Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
124/06.0TBFAG-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE ACTIVA
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FORNOS DE ALGODRES
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 130º DO CIRE.
Sumário: I – Conforme dispõe o artº 130º do CIRE, dentro do prazo nele referido qualquer interessado pode impugnar a lista de credores reconhecidos, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.

II – É entendimento da doutrina que no conceito de interessados devem considerar-se, além do insolvente, os credores em relação aos quais exista a possibilidade de conflito com o titular do crédito reconhecido, segundo os termos concretos em que o reconhecimento se verificou.

III – Essa possibilidade de conflito tem de ser actual e não meramente conjectural ou hipotética e reportada à data em que a impugnação é deduzida e, por outro lado, estando-se numa fase de verificação de créditos, o interessado impugnante tem que assumir a qualidade de credor, pois só assim existirá possibilidade efectiva de conflito entre aquele que se afirma titular do crédito reclamado e aquele que o impugna.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. Por sentença (devidamente transitada) proferida nos autos nº 124/06.0TBFAG, que correram termos na comarca de Fornos de Algodres, foi declarada, em 10/7/2006, a insolvência da sociedade A..., Ldª.

2. Seguiu-se a fase de reclamação e verificação de créditos (autos apensos nº 124/06.0TBFAG-B).

3. B..., S.A., foi uma das entidades que se apresentou a reclamar um alegado crédito sobre a sociedade insolvente (doravante também designada por reclamante).

4. C..., Ldª., apresentou-se a impugnar o referido crédito daquela reclamante (através de requerimento, enviado em 25/9/2006 e cuja cópia certificada se encontra junta a fls. 18 a 23 destes autos de recurso, nos termos e com os fundamentos aqui se dão por inteiramente reproduzidos), defendendo a inexistência, por ter sido já pago, do crédito que por aquela foi reclamado.

5. Respondeu a reclamante, pugnando, no final, pela improcedência da sobredita referida impugnação e pelo reconhecimento do seu crédito.

6. Seguiram os autos o ritualismo legal, com a designação da audiência de julgamento (para produção de prova arrolada).

7. No início dessa audiência (que teve lugar no dia 25/1/2011) a srª juiz a quo proferiu despacho (cfr. cópia certificada junta a fls. 15 a 17 destes autos de recurso) concluindo, com base nos fundamentos ali aduzidos, não ter a impugnante legitimidade para proceder à impugnação do referido crédito da reclamante.

Pelo que, com base nessa falta de legitimidade, declarou improcedente a impugnação que a referida impugnante deduziu, condenando, em consequência, a mesma nas custas, dando ainda sem efeito a audiência e ordenando que, após o trânsito desse despacho, os autos lhe fossem conclusões para a apreciação da graduação dos créditos.

8. Inconformada com tal despacho-decisório, a referida impugnante dele interpôs recurso, o qual foi recebido como agravo, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.

9. Nas correspondentes alegações que apresentou de tal recurso, a impugnante/agravante concluiu as mesmas nos seguintes termos:

[…]

10. Não foram apresentadas contra-alegações.

11. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação.


A) De facto.

Com relevância para a compreensão e decisão do objecto do presente recurso devem ter-se como assentes os factos descritos no ponto I do relatório que antecede e ainda os seguintes (resultantes das diversas peças processuais e documentais que acompanharam os presentes autos e informações prestadas pelo tribunal a quo) e ainda os seguintes:

a) A impugnante/ora agravante não se apresentou a reclamar créditos sobre a insolvente e nem o seu nome consta da lista de credores apresentada pelo srº administrador da insolvência (e que alude o artº 129º do CIRE).

b) Na altura em que a impugnante apresentou a impugnação ao crédito reclamado pela sobredita reclamante, encontravam-se ainda a correr termos os autos de embargos de terceiros (sob o nº 1251/03.TBGRD-A, do 3º juízo do tribunal judicial da Guarda) que a mesma instaurou contra a ora reclamante e contra a ora insolvente, e por apenso aos autos de execução ordinária, para pagamento de quantia certa, que, no mesmo tribunal, a reclamante (como exequente) havia deduzido contra a ora insolvente.

Nesses embargos a ora impugnante reclamava-se a proprietária de uma escavadora hidráulica, ali melhor identificada, por a ter comprado à ora insolvente, que se encontrava então penhorada ordem daquele execução, e sobre a qual exequente/ora reclamante alegava ter constituído um penhor.

Por sentença, proferida em 30/6/2006, veio-se a declarar nulo tal penhor, e a julgarem-se procedentes os embargos, declarando-se a extinta a execução quanto a tal verba penhorada (a nº 1).

Sentença essa que veio a transitar em julgado, depois dela ter sido, sem êxito, interposto recurso para esta Relação e para o STJ.

c) A referida escavadora hidráulica que entretanto, havia sido apreendida à ordem da massa insolvente, veio, na sequência de tal decisão, a ser restituída à ora impugnante, o mesmo acabando por suceder também com um martelo demolidor, sequência de uma sentença proferida (em 25/1/2010, e devidamente transitada julgado à data em que foi proferido o despacho ora agravado) na acção de separação e restituição de bens instaurada (em 24/11/2009), sob o nº 124/06.0TBFAG-H, pela ora impugnante contra a massa insolvente, credores e a própria insolvente, por se ter ali reconhecido ser o mesmo propriedade da impugnante por o ter igualmente adquirido à sociedade insolvente.


***

B) Do direito.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das suas alegações, e só podendo, como é igualmente sabido, o tribunal ad quem, conhecer de questões que tenham sido previamente submetidas à apreciação do tribunal recorrido (salvo quanto àquelas questões que sejam de conhecimento oficioso), dir-se-á, e perante a decisão que foi objecto de recurso, que a única verdadeira questão que importa aqui apreciar e decidir traduz-se em saber se a ora agravante tinha ou não legitimidade para impugnar o crédito da impugnante?

No despacho agravado entendeu-se que não, o contrário do que defende a agravante.

Vejamos então.

Conforme dispõe o artº 130 do CIRE, e dentro do prazo nele referido (que aqui não está em discussão), qualquer interessado pode impugnar a lista de credores reconhecidos, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.

Importa começar por dizer que a redacção do normativo citado não se apresente de todo feliz, pois a que a expressão “qualquer interessado”, contem em si um conceito que se apresenta algo vago e ambíguo.

E daí que haja necessidade de precisar ou concretizar tal expressão conceptual, o que tem gerado algumas dificuldades.

Genericamente, pode dizer-se que só é interessado quem tem interesse em impugnar. E só tem interesse em impugnar quem fica prejudicado se a sua contestação não for atendida. Pelo que a aferição desse interesse terá que ser feita à luz de cada uma das reclamações e impugnações apresentadas.
Todavia, e num esforço de maior precisão e concretização, tem vindo a boa doutrina (conforme se assinalou no despacho recorrido) a entender – e na qual nos revemos - que no conceito de interessados, devem considerar-se, além do insolvente, os credores em relação aos quais exista a possibilidade de conflito com o titular do crédito reconhecido, segundo os termos concretos em que o reconhecimento se verificou. (Cfr., por todos, Carvalho Fernandes/João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Júris 2005, vol. 1º, pág. 459, nota 5” e Mariana França Gouveia, in «“Verificação do Passivo”, revista Themis da FD da UNL, 2005, ed. especial, Almedina, pág. 155»).

Todavia, entendemos ainda, por um lado, que essa possibilidade de conflito tem de ser actual, e não meramente conjectural ou hipotética, e reportada, naturalmente, à data em que a impugnação é deduzida, e, por outro, que estando nós numa fase de verificação de créditos - que visa saber quem tem créditos sobre o insolvente e depois estabelecer a sua graduação, com vista ao seu pagamento final - o interessado impugnante tem que assumir a qualidade credor, pois só assim existirá possibilidade efectiva de conflito entre aquele que se afirma titular do crédito reclamado e aquele que o impugna, de forma poder dizer-se que o reconhecimento do crédito do primeiro poderá levar a uma diminuição da possibilidades de recuperação do crédito pelo seguindo.

Revertendo tais considerandos ao caso sub júdice, diremos:

A agravante fundamentou aquela sua impugnação na alegação de a reclamante não ser titular de qualquer crédito sobre a insolvente, e justificou o seu interesse em impugnar o crédito que aquela reclamou, por um lado, no facto de, no caso ou na hipótese de aquele sobredito processo de embargos de terceiro que instaurou não vir ser julgado procedentes poder vir então a instaurar uma acção de indemnização contra a massa insolvente, e, por outro, de no caso de se provar que a dívida da reclamante não existe então também o penhor que esta alega ter sobre os sobreditos móveis (referenciados nesse processo de embargos e também na acção referida na al. c) do ponto II dos factos assentes) não inexistiria.

Ora, resulta de tal que - conforme bem se assinalou no despacho recorrido – em lado algum daquele seu requerimento de impugnação a ora agravante se assume como credora da insolvente (não tendo reclamado qualquer crédito, ainda que de forma condicional – cfr. artº 50 do CIRE) – lembre-se que no referido processo de embargos de terceiros, que corria os seus termos quando deduziu tal impugnação, a ora agravante apenas se reclamava proprietária dos dois sobreditos bens, que se encontravam penhorados, por alegadamente os ter comprado à ora insolvente, sendo esse, aliás, o mesmo fundamento invocado quando, muito mais tarde (no ano de 2009), veio a instaurar a acção de separação e restituição de bens, a que a que se alude na al. c) do ponto II dos factos assentes -, logo não existia então (na altura da dedução da impugnação) qualquer possibilidade de conflitualidade de interesses entre a reclamante e a impugnante do seu crédito. Impugnação essa que, como vimos, assentava numa possibilidade de conflito meramente hipotética ou conjectural (aliás os factos posteriores vieram mesmo a confirmar tal, pois que os bens de que ora agravante se reclamava proprietária, naqueles sobreditos processos, vieram-lhe a ser restituídos, com base no reconhecimento desse direito de propriedade).

Sendo assim, somos levados a concluir que a ora agravante não dispunha de legitimidade para deduzir, na altura e nos termos em que o fez, impugnação ao crédito da reclamante, e daí não nos merecer qualquer censura o despacho sob recurso.

E nesses termos julga-se improcedente o recurso.


***

III- Decisão


Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão (despacho) da 1ª instância.

Custas pela agravante.


Isaías Pádua (Relator)
Teles Pereira
Manuel Capelo