Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
182-N/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
SENTENÇA
PAGAMENTO INDEVIDO
CREDOR
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 213º DO CPEREF
Sumário: 1. O pagamento feito aos credores na pendência do recurso da sentença de graduação de créditos, sem observância das “cautelas de prevenção” (art. 213º do CPEREF), quando, por decisão definitiva, veio posteriormente a alterar-se essa graduação dos créditos, traduz uma forma de pagamento indevido, que implica a restituição.
2. Não obstante o tribunal haver determinado a reposição das quantias indevidamente recebidas, não pode ordenar o arresto dos bens, por aplicação analógica do disposto no art. 854º, nº 2 do CPC.

3. Perante o pagamento indevido, compete ao liquidatário judicial promover a restituição, por se tratar de um crédito da massa falida.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

         1.1. - No Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, por sentença de 26/2/2001 (fls.220 a 26), transitada em julgado, foi decretada a falência de A…, Lda e reclamados os créditos, sendo graduados em 1º lugar os créditos dos trabalhadores (rateadamente) e em 2º lugar os demais créditos.

         O Instituto da Segurança Social IP (Centro Distrital da Segurança Social de Leiria) recorreu e a Relação, por acórdão de 20 de Junho de 2006, transitado em julgado, alterou a graduação nos seguintes termos: em 1º lugar o crédito hipotecário da Segurança Social, em 2º lugar os créditos dos trabalhadores.

         1.2. - Elaborada a liquidação de fls.325 e segs., procedeu-se ao pagamento dos credores/trabalhadores (fls.364 e segs.).

         1.3. - Por despacho de 16/10/2008 (fls.437), determinou-se nova liquidação, corrigindo-se a efectuada a fls. 325 e segs., que contemple o pagamento do crédito do ISS, IP, graduado em 1º lugar.

         Em 15/12/2008 foi feita nova liquidação (fls.445 e segs.) e nela se consignou que os trabalhadores identificados receberam indevidamente as importâncias discriminadas, “sendo que cada um deverá repor o recebido à ordem da Massa Falida, representada pela Liquidatária Judicial, a favor da Credora Segurança Social (…)”.

         Os trabalhadores requereram (fls.475) que o tribunal considere como devido o recebimento das quantias entregues em Maio de 2007 e que, caso haja dinheiro a repor ao ISS, IP, seja efeito pelo IGF, por a omissão ser do tribunal.

         Por despacho de 5/5/2009 (fls.507), transitado em julgado, indeferiu-se o requerido.

         1.4. - Por despacho de 11/11/2009 (fls.531) decidiu-se:

         “ (…)

         “ Na medida em que o produto da liquidação é insuficiente para a satisfação do crédito privilegiado do Centro Regional de Segurança Social de Leiria, nada a determinar senão a restituição pelos trabalhadores dos montantes indevidamente entregues aos mesmos, devendo aqueles ser notificados para, no prazo de 15 dias, depositarem nos autos, a favor da massa falida, representada pela Sra. Liquidatária Judicial, Dra Teresa Alegre, os referidos montantes, com a advertência de que não o fazendo, poderão ser executados nos seus próprios bens, até ao valor indevidamente retido”

         “Notifique–se o presente despacho a todos os interessados e ao Ministério Público”.

         1.5. - Por despacho de 19/1/2010 (fls.543) decidiu-se:

         “ Transitado que se mostra o despacho de fls. 532, sem que se achem realizados os depósitos ordenados, e não sendo de iniciativa oficiosa, notifique o credor graduado em primeiro lugar bem como a Sra Liquidatária Judicial para requererem o que tiverem por conveniente”.

         1.6. – O Instituto da Segurança Social, IP (Centro Distrital de Leiria), alegando (fls.549), em resumo, que segundo a liquidação de fls.445, o ISS, IP é credor da importância de € 172.024,14, a qual ainda não lhe foi paga, e que deverá ser satisfeita no âmbito do processo; o ISS, IP não tem legitimidade para instaurar execução contra aqueles q quem, por erro, foram entregues quantias depositadas à ordem do processo; a legitimidade caberá ao Ministério Público, à Sra. Administradora de Insolvência ou ao próprio tribunal, requereu que o tribunal determine a execução da decisão de fls.531 e bem assim, independentemente do resultado da mesma, o pagamento ao ISS da parte do seu crédito, conforme liquidação de fls.445.

         1.7. - Por despacho de 3/3/2010 (fls.552) decidiu-se:

         “ (…)

         “ Fls.549: Não se mostrando voluntariamente cumprido o acórdão de fls.40 a 42 do apenso B, cabe ao I.S.S., I.P., enquanto titular do direito em causa diligenciar, querendo, pela execução ou obtenção coerciva do mesmo, nada mais havendo a determinar a este propósito.

         “ Notifique”

         O ISS, IP requereu (fls.561) a reforma do despacho, o que foi indeferido por decisão de 21/4/2010 (fls.564).

         1.8. - Inconformado, o Instituto da Segurança Social, IP recorreu de agravo – admitido com subida imediata e em separado – (fls.568, 586 e segs), com as seguintes conclusões:

         1.9. - Contra-alegou (fls.601 e segs.) o Ministério Público, em síntese:

         O recurso deve ser rejeitado (art.679º CPC), porque o despacho não é recorrível, dado traduzir-se em despacho de mero expediente.

         A reparação do lapso ocorrido não pode ser efectuada através de qualquer promoção do Ministério Público ou do ISS, IP no âmbito do presente processo.

         Competirá ao ISS, IP tomar as providências necessárias que entender, noutro âmbito processual, no sentido de obter aquela reparação.


II – FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – Questão prévia:

         O recurso incide sobre o despacho de 3/3/2010 (fls.552) que apreciando o requerimento do ISS, IP (fls.549) decidiu não acolher a pretensão requerida.

         O Ministério Público/agravado suscitou a questão prévia da (in)admissibilidade do recurso, por se tratar de despacho de mero expediente.

         Cumpre decidir:

         Porque o processo se iniciou em 26 de Fevereiro de 2001, é aplicável o regime processual civil anterior à reforma instituída pelo DL nº 303/2007 de 24/8, em vigor desde 1 de Janeiro de 2008 (art.12º).

         Como excepção à regra geral do art.676º, nº1 do CPC, o art.679º do CPC diz que “não admitem recurso os despachos de mero expediente”.

Na definição legal (art.156º, nº4 CPC), “os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes”.

Compreendem os despachos internos, proferidos no âmbito das relações hierárquicas com a secretaria, e os despachos que se reportam à mera tramitação do processo, sem afectarem os direitos das partes ou de terceiros. Mesmo assim, entende-se que só são irrecorríveis se forem proferidos de acordo com a lei.

O despacho recorrido não se destinou a regular a tramitação processual, antes emitiu um pronunciamento judicativo (negativo) sobre a pretensão requerida pelo ISS, IP. O sentido que se colhe, no contexto dos actos processuais e segundo o critério dos arts.236º e 238º do CC, aplicável aos actos judiciais (art.295º CC), é de que foi indeferido o pedido de execução (oficiosa) do anterior despacho de fls.531 e do consequente pagamento, em conformidade com a liquidação de fls.445, requeridos pelo agravante.

Sendo assim, o despacho contende com o direito do agravante, na qualidade de credor da massa falida, e, não se tratando de mero expediente, é recorrível.

Improcede a questão prévia.

2.2. – O mérito do recurso:

Para a decisão do recurso relevam, porque documentados no processo, os actos acima descritos.

O problema surgiu porque não foram feitas as “cautelas de prevenção”, impostas no art.213º do CPEREF, cujo objectivo é evitar o risco da não reposição das quantias indevidamente pagas ( designadamente havendo recurso da sentença de verificação e graduação de créditos, deviam continuar depositadas as quantias provenientes da liquidação do activo e só após o trânsito é que se poderia autorizar o levantamento e efectuado o rateio pelos credores), verificando-se que os trabalhadores (graduados em 2º lugar) foram pagos com preterição do credor ISS, IP (graduado em 1º lugar).

Efectuada nova liquidação, constata-se que os trabalhadores receberam indevidamente as quantias que lhe foram entregues. Para além de haver sido indeferido o pedido dos trabalhadores no sentido de que a reposição fosse efectuada pelo Instituto de Gestão Financeira (cf. fls.475 e 507), a verdade é que, por despacho de 11/11/2009 (fls.531), transitado em julgado, ordenou-se judicialmente a restituição e a notificação para, no prazo de 15 dias, depositarem tais importâncias nos autos a favor da massa falida, “com a advertência de que não o fazendo, poderão ser executados nos seus próprios bens, até ao valor indevidamente retido”.

Perante isto, a questão essencial submetida recurso é a de saber se, não tendo os credores/trabalhadores reposto voluntariamente as importâncias indevidamente recebidas, pode o tribunal oficiosamente promover o arresto dos bens e a execução contra os credores/trabalhadores (posição do agravante) ou se qualquer procedimento terá que passar pelo impulso das partes (posição do tribunal e do Ministério Público).

Para justificar a actuação oficiosa do tribunal, considera o agravante ser aplicável, com as devidas adaptações, o disposto no art.854 nº2 CPC ( relativo ao dever de apresentação dos bens por parte do depositário), posição que também parece estar subjacente ao despacho judicial de 11/11/2009 ( fls.531), face ao teor da advertência.

         Esta norma, dirigida ao depositário que não cumpre o dever de apresentação dos bens móveis penhorados, prevê a possibilidade de execução no próprio processo contra o depositário (“ao mesmo tempo é executado no próprio processo“), a partir de um título executivo (“título judicial impróprio”), funcionando como “execução acessória” ou processo executivo incidental da execução principal, à qual está colimada.

E estabelece a lei a possibilidade de ser ordenado imediatamente o arresto (“é logo ordenado o arresto em bens do depositário suficiente”), sem necessidade de outras provas, o qual fica dependente da execução a requerer (“ ao mesmo tempo”).

Porém, constituindo o nº2 do art. 854º do CPC uma norma excepcional não é susceptível de aplicação analógica (art.11 do CC), mesmo até aos casos da penhora de bens imóveis (cf., por ex., Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol.3º, pág.442, Anselmo de Castro, Acção Executiva, 3ª ed., pág.153; Ac RL de 4/5/2010, proc. nº 648/04, em www dgsi.pt), pelo que jamais o tribunal poderia oficiosamente ordenar o arresto dos bens dos trabalhadores (credores graduados em 2ª lugar).

         A liquidação do activo do falido para pagamento das dívidas aos credores é o objectivo essencial do processo de falência (art.134º, nº1 do CPEREF), da qual está encarregado o liquidatário judicial, representante legal da massa falida, com a cooperação e fiscalização da comissão de credores.

E a afectação do produto da liquidação do património do falido ao pagamento dos débitos deste não produz o imediato ingresso daquele produto no património dos credores, pertencendo ao falido enquanto não for efectivamente destinado ao pagamento, segundo a respectiva graduação dos créditos.

         O pagamento indevido realizado aos trabalhadores, implica a sua reposição, quer se entenda a repetição do indevido como modalidade do enriquecimento sem causa (condictio indebiti) - cf., por ex., Júlio Gomes, O Conceito de Enriquecimento, O Enriquecimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento Sem Causa, 1998, pág.500 e segs. -, quer como anulação do próprio cumprimento, concebido como simples acto jurídico ( cf., por ex., Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária, pág.93 e segs.), sabido que foi anulada a liquidação de fls.325 e segs. e ordenada nova liquidação em conformidade com o decidido pela Relação, significando, por isso, a anulação do próprio cumprimento, que tem como efeito a obrigação de restituição das quantias recebidas, por força do art.289º, nº1 CC, aplicável nos termos do art. 295º CC.

         Sendo assim, trata-se de um crédito da massa insolvente, competindo ao liquidatário, que é quem representa a massa em juízo (art.134º, nº 4, a) do CPEREF), promover a sua cobrança judicial, com a concordância da comissão de credores (por aplicação do art.146º do CPEREF) e não ao MP.

         Em resumo, improcede o agravo, confirmando-se o despacho recorrido.

         2.3. - Síntese conclusiva:

         1. - O pagamento feito aos credores na pendência do recurso da sentença de graduação de créditos, sem observância das “cautelas de prevenção” (art. 213º do CPEREF), quando, por decisão definitiva, veio posteriormente a alterar-se essa graduação dos créditos, traduz uma forma de pagamento indevido, que implica a restituição.

         2. - Não obstante o tribunal haver determinado a reposição das quantias indevidamente recebidas, não pode ordenar o arresto dos bens, por aplicação analógica do disposto no art.854º, nº 2 do CPC.

         3. - Perante o pagamento indevido, compete ao liquidatário judicial promover a restituição, por se tratar de um crédito da massa falida.


III – DECISÃO


         Pelo exposto, decidem:

1)

         Julgar não provido o agravo e confirmar o despacho recorrido.

2)

         Condenar o agravante nas custas.

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Jorge Arcanjo (Relator)
Regina Rosa
Artur Dias