou meio de prova, destinada a instruir a pretensão ao pagamento da prestação social, pretensão essa a formular à Administração e cujo deferimento depende do preenchimento de outros requisitos.

Depois, efectivamente, ocorre uma inutilidade da lide no seu sentido mais compreensível e habitual. Em contrário, pode argumentar-se que a recorrente não viu satisfeita a sua pretensão (se, por exemplo, alguém exige em tribunal o pagamento de determinada quantia e ela é entretanto comprovadamente paga, parece perceber-se melhor a inutilidade), mas não pensamos assim: antes, a recorrente precisava de uma sentença para instruir o pedido de atribuição da prestação social; agora precisa apenas da declaração da Junta de Freguesia. Declaração essa que, relevantemente, já consta dos autos (fls.107). A sua pretensão – obtenção de um documento para instrução do pedido a fazer à Administração – está alcançada, precisamente desde que passou a vigorar a lei nova, e justamente em razão da lei nova.

Mas dir-se-á: o réu pode opor-se à situação documentada – atestada – pela Junta de Freguesia. Ora, independentemente de o modo de oposição ser agora diverso do anterior e caber-lhe, a ele réu (à Segurança Social), a iniciativa processual, salvo o devido respeito, não é o comportamento hipotético e futuro dos litigantes que define a utilidade (actual e real) da lide: tal como se pode eventualmente opor à relevância do atestado, pode recorrer desta decisão. O que releva é que, tendo-se concluído pela aplicação da lei nova, dessa conclusão devem ser retirados todos os efeitos, e nunca esquecer que a sentença, na lei antiga, vale precisamente o mesmo que o atestado da Junta de Freguesia na lei nova.

Por tudo, consideramos que é aplicável aos presentes autos a Lei 23/2010 e em razão dessa aplicação, e por ela, a presente lide tornou-se supervenientemente inútil, o que, sendo de conhecimento oficioso, se declara.

Quanto a custas, pensamos que o disposto no artigo 450.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) do CPC prevê exactamente as situações idênticas à presente e, assim, elas são devidas em partes iguais, em ambas as instâncias.

3. Sumário[19]

1 – A Lei 23/2010, de 30 de Agosto, é de aplicação imediata e aos processos pendentes.

2 – Com efeito, não tendo a lei nova restringido o seu âmbito temporal de aplicação e tendo alargado o âmbito subjectivo da prestação social que concede, aplica-se a todos os que reúnem (continuam a reunir) os requisitos novos, únicos que passam a ser exigíveis, por força dos princípios da universalidade e da igualdade.

3 – Mas igual conclusão, no sentido da aplicabilidade imediata e às situações anteriores (existentes) à sua entrada em vigor decorre do disposto no artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil.

4 – Dessa aplicação imediata resulta a inutilidade superveniente da lide.

4. Decisão

Pelas razões ditas, acorda-se na 3.ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Coimbra em, não conhecendo do objecto imediato do recurso intentado por A... contra o Instituto da Segurança Social, IP, declarar supervenientemente inútil a presente lide.

Custas em partes iguais, em ambas as instâncias (artigo 450.º, n.º1 e n.º2 alínea a) do CPC) e sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


José Eusébio Almeida (Relator)
Regina Rosa
Artur Dias

[1] (…) a autora alegou matéria suficiente para a decisão da acção, concretamente factualidade respeitante à caracterização da relação com o falecido, como configurando uma situação de união de facto, e à caracterização não só da sua situação económica, mas também da dos sucessivos obrigados a alimentos. Por outro lado, uma petição inepta não é o mesmo, nem pode ter as mesmas repercussões, que uma petição incorrecta ou deficiente. A este propósito, resulta do n.º 3 do artigo 193.º do CPC que “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a), não se julgará procedente a arguição, quando ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”. Na verdade, apesar de suscitar a ineptidão da petição inicial, depreende-se do conteúdo da contestação, que a Ré compreendeu a pretensão da Autora. A consagração deste n.º 3 configura, assim, desde logo, uma forma de sanação da nulidade processual, porquanto seria contraditório sancionar os autores com a nulidade do processo, com fundamento na dificuldade de compreensão do teor da petição inicial pelos réus quando se inferisse, da leitura da contestação, que a mesma fora cabalmente interpretada pelos mesmos.
[2] Alterada em audiência com o acrescento de dois quesitos: 26) A autora não tem pais ou irmãos vivos?; 27) A autora tem uma única filha de nome C..., residente na cidade do ..., que aufere um rendimento mensal de valor próximo ao salário mínimo nacional, apenas suficiente para suprir as suas despesas primárias de alimentação, vestuário, transporte e de habitação, o que a impede de auxiliar e prestar alimentos à mãe?

[3] Tendo-se considerado assim porque nenhuma das testemunhas sobre eles depôs e não há nos autos qualquer elemento de prova que permita resposta diferente.
[4] Contribuíram com os rendimentos que cada um auferia para a aquisição de todos os bens alimentares, móveis, electrodomésticos e outros objectos que existem na casa de habitação?
[5] O valor do veículo descrito em 12.º corresponde a 1.200,00€?
[6] O valor do veículo descrito em 14.º corresponde a 1.000,00€?
[7] À data do falecimento, B... não deixou outros bens para além dos descritos em 10.º, 12.º e 14.º e dos bens móveis que constam da casa de habitação?
[8] A autora tem problemas de saúde que não lhe permitem o desempenho de qualquer actividade profissional remunerada?
[9] O mencionado subsídio é integralmente despendido no pagamento da renda da casa de habitação da autora e das suas despesas com alimentação?
[10] O mencionado subsídio é insuficiente para garantir o pagamento das despesas da autora com vestuário, medicamentos, electricidade, telefone e saneamento?
[11] Sublinhado nosso.
[12] Sublinhados nossos.
[13] Como o réu expressamente vinca e sublinha na sua contestação.

[14] No novo regime do artigo 41.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 142/73, a pensão de sobrevivência é devida desde o dia um do mês seguinte ao falecimento do beneficiário, quando requerida pelo membro sobrevivo nos seis meses posteriores. Mas, nos demais casos, a pensão é devida desde o dia um do mês seguinte àquele em que se verificar o óbito do contribuinte, se pedida no prazo de doze meses contados a partir da mesma data, ou desde o dia um do mês seguinte ao do requerimento, caso solicitada posteriormente àquele prazo (artigo 30.º, n.º 1). Decorre daí que acabou por ser mantida uma diferenciação entre união de facto e casamento, sem razão justificativa e quando o propósito legislativo foi de clara equiparação, o que coloca manifestas dúvidas sobre a constitucionalidade material da opção tomada.

[15] E se este entendimento é o correcto, nunca se coloca a questão do caso julgado, mesmo em relação ao indeferimento da pretensão no domínio efectivo da lei antiga.

[16] Sobre o sentido da previsão, Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil – Casos de Aplicação Imediata, Critérios Fundamentais, Coimbra, Almedina, 1968, págs. 96; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 61 e Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral”, 13.ª edição, Almedina, 2010, págs. 560/561.


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[17] Conclusão que não isenta de dúvidas. Sem embargo, e se o fosse, também, por sê-lo, era de aplicação imediata e às situações “pendentes”. Com efeito, a aplicação de uma lei interpretativa aos factos passados não envolve um efeito retroactivo em sentido próprio, pois não implica uma valoração nova dos factos (Baptista Machado, Sobre a Aplicação…, cit., pág. 285); a lei interpretativa caracteriza-se precisamente por se integrar na interpretada, a questão deixa de ser de retroactividade e passa a ser de integração (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1995, pág. 247;cf., no entanto, Oliveira Ascensão, O Direito…, cit. págs. 653/654).

[18] E nem sequer é para nós evidente que seja de outro modo em situação em que tenha havido decisão definitiva no domínio da lei antiga. Sem embargo, esse problema, directamente ligado ao caso julgado e à aplicação da lei nova, não releva para o presente caso.

[19] Da responsabilidade do relator.