Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
185/08.8GAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
PROVA INDICIÁRIA
NULIDADE
Data do Acordão: 12/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS308.º, N.º 2, 283.º, N.º 3, AL. B), DO CPP
Sumário: 1- O despacho de pronúncia ou de não pronúncia deve conter, ainda que de forma sintética, os factos que possibilitam chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária
2- O Tribunal da Relação tem de conhecer quais os indícios tidos por assentes pela 1ª instância, para que possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos mesmos, de molde a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma poder confirmar o despacho de pronúncia ou de não pronúncia.
3- Não compete ao Tribunal da Relação apreciar os factos apurados e substituir-se ao tribunal de 1ª Instância na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas apenas, por força do recurso, com a base indiciária recolhida, corroborada ou não por outros elementos de prova, decidir se no seu conjunto são suficientes ou insuficientes para a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância.
4- O Tribunal de recurso não pode apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários.
5- A não descrição da matéria fáctica, ainda que de forma sintética, determina a nulidade do acto, nulidade esta cognoscível em sede de recurso da decisão instrutória, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, al. b), do CPP.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:
1. Nos Autos de Instrução n.º 185/08.8GAFIG, do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, 1.º Juízo, foi proferida, em 26/3/2010, decisão instrutória de não pronúncia quanto ao arguido J....
2. Inconformado com essa decisão, em 27/4/2010, recorreu o Assistente P..., defendendo a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra no sentido da pronúncia do arguido, pela prática do crime p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do C. Penal, com o consequente envio do processo para julgamento.
Apresentou as seguintes conclusões:
1. Conforme consta dos autos, após a apresentação de denúncia feita pelo Assistente P..., onde foram denunciados factos que teriam sido praticados por J... e que o M. P. entendeu poderem ser susceptíveis de integrar em abstracto a prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, foi proferido despacho de arquivamento;
2. Não se conformando com o arquivamento dos presentes autos, requereu o Recorrente/Assistente abertura de instrução, nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 287.º, do C.P.P., alegando para o efeito o que acima se transcreveu e aqui se requer a sua apreciação;
3. Na decisão recorrida, foi decidido não pronunciar o Arguido pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
4. Em primeiro lugar, não podemos aceitar como a mais correcta a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida;
5. De facto, atendendo à prova produzida em sede de inquérito, e posteriormente em sede de instrução, nunca se poderia ter decidido da forma como se decidiu;
6. Embora o despacho recorrido tenha começado por fazer o saneamento do processo, considerando não haver nulidades ou questões prévias e, seguidamente, passando a conhecer sobre o mérito do requerimento instrutório, tendo concluído pela não pronúncia do arguido, omite, no entanto, completamente, a decisão fáctica, isto é, não descreve nem especifica quais os factos do requerimento instrutório que considera suficientemente indiciados e os que não considera suficientemente indiciados;
7. Só após essa enumeração é que se poderia seguir a tarefa de decidir se os factos indiciados eram ou não suficientes para a sujeição do arguido a julgamento pelo crime imputado;
8. O cumprimento dessa exigência é essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia, ficando o valor deste despacho, consequentemente, afectado por via de tal omissão;
9. A decisão recorrida padece de irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do C.P.P.;
10. A decisão contida no despacho objecto do presente recurso enferma de nulidade;
11. De facto, o tribunal a quo remete a fundamentação da decisão recorrida exclusivamente para o despacho de arquivamento, fazendo constar do despacho sob recurso, de forma, aliás, tabelar, vaga, genérica e não especificada, a conclusão pela insuficiência dos indícios da prática do crime denunciado pelo recorrente;
12. Quando é certo que a norma contida no artigo 307.º, n,º 1, in fine do CPP, limita expressamente a possibilidade de remissão da fundamentação para o despacho de acusação ou para o requerimento de abertura de instrução;
13. Para peças que, contrariamente aos despachos para os quais remeteu, põem termo ao processo judicial e, portanto, exigem um completo esclarecimento a prestar aos interessados sobre os concretos fundamentos de facto e de direito que o motivam;
14. De onde resulta tratar-se de uma decisão que, no que respeita à fundamentação, se encontra irremediavelmente eivada de nulidade, porque se baseou numa interpretação extensiva do artigo 307.º, n.º 1, in fine do CPP, que, para além de não se encontrar abrangida pela respectiva ratio, contraria lei expressa;
15. De facto, a referida norma, em conjugação com o disposto no artigo 308.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, não permite outra interpretação que não seja a de que a fundamentação do despacho de não pronúncia tem de conter, expressa e especificadamente, os elementos constantes das als. b) e c), do n.º 3, do artigo 283.º, do CPP;
16. Exigência legal que, no caso vertente, não foi, de todo, observada, de onde decorre a nulidade do despacho sob recurso, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, do CPP;
17. Mas, além disso, o despacho recorrido tem a natureza de uma verdadeira sentença, como a define o n.º 1 do artigo 97.º, do CPP, porque conhece do objecto do processo, decidindo que o arguido não deve ser responsabilizado criminalmente e põe termo aos autos;
18. Deve entender-se que lhe é aplicável o disposto nos artigos 374.º e 379.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CPP, que exigem que a decisão manifeste a respectiva fundamentação, especificando os motivos de facto e de direito que a determinam, e o conhecimento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal;
19. Na medida em que a decisão não contém essa fundamentação, este eivada de nulidade, também por violação do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2, do CPP, o que se requer seja reconhecido e declarado por V. Exas., mandando-se corrigir o vício de que a decisão enferma;
20. Circunstância que conduz, inevitavelmente, a que o despacho de não pronúncia de que ora se recorre enferme de contradição, na medida em que a prova produzida no inquérito e na instrução impunha decisão diversa da constante da decisão recorrida.
21. De facto, de acordo com o disposto no artigo 308.º, n.º 1, do CPP, a fase de instrução termina com a prolação do despacho de pronúncia sempre que, da prova recolhida no inquérito e nas diligências instrutórias, resultarem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança;
22. Critério que é concretizado no artigo 283.º, n.º 2, do CPP, aplicável ex vi do n.º 2 do artigo 308.º, do mesmo diploma legal, no sentido de que os indícios devem ser considerados suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança;
23. Juízo de probabilidade sobre a verificação dos elementos objectivos dos tipos de crime (únicos que importam considerar para efeito da decisão instrutória) que, no presente caso, face aos elementos de prova recolhidos em inquérito e na instrução, deve considerar-se completamente assegurado, relativamente ao crime denunciado pelo recorrente e a que respeita este recurso;
24. Desde logo, verifica-se que a prova testemunhal e documental constante dos autos não deixa persistir quaisquer dúvidas sobre o preenchimento dos elementos objectivos deste crime;
25. Com efeito, ficou cabalmente demonstrado que o arguido mandou cortar madeira de um eucaliptal sito no Lugar … – Figueira da Foz, que sabia que não lhe pertencia;
26. Fazendo o arguido, aqui recorrido, sua a madeira que sabia que não lhe pertencia;
27. Esta infracção foi praticada pelo arguido, como resulta, aliás, de forma inequívoca, do depoimento prestado pelas testemunhas do Recorrente/Assistente, que sabiam e conheciam que o arguido havia vendido ao assistente um prédio rústico e metade indivisa do prédio rústico, conforme resulta das escrituras já juntas aos autos;
28. Vejam-se os depoimentos das testemunhas arroladas pelo assistente, aqui recorrente: A..., E…, J..., M…, R..., H…;
29. Daí que, e como o depoimento das testemunhas foi gravado, se requeria a renovação da prova, nos termos do artigo 430.º, do CPP;
30. De forma clara e inequívoca, estas testemunhas revelaram demonstrar saber que o arguido vendeu ao assistente/recorrente os prédios descritos no requerimento de instrução, pese embora algumas das testemunhas não saibam em que circunstâncias o negócio se efectivou, nomeadamente preço, condições de pagamento, etc;
31. Todavia, todas estas testemunhas, embora não sabendo, algumas delas, precisar os termos do negócio, o que é certo é que todas elas sabiam que o assistente, aqui recorrente, é dono e proprietário registado dos prédios a que alude o artigo 5.º do requerimento de abertura de instrução, de onde foi cortada, retirada e vendida a madeira dos eucaliptos e que nunca o arguido negou;
32. Pelo que se impõe concluir pela suficiência dos indícios da sua prática, uma vez que ficou demonstrado ter o arguido furtado madeira que sabia não lhe pertencer;
33. Veja-se o referido na decisão recorrida: “…fazendo apelo à prova produzida em sede de inquérito e de instrução, (…), quanto ao elemento objectivo parece que sim, pois desde logo afigura-se-nos pacifico e ademais mostra-se documentalmente comprovado nos autos que o assistente é proprietário registado dos prédios a que alude o artigo 5.º do RAI e de onde terá sido cortada, retirada e vendida a madeira dos eucaliptos, o que de resto não foi negado pelo arguido em momento algum…”;
34. Perante o que acima se transcreveu, dúvidas não existem que deve a decisão recorrida ser revogada, com todas as consequências legais daí resultantes;
35. Refere a decisão recorrida que a prova não é suficiente para poder concluir que o arguido, ao vender a madeira das árvores, sabia que estas não lhe pertenciam e que actuou com o objectivo ilegítimo de se apropriar de algo que não era seu e que sabia não o ser;
36. Não se entende a decisão recorrida também nesta parte, visto que é o próprio arguido que reconhece que cortou, retirou e vendeu a madeira dos eucaliptos, de terreno que sabe não lhe pertencer;
37. Por outro lado, todos os documentos juntos aos autos provam a venda, o preço do negócio celebrado entre o arguido e o assistente;
38. Como foi referido, quer pelo assistente quer pelo recorrido, quer pelas testemunhas por si arroladas, foram entregues, por parte do assistente, várias quantias em dinheiro ao arguido;
39. Nunca poderia o assistente apresentar qualquer documento comprovativo do pagamento do preço que diz ter efectuado, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, visto que o pagamento do preço da venda foi feito em dinheiro, conforme referido pelo assistente/recorrente e testemunhas por si arroladas;
40. Não é pelo facto de o assistente não ter apresentado qualquer documento comprovativo do pagamento do preço que não resultam indícios suficientes para pronunciar o arguido;
41. Refere, ainda, a decisão recorrida que, de acordo com as mais elementares regras da experiência comum, deveria pelo menos existir um documento de quitação ou outro que comprove o pagamento do preço;
42. As escrituras juntas aos autos provam o recebimento do preço por parte do assistente/recorrente ao arguido;
43. Não existem, assim, dúvidas do pagamento por parte do assistente/recorrente e o recebimento por parte do arguido;
44. No entanto, decidiu-se pelo arquivamento da acusação que impendia sobre o arguido, apesar de no processo existirem indícios suficientes que permitem imputar ao arguido o tipo legal de crime em causa;
45. Não houve, assim, uma correcta apreciação do tribunal sobre a matéria em análise nos presentes autos;
46. Bem como não houve uma correcta apreciação por parte do tribunal sobre os elementos constantes do processo;
47. Na verdade, bastava ler e ter em conta o que disseram as testemunhas acima indicadas para constatar que daqueles depoimentos resultam indícios suficientes para imputar ao arguido o crime suporá referenciado;
48. E relevante é ainda o facto das testemunhas arroladas pelo recorrente serem vizinhos amigos do arguido, sendo que efectivamente o recorrente vendeu ao arguido o prédio descrito nos autos;
49. Mas ainda que assim não fosse, resulta claramente dos autos que o arguido manifestou condutas susceptíveis de consubstanciar a prática do crime, nos termos das normas legais supra indicadas;
50. Ora, ainda assim, não foi proferido despacho de pronúncia, relativamente ao arguido por um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal;
51. Na verdade, há necessidade de alterar a decisão proferida em primeira instância, enviando-se o processo para julgamento, com o fim de se apurar a verdade dos factos;
52. O arguido terá de ser julgado pelo crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal;
53. Existe, de facto, no processo prova suficiente para levar o arguido a julgamento;
54. Não se pode aceitar assim uma decisão de não pronúncia, sem que se analisem todas as provas constantes do processo e não apenas aquelas que decorrem da instrução;
55. Salvo o devido respeito, não se compreende como se considerou não existirem elementos suficientes para acusar o arguido, apenas com base no facto de o mesmo ter simplesmente negado a prática dos factos;
56. Lendo atentamente a decisão recorrida, verifica-se que não indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar e fundamentar a real e efectiva situação do verdadeiro motivo da não pronúncia do arguido;
57. A decisão recorrida viola o disposto no artigo 205.º, da C.R.P., uma vez que, segundo esta disposição Constitucional, “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na Lei”;
58. A decisão recorrida não é de mero expediente, daí ter de ser suficientemente fundamentada;
59. A decisão recorrida viola o disposto no artigo 204.º, da C.R.P., uma vez que esta norma é tão abrangente que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só que violem “os princípios nela consignados”;
60. Na verdade, a decisão recorrida viola os princípios consignados na C.R.P., nomeadamente consignados nos artigos 13.º, 27.º, 28.º, 29.º e 32.º;
61. E a decisão recorrida viola o disposto no artigo 202.º, da C.R.P., nomeadamente o n.º 2, uma vez que: “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos…e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”;
62. Neste caso, essa circunstância não se verifica;
63. Isto é, o Tribunal, o Meritíssimo Juiz com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos do Alegante;
64. O Meritíssimo Juiz limitou-se, apenas e tão só, a emitir uma decisão “economicista”;
65. Isto é, na decisão recorrida não se apreciou devidamente a prova produzida em inquérito e instrução, conforme já vimos;
66. Estamos plenamente convictos que este Venerando Tribunal alterará a decisão proferida em primeira instância, ordenando-se o envio do processo para julgamento;
67. Dúvidas não existem de que o Meritíssimo Juiz violou o disposto nos artigos 307.º e 308.º, do CPP, ao não ter pronunciado o arguido;
68. Terá, assim, de ser REVOGADA a decisão recorrida.
**** 3. Apenas o Digno Magistrado do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, em 24/5/2010, defendendo a sua improcedência total. Sem apresentar conclusões, deixou expresso que “o despacho de não pronúncia é claro”, acrescentando, ainda, que o mesmo se alicerçou “na prova produzida e constante dos autos”.
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4. O recurso foi, em 7/6/2010, admitido. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 28/6/2010, acompanhando na íntegra a posição assumida em 1ª instância pelo Ministério Público, emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, deixando vincado que “toda a argumentação do recorrente se encontra sustentada em hipóteses e conjecturas que não encontram suporte em termos probatórios, quer em sede de Inquérito, quer de Instrução”.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Por despacho de 15/9/2010, não foi admitida a renovação da prova requerida pelo recorrente a fls. 459. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
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B – DECISÃO RECORRIDA:
I. Nos presentes autos, após a apresentação de denúncia feita por P..., onde foram denunciados factos que teriam sido praticados por J... e que o Ministério Público entendeu poderem ser susceptíveis de integrar em abstracto a prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do C. Penal, foi proferido despacho de arquivamento por, então, e realizadas as pertinentes diligências de inquérito, se ter entendido que o preenchimento do tipo legal está dependente de uma actuação dolosa com intenção, necessariamente ilegítima, de apropriação de coisa alheia, sendo que, no caso concreto, ante as versões opostas trazidas aos autos pelo assistente e pelo arguido, não é possível concluir terem sido recolhidos indícios suficientes que o arguido, ao vender a madeira das árvores em causa, sabia que estas lhe não pertenciam e que actuou com o objectivo ilegítimo de se apropriar de algo que não era seu e que sabia não o ser. Acresce que o queixoso, embora proprietário registado dos terrenos onde se encontravam as árvores cortadas, não apresentou qualquer documento comprovativo do pagamento que terá efectuado para a sua aquisição. Assim, perante a prova produzida e dúvidas que desta decorrem, seria mais provável a absolvição do que a condenação do arguido.
II. Inconformado, requereu o assistente P... a abertura de instrução, nos termos e com os fundamentos de fls. 102 a 105, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, alegando, no essencial, que a venda dos terrenos em causa, de onde foi retirada a madeira dos eucaliptos, não foi simulada, tendo o assistente pago o preço respectivo ao arguido, pedindo por isso que seja J... pronunciado pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do C. Penal.
Requereu a inquirição de várias testemunhas e juntou documentos.
III. Declarada aberta a instrução, foi admitida a inquirição das testemunhas indicadas e foram os documentos juntos, tendo ainda sido, no decurso da instrução, requerida e admitida a junção de mais documentos.
IV. Realizou-se o debate instrutório com observância de todo o formalismo legal, conforme se pode constatar da respectiva acta.
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O Tribunal é competente.
Não há nulidades, ilegitimidades, excepções ou questões prévias que cumpra conhecer.
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Aqui chegados, cumpre analisar os elementos probatórios carreados para os autos, não sem antes tecer alguns considerandos no que à fase de instrução concerne.
Vejamos.
(…)
Sendo este o critério legal em que deve assentar a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se puder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma reacção criminal.
Resultarão, então, dos autos dados que, com o grau de certeza assinalado, apontem no sentido de estarem verificados os pressupostos de que depende a condenação do arguido?
A PROVA
Analisemos, então, a prova existente nos autos, e no que ora releva, quer a produzida em sede de inquérito, quer a produzida em sede de instrução.
Em sede de inquérito:
- queixa apresentada pelo ofendido P..., a fls. 2, tendo o mesmo prestado declarações complementares, a fls. 58, na qual refere que o arguido lhe vendeu, para além dos terrenos em causa, uma casa e a empresa, não se tratando de qualquer venda simulada, pois que pagou o respectivo preço através de várias quantias em dinheiro;
- junção dos documentos de fls. 3 a 15 que constituem cópias de escrituras públicas de compra e venda e recibo de quitação referente a corte e descasque de eucalipto;
- interrogatório do arguido J... (fls. 45 a 47), o qual admitiu, efectivamente, ter vendido a madeira em causa, esclarecendo, todavia, que os terrenos de onde a mesma proveio são seus. Explicou que foi interveniente em acidente de viação, sendo portador de excesso de álcool no sangue e que do mesmo resultaram danos graves materiais e ainda ferimentos nos seus ocupantes, e, por estar receoso das consequências de que daí poderiam advir para a sua pessoa e património, combinou então com a sua mulher e o assistente, por vontade de todos, que se realizasse a venda simulada de todo o seu património a este último, isto com o objectivo de assim não poder ser demandado no seu património, caso contra si viesse a ser intentada uma acção de indemnização, contribuindo para essa decisão a circunstância de o assistente ser uma pessoa da sua inteira confiança e, além disso, ser pessoa de família. Desta forma e acertados todos os detalhes, foram celebradas as competentes escrituras de compra e venda simuladas do seu património, sem que tenha havido qualquer pagamento de preço ou contrapartida monetária, passando-o todo para o nome do assistente, no pressuposto de que, depois de ultrapassado o problema do acidente de viação, tudo reverteria novamente ao património do arguido. Em consonância, na mesma altura, ficou ainda combinado que a posse e fruição dos prédios escriturados, em toda e qualquer circunstância, ficariam para o arguido e sua mulher. Foi dentro deste propósito que o arguido vendeu a madeira dos eucaliptos, fazendo-o na convicção de que se tratava de madeira que era sua, sabendo disso o queixoso;
- junção pelo arguido de uma cópia de declaração da qual consta o acordo simulatório descrito, datado de 9 de Junho de 2006, assinada apenas pelo arguido e sua mulher;
- inquirição da testemunha T... (a fls. 38) que confirmou que o arguido lhe vendeu a madeira de um eucaliptal na propriedade de C…, pelo preço de mil e trezentos euros, tendo para o efeito se deslocado ao local e efectuado o corte da madeira;
- inquirição da testemunha I... (a fls. 40) que referiu que foi contactada pelo arguido, por duas vezes, em finais de Julho de 2008 e Agosto desse ano, tendo em vista a compra de madeira e pinheiros e que pôde observar que a madeira de um dos pinhais se encontrava “no parque do denunciado em C…”;
- inquirição da testemunha B... (a fls. 67) que referiu nunca ter assistido a qualquer negócio que tivesse ocorrido entre o arguido e o assistente;
- inquirição da testemunha D... (a fls. 75) que mencionou, em súmula, desconhecer os factos que se discutem nos autos;
- inquirição da testemunha F... (a fls. 76) que disse não ter assistido aos factos constantes da denúncia, embora referindo que assistiu ao pagamento de uma quantia pecuniária por parte do arguido no valor de cinco mil euros, por parte do queixoso ao arguido, não sabendo concretizar a que tal pagamento se destinava.
Em sede de instrução:
- junção pelo assistente de cópias de escrituras públicas de compra e venda, as quais já constavam de fls. 3 a 14;
- inquirição da testemunha A... ( fls. 326 a 332) que, no essencial, referiu ter presenciado várias entregas em dinheiro pelo assistente ao arguido, não sabendo contudo indicar a que título eram devidas, pois nada sabe sobre os negócios existentes entre ambos;
- inquirição da testemunha E… (fls. 332 a 338) que, na qualidade de presidente da Junta de Freguesia de …, referiu que, a determinada altura, houve necessidade de se proceder ao alargamento de uma estrada (Rua da Fonte) e pedir aos proprietários de vários terrenos que cedessem parte dos mesmos, tendo nessa sequência contactado com o arguido que, por seu turno, o remeteu para o assistente para tratar do referido assunto. Após, deslocaram-se ao local com vista a uma reunião para marcação do terreno, na qual estiveram presentes assistente e arguido. Afirmou que, quanto ao negócio da venda de terrenos entre arguido e assistente, nada sabe;
- inquirição da testemunha J... (fls, 338 a 345) que, em 2006, assumia as funções de secretário da Junta de Freguesia de …, e que confirmou que procederam ao alargamento de uma estrada (Rua da Fonte), pelo que tiveram de pedir aos proprietários de vários terrenos que cedessem parte dos mesmos, tendo nessa sequência contactado com o arguido que, por seu turno, remeteu a resolução do assunto para a pessoa do assistente. Disse que, na altura da marcação dos terrenos, estiveram presentes assistente e arguido. Afirmou nada saber no que concerne a negócios de compra e venda de terrenos entre arguido e assistente;
- inquirição da testemunha ML… (fls. 345 a 349) que mostrou falta de conhecimento directo dos factos, já que tudo o que sabe resulta do que ouviu dizer na população;
- inquirição da testemunha LM… (fls. 349 a 356) que referiu que o arguido, em certo dia, comentou consigo que tinha “posto tudo em nome do P…”, referindo-se à transmissão do seu património para o assistente, sendo que tudo o restante resulta do que ouviu dizer dos populares;
- inquirição da testemunha MA… (fls. 356 a 364) que, basicamente, referiu ter presenciado várias entregas em dinheiro pelo assistente ao arguido, não sabendo, todavia, indicar a que título eram devidas pois, para além de não conhecer os negócios celebrados entre ambos, sabe que eram, também, sócios da mesma empresa, desconhecendo se as referidas entregas de dinheiro seriam por conta do exercício da actividade da sociedade ou por qualquer outra circunstância. Quanto ao mais, o que pensa saber deriva do que ouviu dizer a outros;
- junção da certidão do registo predial dos prédios a que alude o artigo 5.º do RAI, constante de fls. 259 a 263 dos autos;
- inquirição da testemunha M… (fls. 372 a 374) que referiu que o arguido, certo dia, em conversa lhe disse que “teve de vender os seus bens”, lastimando-se que estaria a atravessar problemas financeiros relacionados com dívidas;
- inquirição da testemunha R... (fls. 374 a 377) que referiu que presenciou, em determinado dia, o assistente a entregar uma quantia pecuniária em dinheiro ao arguido, com vista a comprar-lhe um terreno, não tendo, todavia, esclarecido minimamente qual era o prédio ou prédios em causa nem a data exacta em que tal aconteceu, nem se vieram a celebrar a correspondente escritura pública ou não;
- inquirição da testemunha H… (fls. 377 a 383) que afirmou que o arguido, certo dia, em conversa lhe disse que “tinha vendido tudo ao Paulo”, querendo referir-se à pessoa do assistente, desconhecendo contudo os termos do acordo celebrado já que não assistiu a quaisquer negociações;
- junção dos documentos de fls. 389-399 que constituem cópia das declarações Modelo 3 de IRS correspondente aos exercícios dos anos de 2007 e 2008.
O CRIME
Elencada a prova produzida, passemos à análise do crime que o ora assistente imputa ao arguido, a saber, o crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
De acordo com o referido dispositivo, comete um crime de furto “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outrem subtrair coisa móvel alheia”.
Assim, são elementos constitutivos do crime de furto:
a) A subtracção de coisa móvel, isto é, a violação da posse exercida pelo lesado e a integração da coisa, susceptível de apreensão, pertencente a alguém e com valor juridicamente relevante, na esfera patrimonial do agente ou de terceira pessoa;
b) Ilegítima intenção de apropriação, ou seja, o dolo específico, traduzido na intenção do agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada, a haver para si ou para outrem, integrando-o na sua esfera patrimonial.
Com esta incriminação, visa-se proteger o poder de fruição, de disposição e de gozo sobre uma coisa determinada (cfr. artigo 1305.º, do Código Civil).
Assim, verifica-se a consumação do crime quando o agente retira uma coisa móvel – no sentido do artigo 204.º, do Código Civil -, com intenção de dela se apropriar, do poder de detenção ou guarda do sujeito passivo e a transfere para a sua própria esfera jurídica.
Quanto ao elemento subjectivo, exige-se algo mais que o dolo genérico, o qual deve abranger todos os elementos relevantes do tipo incriminador. Com efeito, é necessário, para que a conduta do agente seja subsumível ao tipo legal, que a subtracção seja feita com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outrem
Aqui chegados, e fazendo apelo à prova produzida em sede de inquérito e de instrução, urge perguntar se estarão verificados os elementos objectivos e subjectivos do crime em apreço.
E, quanto ao elemento objectivo, parece que sim, pois desde logo afigura-se-nos pacifico e ademais mostra-se documentalmente comprovado nos autos que o assistente é proprietário registado dos prédios a que alude o artigo 5.º do RAI e de onde terá sido cortada, retirada e vendida a madeira dos eucaliptos, o que, de resto, não foi negado pelo arguido em momento algum.
Mas já no que concerne ao elemento subjectivo do crime, entendemos que o mesmo não está verificado.
Na verdade, ressaltam dos autos duas versões antagónicas trazidas pelo assistente e pelo arguido, no que respeita à venda dos terrenos em apreço, já que o primeiro sustenta que a compra e venda foi real e querida pelas partes, ao passo que o segundo defende que a venda não passou da aparência de um negócio já que a transmissão da propriedade foi simulada, como forma de “ocultar” o património do arguido e assim eximir-se à responsabilidade civil que pudesse ser-lhe assacada por via de um acidente de viação culposo a que deu azo.
Ora, a prova indiciária coligida não é suficiente para poder concluir que o arguido, ao vender a madeira das árvores, sabia que estas não lhe pertenciam e que actuou com o objectivo ilegítimo de se apropriar de algo que não era seu e que sabia não o ser, o que desde logo decorre da circunstância de nenhuma das testemunhas inquiridas ter conhecimento directo e pessoal do negócio celebrado entre arguido e assistente, desconhecendo em concreto os seus contornos, designadamente no que se refere à identificação, localização e situação exacta dos imóveis, respectivos preços, modo e condições de pagamento, etc.
Acresce que o assistente nunca apresentou qualquer documento comprovativo do pagamento do preço que diz ter efectuado, nem exibiu qualquer recibo de quitação, como exigiria qualquer pessoa diligente, segundo critérios de normalidade e de acordo com as mais elementares regras da experiência comum.
É certo que também não resultam indícios suficientes para se poder concluir pela bondade da versão do arguido, no sentido de que a venda foi simulada, embora tivesse sido ventilado por várias testemunhas que este se debatia com problemas financeiros, derivados de um problema de acidente de viação e que também não seja propriamente consentâneo com a versão do assistente o facto de ter adquirido a casa de habitação ao arguido, contra o pagamento do respectivo preço, e este continue presentemente a habitá-la como se fosse seu proprietário pois que, ao que se saiba, não paga qualquer renda para o efeito.
Sucede, porém, que perante as aludidas dúvidas, em sede de julgamento, seria mais provável a absolvição do que a condenação do arguido, quanto mais não seja por apelo ao princípio in dubio pro reo.
Destarte, julgamos que os elementos recolhidos nos autos não permitem concluir pela verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança pela prática do crime de furto pelos motivos que supra deixamos expostos.
Pelo exposto, decidimos não pronunciar o arguido.
Condena-se o assistente em taxa de justiça que se fixa em 2 UC, bem como nos encargos do processo (artigos 515.º, n.º 1, al. a) e 518.º, do CPP, e 83.º, n.º 2, do CCJ).
Notifique.
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C - Cumpre apreciar e decidir:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque das irregularidade da decisão recorrida:e esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
As questões a apreciar são as seguintes:
1) saber se a decisão recorrida padece de irregularidade, por não especificar quais os factos que considera indiciados e os que não considera indiciados;
2) saber se a decisão recorrida enferma de nulidade, por falta de fundamentação;
3) saber se há elementos nos autos para proferir despacho de pronúncia, pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do C. Penal.
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O recorrente entende que, embora o despacho recorrido tenha começado por fazer o saneamento do processo, considerando não haver nulidades ou questões prévias e, seguidamente, passando a conhecer sobre o mérito do requerimento instrutório, tendo concluído pela não pronúncia do arguido, omite, no entanto, completamente, a decisão fáctica, isto é, não descreve nem especifica quais os factos do requerimento instrutório que considera suficientemente indiciados e os que não considera suficientemente indiciados, sendo certo que só após essa enumeração é que se poderia seguir a tarefa de decidir se os factos indiciados eram ou não suficientes para a sujeição do arguido a julgamento pelo crime imputado.
Na realidade, considera que o cumprimento dessa exigência é essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia, ficando o valor deste despacho, consequentemente, afectado por via de tal omissão.
Tendo isso em consideração, defende que a decisão recorrida padece de irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do C.P.P.
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Que se oferece dizer quanto ao alegado?
Enquanto fase jurisdicional, como refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, p. 128, citando Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, p. 16: «A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”. Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito, antes contempla a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
Em boa verdade, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, sempre tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo 287.º, do C.P.P. (ver artigo 288.º, n.º 4, do mesmo código).
O artigo 286.º, n.º1, do C.P.P., indica expressamente como objectivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução culmina com o debate instrutório o qual visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento. De acordo com o artigo 298.º, do C.P.P.
Após o debate instrutório será proferido despacho de pronúncia ou de não pronúncia consoante existam ou não indícios suficientes que justifiquem a submissão ou não do arguido a julgamento.
Um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, n.º 1, ambos do C.P.P.).
Em resumo, a instrução visa a comprovação judicial de acusar ou não acusar, isto é, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pelos factos e ilícito que lhe são imputados, in casu, pela assistente no requerimento de abertura de instrução.
Dispõe o artigo 308.º, n.º 1, do C.P.P., que, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respectivos factos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.
Resulta, por sua vez, do artigo 283.º, n.º 2, do C.P.P., para onde remete o artigo 308.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.
O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento.
Por indiciação suficiente, entende-se “a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança”. Trata-se da “…probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal…” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª edição, Verbo 1999, páginas 99 e 100).
Como ensina Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º volume, 1974, pág. 133, “…os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.”, acrescentando que “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.”
Podemos, então, concluir que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, devidamente relacionados e conjugados entre si, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado. - Sobre este conceito, ver, ainda, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 388/99 (DR, II, 8-11-1999, páginas 16.764 e ss.) e n.º 583/99 (DR, II, 22-2-2000, páginas 3.599 e ss.); e o Acórdão do TRE, de 1-3-2005, in www.dgsi.pt.
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Só da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas.
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Aqui chegados, importa notar que o despacho de pronúncia ou de não pronúncia tem de conter os elementos referentes no art. 283.º, n.ºs.2, 3, do CPP, sem prejuízo da 2ª parte do n.º1, do art. 307º, do mesmo diploma legal, em que se define que o juiz pode fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução. Na realidade, só da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas. E é sobre esse juízo que este Tribunal pode decidir do acerto ou não da decisão recorrida. Estipula o art.308.º, do CPP, sob a epígrafe “Despacho de pronúncia ou de não pronúncia”, no seu n.º2, que é aplicável ao despacho referido no n.º1 (deste artigo), o disposto no art.283.º, n.º 2, 3, ou seja, a necessidade de narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou uma medida de segurança. A não narração dos factos, ainda que sintética, dos factos que constituem fundamento da decisão de pronúncia ou não pronúncia, acarreta a nulidade do despacho – artigo 308.º, n.º 2, com referência ao artigo 283.º, n.º3. b), do mesmo diploma legal. Ao fazermos esta afirmação, acompanhamos, assim, a orientação defendida no Ac. do TRE, processo n.º 1481/04, de 1.03.2005, relatado pelo Exmo. Desembargador Orlando Afonso, publicado em www.dgsi.pt, onde pode ser lido o seguinte: “(…) Para que este Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios por forma a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma optar pela necessidade da pronúncia ou não pronúncia, necessita saber quais os indícios tidos por assentes pela 1ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido. Por isso, o despacho de pronúncia ou de não pronúncia há-de conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária. No caso em apreço, nenhum facto indiciário, em termos objectivos, foi carreado ao despacho de pronúncia (nem foi afirmado que nenhum facto se provou) tendo, apenas, sido retiradas conclusões pela Mma JIC, da prova que analisou sem dar por assente qualquer facto.
(…) . Não compete ao Tribunal da Relação concatenar os factos apurados e substituir-se à Mmª Juiz de Instrução na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas tão somente, por força do recurso, em vista de factos indiciários descritos, corroborados ou não por outros elementos dos autos, decidir se todos eles são suficientes ou insuficientes para o proferimento de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. A ausência de factos descritos impede a análise pelo Tribunal “ad quem” da bondade da solução encontrada em sede de instrução). (…) A não descrição dos factos acarreta a nulidade do despacho (art.308.º, nº2, com referência ao art. 283.º, nº3, b) do CPP). E constitui esta falta, nulidade cognoscível por este Tribunal da Relação. Não fazendo, embora, parte do elenco de nulidades descritas nas alíneas a) a f) do art.119º do CPP, não pode deixar de ter-se como insanável a nulidade consistente na falta de narração, ainda que sintética, dos factos que constituem fundamento da decisão de pronúncia ou não pronúncia, tendo em atenção que as disposições do art.119º do CPP não são taxativas: constituem nulidades insanáveis, para além das que estão descritas nas alíneas daquele dispositivo, todas as que como tal forem cominadas noutras disposições legais, dentro ou fora daquele diploma legal. Se é certo que o art. 283.ºnº.3, do CPP, a que se refere o art. 308.º, do mesmo código, não diz que se trata de uma nulidade insanável (o que, primo conspectu, poderia numa interpretação declarativa restrita conduzir à sua classificação como nulidade sanável, e nessa medida, dependente de arguição), a lógica do sistema, em matéria de tão fundamental importância, porque pressuposto da subsunção, necessariamente nos tem de conduzir a interpretação diferente. Se a falta de narração dos factos na acusação conduz, nos termos do art.311.º, n.º2, a), do CPP à rejeição desta, não faz sentido que o Tribunal de recurso deva apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários. E, se nenhum facto resulta provado o Juiz deve dizê-lo expressamente. Dispõe o art.308.º, nº2, do CPP que é correspondentemente aplicável ao despacho de pronúncia (ou de não pronúncia) o disposto no art.283.º,n.os 2, 3 e 4 do mesmo código, ou seja, para o que ao caso interessa, a necessidade de narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. Poder-se-ia argumentar que tal imposição apenas respeitaria ao despacho de pronúncia e não ao de não pronúncia já que, colocados os artigos em similitude, não existe para o despacho de arquivamento a exigência semelhante ao de acusação. Duas ordens de razões levam-nos a concluir o contrário. Em primeiro lugar, o art.308.º, n.º 2, do CPP não distingue. Diz, apenas, que “é correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior”, sendo certo que o despacho referido no número anterior é tanto o de pronúncia como o de não pronúncia. E, “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”. Em segundo lugar há uma razão de orgânica judiciária. Do despacho de arquivamento (proferido pelo MºPº), se não tiver sido requerida a instrução, pode-se reclamar, nos termos do art.278º do CPP, para o superior hierárquico competente o qual se pode substituir ao magistrado de grau hierárquico inferior, nomeadamente avocando o processo (art.79ºnº4 do Estatuto do Ministério Público), o que não implica a necessidade estrita de descrição de factos que podem e devem ser superiormente compulsados. O mesmo não se passa com o despacho de não pronúncia. Deste despacho pode-se recorrer e o Tribunal superior ao apreciar o recurso não se substitui ao Tribunal “a quo”, ou seja, não pode aquele proferir um despacho de pronúncia ou de não pronúncia. Apenas pode, em face dos elementos constantes da decisão instrutória, (o recurso não é do conjunto processual é de uma decisão específica) decidir se o Tribunal recorrido deve ou não modificar o seu despacho. Para tanto tem a decisão recorrida de fornecer ao Tribunal “ad quem” todos os elementos fácticos que lhe permita apreciar o recurso. Daí que o art. 308.º, nº2, não tenha e bem feito distinção entre um ou outro dos despachos impondo a ambos as mesmas exigências de narração factual. (…) Desta posição resulta em síntese, o seguinte: 1- O despacho de pronúncia ou de não pronúncia deve conter, ainda que de forma sintética, os factos que possibilitam chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária. 2- O Tribunal da Relação tem de conhecer quais os indícios tidos por assentes pela 1ª instância, para que possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos mesmos, de molde a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma poder confirmar o despacho de pronúncia ou de não pronúncia. 3- Não compete ao Tribunal da Relação apreciar os factos apurados e substituir-se ao tribunal de 1ª Instância na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas apenas, por força do recurso, com a base indiciária recolhida, corroborada ou não por outros elementos de prova, decidir se no seu conjunto são suficientes ou insuficientes para a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. 4- O Tribunal de recurso não pode apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários. E, se nenhum facto resulta provado o Juiz deve dizê-lo expressamente. 5- A não descrição dos factos acarreta a nulidade da decisão instrutória (art.308.º, nº2, com referência ao art.283.º, n.º 3, b), do CPP), por ausência de fundamentação de facto da mesma – ver, neste sentido, o Ac. do TRL, de 10/7/2007, Processo n.º 1075/07-5, relatado pela Exma. Desembargadora Margarida Blasco, e, em sentido contrário, o Ac. do TRG, de 15/5/2006, Processo n.º 7649/2006, relatado pelo Exmo. Desembargador Fernando Gomes, in www.dgsi.pt.
**** Por tudo o exposto, entendemos que a não descrição da matéria fáctica, ainda que de forma sintética, determina a nulidade do acto, nulidade esta cognoscível em sede de recurso da decisão instrutória, nos termos das disposições conjugadas dos artigos. 308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, al. b), do CPP. Aliás, e por sua vez, não se esqueça, também, que o requerimento de abertura de instrução, quando o Ministério Público arquiva o inquérito, fixa o objecto do processo, ou seja, a temática dentro da qual se há-de desenvolver a actividade investigatória e cognitória do juiz de instrução, razão pela qual, no artigo 309.º, n.º 1, do CPP, se estabelece uma proibição de pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução.
Porém, o interesse da fixação da temática factual não se esgota na delimitação dos poderes de cognição do juiz de instrução ao proferir o despacho, nos termos do artigo 308.º, do CPP.
A sua importância é também fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido.
Ao referirmo-nos a estes últimos, estamos a pensar nas situações em que o tribunal conhece do mérito do requerimento instrutório, ou seja, em casos de decisão final nos quais, apesar de indiciados os factos descritos no requerimento instrutório, o Sr. Juiz de Instrução conclui que os mesmos não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos.
Nesses casos, transitada em julgado essa decisão, o processo onde foi proferida só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos previstos nos artigos 449.º, n.º 2, e 450.º, n.º 1, al. b), do CPP, podendo, então, o arguido arguir a excepção do caso julgado em qualquer outro processo que seja instaurado pelos mesmos factos.
Dúvidas não há de que estamos na presença de decisão final quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo de deva à não indiciação de todos ou parte dos factos descritos no requerimento instrutório. Todavia, porque es trata de insuficiência de prova indiciária, o processo pode ser reaberto, assim como instaurado novo processo, se aparecerem novos elementos de prova que abalem o fundamento da decisão de não pronúncia.
Por conseguinte, a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende, como é evidente, dos respectivos pressupostos de facto.
Por esse motivo, ao ser proferido despacho de não pronúncia, deve ser sempre descrito e especificado o conjunto de factos que se consideram indiciados e não indiciados, até para se garantirem os direitos de defesa do arguido.
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Face ao exposto até agora, decide-se, pois, anular o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro, onde sejam inseridos os factos indiciários que permitam concluir pela pronúncia ou não pronúncia do arguido.
Deste modo, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões controvertidas expostas no recurso em apreciação.


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D - Decisão:
Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente, ainda que com fundamentação diferente da apresentada, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que contenha a descrição factual indiciada necessária à prolação do competente despacho. Sem custas. ****
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Coimbra, 9 de Dezembro de 2010,
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(José Eduardo Martins)

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(Isabel Valongo)