Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
631/13.9TBGRD-K.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: MARCA
FUNÇÃO
REGISTO DA MARCA
TRANSMISSÃO DA MARCA
Data do Acordão: 11/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – GUARDA – J.L.CÍVEL –J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1º, 222º, 224º E 258º DO CPI/2003.
Sumário: I – A marca faz parte do elenco dos chamados “sinais distintivos do comércio” e tem por função essencial a distinção de produtos ou serviços (função distintiva).

II - O registo da marca, de natureza constitutivo, confere ao titular o direito de uso exclusivo, quer através de um “conteúdo de permissão”, quer através de um “conteúdo de proibição”.

III - A transmissão (em sentido amplo) do direito à marca pode abranger a propriedade ou apenas o seu uso e fruição, admitindo-se hoje um sistema não vinculado ou de não conexão, ao adoptar-se o chamado “sistema de cessão misto”.

IV - Para o contrato de licença de exploração de marca a lei exige documento escrito, como formalidade ad substantiam.

Decisão Texto Integral:









Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

            1.1.- A Autora – G..., S.A. – instaurou (30/6/2014) na Comarca da Guarda acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus

- Massa insolvente de ”N..., S.A.;

- N..., S.A;

- Os credores da massa insolvente “N..., S.A.”.

Alegou, em resumo:

O Administrador de Insolvência da Requerida sociedade insolvente apreendeu para a massa insolvente a marca registada “ G... ” em virtude de esta ser propriedade daquela, por ser titular do respectivo registo.

Porém, a sociedade insolvente não é a proprietária de tal marca desde meados de 2008, pois em 14/05/2008 o Administrador de Insolvência cedeu a marca à Autora, embora não tenha sido averbada em sede de INPI a transmissão da propriedade.

Esta omissão não afeta a validade do negócio considerando o art.30 nº3 CPI e como prova da sua titularidade tem a circunstância de haver pago a taxa inerente ao registo, sempre atuado como legítima proprietária da marca, praticando os atos inerentes à titularidade desse direito.

A marca não poderia ter sido apreendida para a massa insolvente na medida em que, à data da insolvência, a mesma já não integrava o património da sociedade devedora, devendo, por isso, ser separada.

Pediu que a marca registada “ G... ” seja separada da massa insolvente e restituída à Autora.

Contestou a Massa Insolvente  “N..., S.A.”, dizendo, em síntese, que a marca G... está regista em seu nome, e a cessão não lhe é oponível, pois não foi registada, devendo manter-se a apreensão.

1.2.- No saneador afirmou-se a validade regularidade da instância, fixando-se à acção o valor de € 30.000,01.

1.3.- Realizada audiência de julgamento foi proferida (22/12/2016)  sentença que decidiu julgar a acção improcedente e absolver os Réus do pedido.

1.4. Inconformada, a Autora recorreu de apelação com as seguintes conclusões:

...

Contra-alegou a Massa Insolvente no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. O objecto do recurso

            A impugnação de facto;

            A propriedade da marca “ G... ”.

            2.2.- Os factos provados ( descritos na sentença )

1. A sociedade N..., S.A. foi no Proc.n.º...- que correu termos pelo extinto 1.º Juízo deste Tribunal, declarada insolvente por sentença proferida em 01.08.2006, transitada em julgado em 04.09.2006, tendo sido nomeado Administrador de Insolvência o Dr. ... e, posteriormente, em 05.05.2008, o Dr. ...;

2. Foi ali homologado plano de insolvência, que não foi cumprido, tendo a credora T..., L.dª requerido, nos autos principais, a declaração de insolvência da devedora, a qual veio ali a ser declarada por sentença proferida em 08.07.2013, tendo sido nomeado Administrador de Insolvência o Dr. ...;

3. No âmbito dos autos principais foi apreendida para a massa insolvente a marca “ G... ” e averbada tal apreensão em 10.03.2014;

4. A marca referida em 3) é uma marca nacional, registada no Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) com o n.º... a favor da sociedade supra identificada em 1);

5. Foi requerido o registo em 11.05.2009 e caducou em 05.03.2014;

6. Com data de 14.05.2008 foi subscrita pelo Administrador de Insolvência ... a declaração de onde consta, além do demais teor, que ora se dá por reproduzido, o seguinte:

 «DECLARAÇÃO ..., na qualidade de Administrador de Insolvência N..., S.A., declara aceitar a cedência a favor da G..., S.A. (…) dos códigos CEPs (Códigos de Empresa Portuguesa), GLNs (Códigos de localização GS1) para a EDI (Transferência Eletrónica de Documentos) e da marca G... atualmente detidos pela N..., S.A. (…).»

7. Em 11.05.2009 a A. procedeu a pagamento da quantia de €35,08 referente a pagamento do registo nacional de marca;

2.3. Os factos não provados ( descritos na sentença )

 a) Que a Requerida não seja a proprietária da marca supra referida desde meados de 2008;

b) Que o pagamento supra referido em 7) diga respeito à marca “ G... ”;

c) Que a Requerente tenha praticado os atos inerentes à titularidade do direito sobre a marca.

2.4.- A impugnação de facto

A Autora, alegando erro na apreciação da prova, pretende que se julguem provados os factos descritos na sentença na rúbrica de “factos não provados”, ou seja, em síntese, que a Autora é a verdadeira proprietária da marca “ G... ” porque a massa insolvente N..., SA cedeu definitivamente, a título oneroso.

Conforme consta da fundamentação, o tribunal, ponderando a valoração dos elementos de prova, justificou com a ausência de prova concludente.

Ouvida integralmente a gravação, verifica-se, em resumo:

...

Em juízo de ponderação global, a prova indicada não impõe decisão diversa, improcedente a impugnação de facto, mantendo-se intangível a factualidade apurada, descrita na sentença.

2.5.- A pretensão da Autora e a propriedade da marca “ G... “.

A atribuição dos direitos da propriedade industrial visa dar efectivação à “função de garantir a lealdade da concorrência “ (cf. art.1º do CPI/2003), mas distingue-se hoje a autonomização entre a tutela dos direitos da propriedade industrial e a defesa da concorrência desleal.

Na verdade, enquanto que a protecção dos sinais distintivos é garantida pela atribuição de um direito privativo e absoluto que confere ao seu titular o uso exclusivo, impedindo outrem da respectiva utilização, a disciplina da concorrência desleal não tem por fim proteger a invenção, o modelo, ou o sinal, em si mesmo, como direitos privativos, mas fundamentalmente regular a concorrência, protegendo o próprio estabelecimento, proibindo actos susceptíveis de ocasionar prejuízos pela confusão deslealmente estabelecida com produtos, serviços ou crédito de um concorrente.

Como se sabe, a marca (art.222 e segs. do CPI) faz parte do elenco dos chamados “sinais distintivos do comércio” e tem por função essencial a distinção de produtos ou serviços (função distintiva).

Nos termos do art.224 nº1 do CPI - “O registo confere ao seu titular o direito de propriedade e de exclusivo da marca para os produtos e serviços a que esta se destina” - assumindo, assim, natureza constitutiva (cf., por ex., Couto Gonçalves, Direito das Marcas, 2ª ed., pág.33 e segs., Carlos Olavo, Propriedade Industrial, pág.66), sendo que a prova dos direitos de propriedade industrial se faz por meio de títulos (art.7 nº1 CPI).

O registo da marca confere ao titular o direito de uso exclusivo (art.258 do CPI), quer através de um “conteúdo de permissão”, quer através de um “conteúdo de proibição” (o poder atribuído ao proprietário de impedir que outros utilizem um sinal confundível com aquele).

Considerando a factualidade apurada, a Autora não comprovou (art.342 nº1 CC) a propriedade do direito à marca “ G... ”, verificando-se que o mesmo está registado em nome da sociedade “N..., SA “.

Por outro lado, não obstante tratar-se de uma propriedade especial, mesmo para quem entenda a aplicação da posse e da usucapião aos direitos de propriedade industrial (cf., por ex., Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, pág.202 ), verifica-se que não está provada qualquer situação possessória.

A posse, segundo a concepção subjectiva (tese savignyana) adoptada pela lei (art.1251 do CC ) é integrada por dois elementos: o corpus (elemento material), que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzida no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse exercício; e o animus, ou seja, a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente a esse domínio de facto.

E a usucapião (art.1287 do CC) depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel e os caracteres da posse. Para conduzir à usucapião, a posse deve revestir duas características – ser pública e pacífica (arts.1293 a), 1297 c) e 1300 nº1 do CC ).As restantes características (ser de boa ou má fé, titulada ou não titulada, estar ou não inscrita no registo) apenas relevam para a determinação do prazo da usucapião.

No caso em apreço não está provado sequer que a Autora tenha praticado actos inerentes à titularidade (cf. facto não provado em c)), que, aliás, nem sequer se explicitaram.

A Autora alegou que a marca lhe foi transmitida porque o Administrador de Insolvência lhe cedeu (14/5/2008) a marca, conforme documento de fls. 22, pese embora não tenha sido feita o registo, por averbamento.

Para além de não se demonstrar que o pagamento da taxa relativa ao registo se reporte à marca “ G... “ (cf. facto não provado em b)), a verdade é que não basta a prova de que fora requerido o registo, já que, por ser constitutivo, o direito apenas existe se e na medida em que esteja registado a favor do seu titular. Como se decidiu no Ac STJ de 15/5/2013 ( proc. nº 7860/06), em www dgsi.pt , “De acordo com o art. 30.º, n.º 1, als. a) e b), do CPI, a transmissão e concessão de licenças de exploração, exclusiva ou não, estão sujeitas a averbamento no INPI, só produzindo efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo averbamento”.

Sendo o direito à marca livremente transmissível (art.262 CPI), a transmissão (em sentido amplo) pode abranger a propriedade ou apenas o seu uso e fruição, admitindo-se hoje um sistema não vinculado ou de não conexão, ao adoptar-se o chamado “sistema de cessão misto”, em que se não se impõe uma cessão vinculada da marca ao estabelecimento, também não é permitido uma livre transmissão, já que condicionada ao princípio da verdade.

Ora, o documento de fls. 22 (declaração do Administrador de Insolvência) não vale como título de transmissão, além de que se imporia o registo, que não foi feito (art.30 nº1 a) CPI).

E não vale desde logo por falta dos elementos constitutivos, pois para além de mencionar apenas a cedência (“declara aceitar a cedência”),  refere-se à cedência dos códigos, sendo que lhe faltam os demais elementos do negócio jurídico, como a declaração de vontade da Autora.

Mesmo a entender-se que tal se insere no âmbito de um contrato de cessão de exploração ou locação de estabelecimento, a verdade é que nem isso foi alegado, e muito menos junto o respectivo contrato.

Por outro lado, também não se reconduz a um contrato de licença de exploração de marca, que por definição pressupõe uma declaração bilateral de vontades, e para o qual a lei exige documento escrito (art.32 nº4 CPI), como formalidade ad substantiam (cf., por ex., Carlos Olavo, Contrato de licença de exploração da marca, Direito Industrial, vol.1, pág.360 e segs.)  e o documento apenas está assinado pelo Administrador de Insolvência.

2.6. Síntese conclusiva

a)A marca faz parte do elenco dos chamados “sinais distintivos do comércio” e tem por função essencial a distinção de produtos ou serviços (função distintiva).

b)O registo da marca, de natureza constitutivo, confere ao titular o direito de uso exclusivo, quer através de um “conteúdo de permissão”, quer através de um “conteúdo de proibição”.

c) A transmissão (em sentido amplo) do direito à marca pode abranger a propriedade ou apenas o seu uso e fruição, admitindo-se hoje um sistema não vinculado ou de não conexão, ao adoptar-se o chamado “sistema de cessão misto”.

d) Para o contrato de licença de exploração de marca a lei exige documento escrito, como formalidade ad substantiam.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.

2)

            Condenar a Apelante nas custas.

            Coimbra, 14 de Novembro de 2017.


( Jorge Arcanjo )

( Isaías Pádua )

( Manuel Capelo )