Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141587/13.5YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: INCOMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
REMESSA DO PROCESSO
OPOSIÇÃO
INJUNÇÃO
Data do Acordão: 02/03/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 96º E 99º Nº2 DO CPC, DL Nº 218/99 DE 15/6
Sumário: 1.- Para os efeitos do disposto no art. 99º, nº 2, do NCPC, no caso remessa dos autos ao tribunal administrativo, deve considerar-se injustificada a oposição de um demandado em requerimento de injunção, para cobrança de dívidas a instituições de saúde do Serviço Nacional de Saúde, quando este tem possibilidade de se defender abertamente, arguindo nulidades, excepções dilatórias e peremptórias, apenas não podendo deduzir reconvenção.

2.- Sendo, todavia, este o único mecanismo que em concreto invoca para considerar limitada a sua possibilidade de defesa, por não poder peticionar reconvencionalmente, por sua vez, o pagamento ao demandante de valores pecuniários decorrentes de tratamentos prestados por ele demandado a utentes beneficiários do demandante, sem que, contudo, lhe esteja defeso arguir a excepção de compensação.

3.- Devendo tal oposição considerar-se, também, injustificada por ser esse regime da injunção o que o legislador mandou aplicar no actual art. 1º, nº 2, do DL 218/99, de 15.6, que rege as cobranças de dívidas a instituições de saúde do Serviço Nacional de Saúde, e não o regime do processo administrativo, ainda que eventualmente permissivo de uma defesa com maior latitude.

Decisão Texto Integral:
I – Relatório

1.Centro Hospitalar de A...– E.P.E., com sede em (...), intentou contra Serviço de Saúde da Região Autónoma da B... – E.P.E., com sede no (...), injunção, ao abrigo do art. 1º, nº 2, do DL 212/99, de 15.6, na redacção do art. 192º da Lei 64-B/2011, de 30.12, peticionando a quantia de 14.289,08 €, por prestação de serviços médicos a pessoas que identificou, e que alegou serem beneficiários da entidade R.
A R. contestou, e além do mais, arguiu a excepção dilatória de incompetência material do tribunal.
O A. respondeu, pugnando pela competência do tribunal comum cível.
Foi proferida decisão que declarou a incompetência material do tribunal, decisão que transitou em julgado.
Após, veio o A. requerer a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, nos termos do art. 99º, nº 2, do NCPC.
A R. opôs-se, alegando essencialmente que a injunção, contemplada no DL 269/98, de 1.9, é um procedimento especial, não existindo no elenco das acções administrativas nenhuma com a mínima semelhança processual, pelo que as suas garantias de defesa ficam comprometidas, limitando-se à contestação, nem sendo possível, inclusive, deduzir reconvenção, nomeadamente demandando o pagamento ao A. dos valores decorrentes de tratamentos prestados pela R. a utentes beneficiários daquele, ao contrário do que acontece na marcha do procedimento administrativo, onde se prevê um vasto leque de possibilidades de defesa, admitindo-se a reconvenção bem como outros expedientes. Ademais a letra do art. 99º, nº 2, inculca que o aproveitamento dos articulados se dá apenas na jurisdição cível.
O A. respondeu, dizendo que num processo de injunção com valor superior à alçada de 1ª instância é possível deduzir reconvenção e deduzir excepções, sendo certo até que logo que o requerido deduza oposição o processo de injunção segue os termos do processo comum declarativo.  
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Foi, depois, proferido despacho que indeferiu o requerido.
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2. O A. interpôs recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1. O Tribunal teria de expor as razões pelas quais emite o juízo valorativo dos argumentos apresentados pela Ré, isto é os motivos que considera relevantes para a alegada impossibilidade de defesa, quando aderiu na íntegra aos fundamentos aduzidos pela Ré para a oposição à remessa do processo para o Tribunal competente.
2. O que tem de ser feito através de um discurso fundamentador, de concreta intensidade, que demonstre a lógica, pertinência e razoabilidade do juízo formulado, o que não sucedeu.
3. Ao decidir apenas que inexiste fundamento para que o processo seja remetido para o tribunal competente, apenas por se tratar de um procedimento de injunção, por o mesmo não ter qualquer equivalência nas ações que correm nos tribunais administrativos, e sem mais concluir pelo indeferimento, violou a decisão o disposto no n.º 2 do artigo 99º do C. P. Civil, bem como o n.º 2 do artigo 7.º do D. L. 32/2003 de 17 de Fevereiro.
4. Pelo que devem os motivos invocados pela R. ser considerados irrelevantes e injustificados e a decisão de indeferimento do pedido de remessa dos autos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, ser substituída por outra que ordene o respetivo envio, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 99.º do C.P. Civil, por existir equivalência entre esta ação comum e as ações do mesmo tipo que correm pelos Tribunais Administrativos.
Decidindo assim, farão V. Exas.
JUSTIÇA!
3. A R. contra-alegou, tendo concluído como segue:

A – Nos autos não estão em causa obrigações pecuniárias de origem contratual. O A. não fundamentou o seu pedido em qualquer contrato celebrado com a ora Recorrente. A. e R. são ambas entidades/pessoas coletivas de natureza pública, conforme caracterização constante do DL n.º 558/99, de 17/12.

B – Existe antes uma relação de financiamento e de distribuição de encargos entre o Estado e a Região Autónoma da Madeira, questão que pela sua complexidade não cabe essa questão no âmbito jurídico da Injunção, cuja forma foi mandada aplicar pelo art. 192.º da Lei 64-B/2011, de 30/12 ao regime de cobrança de dívidas constante do DL 218/99, de 15 de Junho, adaptado à RAM pelo DLR n.º 1/2000/M de 31 de Janeiro.

C - O regime jurídico da injunção enquanto processo especial diminui fortemente as garantias de defesa da R. E a forma processual de Injunção iniciada pela A. nos presentes Autos, não é sanável.

D - O Balcão Nacional de Injunções é uma secretaria judicial integrada na orgânica dos tribunais judiciais, tendo, enquanto secretaria-geral, competência para tramitar as injunções em todo o território nacional e os procedimentos regulados no regime anexo ao Decreto- -Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro (Acão declarativa especial e injunção), têm aplicação apenas no âmbito da jurisdição comum, sendo inaplicáveis na jurisdição administrativa.

E - Do elenco das Ações constantes do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais não consta nenhuma que tenha a mínima semelhança processual com a prevista do DL 269/98 de 1/09 e no caso sub judice, estão findos os articulados, pelo que está fixada a pretensão das partes, ficando a R. diminuída na sua defesa.

F- Pelo contrário, a marcha do procedimento administrativo prevê um vasto leque de mecanismos de defesa da Recorrida vg. a reconvenção, favorável à Recorrida bem como outros expedientes que a Acão especial ora em causa não permite.

G- Do art. 99.º n.º 2 do CPC só pode resultar a permissão de aproveitamento dos articulados dentro da jurisdição civil, atenta a especificidade e identidade da marcha processual desta jurisdição. Se o legislador quisesse ser mais abrangente teria que ter feito, como fez o seu antecessor, no n.º 2, do art. 14.º do ETAF.

H - O Recorrente pretende fazer operar um efeito secundário (n.º 2, do art. 99.º do CPC) da decisão principal, não recorrida. Na sua decisão o Meritíssimo juiz ad quo conformou a sua decisão: fundamentada na peça processual a que aderiu. A decisão do juiz ad quo fez suas, integrando na sua decisão e desse modo fundamentando-a, as razões aditadas pela ora alegante.

I – A ser como pretende o Recorrente estar-se-ia a subtrair ao pagamento de custas judiciais beneficiar da isenção de pagamento de taxas de justiça nos termos do art. 24.º do Decreto-lei n.º 34/2008 de 26/02, que na jurisdição administrativa não teria lugar.
J- Deve em consequência ser mantida a decisão ora recorrida.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.
- Remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal.

2. Dispõe o art. 99º, nº 2, do NCPC que “Se a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira … a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ser proposta, não oferecendo o réu oposição justificada”.
A decisão recorrida baseou-se no seguinte discurso:
Ora o Réu ofereceu oposição justificada, à qual se adere.
É que, no caso concreto estamos perante um procedimento de injunção que se transmutou em AECOP, a qual não tem qualquer equivalência nas acções que correm termos pelos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo a marcha processual completamente diferente.
Diga-se ainda, que a remeter-se os autos àquele tribunal não é só a questão relativa à defesa do réu que pode estar em causa, mas igualmente poder sempre o A. no futuro intentar acções iguais à aqui intentada, sabendo que sendo os Tribunais Judiciais incompetentes, sempre remeteriam os autos aos Tribunais Administrativos.
Por fim a própria letra da lei parece afastar a possibilidade de remessa em casos como presente pois que no artigo 99º nº2 se refere expressamente “findos os articulados” não se podendo considerar um verdadeiro articulado o requerimento de injunção.”.
Nos transcritos 1º e 2º parágrafos do despacho sob recurso, a fundamentação identifica-se totalmente com a posição defendida pela R. No 4º parágrafo avança-se argumento diferente do invocado pela R. Por outro lado, a conclusão da R., sob I., é também irrelevante para o objecto do presente recurso, saber se há lugar ou não à remessa dos autos para o tribunal administrativo e fiscal. Vejamos então a lei e os 4 grandes argumentos das partes e do tribunal recorrido.
À partida é imediatamente de rejeitar o argumento da recorrida que o regime do citado art. 99º, nº 2, está traçado apenas para aproveitamento dos articulados dentro da jurisdição civil.
Basta constatar que tal artigo se reporta a um efeito da incompetência absoluta (epígrafe do artigo), que a incompetência absoluta pode decorrer de infracção das regras de competência em razão da matéria (art. 96º, a), do NCPC), como no caso ocorreu, e que tal competência material pode dizer respeito a outros tribunais jurisdicionais, como o administrativo, que não aos tribunais judiciais, como resulta do art. 64º do NCPC. Portanto, a conclusão que se impõe tirar é que os processos que correm nos tribunais judiciais podem ser remetidos, à sombra desse art. 99º, nº 2, para os tribunais administrativos.
No diploma que actualmente rege as cobranças de dívidas a instituições de saúde do Serviço Nacional de Saúde (DL 218/99, de 15.6), o art. 1º, nº 2 (na redacção do art. 192º da Lei 64-B/2011, de 30.12) mandou aplicar o regime jurídico da injunção.
Neste campo regula o DL 269/98, de 1.9. Nos termos do art. 7º do regime anexo ao diploma preambular “Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro”.
Ora, ao nosso caso não se aplica o referido art. 1º do diploma preambular, que prevê a exigência de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15.000 €, porquanto a quantia que se reclama não emerge de nenhum contrato celebrado entre o A. e a R.
E tão-pouco é aplicável o regime do DL 32/2003, designadamente o seu art. 7º, nº 2, ao contrário do que o recorrente argumenta, visto que tal diploma regula apenas as transacções comerciais (cfr. os seus arts. 1º, 2º, nº 1, 3º, a), e 7º, nº 1), e o A. e a R., igualmente, não concluíram nenhuma transacção comercial. Tanto é assim, que no modelo de injunção o A. mencionou expressamente que não se tratava de uma transacção comercial. Rejeita-se, assim o referido argumento do recorrente.
A remessa que aquele art. 1º, nº 2, do DL 218/99 faz para o regime jurídico da injunção deve entender-se, por isso, no caso concreto em análise, como referente apenas ao regime processual a operar.   
Neste âmbito, resulta de tal DL 269/98 que, deduzida oposição pelo requerido são os autos distribuídos (art. 16º, nº 1, do mesmo DL), seguindo-se, com as necessárias adaptações, o regime da acção declarativa especial nesse DL previsto (como dispõe o art. 17º, nº 1, do mesmo DL).
Decorrentemente, pode o juiz convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais (art. 17º, nº 3). Ora, se podem ser aperfeiçoadas as peças processuais, designadamente o requerimento de injunção, e os articulados, segundo a definição do art. 147º, nº 1, do NCPC, são as peças processuais em que as partes expõem os fundamentos da acção e da defesa e formulam os pedidos correspondentes, é um manifesto preciosismo dizer, como o juiz a quo disse que o requerimento de injunção não era um articulado. E partindo daí argumentar, incorrectamente, que a lei no citado art. 99º, nº 2, do NCPC, só previa a eventual remessa dos autos ao tribunal competente na situação em que houvesse “articulados”, argumento que é, pois, de rejeitar.
Igualmente pode o juiz julgar, logo, procedente, alguma nulidade ou excepção dilatória ou decidir do mérito da causa (art. 3º, nº 1), e não sendo o caso realiza-se audiência de julgamento sendo as provas oferecidas na audiência (art. 3º, nº 4).
Aqui chegados, entramos no último argumento, o da recorrida a que o tribunal aderiu, respeitante à forte diminuição das garantias da defesa da R. versus o vasto leque de mecanismos de defesa proporcionados pelo procedimento administrativo, designadamente a reconvenção.   
A leitura da recorrida é desde logo demasiado redutora. Repare-se que, face ao texto legal (o indicado nº 1, do art. 3º), o demandado em processo de injunção pode deduzir nulidades. E pode deduzir excepções dilatórias. Foi o que aliás a recorrida fez, arguindo a excepção de incompetência material do tribunal. E pode, inclusive, deduzir excepções peremptórias, visto que o conhecimento das mesmas implica, nos termos cristalinos do art. 595º, nº 1, b), e 3, 2ª parte, do NCPC, decidir do mérito da causa. Portanto o leque de possibilidades de defesa não é fortemente diminuído, como afirma a recorrida, até é bem vasto.
Concede-se, que não é possível deduzir reconvenção, mas a recorrida confere demasiado peso a este mecanismo. Isto porque, segundo argumentou não poderá demandar o pagamento ao A. dos valores decorrentes de tratamentos prestados por ela recorrida a utentes beneficiários do A. Sendo certa tal afirmação, nada, porém, impede que qualquer demandado, designadamente a ora recorrida, na sua defesa venha invocar a excepção peremptória de compensação, designadamente, no caso em apreço, até ao limite do valor reclamado pelo A. O que a apelada não fez.
Assim, a importância que a apelada imprime à não possibilidade de reconvenção - único mecanismo que em concreto invocou para considerar limitada a sua possibilidade de defesa – é excessiva e desrazoável. O que nos leva de imediato a inclinar-nos por considerar a sua oposição ao requerimento do A. de remessa dos autos para o tribunal administrativo como oposição injustificada.
Mais, do que isto, e decisivamente, podemos esgrimir com outra razão legal. Pouco parece interessar que a marcha do procedimento administrativo seja mais versátil ou mais ampla ou diversificada em termos de mecanismos de defesa dos demandados nas acções administrativas, ou que nenhuma acção destas tenha a mínima semelhança processual com a prevista no DL 269/98, justamente porque foi o legislador que, deliberadamente, ordenou que fosse seguido o regime jurídico da injunção, nos termos do actual art. 1º, nº 2, do apontado DL 269/98, em relação às cobranças de dívidas a instituições de saúde do Serviço Nacional de Saúde. Como é ocaso dos autos.
Se a recorrida tem criticas a fazer, quanto às suas possibilidades de defesa, é ao legislador que as deve dirigir. Desta sorte, consideramos a referida oposição da recorrida injustificada, impondo-se, antes, deferir o requerido pelo A.
3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):
i) Para os efeitos do art. 99º, nº 2, do NCPC, no caso remessa dos autos ao tribunal administrativo, deve considerar-se injustificada a oposição de um demandado em requerimento de injunção, para cobrança de dívidas a instituições de saúde do Serviço Nacional de Saúde, quando este tem possibilidade de se defender abertamente, arguindo nulidades, excepções dilatórias e peremptórias, apenas não podendo deduzir reconvenção;
ii) Sendo, todavia, este o único mecanismo que em concreto invoca para considerar limitada a sua possibilidade de defesa, por não poder peticionar reconvencionalmente, por sua vez, o pagamento ao demandante de valores pecuniários decorrentes de tratamentos prestados por ele demandado a utentes beneficiários do demandante, sem que, contudo, lhe esteja defeso arguir a excepção de compensação;
iii) Devendo tal oposição considerar-se, também, injustificada por ser esse regime da injunção o que o legislador mandou aplicar no actual art. 1º, nº 2, do   
DL 218/99, de 15.6, que rege as cobranças de dívidas a instituições de saúde do Serviço Nacional de Saúde, e não o regime do processo administrativo, ainda que eventualmente permissivo de uma defesa com maior latitude.
         

IV – Decisão


Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando o despacho recorrido, e, em consequência, se ordenando o envio dos autos ao tribunal administrativo.
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Custas pela recorrida.
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Coimbra, 3.2.2015


Moreira do Carmo ( Relator )