Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
212/09.1GBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: ARMA BRANCA
FACA DE COZINHA
Data do Acordão: 06/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS ARTS 2º, Nº 1, AL.M) E 86º, Nº 1 AL. D), DA LEI Nº 5/2006 DE 23/02, NA REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA PELA LEI 1 7/2009 DE 16/05
Sumário: A detenção de uma faca de cozinha, com lâmina de cerca de 13 cm,utilizada para rasgar um placar eleitoral,não integra o crime de detenção de arma proibida, p. p. pelas disposições conjugadas dos arts 2º, nº 1, al.m) e 86º, nº 1 al. d), da Lei nº 5/2006 de 23/02, na redacção que lhe foi dada pela Lei 1 7/2009 de 16/05.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos em epígrafe, depois de se ter procedido ao julgamento em processo sumário, foi proferida a decisão que segue:

“Pelo exposto, considera-se a acusação parcialmente procedente, e decide-se, em conformidade:

Absolver o arguido L... de um crime de dano em material de propaganda, p. e p. pelo artigo 175.0, da Lei 1/2001, de 14 de Agosto;

Condenar o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86 n.º1, al. d), artigo 2º, nº1, al. m), da Lei 5/2006, de 23 de Agosto, na versão introduzida pela Lei 17/2009 de 16 de Maio, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco euros) o que perfaz o montante global de € 1000 (mil euros);

Declarar perdida a favor do Estado a faca apreendida nos autos (artº 78º da Lei 5/2006 e artº 109º nº 1 do CP.

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Inconformado, com a decisão condenatória recorre o arguido extraindo da respectiva motivação as seguintes:

Conclusões
1- A matéria de facto dada como provada contem imprecisões que conduzem a necessária absolvição do arguido, sento que o próprio ano não está devidamente indicado nos factos provados, bem como a hora, a coligação do cartaz em causa está indevidamente indicada, entre outros elementos;
II – O tribunal deu como provados factos sem que se produzisse prova dos mesmos na audiência de julgamento, tal como vossas excelências melhor analisarão e decidirão ao verificarem a transcrição e as gravações ta audiência e julgamento;
             III - a única prova que foi produzida e que pote ser valorada foram as declarações do arguido, e as mesmas estão gravadas e transcritas, nelas nunca se referindo o ano dos factos, a coligação do cartaz, a dimensão e características da faca, e;
IV - não foi perguntado sequer ao arguido se a faca que lhe foi apreendida era a que está identificada na acusação, ou quem lha apreendeu e em que circunstâncias, tendo o Ministério Público prescindido da produção da sua prova, e pois não ouvindo a única testemunha que estava arrolada;
V - Inseriu-se nos factos provados no ponto 6 apenas confessou,” sem que na realidade se indique que factos e/ou que crime foi confessado pelo arguido, e a prova gravada e transcrita não resulta qualquer confissão integral e sem reservas por parte do arguido, mas antes a interpretação que é feita pela meritíssima juiz a quo de que o arguido havia confessado.
VI - E ademais não se dando a palavra à defensora oficiosa para que indicasse se tinha alguma objecção à menção da confissão integral e sem reservas, num processo em que até final se pugnou pela inocência do arguido e este nunca assumiu os factos como um crime sempre tanto explicações ao tribunal para os factos que cometera e indicando à sua maneira simples e verdadeira qual a razão pela qual considerava justo o seu comportamento;
VII - Para além tal inclusão te factualidade que como supra se indica não poderia ter sido dada como provada por total ausência de prova, foram também omitidos outros factos que se provaram e que o tribunal não levou em consideração;
VIII - Todas as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, nomeadamente a ratio da conduta do arguido ao tentar repor uma situação de tratamento igualitário de candidaturas tratadas de forma discriminatória pela junta de freguesia, depois de esgotar os meios ao seu dispor na assembleia de voto, foram omitidas pelo tribunal;
IX - A credibilidade tas declarações do arguido limitou-se a ser interpretada para prova dos factos que lhe eram desfavoráveis, sento esquecida para tal a restante factualidade, como se prova alguma se tivesse produzido a favor to arguido;
                X - Não se deu como provada a verdadeira situação familiar do arguido e a sua deficiência física notória e visível pela meritíssima juiz a quo e aliás declarada pelo arguido, pessoa ainda nova e com reforma por incapacidade, e que declarou precisar da faca para conseguir retirar o cartaz por não o poder fazer com uma mão apenas;
XI - A faca foi apenas e tão só utilizada como auxílio a pessoa que não usa uma das mãos, e o arguido foi buscá-la a casa somente para aquele fim que indicou ao tribunal e que constituiu um acto de reposição de legalidade e de igualdade tratamento de candidaturas políticas;
XII - não agiu o arguido contra a ordem pública e nenhuma prova foi feita ou consta da matéria dada como provada nesse sentido;
XIII - só a absolvição do arguido do crime de detenção de arma proibida, previsto para situações te perigosidade e para outro tipo te agentes e te circunstâncias, pote ser a solução adequada ao caso concreto, sob pena te se violarem os princípios mais basilares do processo penal;
 XIV - quando assim se não pense e por mera cautela de patrocínio, sempre sem prescindir se dirá ainda que em todo o caso a pena aplicada em concreto ao arguido não considerou todos os elementos atenuantes da sua actuação e que teriam te ser ponderados na fixação em concreto da medida da pena;
XV - o arguido no entender do tribunal confessou os factos praticados, colaborando activamente com o tribunal na descoberta da verdade;

XVI - as necessidades te prevenção geral e especial são diminutas, pois que o arguido não é violento, e actuou do como actuou por força das circunstâncias em que se encontrava, não sento sequer censurável ou conhecida a sua actuação pela comunidade, sento antes o resultado de uma sentida e vivida luta política pela justiça de todos os candidatos
XVII - a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 70º, 71º nºs 1 e 2 do código Penal, devendo pois ser revogada, e substituída por outra que considere as atenuantes do comportamento do arguido, senão o próprio estado de espírito que este tinha no momento dos factos e o momento de eleições que se vivia;
XVIII- por fim, ao não considerar a diminuta culpa do agente, a sua postura no julgamento, a sua inserção social e a sua grave situação económica e familiar violou o acórdão o disposto nos artigos 47º, 1 e 2 e 71º nº1 do código penal, devendo fixar-se uma pena muito próxima do limite mínimo da moldura penal,
XIX - devendo ainda ordenar-se a não transcrição da condenação no registo criminal do arguido, pois que o mesmo revelou-se pessoa inserida socialmente, e primário, a sua actuação prende-se com a defesa de ideais políticos e de igualdade e teve um comportamento correcto e respeitador em ausência de julgamento, nenhuma prova sento produzida que revele a necessidade de onerar a vida do mesmo com tal transcrição,  tendo pois que neste caso concreto, para que se faça de facto verdadeira justiça, de se revogar a sentença proferida em primeira instância, e de se decidir:
a - pela absolvição do arguido L... do crime de detenção de arma proibida pelo qual foi condenado;
b - quando assim se não venha a considerar – sem prescindir e por mera cautela - sempre e em todo o caso fixando a pena de multa em montante muito inferior, com a fixação 105 dias de multa para número próximo do mínimo legalmente previsto, decidindo-se, ainda pela não transcrição no registo criminal.

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Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, defendendo o improvimento do recurso.

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Nesta Instância, a Ex.ma Procurador Geral Adjunto, emitiu Parecer de provimento, essencialmente, por entender que o instrumento que serviu de base à condenação, não se incluir na categoria de arma branca, criminalmente punida pelas normas invocadas na sentença recorrida.

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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir

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Para tanto temos de ter em atenção que a decisão recorrida julgou os seguintes:

Factos provados

1.No dia 11 de Outubro de 09, pelas 11h, o arguido encontrava-se na Rotunda de C…, área desta comarca, a rasgar um placard eleitoral com a fotografia da candidata à Presidência da Câmara Municipal de … pela coligação ….

2. Fazia-o utilizando uma faca de cozinha com cerca de 13 cm de lâmina e cabo de madeira, que fora buscar a casa para o efeito.

3. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que com a sua conduta destruía propaganda eleitoral, o que quis e conseguiu.

4. Conhecia ainda as circunstâncias da faca que detinha e utilizava e quis tê-la e utilizá-la nas circunstâncias acima descritas.

5. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

6. Confessou.

7. Não tem antecedentes criminais.

8. Recebe uma pensão de reforma no valor de (204,50).

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O Tribunal formou a sua convicção no apuramento da matéria de facto na prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com a documentação junta aos autos e com o exame da faca apreendida, analisadas criticamente, à luz das regras da experiência.

Teve-se especialmente em atenção a confissão integral e sem reservas do arguido, que admitiu todos os factos constantes da acusação e que, referiu ter ido buscar a faca a casa exactamente com o propósito de com ela estragar o cartaz.

Tal facto, por ser relevante foi tido em consideração nos termos do disposto no artº 358.º, nº1,do CPP, o que foi oportunamente comunicado ao arguido.

Teve-se ainda em atenção o teor do CRC junto aos autos.

Os demais factos deram-se como provados com base nas declarações do arguido que se afiguraram sinceras.

Quanto ao objecto, faca com que foram praticados os factos ilícitos compete à PSP providenciar pelo seu destino ( artº 78º da Lei nº 1/2001 de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei 17/2009 de 16 de Maio)

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Direito

No caso vertente a questão que se suscita é a de saber se a detenção de uma faca de cozinha, com lâmina de cerca de 13 cm, no circunstancialismo descrito na matéria de facto provada, integra o crime de detenção de arma proibida, p. p. pelas disposições conjugadas dos arts 2º, nº 1, al.m) e 86º, nº 1 al. d), da Lei nº 5/2006 de 23/02, na redacção que lhe foi dada pela Lei 1 7/2009 de 16/05, pois que se a resposta for negativa ficam prejudicados todas as demais questões aportadas no recurso

Na matéria de facto provada, a este respeito, consta o seguinte

«No dia 22 de Outubro de 09[1], pelas 11h, o arguido encontrava-se na Rotunda de C…, área desta comarca, a rasgar um placard eleitoral com a foto grafia da candidata à Presidência da Câmara Municipal de … pela coligação … .

Conhecia as circunstâncias da faca que detinha e utilizava e quis tê-la e utilizá-la nas circunstâncias acima descritas

Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei

Os factos imputados ao arguido ocorreram já na vigência da Lei n0 5/2006, de 23/02, que aprovou o novo regime jurídico das armas e suas munições, e das alterações introduzidas pela Lei 17/2009 de 16/05.

Na alínea l), do nº 1, do art0 20 (com a epígrafe «Definições legais»), da Lei 05/2006, na redacção dada pela Lei 17/2009 «e com vista a uma uniformização conceptual», o legislador fornece o conceito de «arma branca» como sendo «todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante ou corto contundente de comprimento igual ou superior a 10 cm e independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas com abertura ponta e mola, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, ( .)».

Acresce que no artigo 3º, do mesmo diploma legal, o legislador instituiu: «de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização», uma classificação «das armas, munições e outros acessórios» nas classes A, B, C, D, E, F e G.

Assim, e para além de outras que aqui não interessam, pertencem à classe A, as seguintes armas:

«As armas brancas ou de fogo dissimuladas sob a forma de outro objecto»;

Por outro lado, importa ter presente que, nos termos do art0 4º, nº 1, da mesma Lei n0 17/2009, são proibidos os actos de venda, de aquisição, de cedência, de detenção, de uso e de porte das supra mencionadas armas.

E, por fim, há que atentar no artigo 86º, n0 1, al. d) da Lei nº 17/2009, que pune com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias o agente que, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, «detiver» ou «usar ou trouxer consigo» (e apenas estes actos interessam ao caso) «(..) arma branca ou engenho ou instrumento sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, (...)».

Perante a definição constante do art0 2º, nº 1, al. m), da Lei n0 17/2009, dúvidas não nos restam que a faca de cozinha em causa é uma arma branca, uma vez que está dotada de uma lâmina com 13 cm de comprimento.

Mas tratando-se de uma arma branca, esta não é passível de ser integrada na classe A, na medida em que está afecta às lides domésticas, e que, como é óbvio, não tem disfarce, não é uma «faca de arremesso», uma «faca de borboleta» ou uma «faca de abertura automática ou faca de ponta e mola» - vd. definições respectivas nas alíneas n0 1 do artº 2º da Lei n0 17/2009.

O que significa que, à luz do art0 4º nº 1 da Lei nº 5/2006, na redacção que lhe foi dada pela Lei 17/2009, em nosso entender, não é proibida a sua venda, aquisição, cedência, detenção e uso.
Assim, tratando-se de arma branca com aplicação definida, (porque afecta às lides domésticas), o que se não contesta, também não é susceptível de integrar o conceito de «...outras armas brancas sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse», a que alude o art0 86º, nº 1, al. d) da Lei nº 17/2009
 “A detenção de urna faca de cozinha não integra o crime de detenção de arma proibida do artº 86 nº1 al. d) da Lei 5/2006, independentemente do comprimento da lâmina ou da superfície cortante[2], sem embargo de poder ser utilizada como arma letal de agressão.

Aliás, é neste preciso segmento que estão abrangidas as armas brancas a que se refere o artº 3º nº 2, als. e) e f), da referida, ou seja, as que não estão afectas ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção, desde que possam ser usadas como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.

Em suma, a detenção pelo arguido da faca de cozinha, ainda que nas circunstâncias narradas na matéria de facto, não integra, em nosso entender, o crime de detenção de arma proibida p. p. no art0 86º nº 1, al. d) da Lei nº 5/2006, na redacção da Lei 17/2009 de 16/05 porque veio a ser condenado, pelo que deverá ser absolvido da prática deste crime, e restituída a dita faca de cozinha

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Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se, no provimento do recurso, em revogar a decisão recorrida, absolvendo-se o arguido L... do crime por que havia sido condenado, devendo proceder-se à restituição da referida faca de cozinha, já que não resulta também da matéria de facto que tenha sido usada para a prática de qualquer crime.

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Sem tributação.

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Coimbra,

(Cacilda Sena)

(Alberto Mira).


[1] Leia-se 22 de Outubro de 2009, não se vê como possa existir qualquer confusão quanto ao ano, como pretende o arguido.
[2] Neste sentido, Acs. TRL.xa de 08/10/2009 in Proc n0 279/03.6GBBNV, Ac. TRE de 04/03/2008 in Proc n0 169/08.1 e Ac TR Gui. de 09/02/2009, in Proc n0 2447/08.1