Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
347/11.0TBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
RESOLUÇÃO CONTRATUAL
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – INST. CENTRAL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1022º C. CIVIL.
Sumário: I – O direito ao arrendamento, de natureza eminentemente obrigacional, a qual decorre directa e imediatamente do art.1022º do C.Civil, determina que a ação de resolução seja uma acção pessoal, onde se pretendem fazer valer direitos de obrigação e onde a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito de crédito, ou seja, no caso, o concreto contrato de locação devidamente invocado e identificado.

II - Não sendo a questão da propriedade a questão jurídica central que cumpra dirimir nesse tipo de ações, tal significa que estando provado o contrato de arrendamento o ónus da prova de que o locador não é o proprietário dos bens imóveis locados mas antes o próprio locatário cabe a este último.

III - Quando o locatário alegue que os bens a si locados são sua propriedade por ter registo predial em seu nome, desde data anterior àquela em que celebrou o arrendamento, na aceitação de que quem tem o domínio dos imóveis é outrem (no caso o locador), encontra-se por consequência lógica ilidida a presunção do registo e impõe-se-lhe para provar a sua propriedade que alegue e demonstre um modo de aquisição originário.

Decisão Texto Integral:         








           Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No Tribunal da Comarca de Viseu – Inst. Central – J3 o Município de N... instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a ré “Companhia ..., SA”.

Alegou que celebrou com a ré um contrato de arrendamento que teve por objecto quatro prédios, tendo sido convencionada uma renda mensal que foi objecto de actualização e que à data da interposição da acção se cifrava em € 1.660,10; que desde Fevereiro de 2010 a ré cessou o pagamento das rendas.

Pede que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento;

- que seja a ré condenada a despejar e a entregar à autora o locado, livre e devoluto de pessoas e bens;

- que seja a ré condenada a pagar à autora as rendas já vencidas no total de € 33.202,00 e nas vincendas até efectiva entrega do locado.

Na contestação a ré alegou nunca ter sido inquilina do autor, tendo por erro e ao longo de vários anos pago contrapartidas indevidas, pagamento que esse que cessou quando detectou tal erro, considerando que o autor litiga com má-fé. Mais alegou a ré que as águas medicinais têm um carácter público e dominial, pelo que nunca o autor das mesmas se poderia apropriar, além de que nem sequer é proprietário dos terrenos onde as mesmas existem. Acresce que a ré solicitou ao Estado Português autorização para exploração das referidas águas, tendo mandado edificar um balneário termal, correspondente a prédio descrito a favor da ré na competente Conservatória do Registo Predial de N...

Assim, concluiu a ré que os estabelecimentos que ocupa e explora e que correspondem ao balneário termal e estabelecimentos de apoio ou são sua propriedade ou estão integrados no domínio público, cuja exploração lhe foi concedida por licença e contrato de exploração, pelo que quaisquer contratos de arrendamento celebrados com o autor, a existirem, devem considerar-se feridos de nulidade, dada a indisponibilidade do seu objecto e a falta de legitimidade do autor para se vincular.

Concluiu a ré que a acção deveria ser julgada improcedente, por não provada, por manifesta falta de fundamento do pedido e por nulidade dos contratos invocados pelo autor.

Na resposta o autor reafirma que o objecto do negócio celebrado com a ré não foi a exploração de águas medicinais, mas sim o arrendamento dos terrenos e edifícios em causa, dos quais é legítimo proprietário, concluindo como na petição inicial, solicitando ainda a condenação da ré em multa e indemnização condigna, como litigante de má-fé.

Realizada a instrução dos autos veio a realizar-se julgamento e a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré Companhia ..., S.A. no pagamento ao autor Município de N... do montante de €33.202,00 (trinta e três mil e duzentos e dois euros), correspondente às rendas vencidas desde Fevereiro de 2010 até ao mês de Outubro de 2011, bem como das rendas vencidas e vincendas desde então (mês de Novembro de 2011, inclusive), e enquanto persistir o arrendamento, sendo o seu montante mensal actual de € 1.660,10 (mil e seiscentos e sessenta euros e dez cêntimos).

No mais absolveu a ré do pedido.

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a ré concluindo que:

...

Nas contra alegações o réu defende a confirmação da sentença recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

O Tribunal de primeira instância fixou provados os seguintes factos:

… …

Além de delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).

Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do recurso é o de saber se foi correctamente decidida a matéria de facto; se deveria ter sido incluída na Base instrutória matéria que era necessária à decisão e que não foi julgada e se, nesta sequência o tribunal não apreciou qualquer questão que devesse conhecer.

Iniciando o conhecimento do objecto do recurso pela impugnação da matéria de facto e porque consideramos preenchidos os requisitos exigidos pelo nº1 do art. 640 do CPC, em concreto, a recorrente concluiu pretender que se dê como não provado o facto constante no nº1 da Base Instrutória

Tribunal a quo, na sua sentença registou nos factos provados que o prédio inscrito na matriz sob o artigo ..., previsto documento epigrafado Contrato de arrendamento dos terrenos onde se situam as nascentes minero-medicinais das C..., outorgado em 07/10/1967, desde 1939 que é propriedade da Recorrente, estando como tal inscrito na respectiva matriz.

Como fundamento para o que sustenta neste domínio a recorrente argumenta com o relatório pericial e com a prova testemunhal prestada em audiência.

Ora, numa breve, mas necessária recensão das declarações que foram prestadas pelas pessoas ouvidas em julgamento retemos que:

...

Na análise crítica destas declarações o que julgamos poder extrair-se com segurança probatória é que a impossibilidade de fazer corresponder os números das matrizes velhas dos terrenos às matrizes novas e bem assim as suas confrontações não significa qualquer impossibilidade, para as pessoas inquiridas em fazer corresponder os prédios constantes do arrendamento aos novos prédios surgidos com as novas matrizes porquanto, se assim se pode dizer, mudando o número atribuído à realidade, a realidade manteve-se a mesma e com a mesma localização.

Assim é avisado e de boa observação para a formação da convicção o que se refere na motivação da matéria de facto quanto à circunstância de o teor das matrizes já anteriormente referidas aludirem à sua natureza e revelarem afectação à exploração desse recurso hidromineral. E por outro lado o registo de que a informação de fls. 343 na sua nota 1 alude ao que é confirmado pela acta camarária aludida no facto 5.1, onde se refere que quanto ao “(…) arrendamento dos terrenos onde se situam as nascentes de águas minero-medicinais da F...”, sendo a Câmara Municipal de N... “proprietária (…) do solo e das edificações nele construídas” desses “terrenos de onde brotam as águas”.

Observada a realidade a partir dos elementos disponíveis e seguros de classificação dos terrenos discutidos na sua natureza e afectação, conjugando tais elementos com os conhecimentos revelados pelas testemunhas que, repita-se, declararam conhecer bem os terrenos em causa, desconhecendo apenas as correspondências das novas matrizes e das eventualmente novas confrontações, entendemos que não merece censura o raciocínio e conclusão probatória que fixou como provado o facto nº 1 da Base Instrutória.

Quanto às questões suscitadas no âmbito da prova pericial realizada, sublinhamos que como é unanimemente reconhecido a prova através de perícia tem por objecto “a percepção ou a apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial” (artº 388º do C.C.). Mas pese embora o perito dispor de conhecimentos especiais que o julgador não possui, a sua função é a de “auxiliar do tribunal no julgamento da causa, facilitando a aplicação do direito aos factos”, não impedindo tal que seja “um agente de prova e que a perícia constitua um verdadeiro meio de prova”[1] Daí que a força probatória das respostas dos peritos seja fixada livremente pelo tribunal (artº 389º do C.C.).

Como defende Antunes Varela “apesar de a resposta do perito assentar, por via de regra, em conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, é ao tribunal, de harmonia com o prudente arbítrio dos juízes, que se reconhece o poder de decidir sobre a realidade do facto a que a perícia se refere. Parte-se do princípio que aos juízes não é inacessível o controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu laudo e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou por afastar-se mesmo de todos eles, no caso de frequente divergência entre os peritos”[2]

Mas apesar do princípio enunciado no citado artigo 389.º do CC, perante a especificidade técnica das questões suscitadas, ao Tribunal impõe-se que respeite o princípio da interdisciplinaridade na definição da verdade material, traduzido na aceitação do contributo das várias áreas do saber (técnico-científico), podendo o julgador, no exercício da liberdade que a citada norma lhe confere, pôr em causa o relatório técnico dos peritos, devendo no entanto fazê-lo apenas com recurso a argumentação técnica, eventualmente baseada noutros meios de prova divergentes, de igual ou superior credibilidade técnica.

Face a este quadro axiológico e normativo, apesar da “liberdade” que lhe é conferida pelo artigo 389.º do CC, o julgador no processo civil, perante os meios de prova de natureza técnica e científica, apenas deverá afastar as conclusões alicerçadas em tais critérios, com base em argumentação da mesma natureza, eventualmente colhida noutros pareceres que lhe mereçam igual ou maior credibilidade[3].

Verificada a natureza e valor da prova pericial, a primeira abordagem que deve fazer-se sempre neste domínio de prova é o de saber se, efectivamente, as questões colocadas à apreciação dos peritos são materialmente qualificáveis como sendo as que exigem especiais conhecimentos de ciência porquanto não é por constarem de um pedido de perícia que tenha sido deferido que as questões passam a ser entendidas como matéria de valor pericial.

No caso vertente, solicitou-se aos peritos que respondessem à matéria de 1 a 3 da BI, isto é, que se pronunciassem sobre se após a alteração das novas matrizes no concelho de N..., os prédios referidos em B) passaram a ser os prédios referidos nas novas matrizes indicadas; se os prédios referidos em B) estão integrados no domínio público e se se encontram incluídos na área reservada de 60 ha cedida à ré em 21 de Maio de 1938 na sequência da licença concedida em 17 de Agosto de 1893 para exploração das nascentes de águas minero-medicinais da F...

Ora, no essencial, o que os srs. peritos concluíram foi a impossibilidade de estabelecer, por via documental, uma correspondência entre as matrizes dos prédios objecto do contrato de arrendamento mencionado no ponto 5.2 dos factos provados e as dos prédios mencionados no artigo 1º da base instrutória.

E quanto a este inciso observamos que, afinal, os srs. peritos o que buscavam era, em documentos, obter a solicitada correspondência o que não constituía verdadeiramente uma actividade pericial mas antes uma tarefa que, através da junção de tais documentos, se existissem, permitisse ao julgador, e só a ele com autonomia e independência de conhecimento retirar a conclusão sobre o valor probatório de tais documentos para afirmar a correspondência.

Acresce que essa impossibilidade de fundar em documentos a correspondência das matrizes sai melhor esclarecida no testemunho das pessoas ouvidas em audiência que do relatório dos peritos, sendo que quando na perícia se alude à possibilidade de realizar essas correspondências pedidas “com base na localização e denominação dos prédios, das confrontações indicadas nas matrizes e bem como da confirmação pelos vizinhos confinantes” é com base nestes precisos items que as testemunhas, nos termos sobrevistos, referiram e afirmaram a correspondência de acordo com a resposta dada.

Em resumo o significado útil do laudo dos peritos coincide com a razão de ciência dos testemunhos mais esclarecidos e com conhecimento pessoal do facto discutido confirmando-se deste modo com a nossa a convicção da primeira instância.

Aliás, relativamente ao prédio aludido na alínea a) ainda que os peritos concluíssem que a prova que lhes foi disponibilizada não lhes permitisse uma resposta conclusiva uma conclusiva vale aqui o já antes enunciado e que é no sentido de se ter por seguro que esse prédio foi incluído pelas partes (autor e ré) no contrato de arrendamento referente à exploração do recurso hidromineral em questão ressumando do documento matricial de fls. 65 que se trata de um imóvel afecto a tal exploração, pelo que na ponderação da sua localização geográfica, é consistente em termos probatórios a conclusão de que é um dos prédios identificados em 5.2, sufragando-se aqui também o entendimento do tribunal a quo ao ponderar que no sopeso de todos os elementos probatórios, incluindo o documento matricial de fls. 65 resulta que se trata de um imóvel afecto a tal exploração

O argumento ofensivo desta conclusão e sustentado pela recorrente aponta para que a prova pericial no caso, ao concluir que se as correspondências (mesmo as sustentadas no laudo) foram feitas apenas com base na localização e denominação dos prédios, das confrontações indicadas nas matrizes e com base na confirmação pelos vizinhos confinantes, por não ser possível estabelecer a correspondência das matrizes anteriores a 1982 para as actuais matrizes, tal só poderia significar, ficar o tribunal impedido de dar como provado o que deu.

A primeira singularidade do argumento é a de formar a petição de princípio de que tudo o que consta da peritagem é prova pericial que impõe ao juiz um critério especial de ciência coincidente com a dos peritos para negar a resposta. Mas, por outro, que a própria resposta dos peritos em que estes aludem à possibilidade de fazer a correspondência com base noutro critério que não o da relação numerativa, deve ser desconsiderada por se exigir que para o facto ficar provado, concretamente houvesse documento ou elemento de ciência a afirmar com toda a absolta assertividade e exclusão de dúvida que um determinado prédio antigo com uma determinada matriz era exactamente um outro com concreta matriz.

Em anotação teremos de lembrar que mesmo que se quisesse ter o objecto da perícia ordenada perícia como materialmente pericial sempre teríamos de concluir que os argumentos de ciência revelados no laudo são exactamente iguais aos argumentos para que o tribunal a quo tenha tomado esse relatório como base da resposta, ao concluir também que os elementos de localização e denominação dos prédios, ou mesmo da sua afectação e natureza na comparação com os descritos nas matrizes anteriores eram seguros para responder. Adiantando-se também que temos para nós da forma anteriormente enunciada que os conhecimentos para responder ao que era o objecto da perícia eram e se revelaram do âmbito daquelas matérias a que até as testemunhas e os documentos podiam demonstrar.

Quanto ao argumento que remete para o facto de os peritos, quanto a um prédio inscrito sob o artigo matricial n.º..., e incluído na descrição dos prédios dados de arrendamento do documento reproduzido em B) da matéria de facto assente, terem feito constar que que aquele prédio, constante do documento epigrafado de “contrato de arrendamento dos terrenos onde se situam as nascentes minero-medicinais das F...” está inscrito na matriz em nome da Companhia ..., SARL (ou seja da R.), desde 1939, e por conseguinte muito antes do artigo ..., que apenas foi inscrito no ano de 1966, a recorrente pretende que tal se impunha ao tribunal que considerasse que “Ficou assim indiscutivelmente provado nos autos que o segundo prédio identificado naquele documento outorgado em 07/10/1967 é e sempre fora propriedade da Recorrente, mesmo já em 07/10/1967, já que se mostrava registada essa propriedade por registo datado desde o longínquo ano de 1939.”

Esclarecendo liminarmente, deixamos sublinhado que o prédio dito como inscrito sob o artigo matricial n.º... não é nenhuma das matrizes que quer no contrato de arrendamento quer na correspondência pretendida para a solução da presente acção,[4] se bem que em verdade o que a recorrente almeje seja, não discutir esse artigo matricial ..., mas sim que se considere que os peritos concluíram e decidiram que o art. ... é propriedade sua.

Retemos de imediato que a recorrente entende que uma conclusão de direito como é a propriedade de um determinado terreno pudesse, ou melhor, devesse, ser fixado num relatório pericial.

Ainda que de modo breve e introduzindo aqui conceitos de direito substantivo, deixamos a indicação de que qualquer registo de imóvel faz ressumar dele a presunção de ser propriedade do titular inscrito nos termos em que contam do registo (art. 7 do CRP). Porém, em matéria em que se reclame a propriedade de um imóvel com base no registo esta deve ser peticionada de forma inequívoca de forma a obter-se o seu reconhecimento.

Ora, no caso vertente a autora invoca um contrato de arrendamento, que prova, quer quanto aos contraentes quer quanto ao objecto do mesmo.

O direito ao arrendamento tem uma natureza eminentemente obrigacional, a qual decorre directa e imediatamente do art.1022º do C.Civil, sendo o pagamento da renda ou aluguer (al.a) do art.1038º do mesmo Código) uma obrigação característica do contrato de locação, constituindo a retribuição a que se refere o citado art.1022º e que aparece como elemento essencial do contrato.

Assim, no caso, do que se trata é de uma acção pessoal, onde se pretendem fazer valer direitos de obrigação e onde a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito de crédito, ou seja, no caso, o concreto contrato de locação devidamente invocado e identificado.

Deste modo, a questão da propriedade não é a questão jurídica central que cumpra dirimir, isto é, não representa propriamente o «thema decidendum», sem embargo de, para que tal se alterasse fosse necessário que a locatária questionasse (exigindo-se então que alegasse e provasse) que a senhoria não era senhoria ou que os prédios arrendados, afinal, eram seus[5].

Neste sentido e com interesse para a questão em solução, cumpre esclarecer que não era a autora que deveria provar que os prédios constantes do arrendamento lhe pertenciam, quando o contrato de arrendamento se tem por provado, sendo isso da responsabilidade da ré alegar e provar que os prédios arrendados, não obstante constarem do contrato eram de sua propriedade, e esta prova a demandada não fez.

Compreenda-se que se a autora alega e prova um determinado contrato de arrendamento sobre determinados imóveis a argumentação segundo a qual a arrendatária trem esses mesmos imóveis registados em seu nome, desde data até anterior ao próprio contrato de arrendamento, não pode fazer funcionar a presunção de registo porquanto a simples circunstância de se haver alegado e provado o contrato de arrendamento a temos por suficiente para afastar a presunção que se extarei do registo. É que afirmando arrendatária que estava a arrendar uma coisa que era sua propriedade, está implícita mas inegavelmente a aceitar que esses imóveis estavam na disponibilidade material e possessória de outrem a quem ela reconheceu esse domínio negando deste modo ela mesmo a presunção e obrigando-a a alegar e provar uma aquisição originária o que não fez. Isto tudo tendo presente que a reclamação segundo a qual o arrendamento teria sido contratado, por parte da ré, por quem não a representava nem tinha poderes, resultou não provado tendo ficado provado precisamente o contrário.

Em síntese, pelo exposto entende-se que devem improceder as conclusões de recurso quanto à impugnação da matéria de facto, mantendo-se sem alteração a fixada pelo tribunal a quo e sem qualquer necessidade ou possibilidade, nos termos analisados, de fazer constar que um prédio inscrito na matriz sob o artigo ... desde 1939 que é propriedade da Recorrente.

… …

Quanto ao objecto do recurso concernente à insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa, reproduz no essencial a recorrente o que em requerimento apresentou como reclamação à base Instrutória.

Já dissemos anteriormente que alegando e provando a locadora a existência de arrendamento, a protestada e recorrida necessidade de a sentença dar como pré-existente a propriedade dos bens dado a arrendamento, bem como a disponibilização do gozo temporário dos imóveis invocados nos autos à R. por via da invocada relação contratual, não decorre da circunstância de a locatária como demandada impugnar o contrato de arrendamento carecendo, perante a prova documental de ter sido celebrado um contrato dessa natureza, que quem o impugne alegue e prove os factos dessa oposição. No caso, se a arrendatária que figura no contrato provado afirma que os prédios objecto do contrato lhe pertencem a si e não ao locador, terá de prova essa propriedade ela mesmo. E nos termos analisados anteriormente, observamos que no caso, se tal pretendesse, a ré teria de invocar um meio de aquisição originário da propriedade uma vez que perante a existência de arrendamento, celebrado quando já se encontrasse realizado o registo a favor do locatário, uma eventual presunção decorrente do registo soçobrava.

Ainda que em recurso invoque que alegou “(…) que os bens por si detidos e utilizados na exploração das águas minero-medicinais das F..., eram sua propriedade, sustentando que nunca lhe terem sido disponibilizados outros que não fossem os seus, (…)” a verdade é que a recorrente não alegou nem se provaram os factos necessários à certificação de serem os terrenos que constam do arrendamento de sua propriedade.

Articulando embora diversos factos[6], a verdade é que para lá de eventuais registos a ré não alega qualquer forma de aquisição originária dos terrenos identificados no arrendamento, exercitando um histórico sobre a concessão das águas minero medicinais que explora. O que pretende é que, por deter a concessão do alvará da sua exploração e fazendo tais águas parte do domínio hídrico público, por extensão digamos, tal domínio público hídrico faria com que, quem detivesse o alvará da exploração das águas, passasse a ser proprietário dos terrenos onde as mesmas se encontram de forma automática e sem qualquer processo de transferência da propriedade particular para o domínio do Estado. Mais ainda, que a concessão de alvará de exploração das águas minerais constituísse um único acto através do qual, de forma juridicamente estranha, a propriedade dos terrenos deixasse de pertencer aos seus proprietários para passar para os particulares a quem tivesse sido concedida a exploração das águas existentes no terreno.

Como se forma correcta se deixou expresso na sentença recorrida o arrendamento celebrado entre as partes teve como finalidade o exercício de actividade industrial, traduzida na exploração de um recurso hidromineral: água mineral natural “F...” – cfr. artigo 3º, nº 1, al. a), e 2, do D.L. nº 90/90, de 16-03 (que disciplina o regime jurídico de revelação e aproveitamento de bens naturais existentes na crosta terrestre, genericamente designados por recursos geológicos, integrados ou não no domínio público, com excepção das ocorrências de hidrocarbonetos – artigo 1º, nº 1).

Integrando-se os recursos hidrominerais domínio público do Estado, (art. 1º, nº 2, al. b), do citado diploma legal, o Estado pode conceder aos particulares, por contrato administrativo, os direitos de prospecção e pesquisa (“permitindo a prática de operações visando a descoberta de recursos e a determinação das suas características, até à revelação da existência de valor económico”), e de exploração (“permitindo o exercício da atividade posterior à prospeção e pesquisa, ou seja, o aproveitamento económico dos recursos”) – artigo 9º, nº 1 e 2.

E foi neste enquadramento legal que a exploração do recurso hidromineral água mineral natural “F...”, que integra o domínio público do Estado, foi concedida, por licença administrativa à ré, a qual naturalmente liquida a devida remuneração/retribuição/contrapartida.

Para exploração desse recurso a ré, como concessionário, goza do direito de “requerer a expropriação por utilidade pública e urgente dos terrenos necessários à realização dos trabalhos e à implantação dos respectivos anexos, ainda que fora da área demarcada, ficando os mesmos afetos à concessão” (alínea e) do nº 1 do artigo 23º do aludido diploma legal), bem como do direito de “obter a constituição a seu favor por ato administrativo das servidões necessárias à exploração dos recursos” (alínea f) do nº 1 do artigo 23º). Sucede que no caso em apreço, a ré não exerceu qualquer dos apontados direitos, limitando-se a utilizar os prédios mencionados nos pontos 5.2. e 5.5. dos factos provados, que se apurou constituírem anexos da exploração do recurso hidromineral água mineral natural “F...”, ao abrigo do contrato de arrendamento que se encontra em discussão nos autos.

Ora, esta breve exposição permite distinguir e quanto a nós resolver algumas possíveis ambiguidades que se quisessem ver existir na relação entre a concessão da exploração de um recurso hidromineral e a propriedade dos imóveis onde se situem esses recursos, permitindo ainda concluir que toda a matéria articulada pela ora recorrente e que ela protesta como ser necessária a discussão da causa, resulta afinal irrelevante porquanto, por mais que fosse provado todo o histórico do recurso hidromineral água da F..., a verdade é que tudo continuaria, em nosso entender, a reconduzir-se à discussão sobre se, perante um contrato de arrendamento demonstrado como provado, a ré alegou e provou que era proprietária dos terrenos constantes desse arrendamento por os ter adquirido através de uma forma originária, o que, como vimos não ocorreu.

Assim improcede também quanto ao protesto de ser a matéria de facto para a decisão da causa, o recurso da ré.

Por fim, se a locação é um contrato bilateral e oneroso, tendo o senhorio um direito de crédito sobre o inquilino, do valor da renda convencionada, como contrapartida do gozo do imóvel cedido, existindo o direito à indemnização do art.1041º, nº1, do C.Civil, sempre que haja situação de mora no pagamento de rendas, esta obrigação mantém-se inalterada enquanto o contrato de arrendamento não for resolvido ou julgado inválido ou ineficaz.

No caso presente mantendo-se a validade e eficácia do contrato de arrendamento celebrado entre autora e ré, por não ter havido prova de qualquer alteração a essa validade deve manter-se inalterada a decisão de direito.

Síntese conclusiva:

- O direito ao arrendamento, de natureza eminentemente obrigacional, a qual decorre directa e imediatamente do art.1022º do C.Civil, determina que a acção de resolução seja uma acção pessoal, onde se pretendem fazer valer direitos de obrigação e onde a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito de crédito, ou seja, no caso, o concreto contrato de locação devidamente invocado e identificado.

- Não sendo a questão da propriedade a questão jurídica central que cumpra dirimir nesse tipo de acções, tal significa que estando provado o contrato de arrendamento, o ónus da prova de que o  locador não é o proprietário dos bens imóveis locados mas antes o próprio locatário cabe a este último.

- Quando o locatário alegue que os bens a si locados são sua propriedade por ter registo predial em seu nome, desde data anterior àquela em que celebrou o arrendamento, na aceitação de que quem tem o domínio dos imóveis é outrem (no caso o locador), encontra-se por consequência lógica ilidida a presunção do registo e impõe-se-lhe para provar a sua propriedade que alegue e demonstre um modo de aquisição originário.

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente

Coimbra, 12 de Setembro de 2017

Relator: Des. Manuel Capelo

J.A.: Sr. Des. Falcão de Magalhães

J.A.: Sr. Des. Pires Robalo

[1] (A. Varela. J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, pg. 578).
[2] (ob. cit. pg. 583).
[3] Nesse sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 7.07.2009, proferido no processo n.º 61/1996.L1-1 «[…] Apesar da sua liberdade de apreciação das provas, incluindo a pericial, o julgador não pode, sem fundamentos suficientemente sólidos, afastar-se do resultado das peritagens, sobretudo quando são unânimes ou quando os peritos formaram maioria e oferecem garantias de imparcialidade, ainda mais quando os maioritários são peritos do tribunal. […] Um tal afastamento só se justificará, por exemplo, quando o tribunal concluir que os peritos basearam o seu raciocínio em erro manifesto ou num critério ilegal. De contrário, não apresentando o relatório pericial qualquer desses vícios, e à falta de elementos mais seguros e objectivos, há que aceitar o valor proposto pelos técnicos. […]».

[4] Este prédio 527 é mencionado no art. 52 da contestação dizendo-se aí que se trata do balneário que está edificado sobre o imóvel inscrito na matriz 1435
[5] Quanto a esta matéria pacífica na jurisprudência podem consultar-se os acs. do  STJ, de 10/12/09, 10/9/09, 12/1/06 e 12/2/98, todos disponíveis in www.dgsi.pt e ainda o ac. R.L  de 29/5/12, igualmente disponível in www,dgsi.pt).

[6] Nos quais inclui , com pretensão de virem a ser provados como factos partes do livro “Águas de Portugal”, de Luis Acciaiuoli, pág 117, 3º volume.