Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1279/08.5TBGRD-H.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
SANAÇÃO DA NULIDADE
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 668.º N.º 1 B) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E ARTIGOS 266.º N.º 4 E 535.º N.º 1 CPC
Sumário: I - Só a total falta de fundamentação é que se traduz na nulidade prevista no artigo 668.º n.º 1 b) do Código de Processo Civil, pelo que esta não ocorre quando a fundamentação é reduzida.

II - É à parte, que vê utilidade na obtenção de uma informação junto de um terceiro, que cabe diligenciar para a obter. Nos termos dos artigos 266.º n.º 4 e 535.º n.º 1 CPC, o tribunal só terá que decidir se deve ordenar que seja prestada essa informação, se tal lhe vier a ser requerido por alguma das partes, com o fundamento de que ela própria a tentou obter, mas que a entidade a quem a solicitou não lha prestou.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

Na acção declarativa, com processo ordinário, que corre termos na Comarca da Guarda, em que são autores A... e B...e réus C...e D..., foi por aqueles apresentado um requerimento em que pedem que o tribunal oficie à Câmara Municipal da ..., à Junta de Freguesia de ... e ao Veterinário Municipal no sentido destas entidades informarem se os réus faltaram ao dever de licenciamento e vacinação dos cães.

Este pedido foi indeferido pela Meritíssima Juíza, dizendo no seu despacho que no que respeita aos elementos que os autores pretendem que sejam recolhidos juntos das entidades acima indicadas, considera-se que os mesmos não são necessários para o esclarecimento da verdade, pois incidem sobre factos negativos, sem a virtualidade, por isso, de demonstrarem, pela positiva, os factos questionados nos artigos 50.º a 61.º da base instrutória (cfr. art. 535.º/1, a contrario, do CPC).

Dessa decisão foi interposto pelos autores o presente recurso, o qual foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

I - Tratando-se de um conflito de vizinhança em que, já no procedimento cautelar apenso, foi reconhecido que os RR. perturbavam a vida dos vizinhos, os AA., com os ruído dos animais nocturnos, impeditivos do descanso do casal, tem pertinência (e foi-­lha dada por despacho transitado) perguntar à parte contrária quantos cães têm e como se identificam.

II - Ao responderem os RR. que não têm cães, contra os dados do processo, ou, pelo menos, contra um dos dados da providência cautelar que o incorporou até no dispositivo decretado, constituíram-se na infracção do dever de colaboração probatória, da qual decorre a inversão do ónus da prova no domínio identificado.

III - Mas havia que consolidar a recusa de colaboração dos RR. e, por isso, os recorrentes requereram junto das autoridades municipais e veterinárias que fossem levados a cabo certos pedidos de informação, tendentes a comprovar, por presunção judicial validada, a improvável verdade da resposta negativa da parte contrária, sobre se tinha ou não cães.

IV - Estas informações seriam o meio de prova adequado da consolidação do elemento de recusa à actividade probatória, por parte dos RR..

V - Contudo, no despacho recorrido foi dito não terem merecimento e, por isso, foi indeferido o pedido apresentado naquele sentido pelos recorrentes.

VI - É manifesto que não é assim, mas também o despacho recorrido não desenvolveu ou apresentou quaisquer elementos de onde pudesse ser retirada a conclusão da impertinência do uso pelos AA. do meio de prova requisitado.

VII - Assim, o despacho recorrido é, desde logo, nulo, por carência de fundamentação (art.º 158.º/1 CPC e 18.º/3, 205.º/2 CRP) mas também deve ser revogado, porque o pedido dos AA. é consistente com a lei (519.º/2 CPC).

Não foram apresentadas contra-alegações.

Nos termos do artigo 705.º do Código de Processo Civil[1], foi proferida decisão sumária pelo relator, que julgou improcedente a apelação e manteve a decisão recorrida, pese embora com fundamentação diferente.

Dessa decisão os autores reclamaram para a conferência nos termos do disposto no artigo 700.º n.º 4.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação e se deve ser deferida a diligência de prova que foi requerida pelos autores.


II

1.º


Os autores sustentam que o despacho recorrido é nulo por carência de fundamentação[2].

O artigo 205.º n.º 1 da Constituição da República impõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Obedecendo a esse comando constitucional, o n.º 1 do artigo 158.º estabelece que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, acrescentando o artigo 668.º n.º 1 b) que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Por sua vez, do n.º 3 do artigo 666.º resulta que o disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, até onde seja possível, aos próprios despachos.

A fundamentação consiste no conjunto nas razões de facto e/ou de direito em que assenta a decisão; os motivos pelos quais se decidiu de determinada forma. Se a decisão é a conclusão de um raciocínio a fundamentação são as premissas de que ela emerge[3]. E, no que toca à fundamentação de direito, esta contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador. (…) Não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão[4].

Por outro lado, vem sendo unanimemente entendido que apenas a falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito constitui a nulidade prevista na al. b) do nº.1 do dito art. 668º - cfr. A. dos Reis in CPC Anot. vol. V. pág. 140, Prof. Castro Mendes in Direito Processual Civil, vol. II, pág. 806 e, para além dos já referidos, os Acs. do STJ de 15.3.74, in BMJ 235-152, de 8.4.75, in BMJ 246-131, de 24.5.83, in BMJ 327-663 e de 4.11.93, in CJ - Acs, do STJ, ano I, 3, 101[5].

No caso dos autos, a Meritíssima Juíza indeferiu os pedidos de informação junto das três entidades mencionadas pelos autores por considerar que os mesmos não são necessários para o esclarecimento da verdade, pois incidem sobre factos negativos, sem a virtualidade, por isso, de demonstrarem, pela positiva, os factos questionados nos artigos 50.º a 61.º da base instrutória (cfr. art. 535.º/1, a contrario, do CPC).

Assim, parece claro que o despacho está fundamentado, pois nele figuram as razões por que se não determina o que foi pedido, o mesmo é dizer que aquele não é nulo por falta de fundamentação.


2.º

Quanto às diligências requeridas, importa, em primeiro lugar, determinar se elas devem ser, sem mais, realizadas pelo tribunal e, se se concluir pela afirmativa, é que se terá que apurar se são relevantes para a decisão a proferir nos autos.

O artigo 535.º n.º 1 dispõe que incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade. Porém esta norma não pode deixar de ser conjugada com o n.º 4 do artigo 266.º, onde se diz que sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.

Assim, não obstante o juiz poder, em geral, ordenar oficiosamente diligências probatórias (art. 265-3), tem sido entendido que a requisição de documentos é um meio subsidiário, no sentido de só dever ser utilizado, por iniciativa oficiosa ou a requerimento da parte, quando esta não tenha a possibilidade, ou encontre dificuldade apreciável, na obtenção do documento em falta[6]. Deve, pois, ter-se como certo que cabe à parte interessada justificar a dificuldade de, ela própria, obter o documento[7].

Ora, o que se diz para os documentos aplica-se inteiramente às informações, visto que o n.º 4 do artigo 266.º e o n.º 1 do artigo 535.º colocam aqueles e estas em igual plano.

Então, se os autores entendem que, para a decisão da causa, é útil que a Câmara Municipal da ..., a Junta de Freguesia de ... e o Veterinário Municipal informem se os réus faltaram ao dever de licenciamento e vacinação dos cães, cabe-lhes a eles próprios obter junto destas entidades as informações tidas por convenientes.

O tribunal só terá que decidir, nos termos dos artigos 266.º n.º 4 e 535.º n.º 1, se as diligências são pertinentes e se, por isso, as deve ordenar, se tal lhe vier a ser requerido por alguma das partes, com o fundamento de ela própria ter tentado obter a informação, mas a entidade a quem a solicitou não lha ter prestado.

No caso dos autos, os autores parecem querer transferir para o tribunal um encargo que lhes cabe em primeira linha, sendo que essa transferência é por agora infundada, pois não consta que tenham dirigido algum pedido de informação à Câmara Municipal da ..., à Junta de Freguesia de ... ou ao Veterinário Municipal e que todos ou alguns destes se tenham, de forma expressa ou tácita, recusado a dar uma resposta.

Dizem os autores, na sua reclamação para a conferência, que o que pretendem é fazer valer a regra da inversão do ónus da prova contra os RR., por recusa de cooperação judiciária e que por isso não está em causa o interesse particular de um dos litigantes, estamos, sim, no domínio da ordem pública do processo, num sancionamento de um dever geral, indexado, não ao interesse de qualquer litigante, mas ao interesse comunitário da Justiça de apreciação de causas[8].

Com o devido respeito, não se compreende o pensamento dos autores, nem se descortina em que norma ou princípio é que ele assenta.

Se os autores consideram que os réus não estão a prestar a colaboração devida, então, em princípio, a questão terá que ser resolvida nos termos do disposto no artigo 519.º. E, se, porventura, a conduta dos réus, por força do n.º 2 deste artigo, originou a inversão do ónus da prova de algum facto positivo, daí não decorre que a outra parte ou o tribunal têm que diligenciar para provar o respectivo facto negativo.

À luz do que se deixa dito, conclui-se que deve ser indeferido o pedido formulado pelos autores, no sentido daquelas entidades prestarem as informações relativas ao alegado dever de licenciamento e vacinação dos cães. E, para esse indeferimento não é, por agora, necessário formular qualquer juízo quanto à relevância ou irrelevância da diligência para a boa decisão da causa.

Deve, então, ser indeferida a reclamação apresentada pelos autores contra a decisão sumária proferida anteriormente pelo relator.


III

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em conferência em indeferir a reclamação apresentada pelos autores, pelo que se matem o despacho reclamado das folhas 32 a 34 e, em consequência, julga-se improcedente a apelação, mantendo-se o despacho recorrido, pese embora com fundamentação diversa.

Custas da reclamação pelos autores.


António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Hélder Almeida


[1] São do Código de Processo Civil todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
[2] Cfr. conclusão VII. Esta ideia é reafirmada nos pontos 1 a 3 do requerimento de reclamação para a conferência, sem que, no entanto, aqui se use a palavra nulidade.
[3] Alberto dos Reis, Comentário, Vol. II, pág. 172 e 173.
[4] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 688.
[5] Ac. Rel. Coimbra de 3-11-94, Processo 9311, Ref. 9657/1994, www.colectaneade jurisprudencia.com. Neste sentido pode também ver-se Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, obra citada, pág. 687 e Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 703.
[6] Lebre de Freitas, obra citada, pág. 470.
[7] Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 474.
[8] Cfr. folhas 60 e 61.